Principais aspectos geomorfológicos de Portugal central, sua relação com o registo sedimentar e a importância do controlo tectónico.

July 21, 2017 | Autor: Pedro Cunha | Categoria: Geomorphology
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No primeiro caso, o destaque deve-se também à presença da antiga mina de ferro de Moncorvo, uma exploração de bancadas hematíticas no seio da Formação Quartzítica. No caso do sinclinal de Poiares, destaca-se o carácter didáctico, pois são evidentes os flancos do sinclinal e o fecho periclinal no Penedo Durão, um excelente miradouro sobre o Douro Internacional. Em alguns locais os relevos residuais não são constituídos na Formação do Quartzito Armoricano ou Formação Quartzítica do Arenigiano (Ordovícico inferior). Destacam-se os casos da serra de Mogadouro, de orientação NE-SW, em quartzitos do Ordovícico superior, na periferia no Complexo Alóctone Inferior e a serra de Sta. Comba, a oeste de Mirandela, um relevo em quartzitos silúricos do Complexo Parautóctone.

2.4. A S UPERFÍCIE F UNDAMENTAL DA MESETA IBÉRICA

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A Superfície Fundamental da Meseta Ibérica, situa-se, em geral, entre os 600 e os 800 metros de altitude. Esta superfície está dividida pela Cordilheira Central, nas porções mais ou menos contínuas da Meseta Norte e da Meseta Sul. A Meseta norte tem grande desenvolvimento sobre os sedimentos da Bacia Terciária do Douro em Espanha, mantendo-se com alguma continuidade sobre o Maciço Ibérico até ao acidente tectónico de Bragança-Vilariça-Manteigas. Contudo, na região transmontana, a sua expressão mais contínua situa-se no Planalto Mirandês, sofrendo a sul um estrangulamento provocado pela estrutura circular das unidades alóctones do nordeste transmontano (Figura 1 e 2). A sul do Douro volta a ter uma significativa expressão nas terras conhecidas por Beira transmontana. A superfície fundamental da Meseta pode ser reconhecida como tal, quando observada á escala ibérica ou à escala regional, como é o caso da região transmontana. A análise mais detalhada permite reconhecer o seu carácter poligénico e a individualização de múltiplas superfícies. Os depósitos sedimentares associados à evolução desta unidade têm sido referidos com idades que se situam desde o Eocénico até ao Pliocénico e são um indicador da actuação de diversas fases na modelação desta unidade geomorfológica.

2.5. AS

DEPRESSÕES TECTÓNICAS

As depressões tectónicas, com orientação predominante N-S a NNE-SSW, correspondem quer a blocos abatidos, estreitos e de fundo aplanado, relacionados essencialmente com o movimento vertical de falhas, quer a bacias de desligamento

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geradas em relação com falhas de desligamento. As depressões associadas aos acidentes com maior actividade neotectónica, nomeadamente os de Bragança-Vilariça-Manteigas, de Mirandela e de VerinPenacova mais a ocidente, mantêm uma notável expressão morfológica (Figura 2). Referem-se, como exemplo, algumas bacias com enchimento sedimentar significativo, nomeadamente a bacia de Mirandela, associada ao acidente de Mirandela, o graben de Baçal (norte de Bragança), a depressão de Bragança, a depressão de Macedo e o graben da Vilariça, todas elas no contexto do acidente tectónico Bragança-Vilariça-Manteigas (Pereira, 1997; 1999a). A oeste, ainda em Trás-os-Montes, é particularmente notável a bacia de Chaves no contexto do acidente Verín-Penacova, com uma espessura de sedimentos que tem sido estimada em várias centenas de metros (Ferreira, 1986). No Planalto Mirandês, os sedimentos cenozóicos observados entre Águas Vivas e Sendim, com cerca de 12 Km de extensão e 2,5 Km de largura, preenchem uma bacia associada a um acidente tectónico activo durante o Terciário, mas que posteriormente perdeu a sua expressão morfológica. Nesse sector, as bacias tectónicas foram preenchidas por sedimentos proveniente de paleovales incisos, escavados no substrato, e que são ainda reconhecidos em Silva e Atenor, nas proximidades de Sendim (Pereira, 1997) (Figura 4).

Fig. 4 - Estruturas fluviais em canal nos sedimentos terciários do paleovale de Atenor, Miranda do Douro.

Nas depressões tectónicas do Nordeste definiram-se quatro gerações de depósitos terciários, ou sequências limitadas por descontinuidades (SLD) definidas por Cunha (1992), relacionadas com diferentes etapas tectono-sedimentares (Pereira, 1997, 1998, 1999a, 1999b; Pereira et al., 2000b): - A Formação de Vale Álvaro, representada em Bragança e em Limãos (Macedo

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de Cavaleiros), poderá corresponder à SLD7 e/ou SLD8, em relação com as fases Larâmica e/ou Pirenaica, no Paleogénico. Esta unidade tem origem em leques aluviais, modelo particularmente bem documentado, não só pela arquitectura deposicional, mas também pela natureza exclusivamente máfica e ultramáfica da componente detrítica, facto que limita a sua origem aos Maciços de Bragança e de Morais; - O Membro de Castro da Formação de Bragança, constituído por várias dezenas de metros de espessura de sedimentos de um sistema fluvial entrançado, aprisionados nas depressões e nos paleovales incisos no substrato varisco. Esta unidade foi enquadrada na SLD11, admitindo-se assim a sua relação com a fase de máxima compressão bética, no Miocénico superior; - O Membro de Atalaia da Formação de Bragança, com características semelhantes ao Membro de Castro, mas limitado, relativamente a este, por uma descontinuidade com valor regional. Esta unidade foi enquadrada na SLD12, cuja idade se deve situar entre o Miocénico terminal e o Pliocénico inferior. - A Formação de Mirandela, identificada na depressão de Mirandela e constituída por mais de trinta metros de espessura de sedimentos, correspondentes a um sistema fluvial entrançado de grande energia. Esta unidade foi enquadrada na SLD13, uma etapa definida no Piasenciano (Pliocénico superior); - A Formação de Aveleda, correspondente a um episódio que gerou não só os depósitos de planalto, mas também depósitos associados a declives acentuados por actividade tectónica, no contexto dos principais acidentes tectónicos. Tratase de uma sequência finiterciária, enquadrada no andar Gelasiano (SLD14).

2.6. OS

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VALES FLUVIAIS

No Nordeste Transmontano a incisão dos vales fluviais deve ser observada como um processo essencialmente quaternário, levado a efeito após a captura atlântica de uma rede fluvial totalmente distinta da actual (Pereira et al., 2000). Essa rede fluvial pré-quaternária conduzia os sedimentos resultantes da erosão do Maciço Ibérico, em direcção à Bacia Terciária do Douro, em Espanha. Uma parte destes sedimentos ficou retida nas depressões tectónicas e nos paleovales incisos, talhados no substrato antigo. As paleocorrentes, medidas nesses paleovales, indicam genericamente um sentido de drenagem para leste e, em conjunto com os outros dados sedimentológicos, constituem uma prova da relativa juventude da actual rede de drenagem regional. Por outro lado, esta interpretação é também apoiada pela natureza encaixada da rede fluvial, com vales de perfil transversal estreito e perfis longitudinais irregulares. A presença, quer em Trás-os-Montes quer na Bacia Terciária do Douro e zonas circundantes em Espanha, de depósitos finiterciários correlativos da última fase de modelação da Meseta, sugere que o principal momento da inversão da

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drenagem para oeste terá ocorrido essencialmente nas proximidades do início do quaternário. Neste contexto regional, mudanças no perfil das vertentes e pequenas oscilações do perfil longitudinal dos rios têm sido observadas como devidas essencialmente à natureza e resistência das litologias. No domínio granítico dominam os vales mais encaixados, com destaque para os canhões fluviais no Douro Internacional, um tipo de perfil comum também quando são atravessadas bancadas ou unidades quartzíticas. Este modelo contrasta com os domínios de fácies menos resistentes à erosão mecânica e química, nomeadamente nos xistos e metagrauvaques do Grupo do Douro, onde se observa uma relativa abertura dos vales e o atenuar dos declives. A beleza dos vales fluviais encaixados constitui um dos elementos paisagísticos mais marcados da região. Para além do rio Douro, afluentes maiores como os rios Tua e Sabor, ou menores como a Ribeira do Mosteiro (Freixo de Espada à Cinta), contribuem também com aspectos de grande beleza e diversidade de formas, motivados por aspectos litológicos e tectónicos. Este carácter encaixado dos rios justifica o escasso registo sedimentar quaternário no Alto Douro. Na forma de terraços plistocénicos, destacam-se as acumulações do Pocinho e da Barca d’Alva, associadas a apertadas curvaturas do rio. No Pocinho, esta curvatura deve-se ao controlo exercido pelo acidente de Bragança-Vilariça-Manteigas. Os registos sedimentares mais recentes observados nas margens correspondem a depósitos aluvionares de inundação e têm maior expressão no Pocinho e em Peso da Régua.

3. ALGUMAS PARTICULARIDADES PAISAGÍTICAS, COMPONENTES DO PATRIMÓNIO NATURAL E CULTURAL O Património Geomorfológico constitui uma parte importante do Património Natural, do qual quase só a componente biológica tem vindo a ser valorizada, em face da maior sensibilidade pública para a defesa dos valores da vida. Contudo, a transformação acelerada da paisagem exige a tomada de medidas urgentes no sentido da protecção da sua componente geológica. Para que o Património Geomorfológico se possa afirmar enquanto parte fundamental do Património Natural, é necessário desenvolver actividades que visem a valorização de paisagens e de aspectos singulares, que se salientam não só pela sua beleza, mas também por expressarem aspectos da sua génese e da sua evolução geodinâmica. Esta atitude, que tem vindo a ser defendida em intervenções relativamente recentes (Carvalho, 1999; Azevedo & Carvalho, 1999; Pimentel, 1999; Reis, 1999; Ferreira et. al., 2001; Alves et. al., 2002; Meireles et al., 2002; Pereira et al., 2002a; 2002b), deve estar bem presente em regiões onde a paisagem constitui um dos valores mais importantes, podendo, se devidamente

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valorizada, servir de suporte a um desenvolvimento sustentado. Por outro lado, as grandes componentes do Património - Natural e Cultural – estão, em muitos casos interligadas. No Nordeste Transmontano é relativamente evidente a ligação entre as componentes geológica e cultural do património, na medida em a primeira controlou o desenvolvimento social e cultural regional. O rio Douro constitui um excelente exemplo de como a componente geológica controlou a paisagem e esta controlou toda a história ligada ao Vinho do Porto.

