Pretensão judicial à dispensação de Trastuzumabe: incorporação pelo SUS após a propositura da ação
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Apelação Cível/Reexame Necessário - Turma Espec. III - Administrativo e Cível Nº CNJ : 0006833-45.2012.4.02.5101 (2012.51.01.006833-8) RELATOR : Desembargador Federal RICARDO PERLINGEIRO APELANTE : MUNICIPIO DO RIO DE JANEIRO E OUTROS PROCURADOR DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO - RJ E PROCURADOR : OUTROS APELADO : NILDA DE LIMA MONTEIRO DEFENSOR PUBLICO : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO ORIGEM : 05ª Vara Federal do Rio de Janeiro (00068334520124025101)
EMENTA
APELAÇÃO CÍVEL. REMESSA NECESSÁRIA. ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. SOLIDARIEDADE ENTRE OS ENTES FEDERATIVOS. RESERVA DO POSSÍVEL E MÍNIMO EXISTENCIAL. ISONOMIA E UNICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ANÁLISE DA DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA ADMINISTRATIVA. MEDICAMENTO (TRASTUZUMABE) SEM REGULAMENTAÇÃO E NÃO INCORPORADO. PRINCÍPIO DISPOSITIVO E PRECLUSÃO LÓGICA NAS CAUSAS DE DIREITO ADMINISTRATIVO. 1. A solidariedade apenas possui acepção externa, sendo infrutífera a vinculação do demandante a qualquer acordo prévio interno entre os entes federados em termos de repartição de competência. A responsabilidade solidária é instituto que serve como garantia à satisfação dos interesses de determinado ocupante do polo ativo numa relação obrigacional, não havendo que se falar em iliquidez da sentença por indeterminação dos responsáveis: todos o são, e como um todo. 2. É desnecessário e inaplicável um debate sobre o mínimo existencial e a reserva do possível se a lei reconhece o direito reclamado mediante o atendimento aos seus requisitos. A falta de recursos orçamentários não é fato obstativo de um direito instituído por lei, apesar dos inconvenientes para sua concretização. 3. O princípio da igualdade a ser observado pela Administração não serve de justificativa para negar direitos subjetivos. Realmente, conceder a um cidadão um direito que também poderia ser estendido a todos os que estivessem na mesma situação, sem efetivamente estendê-lo, rompe com essa ideia de igualdade. Porém, o erro está na Administração não estender esse benefício, e não no Judiciário reconhecer o direito. 4. O conceito de “assistência integral” consubstanciado no art. 19-M da Lei nº 8.080/90 não deve ser considerado como absoluto e impeditivo à dispensação de medicamentos não incorporados à lista do SUS, principalmente frente ao direito constitucional e fundamental à saúde. Recomendável que o magistrado, ao analisar a efetividade, eficiência, segurança e custo-efetividade da demanda, exija a apresentação de documentos relacionados com o caso, bem como proceda à oitiva prévia do médico responsável pela prescrição e, inclusive, dos gestores (Reunião “Judicialização da Saúde Pública”, da Escola da Magistratura Regional da 2ª Região – EMARF, de 15 de agosto de 2014 – Conclusões 4,5,6,7,8, disponível em: http://ssrn.com/abstract=2487841). 5. Quanto à “discricionariedade administrativa técnica”, a intensidade da sindicabilidade judicial será proporcional à capacidade cognitiva do Judiciário para avaliar a prova correspondente, especialmente em comparação às próprias autoridades públicas quanto a sua aptidão em produzi-las; facultar-se-á um debate sobre a versão fática, somente quando viável a realização judicial da prova técnica.
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6. A edição da Portaria nº 73 do Ministério da Saúde, que incorpora à lista de remédios do SUS o “trastuzumabe”, encerra qualquer discussão acerca do dever ou não de sua dispensação pela Administração Pública. Entretanto, em tendo sido deferida medida liminar pelo juízo a quo, é necessária a análise da necessidade e regularidade dessa dispensação pretérita. 7. Disparidade na apresentação de provas, apresentando o autor um laudo médico relatando os sintomas e fundamentando a necessidade do fornecimento do medicamento Herceptin, enquanto a União narra a existência de Centros de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) e a não incorporação do medicamento na lista do SUS, não obstante a prévia edição da Portaria nº 73 do Ministério da Saúde. 9. Atuação contraditória da União ao longo do procedimento, impugnando a eficácia, eficiência, segurança e custo-efetividade de um medicamento regulamentado por razões opostas, mesmo havendo Portaria do Ministério da Saúde que incorporou o medicamento à lista do SUS. 8. Ao juiz é vedado apreciar questões fáticas e jurídicas aquém das apresentadas pelas partes (Art. 22 do Código Modelo Euro-Americano de Jurisdição Administrativa). A preclusão lógica é inerente ao princípio do dispositivo, que, contudo, nas causas de direito público, deve ser ponderado com o princípio da legalidade e do interesse público. 10. Redução da condenação em honorários advocatícios, fixados para R$ 2.000,00 (dois mil reais), por ente federativo, nos termos do art. 20, §§ 3º e 4º, do CPC/73 11. Apelação do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro e remessa necessária parcialmente providas. Apelação da União não provida. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a 5ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à remessa necessária e às apelações do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro e negar provimento à apelação da União, na forma do relatório e do voto, constantes dos autos, que ficam fazendo parte do presente julgado. Rio de Janeiro, 19 de abril de 2016 (data do julgamento). RICARDO PERLINGEIRO Desembargador Federal
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Apelação Cível/Reexame Necessário - Turma Espec. III - Administrativo e Cível Nº CNJ : 0006833-45.2012.4.02.5101 (2012.51.01.006833-8) RELATOR : Desembargador Federal RICARDO PERLINGEIRO APELANTE : MUNICIPIO DO RIO DE JANEIRO E OUTROS PROCURADOR DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO - RJ E PROCURADOR : OUTROS APELADO : NILDA DE LIMA MONTEIRO DEFENSOR PUBLICO : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO ORIGEM : 05ª Vara Federal do Rio de Janeiro (00068334520124025101)
RELATÓRIO
Cuida-se, na origem, de ação ordinária ajuizada por NILDA DE LIMA MONTEIRO em face da UNIÃO, do ESTADO DO RIO DE JANEIRO e do MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. A demandante sustenta que é portadora de NEOPLASIA MALIGNA DA MAMA (CID C50), tendo sido submetida, em 16/04/2012, no Hospital Universitário Pedro Ernesto, à cirurgia de segmentectomia da mama direita e à pesquisa de linfonodo sentinela que evidenciam carcinoma ductal infictrante de 3,0 cm; grau 3; receptores hormonais negativos; CERB2 positivo (3+); linfonodo negativo, necessitando do medicamento Herceptin (trastuzumabe) – 440mg/ frasco, ressaltando ser indispensável para tratamento conjunto à quimioterapia. Demonstra que o tratamento suscita o total de 18 aplicações com 19 frascos, custando cada um, aproximadamente, R$ 10.750,00 (dez mil setecentos e cinquenta reais), valor incompatível com as condições financeiras da demandante, que tem renda familiar mensal de R$ 250,00, montante constituído pelo salário de suas filhas, tendo em vista que a demandante se encontra desempregada. Ressalta ainda que se dirigiu à Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro, portando ofícios expedidos pela Defensoria Pública da União, na tentativa de obter o medicamento, a qual restou frustrada sob justificativa de o remédio não estar incluído na grade de assistência farmacêutica básica dos respectivos entes. Constam às fls. 26 e 27 os receituários médicos que prescrevem o uso do medicamento. A Defensoria Pública da União emitiu ofício ao Diretor da Secretaria Estadual de Saúde, solicitando o fornecimento do medicamento à demandante (fls. 28/29), mas o pedido foi negado, ao argumento de o medicamento não fazer parte do componente especializado da Secretaria de Saúde do Estado (fl. 32). O juízo a quo proferiu despacho, intimando a demandante a esclarecer, por meio de laudo expedido por médico público, sobre a absoluta imprescindibilidade dos medicamentos solicitados, a incorporação do medicamento à listagem do Governo Federal, bem como a possibilidade de outra alternativa menos custosa. Novo laudo médico foi juntado aos autos (fls. 45/46), atestando a imprescindibilidade do medicamento como única opção para tratamento da doença. O juízo deferiu a tutela antecipada, ordenando que os réus fornecessem 19 frascos do medicamento Herceptin, bem como propiciassem todos os tratamentos necessários ao restabelecimento da saúde da autora (fl. 47).