3.1. AS ARRIBAS DO DOURO, O CACHÃO DA VALEIRA E O BARÃO DE FORRESTER O acentuado poder erosivo do Douro e dos seus afluentes em combinação com a características geológicas da sector do Douro Internacional, gerou uma paisagem com valor patrimonial reconhecida, mas também de difícil transposição física. Neste sector, onde o rio se encaixa essencialmente em rochas graníticas, dominam as vertentes íngremes - as Arribas do Douro (Figura 5).

Figura 5 – As Arribas do Douro nas Fragas del Puio, Picote.

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A morfologia em forma de canhão fluvial, bem evidente em Miranda do Douro e no troço a jusante, relaciona-se também com o acentuado perfil longitudinal deste sector internacional. O declive particularmente acentuado do sector entre Lagoaça e Miranda do Douro deverá estar condicionado pela relativa juventude da captura da drenagem do sector espanhol por um pré-Douro confinado ao território português (Pereira et. al., 2000). Por outro lado, também neste sector é evidente o efeito da resistência diferencial das litologias no perfil, com destaque para o troço do maciço granítico de Lagoaça, com um declive médio superior a 1% (Figura 6). As cascatas ou cachões eram frequentes por aqui, antes da construção das barragens.

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Figura 6 - Perfil longitudinal do rio Douro, da nascente à foz, com destaque para o pronunciado declive no sector internacional, entre Lagoaça e Paradela.

As vertentes tendem a tornar-se menos íngremes em zonas em que o rio escava rochas menos resistentes, nomeadamente quando atravessa as unidades metassedimentares do Grupo do Douro, unidade geológica conhecida também por Complexo Xisto-Grauváquico. A jusante de Barca d’Alva, o rio escavou o vale quase sempre nesta unidade geológica até às proximidades de Mesão Frio (Figura 7). Certamente que durante o processo de erosão remontante, o rio encontrou neste domínio maior facilidade de encaixe mas, em alguns momentos, o vale aproximou-se do limite de afloramento das rochas metassedimentares, a algumas dezenas de metros dos granitos. Assim, em alguns locais e após os primeiros passos do encaixe nos metassedimentos, o leito encontrou, em profundidade, o granito que aflorava a alguns metros de distância. Nestes curtos sectores, este processo de antecedência foi assim responsável pela maior resistência ao encaixe do rio, pelo que se foram formando e acentuando algumas cascatas, cada uma delas conhecida localmente por cachão.

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Figura 7 - O vale relativamente amplo do Douro, escavado em xistos do Grupo do Douro, na curvatura da Barca d’Alva.

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O Cachão da Valeira é um estrangulamento numa breve transposição da bordadura de um maciço granítico que, por razões histórias e trágicas, se tornou na mais conhecida cascata do Douro. Ao Cachão da Valeira estão ligados episódios de naufrágios, quer de barqueiros anónimos, quer de personagens mais famosas como o Barão de Forrester. A necessidade de navegar o Douro implicou, nos fins do século XVIII, a abertura de caminho através do Cachão da Valeira, uma cascata com cerca de 10 metros de altura. Após a realização de trabalhos durante 12 anos, de 1780 a 1792, que contaram com a importante acção da dinamite, fez-se a abertura à navegação. O Cachão tornou-se então numa zona de rápidos que foi impondo perdas humanas e materiais, essencialmente ligadas ao transporte do vinho do Porto e de outros produtos agrícolas do Nordeste. O Barão de Forrester foi a mais conhecida vítima de entre os que se aventuraram na passagem deste obstáculo. Destacou-se pela sua ligação afectiva e comercial a esta região, em particular pela actividade relacionada com o vinho do Porto e pelos trabalhos de cartografia do vale do Douro. A sua morte, por afogamento no Cachão da Valeira, aconteceu em 1861, durante uma viagem que efectuava desde a Quinta do Vesúvio e que tinha como destino a Régua. Nesse naufrágio sobreviveu a anfitriã, D. Antónia Ferreirinha, outra personagem importante no processo de desenvolvimento da actividade vinícola do Douro. Este episódio do naufrágio, sobre o qual se escreveram crónicas em que se divagava sobre as causas da morte de uns e da sobrevivência de outros, pode ser invocado em favor da ideia de que todos os acontecimentos, têm, em primeiro lugar, uma causa geológica. A deposição dos sedimentos que constituem hoje o Grupo do Douro num oceano primitivo com mais de 500 milhões de anos (Ma), a intrusão dos corpos graníticos há cerca de 300 Ma e o encaixe do Douro há uns poucos milhões de anos, em resposta a umas outras quantas razões geológicas, são verdadeiras causas da morte do Barão. Sem estas ocorrência não haveria hoje vinho do Porto e nunca teríamos ouvido falar do Barão de Forrester e de D. Antónia Ferreirinha.

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3.2. O

SINCLINAL DE

POIARES

E AS DOBRAS DA RIBEIRA DO

MOSTEIRO

O sinclinal de Poiares é uma estrutura saliente na paisagem, com cerca de oito quilómetros de extensão por três de largura, situada a SW de Freixo de Espada à Cinta. É notável pela sua expressão paisagística, de fácil interpretação, e possui valor patrimonial e relevância pedagógica. O sinclinal é definido na Formação Quartzítica do Arenigiano (Ordovícico) (Silva & Ribeiro, 1994) e é constituído por dois flancos de orientação E-W que fecham a leste. Esta estrutura

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salienta-se cerca de 100 metros acima da superfície definida nos metassedimentos da Formação da Desejosa (Grupo do Douro) e quase 600 metros acima do leito do Douro (Figura 8).

Figura 8 - O Sinclinal de Poiares. A povoação (à direita) encontra-se no núcleo do sinclinal, entre o flanco sul, com as camadas inclinando para norte, e o flanco norte no horizonte.

O miradouro do Penedo Durão, sobre o fecho periclinal, proporciona uma excelente vista panorâmica do vale profundo do Douro, da superfície da Meseta e dos relevos que dela emergem. Uma outra imagem notável pode ser obtida alguns quilómetros a oeste do Penedo Durão, quando de Ligares nos dirigimos para a Barca d’Alva. Em posição elevada, sobre os quartzítos, a panorâmica inclui o Douro, com margens invulgarmente abertas, a foz do rio Águeda e a imensidão da Meseta que se desenvolve na Beira Alta e da qual se destacam, por exemplo, a Marofa e Castelo Rodrigo e com sorte a Estrela no horizonte (Figura 7). Ainda neste contexto protegido do Parque Natural do Douro Internacional, em que se situam as formas referidas, merecem destaque as vertentes escarpadas resultantes do profundo encaixe que a Ribeira do Mosteiro e o seu afluente Ribeira do Brita efectuaram no flanco sul do Sinclinal de Poiares. Estas escarpas proporcionam a observação de espectaculares dobras com dezenas de metros de amplitude, formadas no empilhamento de bancadas quartzíticas de espessura decimétrica a métrica, intercalada com xistos de cor cinza escura que no seu conjunto constituem a Formação Quartzítica (Figura 9).

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Figura 9 - Dobras na Formação Quartzítica (Ordovícico) observadas no vale da ribeira do Mosteiro (Freixo de Espada à Cinta).

3.3. O

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GRABEN E A ESCARPA DA

VILARIÇA

No contexto do acidente tectónico de Bragança-Vilariça-Manteigas, a depressão da Vilariça merece destaque pela dimensão e expressão das formas, que resultam numa paisagem com valor patrimonial, e ainda pela sua reconhecida riqueza agrícola. A sua produtividade relaciona-se quer com as características geológicas, em especial com os espessos e renovados aluviões depositados em períodos de cheia, quer com as características climáticas particulares, resultantes do relevo, com destaque para as condições amenas do Inverno. A este propósito, fica também referido que o Pocinho, na terminação sul do vale da Vilariça é conhecido pelas elevadas temperaturas atingidas no Verão e pela reduzida pluviosidade, que faz deste local um dos menos chuvosos do país, com valor médio anual inferior a 400 mm. A depressão da Vilariça, com a forma de um graben, define-se como um bloco abatido limitado por falhas de orientação submeridional (Pereira & Azevêdo, 1995). A depressão fecha a norte na serra de Bornes (1200 metros) que, como já foi referido, resultou do movimento esquerdo, segundo um modelo de pull-appart, supostamente durante o Quaternário (Cabral, 1985; Pereira & Azevêdo, 1995), ou na sequência dos múltiplos impulsos tectónicos cenozóicos registados neste sector do país. A escarpa de falha da Vilariça destaca-se entre a superfície aplanada do maciço granítico da Junqueira, situado a leste, e o fundo aplanado do vale, 300 a 400

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metros abaixo daquela superfície (Pereira & Azevêdo, 1995). O declive acentuado e a dimensão da escarpa granítica evidenciam a juventude da actividade tectónica com que se relaciona (Figura 10).

Figura 10 - O vale e a escarpa da Vilariça, vistos de Vila Flôr para Torre de Moncorvo, povoação à direita, na base da serra de Reboredo (no horizonte).

A movimentação tectónica condicionou o encaixe do Douro no sector sul da depressão. O rio é controlado pelo acidente e forma uma apertado meandro, onde recebe o Sabor e a ribeira da Vilariça. Entre a foz do Sabor e o Pocinho o rio segue a orientação aproximadamente N-S do acidente tectónico, percurso durante o qual deixou alguns testemunhos sedimentares das sua fases de encaixe quaternário. Nas Cortes da Veiga ou Veiga do Pocinho situada na margem côncava do rio, as inundações periódicas holocénicas têm deixado um interessante registo sedimentar e em casos excepcionais cobrem parcialmente os troncos de oliveiras e amendoeiras. No interior do meandro, o Monte Meão, um agigantado cerro convertido em promontório penínsular, obriga a linha de caminho de ferro a cortar a direito este istmo (Sant’Anna Dionísio in a Linha do Douro no Guia de Portugal, 3ª ed., 1995). A falha da Vilariça tem forte expressão morfológica neste istmo, terreno inóspito comprado em 1877 por D. Antónia Ferreirinha para fundar a Quinta de Vale Meão, onde permanecia durante longas temporadas, garantido o desenvolvimento e produção do Vinho do Porto.