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A União interpôs recurso de agravo de instrumento com pedido de efeito suspensivo contra essa decisão, sustentando: a) a inexistência do interesse de agir; b) ausência de plausibilidade do alegado, requisito essencial ao deferimento de tutela antecipada; c) violação à universalidade do sistema de saúde, principalmente frente ao elevado valor do medicamento; d) violação ao princípio constitucional da separação dos poderes; e) que o medicamento deve ser pleiteado nos Centros de Alta Complexidade em Oncologia (CACON), unidades hospitalares, da rede pública ou privada, cadastradas no SUS, que possuem condições técnicas, instalações e equipamentos aptos à prestação de assistência para tratamento de todos os tipos de câncer (fls. 61/71). O Estado do Rio de Janeiro ofereceu contestação, sustentando: a) a existência de uma Política Nacional de Atenção Oncológica, concretizada pelas Portarias GM/MS nº 2439/05 e GM/204, as quais atribuíram à União a mobilização de recursos para a prestação de tratamento oncológico, figurando o Estado do Rio de Janeiro como parte ilegítima na demanda; b) a impossibilidade de o demandante dirigir os meios e termos de uma política pública concretizada e organizada; c) necessidade de o laudo médico ser emitido por uma das unidades de referência (CACON/UNACON) da rede pública de saúde (fls. 73/88). A União ofereceu resposta, alegando, em síntese: a) falta do interesse de agir, pois possível o recebimento gratuito e administrativo do medicamento postulado ou similar, desde que a demandante se apresente para tratamento em algum dos centros CACON ou UNACON; b) inexistência de pedido administrativo para a dispensação do medicamento; c) que a dispensação do medicamento compete aos estados e municípios, sendo a União parte ilegítima na demanda por apenas lhe cumprir o repasse de verbas orçamentárias; d) a impossibilidade do fornecimento de medicamento não padronizado em observância aos princípios da universalidade, integralidade e equidade pelos quais se pauta o SUS, bem como consoante o art. 19-M, I da Lei nº 8.080/90; e) estudos que comprovam a inexistência de quaisquer benefícios com o uso do Herceptin (trastuzumabe), tal qual não configuração deste medicamento como condição necessária à realização de quimioterapia; f) inexistência de provas cabais a respeito da condição de saúde da demanda, bem como da necessidade de fornecimento do medicamento postulado (fls. 89/126). O município do Rio de Janeiro, em sua contestação, afirma: a) a impossibilidade de fornecimento de medicamentos não constantes em nenhuma lista formulada pelo SUS; b) a existência de regras internas de competência entre os entes federados no âmbito do SUS (fls. 128/134). A sentença julgou procedente o pedido, condenando os réus a fornecer à demandante, continuamente, e pelo tempo necessário ao restabelecimento de sua saúde, o medicamento Herceptin (trastuzumabe), bem como a propiciar todos os tratamentos necessários ao seu pronto restabelecimento (fls. 156/159). Após a prolação da sentença, o agravo de instrumento (nº 0011773-30.2012.4.02.0000) não foi conhecido por perda de interesse recursal. O Estado do Rio de Janeiro interpôs recurso de apelação, reiterando as alegações apresentadas na contestação e alegando, em síntese: a) a inexistência de responsabilidade solidária entre os entes federativos pela prestação gratuita dos serviços de saúde; b) violação ao princípio do acesso universal e igualitário à saúde; c) excessiva condenação em honorários sucumbenciais, consoante art. 20, §4º do CPC/73 (fls. 165/183). O Município do Rio de Janeiro também apelou da sentença proferida, alegando excessiva condenação em honorários sucumbenciais (fls. 184/189). A União interpôs recurso de apelação, reiterando as alegações apresentadas na contestação e sustentando a iliquidez da sentença, pois não fora esclarecida a obrigação referente a cada um dos entes federativos (fls. 192/203).
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Os recursos foram recebidos apenas no efeito devolutivo (fl. 208). A demandante ofereceu contrarrazões, arguindo, em síntese: a) a existência de solidariedade entre os entes federados na prestação de saúde, não obstante a existência de repartição interna de competência; b) a inclusão do medicamento transtuzumabe na lista do SUS pela Portaria nº 73 da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, não havendo que se falar em impossibilidade de sua dispensação; c) inoponibilidade da reserva do possível frente a direitos que versam sobre a dignidade da pessoa humana (fls. 211/226). Parecer do Ministério Público Federal pelo não provimento dos recursos de apelação interpostos (fls. 242/245). Cópia da Portaria nº. 18/2012 da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde à fl. 246, a qual incorpora o medicamento trastuzumabe no SUS para o tratamento do câncer de mama localmente avançado. É o relatório. Peço dia para julgamento. RICARDO PERLINGEIRO Desembargador Federal
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Apelação Cível/Reexame Necessário - Turma Espec. III - Administrativo e Cível Nº CNJ : 0006833-45.2012.4.02.5101 (2012.51.01.006833-8) RELATOR : Desembargador Federal RICARDO PERLINGEIRO APELANTE : MUNICIPIO DO RIO DE JANEIRO E OUTROS PROCURADOR DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO - RJ E PROCURADOR : OUTROS APELADO : NILDA DE LIMA MONTEIRO DEFENSOR PUBLICO : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO ORIGEM : 05ª Vara Federal do Rio de Janeiro (00068334520124025101)
VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL RICARDO PERLINGEIRO: (RELATOR)
Consoante retratado, trata-se de apelação interposta pela UNIÃO FEDERAL, ESTADO DO RIO DE JANEIRO e MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO em face de sentença que, em ação ordinária, julgou procedente o pedido de fornecimento de 19 frascos do medicamento Herceptin (trastuzumabe) (fls. 156/159). Inicialmente, cumpre afastar a alegação de ilegitimidade passiva ad causam, consoante o seguinte entendimento do Supremo Tribunal Federal:
É dever de todos Entes da federação prestar serviços de atendimento à saúde da população, desimportando o fato de haver a repartição de responsabilidade entre os Entes Federados [...]. A regra contida no art. 196 da Constituição tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (STF, 1ª Turma, AI. 808.059, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, DJe: 23.08.2010)
É necessário ressaltar que a existência de repartição de competências entre os entes federativos não pode ser imputada ao demandante de forma a dificultar ou impedir sua pretensão. A solidariedade é instituto criado com o escopo de satisfazer os interesses de determinado ocupante do polo ativo numa relação obrigacional [relação esta originada por ato ilícito, no presente caso]. Sua incidência tem teor evidentemente externo e subjetivo, com evidente foco nos integrantes do polo passivo, os quais, em conjunto, funcionam como um único credor perante o devedor: todos são indistintamente responsáveis pela integralidade da obrigação. A repartição de competências entre os entes tem função estritamente interna, vinculando tão somente aqueles que compõem o polo passivo da solidariedade. Em âmbito interno, as obrigações são fracionárias, cabendo aos entes estabelecerem suas respectivas responsabilidades e atribuições. Aplica-se a máxima “concursu partes fiunt” na ausência de prévio acordo, presumindo-se que todos respondem pela mesma quota parte. Nesse sentido, preconiza o art. 283 do CC:
O devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos codevedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do insolvente, se o houver, presumindo-se iguais, no débito, as partes de todos os co-devedores.