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4. C ONCLUSÃO: AS PRINCIPAIS ETAPAS DE EVOLUÇÃO MORFOLÓGICA DE T RÁS- OS-MONTES

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As características morfo-tectónicas do Nordeste Transmontano bem como o registo geológico, em especial cenozóico, sugerem que após a consolidação do Maciço Ibérico há cerca de 250 Ma, esta área foi sujeita essencialmente a processos erosivos. É possível reconhecer que, em especial durante o Terciário, a evacuação dos sedimentos resultantes da erosão fez-se em grande parte para leste. Em algumas etapas, principalmente durante o Neogénico, foram criadas condições para o preenchimento de depressões intramontanhosas e dos vales fluviais incisos neste sector proximal. Estas condições morfológicas resultaram fundamentalmente da actividade tectónica que se manifestou de forma mais intensa no contexto de três acidentes principais . Os registos sedimentares correlativos destas importantes fases tectónicas de modelação da paisagem regional foram assim conservados em bacias de desligamento e em blocos abatidos. Deve notar-se que no contexto destes acidentes, a actividade tectónica tem sido sentida até à actualidade, como é demonstrado pelo registo sísmico instrumental. É pois admitido que a evolução paisagística desta região tenha sido influenciada até hoje pela actividade tectónica. Por outro lado, no sector entre o rio Maçãs e o rio Douro, a relativa estabilidade tectónica que sucede ao último episódio sedimentar aí registado, possivelmente do Miocénico, tem contribuído também para a preservação desse estreito, mas importante, registo sedimentar que preenche os paleovales fluviais terciários (Pereira, 1997; 1998; 1999a; 1999b). Durante um breve espaço temporal, que se deve situar próximo do limite Terciário-Quaternário, as condições climáticas e morfotectónicas deixaram de favorecer o estilo fluvial entrançado registado até então. Nesta fase, os vales estariam maioritariamente colmatados pelos sedimentos gerados nas etapas anteriores. Originaram-se então corpos do tipo leque aluvial, dispostos quer a partir de relevos residuais quer no contexto das depressões tectónicas. Admite-se que, com os primeiros episódios de arrefecimento (o primeiro com relevância global está registado a 2.5 Ma), se terá observado uma intensa erosão remontante, a partir de uma drenagem mais limitada à franja atlântica. Com a sucessão de crises climáticas, em particular aquela que marca o início formal do Quaternário há 1.81 Ma, ter-se-á chegado à captura progressiva, pelo Douro, dos sectores mais interiores do norte de Portugal e posteriormente do sector correspondente à Bacia Terciária do Douro, no interior da Península (Pereira, 1997; Pereira et al., 2000). Apesar de, em Portugal, o registo sedimentar quaternário associado ao encaixe do rio Douro ser limitado e de nenhuma prova objectiva poder ser invocada, a morfologia do vale e a cronologia relativa dos depósitos da região do Porto, de Trás-os-Montes e da Bacia Terciária do Douro (Espanha) apontam neste sentido.

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O trabalho que apoiou a conferência proferida nos Encontros de Geomorfologia e a elaboração deste texto, foi realizado no Centro de Ciências do Ambiente/Ciências da Terra da Universidade do Minho (Unidade de Investigação inserida no Programa de Financiamento Plurianual da FCT, inscrito no programa Operacional Ciência, Tecnologia e Inovação do Quadro Comunitário de Apoio III) e desenvolve-se no âmbito dos projectos: - PNAT/1999/CTE/15008, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e pelo Instituto da Conservação da Natureza (ICN); - POCTI/CTA/38659/2001 financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

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“A Geomorfologia do Noroeste Peninsular” Porto 2002 • Faculdade de Letras da Universidade do Porto

O FINAL DO CENOZÓICO NA PLATAFORMA LITORAL DA REGIÃO DO PORTO MARIA ASSUNÇÃO ARAÚJO1

1. INTRODUÇÃO O nosso principal objectivo ao caracterizar os depósitos e discutir as fases de evolução do relevo que nos parece terem existido nesta área é facultar a comparação com outras áreas e depósitos do contexto peninsular, de molde a contribuir para a construção de um puzzle colectivo em que as correlações sejam cada vez mais coerentes e menos hipotéticas. Um dos traços comuns a quase todo o litoral português é a existência de uma faixa aplanada, designada como “plataforma litoral”, situada a altitudes variadas e limitada, para o interior, por um rebordo topográfico rigidamente alinhado (relevo marginal), contrastante com a referida área aplanada. No mapa da figura 1 é possível apreciar o desenvolvimento topográfico do litoral das proximidades da cidade do Porto. A plataforma litoral suporta, frequentemente, numerosos afloramentos de depósitos genericamente classificados pelas cartas geológicas de escala 1:50.000 como plio-plistocénicos.

1 GEDES, Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto Via Panorâmica, s/n, 4150-564 - Porto [email protected]

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Figura 1 - Mapa hipsométrico da área estudada (entre a foz do Rio Leça e a lagoa de Esmoriz), com base nas curvas de nível da carta 1:25000 (folhas 122, 133, e 144). Equidistância = 10m.

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Estes depósitos ocupam a área aplanada situada a oeste do relevo marginal, mas também se podem encontrar algumas manchas numa área aplanada situada para leste do referido relevo, quer a norte (Gandra, Gondomar, Pedrinha) quer a sul (Lever, Aldeia Nova) do rio Douro (Figura 2). Embora o grande número de afloramentos representados nas cartas geológicas possa levar-nos a pensar que se trata de uma área onde os depósitos estão bem conservados, o registo sedimentar na plataforma litoral da região do Porto é geralmente pouco espesso e descontínuo, o que dificulta as correlações entre as diferentes manchas. Os depósitos assentes na plataforma litoral da região do Porto eram geralmente descritos como “praias levantadas” (Ribeiro et al., 1943, Teixeira & Zbyszewski, 1952, Teixeira, 1979). Uma das conclusões mais interessantes que pudemos extrair das análises sedimentológicas realizadas nas amostras de depósitos da plataforma litoral foi de que muitos destes depósitos são de origem continental e não de origem marinha como era geralmente aceite nos primeiros trabalhos publicados sobre o assunto. Assim, e numa primeira abordagem, os depósitos da área em apreço podem organizar-se em dois grandes conjuntos: A - Depósitos de fácies continental, que ocorrem acima dos 50m; B - Depósitos marinhos, que se encontram abaixo dos 40m. No mapa da figura 1 os tons de cinza foram escolhidos de molde a representar 3 grandes conjuntos: 1 - Área acima dos 130m (relevo marginal); 2 - Área situada entre 130 e 50m (onde ocorrem os depósitos de fácies fluvial); 3 - Área situada abaixo de 50m (onde ocorrem os depósitos de fácies marinho). A figura 2 representa todas as manchas identificadas nas cartas geológicas (9-C, 13-A e 13-B) de escala 1:50.000. Embora a cartografia em questão seja discutível, sobretudo no que diz respeito à atribuição “cronostratigráfica” dos depósitos, esta representação cartográfica foi utilizada devido ao facto de ser a única que cobre, a uma escala razoável, toda a área em apreço. A referida atribuição cronostratigráfica foi revista e fortemente simplificada, de molde a que os diferentes depósitos fossem classificados segundo os 3 grandes conjuntos que definimos (Araújo, 1991: depósitos fluviais da fase I e da fase II e depósitos quaternários, essencialmente marinhos). Com efeito, a comparação das características essenciais dos vários afloramentos (altitude e posição relativamente ao relevo marginal, calibragem, cor, alteração do substrato rochoso, existência e importância das couraças ferruginosas) permitiu-nos separar os depósitos de carácter continental em 2 grupos:

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Figura 2 - Localização das principais manchas de depósitos ante-wurmianos e respectivo enquadramento geomorfológico (segundo as cartas geológicas 9C, 13A e 13B, de escala 1:50000). A, B, C e D: pontos da linha de corte correpondente ao perfil da figura 8.

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I – Os depósitos mais altos da plataforma, que se situam na imediata proximidade do relevo marginal apresentam algumas analogias que nos fizeram admitir que eles pertenciam a um mesmo conjunto, formado numa primeira fase de evolução do relevo (Fase I). Dentro dos depósitos da fase I, foi possível identificar diversas unidades que aparecem associadas na maioria dos afloramentos. Dado o carácter fino ou até micáceo que se encontra na parte intermédia das sequências analisadas (nomeadamente no desaparecido corte da Rasa, mas também no Carregal) podemos dizer que a deposição comportou por vezes, situações de baixa energia e que deverá ter ocorrido num contexto de planície litoral, próximo do nível de base (Figura 3). II - A essa fase ter-se-iam seguido condições geomorfológicas muito contrastantes com as anteriores, já que os depósitos denotam um carácter claramente torrencial (Fase II). A prova de que se trata de episódios diferentes, possivelmente separados por uma crise tectónica e climática está no facto de que os depósitos da fase II contêm, em vários locais, blocos de arenito de cores claras atribuíveis à Fase I (Figura 7).