Assim, qualquer ente federado poderá satisfazer a obrigação, tendo aquele que a adimpliu o direito regressivo contra aqueles que não o fizeram. Não obstante, a existência de prévia repartição de competências, tal fato é plenamente lícito e coerente.Isso porque, tratando-se de credores de obrigação divisível, credores solidários formam litisconsórcio facultativo passivo, incumbindo ao credor a escolha sobre contra quem quer litigar, seja ele internamente competente ou não, sendo, no particular, vedado o chamamento ao processo, conforme entendimento consolidado no precedente aqui mencionado. Não se quer com isso interferir em competências políticas do Poder Executivo, mas estabelecer a
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devida diferença entre a responsabilidade solidária e suas perspectivas interna e externa. Por isso, não há que se falar em existência de sentença ilíquida por não identificação dos responsáveis ao adimplemento da obrigação: todos o são, e o são como um todo. Nesse contexto, o grau de responsabilidade de cada ente federado deve ser aferido oportunamente em procedimento adequado, consoante entendimento estabelecido na Reunião “Judicialização da Saúde Pública”, da Escola da Magistratura Regional da 2ª Região – EMARF, de 15 de agosto de 2014 (disponível em: http://ssrn.com/abstract=2487841): “recomenda-se ao juiz que leve em consideração, quando possível, as normas administrativas de repartição de competência entre os gestores” (Conclusão 10). Quanto à pretensão em si, observa-se que o pedido inicial fora julgado procedente, pois evidenciado o dever do Estado ante um direito fundamental à saúde do demandante. Entretanto, nota-se que, na litispendência do processo, fora editada a Portaria nº 18 da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde em 25 de julho de 2012. Esta incorpora “o medicamento trastuzumabe no Sistema Único de Saúde (SUS) para o tratamento do câncer de mama localmente avançado”. A presente lide, assim, cinde-se em duas dimensões. Em sendo o medicamento “Herceptin” o próprio “trastuzumabe”, resta claro o dever da Administração Pública em fornecer o referido medicamento não só ao demandante, mas a toda a sociedade, rejeitando-se qualquer alegação quanto à quebra de isonomia em sua dispensação. Entretanto, por ter sido concedida medida liminar em 11 de julho de 2012 (fl. 47) - momento anterior à edição da referida portaria -, que promoveu a antecipação do próprio direito material pleiteado na inicial, faz-se mister a análise de sua possibilidade jurídica e necessidade enquanto inexistente incorporação na lista do SUS. Cumpre ressaltar que o Poder Executivo, hodiernamente, utiliza-se da ferramenta da deslegalização para regulamentar determinados setores que demandam conhecimento técnico mais profundo. Trata-se de um suporte normativo com efeito externo, complementando determinadas áreas e criando direitos e obrigações a terceiros, segundo a discricionariedade técnica administrativa. Diz-se que é mais do que a mera reprodução do texto legal e menos do que a criação de uma norma. Nesse sentido, ainda que pautado em uma discricionariedade baseada em critérios de oportunidade e conveniência, não há que se falar em impossibilidade da análise dos atos pelo Poder Judiciário. A diretriz constitucional da separação dos poderes deve ser interpretada como uma garantia aos direitos fundamentais, de tal forma que todos os três poderes, em conjunto, deverão alcançar um fim maior com a eficácia dos direitos e garantias. Verificando-se uma atuação abusiva da autoridade administrativa, far-se-á necessária a atuação do Poder Judiciário, quando assim provocado. Ademais, ainda que a inafastabilidade do controle judicial seja considerada como direito fundamental previsto no art. 5º, XXXV, da CRFB, não há que se falar em imperatividade e caráter absoluto em sua aplicação. A intensidade da sindicabilidade judicial será proporcional à capacidade cognitiva do Judiciário para avaliar a prova correspondente, especialmente em comparação às próprias autoridades públicas quanto a sua aptidão em produzi-las; facultar-se-á um debate sobre a versão fática, somente quando viável a realização judicial da prova técnica (PERLINGEIRO, Ricardo, O devido processo administrativo e a tutela judicial efetiva: um novo olhar?. Revista de Processo, São Paulo, v. 239, p. 293-331, jan. 2015. Disponível em SSRN: < http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2511545>). Afasta-se a figura da reserva do possível quando diante de normas prévias ou do próprio mínimo existencial, situação em que a margem de discricionariedade do legislador deverá ser nula. A reserva do possível vem sendo compreendida erroneamente como a possibilidade de a insuficiência de recursos financeiros suprimir a realização de determinados direitos. Muito pelo contrário, a figura deve ser compreendida como a prerrogativa do legislador de escolher quais benefícios constitucionais considera prioritários para financiar, sem implicar limitação ou restrição a direito subjetivo já existente e exigível. Ressalta-se, ainda, que o princípio da igualdade a ser observado pela Administração não serve de justificativa para negar direitos subjetivos. Realmente, conceder a um cidadão um direito que também poderia ser estendido a todos os quer estivessem na mesma situação, sem efetivamente estendê-lo, rompe com a ideia de igualdade. Porém, o erro está na Administração não estender esse benefício e não no Judiciário reconhecer o direito. Nesse sentido, a não incorporação do medicamento à lista do SUS não poderá ser considerada como óbice à sua dispensação pelo Estado, sob risco de considerar a definição de “assistência integral”
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pela Administração Pública (art. 19-M da Lei nº 8.080/90) como verdadeira atividade legislativa apta a inovar na ordem jurídica e sobrepor o direito à saúde resguardado na Constituição Federal. Aqui, cumpre enunciar os requisitos expostos pelo art. 19-O, parágrafo único, da Lei nº 8.080/90, onde a dispensação de medicamentos depende: i) da adequação dos medicamentos ou dos produtos necessários nas diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde; ii) de o medicamento, produto ou procedimento de primeira escolha não ter sido eficaz ou ter havido intolerância ou reação adversa relevante; iii) da avaliação quanto à eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade do medicamento requerido. É necessário compreender que o simples fato de o demandante estar em evidente risco de saúde não faz com que a dispensação pelo Poder Público seja automaticamente deferida. Deve-se proceder à análise dos requisitos da eficácia, efetividade, segurança e custo-efetividade, devendo o medicamento requerido ser a melhor escolha dentre as demais possíveis e, inclusive, oferecidas pela lista do SUS. Por isso, é aconselhável ao magistrado exigir a apresentação dos documentos relacionados com o caso do paciente, bem como proceder à oitiva prévia do médico responsável pela prescrição e, inclusive, dos gestores responsáveis e aptos a sugerir alternativas terapêuticas à demanda apresentada, consoante lição extraída das Conclusões 4, 5, 6, 7, 8 da Reunião “Judicialização da Saúde Pública”, da Escola da Magistratura Regional da 2ª Região – EMARF, de 15 de agosto de 2014 (disponível em: http://ssrn.com/abstract=2487841). Constata-se que as alegações de enfermidade, bem como das condições de saúde relatadas pela demandante não foram especificamente impugnadas pelos demandados, razão pela qual se presumem verdadeiras. Superado este ponto, observo que a questão controvertida versa sobre a imprescindibilidade da utilização do “Herceptin” de modo conjunto com a realização de quimioterapia no tratamento de neoplasia. A União Federal atesta, em sua apelação, a existência de Centros de Alta Complexidade em Oncologia (CACON), bem como que o medicamento não se encontra na listagem do SUS, fato este já elidido e superado. Outrossim, sustenta que: o medicamento requerido deve ser fornecido à autora sim, na hipótese de constar na listagem do SUS. Porém, caso haja um substitutivo, ainda que não indicado pela autora, ou genérico, na listagem do SUS, e de custo menor para a Administração Pública, este deve ser o medicamento fornecido.