2-

OS DEPÓSITOS DA FASE I

Na área estudada (Araújo, 1991) os depósitos mais altos aparecem genericamente acima dos 100 metros de altitude, podendo atingir cerca de 130m. Estes depósitos foram geralmente considerados Pliocénicos e identificados nas cartas geológicas como P’ e P’’. O melhor local para observar a sequência das unidades da fase I era a Rasa de Baixo (também designada como Telheira), uma antiga exploração de caulino, situada muito perto da base do Relevo Marginal. Actualmente a exploração está desactivada e, devido à utilização da imensa cratera resultante da exploração do caulino como vazadouro de entulhos vários, o corte deixou de ser observável. Os cortes de Canelas e do Carregal foram também parcialmente destruídos, ficando como representantes deste tipo de depósitos, na área compreendida entre o rio Douro e a latitude de Espinho, alguns cortes ainda existentes em Aldeia Nova de Avintes, a leste do Relevo Marginal. A sequência para os depósitos da fase I, definida no corte da Rasa de Baixo, apresentava, de baixo para cima (Figura 3): 1 - Base com blocos que por vezes atingiam cerca de 1m de diâmetro (I-A); estes blocos podem ser de granito completamente apodrecido (Rasa de Cima) ou de quartzo filoniano (Aldeia Nova de Avintes); 2 - Camada rica em elementos micáceos, de cor cinza-esverdeada, aparentemente resultante de uma situação de baixa energia (I-B);

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Figura 3: Aspecto do corte da Rasa. 1- Base com blocos de granito podre; 2- Camada micácea; 3 - Unidade superior, mais grosseira com estratificação entrecruzada.

3 - Unidade superior, um pouco mais grosseira (areão e calhaus pequenos) com estratificação entrecruzada (I-C). Alguns sectores do depósito apresentam um forte encouraçamento. Nos casos em que o depósito é pouco espesso, esse encouraçamento pode atingir a respectiva base. Parece-nos evidente que o processo de encouraçamento ocorreu depois da formação das unidades inferiores do depósito, que apresentam uma cor branca característica, contrastando com a cor avermelhada/acastanhada do topo.

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Figura 4: A base do depósito da Rasa inclina para leste, descendo em direcção ao relevo marginal.

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Também na margem esquerda do Douro, agora a montante do Relevo Marginal, na área de Aldeia Nova de Avintes, existe um depósito que se desenvolve numa faixa paralela ao Douro. Esta faixa, com cerca de 4km de comprimento, embora com algumas interrupções, estende-se desde Cabanões, em Avintes (106m), até Arnelas (134m) e reaparece em Lever, ainda na margem esquerda do Douro. Os novos cortes entretanto abertos na área de Aldeia Nova confirmam a existência de bastantes semelhanças relativamente aos depósitos da plataforma litoral, nomeadamente a ocorrência de níveis micáceos esverdeados. Neste local, o encouraçamento apresentava uma cor vermelha intensa e abundantes pisólitos (Figura 5) o que sugere a existência de um clima de tipo tropical.

Figura 5: Pisólitos associados a um depósito da fase I encontrados na ares de Aldeia Nova (Avintes).

As principais diferenças dos depósitos de Aldeia Nova de Avintes relativamente aos da plataforma litoral (Rasa e Carregal) prendem-se com um maior calibre dos blocos da base, uma composição petrográfica diferente (quartzo e quartzitos versus granitos no depósito da Rasa), um encouraçamento mais intenso

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e a existência de níveis finos cinza-esverdeados menos espessos. Estas diferenças podem explicar-se por um carácter mais proximal do depósito de Aldeia Nova e pelo carácter xistento do respectivo bed-rock. Com efeito, o maior conteúdo em ferro dos xistos do complexo xisto-grauváquico, relativamente aos granitos alcalinos, bem como o carácter menos permeável dos alteritos, podem ter contribuído para uma maior intensidade da acumulação de ferro daí decorrendo a existência de couraças mais espessas. Na margem direita do Douro encontra-se uma outra mancha, atribuível ao mesmo momento, em Gandra (Gondomar). Este depósito apresenta alguns elementos muito grosseiros, e um intenso encouraçamento (existem, nesta mancha, arenitos e conglomerados ferruginosos, muito resistentes, com uma espessura superior a 1,5m). A montante, na região de Medas, observam-se dois depósitos escalonados (Figura 2). O mais alto (culmina a 162m) podia observar-se nas barreiras do campo de futebol de Medas. Hoje, infelizmente, a primitiva barreira está praticamente destruída. F. Rebelo (1975) estabelece uma correlação entre o depósito do campo de futebol de Medas e o depósito de Aldeia Nova de Avintes. Essa opção justifica-se porque, apesar do carácter proximal dos depósitos de Medas relativamente aos de Aldeia Nova ou da Rasa, existem algumas semelhanças, nomeadamente no que respeita ao predomínio de cores claras. Além disso, em ambos os casos, trata-se dos afloramentos situados a maior altitude em cada um dos locais em questão. Ora, numa área que está a sofrer um processo de soerguimento mais ou menos contínuo, como é o caso desta região (J. Cabral, 1995), os depósitos mais altos deverão ser, em princípio, aqueles que estão a sofrer movimentação há mais tempo, isto é, os mais antigos. Naturalmente isso só se verifica dentro de áreas próximas que pertençam ao mesmo “bloco” e que, por isso, tenham sofrido uma taxa de movimentação idêntica. É evidente que a hipótese torna-se tanto mais plausível quando existem semelhanças de fácies que corroboram as indicações fornecidas pela posição relativa dos depósitos. É o caso dos depósitos de Aldeia Nova e da Rasa, que, sendo os depósitos culminantes nas respectivas áreas, apresentam semelhanças que sugerem que poderiam ter-se formado numa mesma fase de sedimentação. A base do depósito da Rasa, como já tinha sido notado por O. Ribeiro et al. (1943), inclina nitidamente para leste (Figura 4). O basculamento da base deste depósito para leste, em direcção ao Relevo Marginal, só pode explicar-se com recurso a uma movimentação tectónica pós-deposicional. Por sua vez, o depósito de Aldeia Nova apresenta níveis micáceos inclinando claramente para oeste com pendores relativamente elevados que também sugerem uma movimentação pós-deposicional. Para explicar o basculamento dos depósitos da fase I de um lado e de outro do relevo marginal parece-nos ser de admitir a

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existência de falhas, o que acaba por nos levar a interpretar o relevo marginal como um horst, com uma orientação geral NNW-SSE, cuja surreição será posterior aos depósitos da fase I. A riqueza em caulinite (mais de 90%!) dos depósitos desta fase e a elevada cristalinidade deste mineral, sugerem uma formação num clima quente e húmido. A existência de uma unidade mais grosseira no topo da formação indicaria uma certa degradação climática no sentido de condições mais resistáticas (Erhart, 1956). O encouraçamento poderia relacionar-se com um processo de acumulação lateral de ferro em áreas pantanosas na proximidade dos cursos de água (Thomas, 1994). Um descida da toalha freática permitiria a precipitação do ferro e converteria o antigo leito fluvial numa couraça conglomerática, como a que se podia observar num local significativamente designado de “Pedras Negras” (Sto. Ovídio, Vila Nova de Gaia).

3.

OS DEPÓSITOS DA FASE II

Os depósitos da Fase II são muito mal calibrados e apresentam blocos muito grosseiros na base (Pedrinha, Valbom, Figura 6). Podem ocorrer finas crostas ferruginosas com espessuras que não ultrapassam um centímetro. Porém, nunca

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Figura 6 - Aspecto do depósito da fase II da Pedrinha (Valbom, Gondomar).

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encontrámos verdadeiras couraças, como as que existem nos depósitos da fase anterior. Estes depósitos aparecem em 2 tipos de situações: a. Na imediata proximidade do vale do Douro (Pedrinha, Valbom, Coimbrões), o que faz supor que nesse momento talvez o Rio Douro já estivesse canalizado, mas teria um comportamento muito torrencial; b. Ao longo de uma faixa paralela ao Relevo Marginal e situada a oeste dele. Não encontrámos nenhum caso em que os depósitos da Fase II se sobrepusessem aos da Fase I. Situam-se, geralmente, um pouco mais para oeste, a altitudes mais baixas, compreendidas entre 100 e 50m. Em diversos locais (Figura 7) observámos casos em que blocos de arenito esbranquiçado, típicos da Fase I, se achavam englobados nos depósitos da Fase II, junto à respectiva base, o que prova a anterioridade daqueles depósitos e o facto de se encontrarem a constituir relevo no momento em que os depósitos da Fase II estariam a formar-se.

96 Figura 7 - Aspecto da base do depósito da fase II (barreira junto ao Hipermercado Carrefour, perto da ponte da Arrábida, V. N. de Gaia).

Porém, se há depósitos da Fase II que poderão corresponder a um período muito torrencial do curso do Douro, até porque aparecem conservados na proximidade do seu vale (caso descrito em a), a organização espacial dos restantes

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depósitos da “fase II” (caso b) mostra claramente que os seus afloramentos se distribuem paralelamente ao relevo marginal e não parece aceitável relacioná-los com o traçado do Douro. Trata-se, como já vimos, de depósitos com um carácter torrencial, apresentando, em corte, canais com elementos mais grosseiros na base e sectores mais finos e compactos para o topo. Estes aspectos sugerem que se trata de leques aluviais formados à saída de um relevo em surreição. Nestas circunstâncias parece-nos plausível a hipótese de que teria sido o “Relevo Marginal” a área de origem dos depósitos da Fase II. Assim sendo, a respectiva movimentação poderá ter desencadeado a formação dos depósitos da fase II, criando o relevo do qual teriam partido os referidos leques aluviais. Além duma certa movimentação tectónica é de supor a existência de uma situação de crise climática, que originou a torrencialidade destes depósitos e possibilitou o transporte de elementos de grande calibre (na Pedrinha é possível observar blocos de cerca de 0,5m de diâmetro). Estes teriam um carácter mais grosseiro na proximidade das cristas quartzíticas (a Pedrinha fica a 6 km dos primeiros afloramentos quartzíticos da serra de Valongo), e menos grosseiro nas áreas distais (Coimbrões situa-se a 11 km dos referidos afloramentos). A esta crise climática parecem seguir-se condições climáticas mais regulares, responsáveis por um regime hidrológico menos contrastante. Com efeito, em alguns locais (Av. Marechal Gomes da Costa, no Porto), no topo de formações de tipo debris-flow, verifica-se a deposição de materiais mais calibrados e compatíveis com uma drenagem organizada (Fase II-B). Estes depósitos encontramse apenas na proximidade do vale do Douro e poderão corresponder a um momento em que este perdeu o carácter fortemente torrencial que tinha no início da fase II. Alguns destes depósitos estão claramente afectados pela tectónica. Esta manifesta-se, por vezes, através de movimentos compressivos, traduzidos na existência de falhas inversas, como no caso do Juncal e dos Pinhais da Foz (Araújo, 1995 e 1997). Curiosamente, em ambos os casos referidos, as falhas identificadas situam-se muito perto do limite entre os depósitos fluviais e os depósitos marinhos que se encontram, na plataforma litoral da região do Porto, a cotas sempre inferiores a 40m.

4-

97 TENTATIVAS DE CORRELAÇÃO E ENQUADRAMENTO ESTRATIGRÁFICO

O enquadramento estratigráfico destes depósitos é uma das tarefas mais difíceis com que nos deparámos. Com efeito, nenhum dos depósitos estudados apresenta fósseis. Por isso, as correlações têm que ser feitas através de semelhanças de fácies. Porém, “os afloramentos cenozóicos apresentam uma grande variabilidade de espessura, de fácies, de ordenação sequencial e de composição petrológica e

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mineralógica que resulta incompatível com um único e simultâneo contexto paleogeográfico e paleoclimático” (Martín-Serrano, 2000). Por isso, quando apesar da variabilidade acima referida se admite que essas correlações são pertinentes, existem, geralmente, variações significativas nas idades atribuídas por diferentes investigadores (Pereira, 1997), o que coloca, à partida, algumas dúvidas relativamente à validade e utilidade desse processo. Conscientes do problema, temos tentado adquirir experiência de campo das diversas formações de idade terciária existentes em diferentes contextos dentro do País, de molde a adquirir um conhecimento o mais global possível da respectiva tipologia e da sua variação temporal. Trata-se, naturalmente, de um trabalho em revisão permanente, mas do qual nos parece importante dar notícia para que os leitores possam conhecer as ideias subjacentes ao nosso discurso e colocar algumas peças no puzzle, ainda que de forma provisória. Desde os anos cinquenta que os depósitos da plataforma litoral da região do Porto têm sido considerados “plio-plistocénicos”. A utilização das siglas P’, P’’ e Q sugere, justamente, uma oposição entre os depósitos mais antigos, tidos como pliocénicos e os restantes, atribuídos a diversas fases dentro do Quaternário. Isto significa que sempre se admitiu que os episódios cenozóicos mais antigos (paleogénicos e miocénicos) referidos em diversos locais do País (nomeadamente Trás-os-Montes) não se encontram nesta área. Efectivamente, as formações paleogénicas e miocénicas conhecidas de Trás-os-Montes (Pereira, 1997) não se assemelham aos depósitos da plataforma litoral da região estudada. Admitindo como boa a exclusão de depósitos paleogénicos e miocénicos, resta-nos a hipótese de que os depósitos da Fase I se situem no Pliocénico. Com efeito, parece-nos que, a acreditar nas grandes fases de sedimentação cenozóica estabelecidas por Martín-Serrano (2000), os depósitos da Fase I podem ser correlativos das “fases ocres” referidas na interior da Península, correspondentes ao topo do enchimento terciário e atribuídas ao Pliocénico. Se atentarmos na descrição da “Formação de Mirandela” (Pereira, 1997) segundo a qual “os depósitos que constituem esta unidade caracterizam-se especialmente pela cor esbranquiçada ou amarelada, pelo carácter conglomerático, com clastos quartzosos e quartzíticos numa matriz arenosa quartzo feldspática e com caulinite largamente dominante na fracção argilosa”, apercebemo-nos facilmente das semelhanças que existem entre os depósitos da Fase I e a referida “Formação de Mirandela”, o que poderia situá-los no Pliocénico (Placenciano?). Do mesmo modo, os depósitos de Prado (margens do Rio Cávado) e Alvarães (a sul do Rio Lima) podem ligar-se a este mesmo episódio (Pereira et al., 2000). Os depósitos da Fase II apresentam, pelo contrário, características que fazem supor um clima bastante diferente. Com efeito, a má calibragem e os grandes calibres de alguns dos elementos existentes no depósito da Pedrinha sugerem um clima com uma certa tendência para a aridez.

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Além disso, os depósitos da Fase II aparecem embutidos nas superfícies culminantes da plataforma litoral, superfícies essas onde ocorrem os depósitos da Fase I. O jogo da tectónica, com uma tendência persistente para o levantamento, bem como a proximidade do nível de base e a existência de uma possível regressão na transição Pliocénico-Quaternário, poderá explicar o embutimento das superfícies que suportam os depósitos da Fase II relativamente às superfícies culminantes. Essa ideia é congruente com o “modelo de rotura sedimentar” que Cabral (1995) retoma de Martín-Serrano, e que aponta para a existência de uma fase de erosão “que retoca e rebaixa a superfície estrutural fini-neogénica (nível de colmatação) e desenvolve pedimentos no flanco de relevos”. Embora existam diferenças importantes, dado que no Noroeste da Península o clima teria sido sempre mais húmido do que na região dos Montes de Toledo ou mesmo do que na região envolvente da Cordilheira Central, as características dos depósitos da fase II sugerem que eles poderiam ser equivalentes às rañas. Também a sua posição estratigráfica, situados como estão entre os depósitos aparentemente pliocénicos da Fase I e os depósitos claramente quaternários, aponta para um certo paralelismo com as rañas, o que permitiria apontar para uma cronologia próxima da transição Pliocénico-Quaternário (Ferreira, 1993). Segundo Pereira (1997), “os depósitos de leque aluvial da Formação de Aveleda constituiram um episódio independente (SLD14) relativamente ao episódio anterior (SLD13), com características fluviais; os dois episódios […] para além de corresponderem a modelos de sedimentação distintos, evidenciam condições climáticas distintas; o mais antigo, relaciona-se com as condições relativamente quentes e húmidas já referidas para o Placenciano e que são consensuais; o segundo, sugere a mobilização dos sedimentos sob condições de secura ambiental indicadas para o fim do Pliocénico (Pais, 1989).” Ora, esta descrição corresponde, muito de perto, às características dos depósitos da Fase II. Assim sendo, podemos propor um modelo segundo o qual teria havido, no final do Neogénico 2 fases de evolução do relevo na plataforma litoral da região do Porto (cf. Pereira et al., 2000): Fase I (Placenciano?) - depósitos fluviais, num clima quente e húmido (correlativa das formações de Mirandela, Prado e Alvarães); Fase II (Final do Pliocénico-Gelasiano?) - Depósitos de leques aluviais, embutidos nas superfícies culminantes da Fase I e correlativos de uma deterioração climática e das movimentações tectónicas que geraram o relevo marginal (correlativa da Formação de Aveleda.

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5. A EVOLUÇÃO QUATERNÁRIA E O ESCALONAMENTO DOS DEPÓSITOS MARINHOS

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Desde o topo da plataforma litoral até altitudes de cerca de 50m todos os depósitos que encontramos apresentam fácies de tipo continental. Os depósitos inequivocamente marinhos apresentam-se em manchas de dimensões geralmente infe-riores às dos depósitos fluviais e a altitudes inferiores a 40m. Uma análise comparativa veio confirmar a existência de três conjuntos de depósitos marinhos, que passamos a designar como níveis 1 (o mais antigo), 2 e 3. Infelizmente, é raro encontrar os locais onde todos estes níveis estejam expostos. O único local onde conseguimos definir os três níveis propostos foi a área de Lavadores, em que eles constituem uma escadaria. Por isso, as altitudes indicadas para cada “nível”, salvo informação em contrário, correspondem à altitude com que ele se apresenta na área de Lavadores. Os depósitos que se apresentam em manchas mais extensas são, nor-malmente, aqueles que se situam na proximidade dos depósitos fluviais, a altitudes compreen-didas entre 30 e 37m. Trata-se de depósitos geralmente espessos, que assentam sobre um substrato rubefacto, bastante alterado, e que designaremos como “nível 1”. Os depósitos do “nível 2” apresentam uma certa ferruginização (cor acastanhada), assentam sobre um substrato cuja alteração, menos intensa que a do nível precedente, lhe confere uma cor esbranquiçada, e situam-se a altitudes de 18-15m. Os depósitos do “nível 3” aparecem a cotas geralmente inferiores a 10m, e em certos locais che-gam a atingir o nível actual das marés baixas (praias de Francelos, da Aguda e da Granja). Apresentam uma cor castanha, que corresponde a uma ferruginiza-ção bastante intensa, que os transforma, por vezes, em verdadeiros conglomerados. O seu bed-rock apresenta apenas uma alteração incipiente e uma pâtine castanha ou alaranjada, obviamente relacionada com a migração de ferro que condicionou a cimentação do depósito suprajacente. Os depósitos quaternários correspondem, efectivamente a um mundo diferente, estando, inclusivamente, separados dos depósitos de fácies fluvial por um “degrau” nítido (Figura 1). Trata-se de um alinhamento praticamente N/S entre as praias de Lavadores e de Miramar e que, a sul desta última, roda ligeiramente para NNW. O facto de este alinhamento coincidir com a separação entre depósitos marinhos e fluviais significa que, posteriormente à formação dos depósitos da fase II, terá havido um abatimento da fachada ocidental, que pôs esta faixa deprimida ao alcance do mar aquando dos períodos interglaciários. A clara separação entre os depósitos fluviais e marinhos teria, assim, uma razão de ordem tectónica e o degrau visível na figura 1 corresponderia a uma escarpa de falha, transformada em arriba fóssil.