O laudo médico (fls. 45/46) acostado pela demandante aos autos evidencia que o uso de Herceptin seria imprescindível ao tratamento, não havendo quaisquer outros medicamentos regulamentados pelo SUS que suprissem sua eficácia. Desse modo, por não existirem provas técnicas suficientes e aptas a afastar tal fundamento, entendo que o medicamento não se presta a trazer mero conforto à demandante, mas sim verdadeira condição de restauração de sua saúde e de sua vida, vale dizer, de seu mínimo existencial. Restam preenchidos os requisitos do art. 19-O, parágrafo único, da Lei nº 8.080/90, pois comprovadas a eficiência e eficácia do medicamento, bem como não se evidenciaram informações necessárias a causar dúvida razoável sobre a eficácia do medicamento e sua relação custo-benefício, principalmente frente a sua posterior incorporação pelo SUS. Nesse sentido, discorre o texto do Relatório de Recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC) no SUS nº 7, que versa sobre o trastuzumabe para tratamento do câncer de mama inicial, decidindo pela sua incorporação e regulamentação:
Herceptin® (trastuzumabe) é indicado para o tratamento de pacientes com câncer de mama metastático que apresentam tumores com superexpressão do HER2: a) como monoterapia para o tratamento daqueles pacientes que receberam um ou mais tratamentos de quimioterapia para suas doenças metastáticas; b) em combinação com paclitaxel ou docetaxel para o tratamento daqueles pacientes que não receberam quimioterapia para suas doenças metastáticas. [...]Apesar das limitações dos estudos, seus resultados demonstram eficácia do trastuzumabe em termos de sobrevida livre de doença quando em comparação com a observação em mulheres com câncer de mama inicial HER2 positivo. As taxas estimadas de sobrevida livre de doença em cinco anos foram iguais a 84% entre pacientes que receberam quimioterapia adjuvante com trastuzumabe, contra 75% entre os pacientes que
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não receberam o trastuzumabe.
Evidencia-se uma disparidade entre as partes no oferecimento de provas. Enquanto o demandante trouxe aos autos laudos médicos fundamentados que atestam sua condição de enfermo e a necessidade do medicamento, a União Federal relatou a existência de CACON e fundamentou seu recurso em alegações genéricas baseadas na não incorporação do medicamento Herceptin à lista do SUS. Nas causas de direito administrativo, deve ser aplicado o princípio dispositivo, de modo que o juiz decide sobre questões fáticas e jurídicas que lhe forem oferecidas. O referido princípio tem como escopo principal a delimitação do mérito da causa, sob risco de colocar em evidência determinada pretensão recursal que não impugna os pontos nodais do pedido autoral, tampouco da sentença. Não figura como conduta justa colocar em grau de igualdade os argumentos trazidos pelas partes, principalmente quando estes sequer existem. Nesse sentido o art. 22 do Código Modelo Euro-Americano de Justiça Administrativa:
Art. 22: As partes são os sujeitos do processo. Sobre elas recai o direito de iniciá-lo e determinar seu objeto. As partes possuem domínio completo, tanto sobre seu direito subjetivo substancial, quanto sobre seus direitos ao início, desenvolvimento e extinção do processo. O Tribunal não pode decidir além do pedido (ne ultra petita).