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6 - ALGUMAS CONCLUSÕES: ORIGEM DO RELEVO MARGINAL. PROBLEMAS EM SUSPENSO

O mapa da figura 1 mostra bem em que medida o relevo marginal tem um desenvolvimento essencialmente rectilíneo, sofrendo apenas leves indentações provocadas pela incisão dos pequenos cursos de água que nascem na sua base e têm percursos da ordem de 5-6 km de comprimento, limitando-se a percorrer a plataforma litoral. Por outro lado, a velha ideia de que o relevo marginal poderia corresponder a uma “arriba fóssil” terá que ser abandonada, já que os depósitos situados no seu sopé têm origem fluvial. O perfil da figura 8 foi construído de modo a que, partindo da linha de costa, atravessasse o relevo marginal e passasse pelos depósitos fluviais existentes na margem esquerda do Douro, na área de Aldeia Nova de Avintes. A respectiva localização encontra-se no mapa da figura 2 e corresponde à linha A-B-C-D. Dado que a litologia do substrato raramente facilita a identificação de deslocações tectónicas, estas poderão ser inferidas essencialmente por critérios geomorfológicos. É esse o caso dos abruptos visíveis no corte que foram marcados como acidentes tectónicos verticais. Porém, é possível que algumas destas falhas sejam inversas. Uma certa tendência para movimentos de tipo compressivo estaria de acordo com observações de campo feitas em diversos locais (Gião, Pinhais da Foz, Juncal: Araújo, 1991, 1995, 1997) que mostram que, efectivamente, a maior parte dos acidentes tectónicos que afectam os depósitos cenozóicos da área em estudo são falhas inversas. Aparentemente o relevo marginal corresponde a um horst. Tal como é sugerido em S. Daveau (1987, p. 264) relativamente ao litoral da Estremadura, os acidentes tectónicos que o limitam terão jogado posteriormente à formação dos depósitos mais antigos da plataforma litoral. Curiosamente, a análise do mapa da figura 2 mostra com alguma clareza que as cotas dos depósitos da fase I descem, de forma regular, desde os 162m de Medas, até Cabanões (106m). A passagem do relevo marginal parece traduzir-se numa clara subida (124 na Rasa, 128 no Carregal). Ora, essa circunstância só é compreensível se atendermos a uma tectónica pós-deposicional que tenha soerguido os depósitos da plataforma litoral em relação àqueles que se situam a leste do relevo marginal. Quais as balizas cronológicas da evolução fini-terciária desta área? Como acima dissemos, pensamos ser de propor um modelo segundo o qual teria havido, no final do Neogénico, 2 fases contrastantes atribuíveis ao Placenciano e à transição Plio-Quaternário (Gelasiano?), por analogia com o que se sabe da evolução em Trás-os-Montes oriental e no Minho (Pereira, 1997; Pereira et al. 2000).

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Figura 8 - Corte geológico realizado entre a foz da Ribeira de Canelas e a margem esquerda do Douro. Pra localização ver o mapa da figura 2. Para a caracterização dos depósitos (FI, FII, T1, T2 e T3) ver texto. As falhas propostas, com excepção daquela que separa o Précâmbrico Polimetamórfico do granito de Lavadores (FPT) foram marcadas a partir de critários geomorfológicos.

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Porém, para além de nos certificarmos da validade deste modelo de correlação, nomeadamente estendendo-o às bacias espanholas, será necessário compreender como se articulam, no espaço e no tempo, os eixos de drenagem responsáveis pelos depósitos existentes. Com efeito, estes depósitos encontram-se separados dos restantes afloramentos cenozóicos existentes no interior da Península por uma série de relevos que dificultam a sua correlação. É necessário, também, aprofundar a investigação sobre o modelo de drenagem que produziu os depósitos da Fase I. Tanto quanto, neste momento, sabemos, o depósito conotado com a Fase I que se situa mais para o interior, é o depósito de Medas (Figura 2), situado a cerca de 19km, em linha recta, da linha de costa. Por isso, além de uma analogia de fácies entre os depósitos desta fase e os depósitos da bacia de Mirandela, será preciso identificar testemunhos da paleodrenagem do Douro durante o Placenciano, que permitam confirmar a hipótese que é proposta em Pereira et al. (2000) segundo a qual, nessa época, começaria a organizar-se a rede de drenagem exorreica que iria capturar os eixos de drenagem das bacias interiores da Meseta. A existência de testemunhos numerosos e extensos de depósitos deste tipo ao longo da plataforma litoral para sul do Leça e até, pelo menos, à latitude de Espinho, também carece de um adequado enquadramento paleográfico. Se se tratar de uma ampla planície litoral onde o paleo-Douro vinha desaguar, qual seria a extensão dessa planície para sul? Que outros eixos de drenagem contribuíam para ela? Tratar-se-ia de uma drenagem bem organizada, ou pelo contrário, de leques aluviais coalescentes, de baixo declive, desaguando numa planície litoral? Algumas investigações em curso (cf. A. Gomes e A. Barra, 2001), poderão, segundo esperamos, dar alguma resposta a estas questões. AGRADECIMENTOS

Este trabalho foi elaborado com o apoio do Gabinete para o Desenvolvimento e ordenamento do território (GEDES) e insere-se no âmbito do projecto POCTI/ CTA/38659/2001 financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

7. B IBLIOGRAFIA Alves, M. I. S. R. C. (1995) – Materiais Plio-Quaternários do Alto Minho. Produtos de meteorização e depósitos fluviais na bacia do rio Lima e região de Alvarães, Dissertação de Doutoramento, Dep. Ciências da Terra da Universidade do Minho, Braga. Araújo, M. Assunção (1991) - Evolução geomorfológica da plataforma litoral da região do Porto. Dissertação de Doutoramento, FLUP, Porto.

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Assunção Araújo

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O QUATERNÁRIO DA BACIA DA LOUSÃ - ALGUMAS IDEIASA. FERREIRA SOARES & J. FONSECA MARQUES 1

- De Miguel Torga lembro, a provar a minha gratidão pelo convite que nos foi dirigido para aqui estar, este verso de rara singularidade – “ No rio vai um barco”. No meu, no teu, nos nossos rios, navegam barcos, para cima e para baixo; transportam-nos a vida. - O tempo passou; as ideias sucederam; cada uma na transcrição das suas verdades, que foram ficando enquanto outras mais verdadeiras não surgiram. Gilbert terá opinado que saberia mais geologia, quem mais geologia tivesse visto. Há aqui meia verdade; as coisas, olhadas como devem ser olhadas, não são bem assim. Em 1958 começámos a aprender, saltando rios e montes, esta arte de feiticeiro de olhar a pedra e contar dela a nossa história. Já vimos muito, mas esse muito ainda não basta para saber Geologia, falta ver outro tanto. Aprendemos a andar de bicicleta, trambolhando ... temos aprendido Geologia,”geologando”, sofrendo em cada traço posto num mapa, a dúvida que connosco vive. E quando substituímos o traço, outra dúvida acrescentamos. Já fazem rosário; talvez sempre tenham sido contas para os nossos rosários. - No espaço que ainda vai tendo Coimbra no horizonte, cartografámos, mapeámos se assim o entenderem, raramente sózinhos, cerca de 3000 km2 – procurámos novas razões para velhos problemas. De todo esse concerto sobre a Orla Meso-Cenozóica Ocidental aqui lhes entregamos um pouco do relativo ao Baixo Mondego, desse espaço por onde sempre nos cresceram ideias para verdades de ordens que continuam a tropeçar nas exigências cronostratigráficas, nos limites a apontar, na justeza das ideias. 1

Departamento de Ciências da Terra - Universidade de Coimbra

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A. Ferreira Soares & J. Fonseca Marques

- Pouco mais temos que 5 km de espessura de sedimentos, dos quais cerca de 60% correspondem a corpos siliciclásticos, quase sempre imaturos e ligados a arranjos aluviais. Os restantes são de rochas carbonatadas, com um Liásico essencialmente margoso e um Dogger calcário e/ou calco-margoso. E depois está o correr meridiano das falhas, algumas a ressoarem após definição tardi-hercínica. São elas que ditam as leis que governam o julgamento das fácies e o consequente entendimento do quadro distensivo por onde se definiu a Bacia Lusitaniana ( Soares et al. 1997 ).

108 Figura 1 - Descontinuidades maiores na Bacia Lusitaniana (in Soares & Duarte, 1997).

- Numa outra ocasião, em 1993, e relativo às fases de rifting que geometrizam a Bacia Lusitaniana (1ª fase = Triásico médio a superior – Caloviano; 2ª fase = Oxfordiano médio a superior – Aptiano-Albiano) escrevemos : - “ Para estas duas fases, com durações estimadas em 80 e 40 Ma respectivamente, é provável serem

O Quaternário da Bacia da Lousã - Algumas ideias

os valores globais dos “buracos negros”, presos a descontinuidades lidas no onshore, 20 ± 5% e 35 ± 10% daquelas durações. Tanto tempo omitido; tanto tempo para imaginações (!)”. Linhas adiante acrescentámos – “ a Ibéria foi mais pontão de África que vontade da Europa. Não é pois de estranhar ter ela e mais uma vez, aí pelos 32 ± 3 Ma, colidido com a África. Dessa convergência então reencontrada, estruturaram-se as Béticas e refulgiu o Calpe, alóctono, pressagioso da aventura de Tarique. Na nossa Orla ganharam-se novas expressões, deslocandose blocos sob efeitos continuados de acções compressivas. As bacias do Tejo e Sado dão-nos a última grandeza duma sedimentação marinha que, no espaço da Orla Ocidental, teve foral da subsidência” ( Soares, 1993). - Ao Messiniano, a esse tempo de crise no espaço mediterrâneo, atribui-se o corpo siliciclástico vermelho que navega, ligado aos carsos de Sicó, sob o rótulo de Grés e argilas de Redinha-Pombal (Soares & Reis, 1984) ou, se a equivalência assim o respeitar, depósitos poligénicos vermelhos definidos por L. Cunha (1988). E, porque não também, os Arenitos de Ourém, discordantes sobre calcários cretácicos? – “Não será dispiciendo julgar a probabilidade paleogeográfica da prevalência, sobre um cretácico gresoso em mobilização, duma geometria de sistemas fluviais essencialmente convergentes sobre a Bacia do Baixo Tejo. Tenhase contudo em atenção que os Arenitos de Ourém representam, segundo Barbosa (1995), uma paleodrenagem polarizada para W e NW, em direcção à Bacia do Mondego (F. Soares; 2001). Que o tempo nos ajude nestes desacertos.

* ** - No espaço de Miranda do Corvo-Lousã-Arganil os problemas, entre tantos que subsistem, levantam-se também com a Formação de Campelo (Tortoniano sup.-Messiniano inf.) e Conglomerados de Telhadas (Messiniano sup. – Zancliano). Se a primeira traduz um regime endorreico em clima temperadoquente, com estações contrastadas, o segundo, espelha um sentido de regimes aluviais, pedogenizados sob clima árido (P. Cunha; 1992). Estes teriam sido os quadros paleogeográficos ... e que poderemos nós pensar de hipóteses que ainda não tiveram outras para as pesarem? O valor de cada uma está também na falta de verdades alternativas. - Olhemos agora para a Depressão do Bierzo, já invocada por Daveau (1985/ 1986). Então, podemos sonhar equivalências com a Formação Las Médulas, onde as fácies conglomeráticas e areno-pelíticas, acastanhadas e/ou avermelhadas, sintectónicas, têm sido consideradas do Miocénico médio-Pliocénico (MartinSerrano; 1994). Para Daveau (1986, p. 409) “... la formation de Torral est l’equivalent des arkoses de Coja, la formation de Santalla celui des épandages fluviatiles de piémont des bassins de Lousã et Arganil et Las Medulas celui de la

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formation à blocs de Sacões et Travanca ...”. Se assim é, então o problema estender-se-à aos Conglomerados de Santa Quitéria (Placenciano; in Cunha; 1992), cujo julgamento cartográfico ainda hoje nos inspira reservas. Estas vão da inferição da morfologia insculpida nos quartzitos armoricanos de suporte, à possibilidade de divisão da própria unidade, no sentido em que hoje consideramos o que foi entendido por Complexo da Cruz de Morouços, a sul de Coimbra. Aqui, a Formação de Antanhol, materializadora da sequência pliocénica, é encimada por outra unidade conglomerática, grosseira a muito grosseira, quartzo-quartzítica, submatura, a Formação de Espírito Santo. Temos vindo a acreditar, ou nisso fazemos crença, ser a superfície, entre ambas as unidades, tradutora do limite cartográfico Pliocénico/Plistocénico. Neste sentido, a formação plistocénica, materializará a fase P4 de Teixeira (1979); ou seja, se nisso fizermos lei, o problema do Calabriano na Orla. E disso fazemos lei, porque pensamos haver possibilidade do topo da Formação de Barracão ser efectivamente do Gelasiano, conforme a sua definição em Rio et. al. (1994; 1998). - Entre tudo, o que nos parece de convergente realidade é serem os Conglomerados de Santa Quitéria mãe dos calhaus quartzíticos que compõem grande parte da série quaternária da região da Lousã-Miranda, prolongando-se, talvez por reciclagem, para ocidente do próprio Maciço Marginal. Disto nos parecem dar testemunho os terraços da zona vestibular do Ceira, aquele outro do Calhabé e, talvez, as próprias Areias vermelhas de Ingote, ricas, na sua posição mais proximal, em Logo de Deus, em grandes calhaus rolados de quartzito, com abundantes marcas semi-lunares.

* **

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- Quando olhamos o “horst” do Maciço Marginal assalta-nos a nudez quase total das suas vertentes modeladas em xisto. Apenas ao longo do Corvo (Dueça), e em raros pontos do Ceira, se alinham pequenas manchas fanglomeráticas, arenopelíticas, cascalhentas, imaturas e vermelho-acastanhadas (Conglomerados imaturos de Moinhos). Na região, a superfície do Maciço desenha-se bem, na margem direita do Mondego, nos 530 ± 20m da platitude das serras do Roxo e Aveleda. Ela parece prolongada a sul pelas culminações das serras de Sicó e Alvaiázere, para não corrermos, ainda mais a sul, para as serras de Candeeiros e d’Aire. Se nada mais houvesse, se tudo fosse expressão da quietude que sempre almejamos, como seria agradável pensar esta superfície como fundamental ao equilíbrio dum rejogo associado à definição da Cordilheira Central. À mesma altitude e na frente setentrional do “horst” da Lousã, a superfície de Sacões molda-se sobre os Conglomerados de Santa Quitéria.

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- Na margem sul do Mondego, a culminação do Maciço Marginal, no Carvalho e Senhor da Serra, está cerca de cem metros abaixo daquela do Roxo-Aveleda. Se elas são simpáticas, então o deslocamento observado testemunha acidente que orienta o Mondego no seu troço da Portela à confluência da Rib.ª do Lorvão. Gostaríamos de pensar que tudo é assim, que esta é uma ordem natural, e adicionarmos um pouco mais de vida à hipótese de, um dia, o Mondego ter corrido pelas terras que hoje são do Ceira (Daveau; 1986; pp. 343-346).

* ** - Vamos supor que tudo foi assim; então, nas frentes ocidental e oriental da Serra de Degracias, no Maciço Calcário de Sicó, há enchimentos arenoconglomeráticos do carso, a cotas cerca dos 350 ± 10 m, que lembram, pelas suas naturezas, outros colocados cerca de 150 m mais abaixo e admitidos como do Plistocénico inferior, ou do Plistocénico superior. Se assim é, então a taxa média do deslocamento vertical aproximar-se-á, pelo seu limite superior, daquela de 0.1mm/ano (B. Ferreira (1991) e Cabral (1995)). Esta será, ou poderá ser, a taxa de deformação associada à Superfície da Serra da Vila (ou da Via), colocada a cerca de 320 ± 20 m de cota. Com ela ligam-se os Conglomerados da Serra da Vila, como os seus possíveis equivalentes da Orla, os Conglomerados do Espírito Santo, a sul de Coimbra. - Quando, por outro lado, pretendemos encontrar o jogo desta superfície na frente norte da Serra da Lousã, deparamos com a nossa impossibilidade, e isto, talvez, como observou S. Daveau (1986; p. 322), por falta de formas capazes de sustentarem ideias de ruptura. Tudo se passa como se tudo tivesse sido apagado – remexeram os arquivos da geohistória! Apenas, aqui e ali, se observam restos de fanglomerados poligénicos a testemunharem multiplicados herdamentos. É assim que olhamos os depósitos que se observam na estrada do Soito para Horta. Outro problema a ter em conta será a do Nível do Chã do Freixo, a cerca de 210 ± 5m, entre as ribeiras Maior e do Brejo. Com ele ligam-se depósitos, com 8 ± 2 m de espessura máxima, de conglomerados muito grosseiros, imaturos, ricos em calhaus rolados de quartzo e quartzito, passando, no terço superior, a arenopelitos cascalhentos, por vezes com estruturas em canal, imaturos e amarelo acastanhados. Serão estes depósitos correlativos daqueles outros do Cume, e que andam repartidos por dois afloramentos a cotas máximas de 216 m a norte e 258 m a sul? Estamos em crer que sim, e que a individualização observada no Cume é resultado de falha com rumo para NW.

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Figura 2 - Os depósitos quaternários do Baixo Mondego (mod. Soares et al., 1989). Desc. – descontinuidade; Dep. = depósito; Ort. = ortoconglomerados; Congl. = conglomerados; Capt. = captura

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- Se admitirmos como constante o declive médio observado em cada um dos segmentos do Cume, não será difícil pensar que as cascalheiras muito grosseiras e quartzo-quartzíticas, a 120 m de cota no Casal do Érmio e 143 m a sul de Covelo, na margem direita do Ceira, estejam associadas àquelas outras do Chã do Freixo. Se assim for, então o traçado do Ceira terá sido posterior à organização deste nível, talvez o mais antigo glacis-terrasse da região. - A hipótese avançada, sugestiva assim o pensamos, parece-nos não respeitar: (1) as pequenas manchas de cascalheiras semelhantes e que, na margem direita aparecem mais para ocidente, em Loba (170 m) e Caneiro (160-170 m) e, na margem esquerda, acima de Braços (135-150 m); (2) a evolução da depressão de Poiares, com um conjunto de depósitos semelhantes, mas afeiçoados a uma drenagem para sul, pela Ribª da Ponte Velha.

* ** - Bem, apesar de tudo, não serão aqueles aspectos secundários a ditarem quadros diferenciados de herdamentos? - Já anteriormente foi nossa opinião (F. Soares; 2000) : - “Na consensual Bacia da Lousã ... , e serras circunvizinhas, até onde se faz sentir a inscultura da bacia hidrográfica do Mondego, moldam-se corpos coluvionares e aluvionares que se individualizam por: (1) geometria e estrutura interna; (2) maturidade textural e graus de alteração dos calhaus de xisto e quartzito; (3) cor; (4) sinais ou não de evolução pedogenética; (5) composição da fracção conglomerática. Os mais antigos, pelo menos assim o pensamos, para o conjunto de coluviões, têm : (1) geometria trapezoidal; (2) estruturas internas complexas, com esboços de polarização; (3) cor vermelha ou amarelo-acastanhada; (4) vincada maturidade, com calhaus de xisto e quartzito em diversos estados de alteração; (5) calhaus com diferentes graus de rolamento, por vezes, com níveis de calhaus redondos a subredondos na base; (6) marcas de evolução pedogenética por ferritização e/ou desenvolvimento de texturas marmóreas. - Tem sido por aqui que temos julgado o valor relativo dos Conglomerados imaturos de Roçaio e Vilarinho, sobretudo aquele de Roçaio, complexo e a traduzir herdamentos diversificados em fases de tendência rexistásica que, possivelmente, na frente ocidental do Maciço Marginal, teria também polarizado as Areias vermelhas de Ingote. - O glacis-terrasse de Vilarinho tem uma estrutura mais simples e maior riqueza de calhaus alterados de xisto. Em S. Daveau (1986; p. 330) : - “ ... l’altération des schistes même rougis est ici beaucoup moins possée que sur les terrasses de Chã de Freixo et de Cume, ce qui incite à penser que le modelé de celle de Vilarinho est sensiblement postérieur”.

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Figura 3 - Conglomerados imaturos de Roçaio (perfil do depósito de água – Roçaio);e. m. = espessura média; esp. Máx. = espessura máxima; D A = depósito de água

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- Os Conglomerados de Vialonga, que pensamos equivalentes dos de Roçaio e Vilarinho, apresentam estrutura semelhante e, por aproximação ao Granito de Vila Nova, maior riqueza em calhaus de granito e matriz subarcósica. - O conjunto parece traduzir um tempo de rexistasia dominante, associado a deformação diferenciada de blocos que teriam respondido pela forma e desenvolvimento de glacis-terrasses. E, se assim foi, e assim entendemos que possa ter acontecido, então os depósitos em causa ligar-se-ão ao tempo de construção da fase I de transformação no Baixo Mondego – “Foi a partir desse momento que passaram a circular certos ditos venenosos que não faziam o menor sentido a não ser para os mexilhões” (J. Cardoso Pires; 1989; p.138).