A isso, soma-se a aplicação da preclusão lógica, que é decorrência, ainda que indireta, do princípio do dispositivo, o qual diz respeito à manifestação de vontade das partes quanto à disposição do direito sub judice, sendo a elas vedada a prática de atos processuais contraditórios. Em princípio, é amplo o poder da Fazenda Pública de dispor em Juízo; inadmissível, contudo, que haja ofensa ao interesse público e ao princípio da legalidade. Portanto, o cerne da controvérsia consiste em saber se a União detinha respaldo em lei para discordar da dispensação do medicamento. A União Federal, como figura una que é e sustenta ser, impugnou a inexistência de registro e incorporação do medicamento em 07.05.2013, sendo que o mesmo foi incorporado ao SUS pela Portaria nº 73 do Ministério da Saúde em 30.01.2013. Há, aqui, verdadeira contradição e desrespeito aos princípios da legalidade e do interesse público, de tal maneira que não se observa qualquer justificativa para ser requerida a não dispensação do Herceptin frente à existência de norma administrativa nesse sentido. Por conseguinte, resta afastada toda a argumentação proferida em sede de contestação (apresentada em 01.08.2012) acerca dos perigos do medicamento, tendo em vista que, aproximadamente cinco meses depois, a mesma Administração que criticava o Herceptin, veio a regulamentá-lo e incorporá-lo através dos ditames da eficiência, eficácia, custo-efetividade e segurança. E, como consequência lógica, avaria-se a arguição acerca da necessidade de concessão do medicamento em sede de tutela provisória. Por fim, quanto aos ônus sucumbenciais, observa-se que o Estado do Rio de Janeiro (fls. 165/183) e o Município do Rio de Janeiro (184/189) impugnaram, em seus respectivos recursos de apelação, o valor excessivo na condenação em honorários advocatícios, qual seja, 5% sobre o valor da causa de R$ 204.250,00 (duzentos e quatro mil e duzentos e cinquenta reais), pro rata. Não obstante o fato de o CPC/2015 ter entrado em vigor antes da data da publicação deste voto, serão aqui aplicadas as normas presentes no CPC/73. É fato incontroverso que a lei processual tem efeito imediato e geral, aplicando-se a todos os processos em curso, desde que respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma anterior, consoante texto expresso do art. 14 do CPC/2015 c/c art. 6º do DL 4.657/1942. Entretanto, a lide versa unicamente sobre honorários advocatícios, os quais gozam de natureza ressarcitória e, como consequência lógica, encontram-se revestidos de caráter de direito material, ainda que presente numa lei processual. Destaca-se que, em Recurso Especial representativo de controvérsia, a 1ª Seção do E. STJ consignou que, nas demandas em que restar vencida a Fazenda Pública, "a fixação dos honorários não está adstrita aos limites percentuais de 10% e 20%, podendo ser adotado como base de cálculo o valor dado à causa ou à condenação, nos termos do art. 20, § 4º, do CPC/73, ou mesmo um valor fixo, segundo o critério de equidade" (REsp 1.155.125, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJe 6.4.2010). O mesmo entendimento também se aplica aos casos em que a Fazenda Pública for vencedora. Nessa linha, AgRg no REsp 1.370.135, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJE 17.9.2013 e TRF2, 2ª Seção Especializada, AR 201002010111129, Rel. Des. Fed. RICARDO PERLINGEIRO, E-DJF2R 8.1.2014. Dessa forma, utilizando-se como parâmetro o valor da condenação ou da causa, nada impede que,
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em alguns casos, os honorários sejam arbitrados em valor fixo, e não percentual, principalmente quando não se puder ab initio indicar com precisão o valor econômico que corresponde à pretensão. Considerando o tempo de tramitação do processo, a singularidade dos fatos, a complexidade da causa e o trabalho desempenhado pelo preposto, entendo que a sentença merece reparos nesse ponto, porquanto foi arbitrada a verba honorária de forma excessiva frente ao caso em apreço. Por isso, convém reduzir os honorários para R$ 2.000,00 (dois mil reais), por ente federativo, nos termos do art. 20, §§ 3º e 4º, do CPC/73. Em conclusão, deve ser dado parcial provimento à remessa necessária e às apelações do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro, apenas para reduzir a condenação em honorários advocatícios, e negado provimento à apelação da União, mantendo o dever de os demandados fornecerem à demandante, solidariamente, de forma contínua e necessária ao tratamento, o medicamento Herceptin (trastuzumabe). Pelo exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO ÀS APELAÇÕES ESTADO DO RIO DE JANEIRO E DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO E À REMESSA NECESSÁRIA E NEGO PROVIMENTO À APELAÇÃO DA UNIÃO. É como voto. RICARDO PERLINGEIRO Desembargador Federal
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