115 Figura 4 - Organização dos depósitos de Vialonga (estrada Corga-Vialonga). MR = muito redondo; R = redondo; SR = sub-redondo; SA = sub-anguloso; A = anguloso; Qz = quartzo; Qt = quartzito; X = xisto; Gr = granitóides; ; relativo aos calhaus de xisto – Ma = muito alterado; A = alterado; Pa = pouco alterado; S = não alterado

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- Mas se no Baixo Mondego, a organização dos depósitos essencialmente aluviais conduziu-nos à individualização de dois conjuntos distintos : (1) o depósito de Ameal-Sto Varão (30 ± 5 m acima do leito maior do Mondego); (2) o depósito de Tentúgal-Gabrielos (15 ± 5 m) acima do Mondego - outro tanto parece não se observar, ou pelo menos não é tão claro em relação ao Ceira, sobretudo entre a “garganta” da Senhora da Candosa (... la gorge du Cabril de Senhora da Candosa ... “; S. Daveau; 1986) a montante e Alcaperna – Ponte a juzante. O problema fundamental está no significado a atribuir aos depósitos que, tanto numa como noutra margem do Ceira, a juzante do Casal do Érmio (figura 5), convergem na individualização dum nível mais elevado, 40 a 50 m acima do rio.

Figura 5 - Os “terraços” fluviais do Ceira entre o Cabril e Alcaperna/Ponte.

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Se as características dos depósitos mais elevados apontam para arranjos coluviais de duvidoso ordenamento relativo, outro tanto parece não acontecer com os depósitos da zona vestibular do Ceira, 30 m acima do leito do rio. Contudo, com o terraço do Ceira (figura 6), conjuga-se, pela similitude das fácies, aquele outro da Boavista, cerca de 15 m acima do Mondego, e ainda o do Calhabé, cerca de 20 m acima dos leitos das ribeiras do Vale das Flores e da Arregaça, enfiadas no traçado dum antigo e singular meandro do Mondego. Em todos eles, que formam os Depósitos de Ceira e Boavista, há corpos conglomeráticos grosseiros a muito grosseiros, submaturos, quartzo-quartzíticos e com calhaus de “grés conglomerático silicificado do tipo Buçaco”. - É esta uniformidade composicional que nos leva a considerar não só a independência relativa dos Depósitos de Érmio (e seus equivalentes), como a admitir possibilidade de correlação com os Depósitos de Ceira e Boavista, desajustados que estão pelo jogo das fracturas que afectam os blocos onde se instalam. - Os depósitos aluviais mais baixos do Ceira, cerca de 10 ± 5 m acima do rio, têm características igualmente complexas, onde, por vezes, como sucede no depósito da Videira, há corpos a denotarem condições climáticas diferentes,

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possivelmente mais frias. Mas, vejamos, o problema fundamental nestes depósitos mais baixos está no desacerto que eles mostram entre o Casal do Érmio e Rodas, onde surgem 20 a 25 m acima do leito do rio. Pensamos que tudo se poderá explicar por soerguimento de blocos, induzidos por falhas que condicionam o próprio traçado do Ceira imediatamente a juzante de Póvoas e, também, da Ribª Maior, na confluência do Ceira.

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Figura 6 - O “terraço do Ceira” – (30-40 m acima do Rio Ceira) . Qz = quartzo; Qt = quartzito; X = xisto; MR = muito redondo; R = redondo; SR = sub-redondo; SA = sub-anguloso. 10 % relativo à matriz

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Figura 7 - Os depósitos quaternários Coimbra-Miranda do Corvo-Lousã

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- Ao nível destes depósitos mais baixos integramos ainda aqueles outros da Papanata e de Vila Nova do Ceira. Se, ao último correspondem corpos progradantes de grandes blocos redondos de quartzito, à mistura com outros de xisto e associados à evolução do Ceira a montante da senhora da Candosa, ao primeiro, ao dePapanata, correspondem cascalheiras muito grosseiras de xisto a definirem progradações ligadas à Rib.ª da Cornaga e Rio Arouce. - Admitimos, por hipótese, que os Depósitos de Papanata e Vila Nova de Ceira possam, apesar da diferença de fácies, ser equivalentes daqueles outros que, ao longo do Mondego, estão presentes no espaço do Convento de Santa Clara-a-Velha e Taveiro (Depósito de Taveiro-Ribª de Frades), ligados, possivelmente, ao nível do Depósito de Tentúgal-Gabrielos. - A partir daqui, os problemas confundem-se pela complexidade das estruturas dos corpos, e uma quase impossibilidade em definirmos um nexo capaz de afirmar uma lógica de construção. Deste conjunto destacamos, e mais uma vez, os Conglomerados imaturos de Moinhos, os depósitos que dão cor aos xistos na margem direita do Corvo, ou Dueça. Os depósitos vermelhos marcam um estilo da evolução das vertentes em multiplicada fase rexistásica, e tradutora da história do Dueça em enquadramento tectónico defendido por Rebelo (1967), L. Cunha (1981) e F. Soares et. al. (1985).

* ** - Em suma, é esta história que gostaria de ter contado com outras certezas, pelo menos com as suficientes a outros ajustamentos das ideias. Mas as coisas andam, apenas quando o engenho se casa com o sonho. E, para isso, tem posição de privilégio os Tufos de Condeixa, onde se sintetiza um quadro que, começado no rondar do milhão de anos, se prolongou pelas histórias das transformações quaternárias desta parte da Ibéria.

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“A Geomorfologia do Noroeste Peninsular” Porto 2002 • Faculdade de Letras da Universidade do Porto

A SEDIMENTAÇÃO FLUVIAL CENOZÓICA NA REGIÃO DO ENTRE-DOURO-E-MINHO (NW DE PORTUGAL) MARIA ISABEL CAETANO ALVES1

1. INTRODUÇÃO A região NW de Portugal, o Entre-Douro-e-Minho, é conhecida pela abundância de granitóides hercínicos que intruiram e metamorfizaram os sedimentos paleozóicos. Este substrato está parcialmente coberto por vestígios da sedimentação que decorreu durante o Cenozóico terminal, atribuída ao Pliocénico e Quaternário. Na faixa litoral ocorrem depósitos de praias antigas e depósitos dunares. Para o interior, na região profundamente dissecada pela rede fluvial nos últimos milhões de anos, afloram as formações continentais geradas na dependência de sistemas fluviais. Os testemunhos principais desta sedimentação são depósitos que ocorrem nas bacias dos rios Minho, Lima e Cávado incluindo ainda os depósitos de Alvarães, situados entre o rio Lima e o rio Neiva (Figura 1).

1 Departamento de Ciências da Terra, Universidade do Minho, 4710-057 Braga, Portugal.Email: [email protected]

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Isabel Caetano Alves

Figura 1 - Localização da região. O asterisco situa os depósitos de Alvarães relativamente ao rio Lima e rio Neiva.

2. C ARACTERÍSTICAS DA SEDIMENTAÇÃO CENOZOICA

NOS CICLOS DE GLIPTO E

SEDIMENTOGÉNESE DE IMPORTÂNCIA REGIONAL NO ENTRE- DOURO- E-MINHO

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Os estudos que têm sido realizados desde início da década de oitenta por investigadores da Universidade do Minho, alguns no âmbito de teses de doutoramento e outro tipo de provas académicas, têm fornecido informações mais pormenorizadas sobre a sedimentação cenozóica. Por outro lado, as observações de campo, acompanhando as frentes de exploração dos depósitos nos últimos anos, trouxeram novas contribuições ao conhecimento das relações espaciais entre as grandes etapas de erosão e colmatação fluviais. Os dados disponíveis permitem afirmar que esta sedimentação foi inequivocamente originada por sistemas fluviais. O conjunto de argumentos a favor desta interpretação inclui o grau de desgaste dos clastos, a distribuição dimensional das partículas e o tipo e organização das litofácies. Podem ser consultados em vários trabalhos de síntese, dos quais se referem alguns publicados na última década (Alves & Alves, 1993; Alves, 1995a, 1995b, 1996, 1999a, 1999b; Pereira & Alves, 1993, 2001; Alves & Pereira, 1999, 2000; Pereira et al. 2000). Alguns dos autores citados dedicaram especial atenção ao estudo dos sedimentos com recurso a várias técnicas sedimentológicas, um trabalho repetitivo, moroso e considerado por alguns investigadores actualmente dispensável. No entanto, a utilização desta metodologia pode ser vantajosa, como o foi por exemplo, na interpretação genética dos depósitos da bacia do rio Lima (Alves, 1995a). Os depósitos de terraço presentes na margem direita deste rio são pouco espessos, ocorrem em afloramentos dispersos não propícios à identificação do tipo de litofácies nem da sua organização sequencial. As dúvidas, quanto à génese de

A sedimentação fluvial cenozoica na região do Entre-Douro-e-Minho (NW de Portugal)

alguns depósitos dos sistemas fluviais afluentes ao rio Lima, foram esclarecidas pela comparação quer do grau de desgaste quer da distribuição granulométrica dos sedimentos. Os valores da média do índice de desgaste de 1ª ordem na fracção grosseira amostrada nos referidos depósitos enquadram-se na nuvem de pontos definida pelas amostras de depósitos fluviais, nomeadamente dos terraços do rio Lima e da Formação de Alvarães (Figura 2). A morfologia dos clastos em questão é nitidamente resultante de transporte fluvial, mas tendo sofrido transporte durante um trajecto mais curto que os dos depósitos de terraços do rio Lima.

Figura 2 — Diagrama média/desvio padrão do índice de desgaste de 1ª ordem nos clastos de quartzo filoniano, classe (22-32mm), baseado em ALVES (1995a).

A génese fluvial foi confirmada pela distribuição granulométrica dos sedimentos, interpretada a partir dos parâmetros estatísticos em diagramas ortogonais média/desvio padrão (Figura 3) e outros.

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Figura 3 - Diagrama ortogonal dos parâmetros estatísticos média/desvio padrão (Folk & Ward, 1957), dos sedimentos de depósitos de terraços na bacia do rio Lima e da Formação de Alvarães (adaptado de ALVES, 1995a, 1999b).

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Os sedimentos cenozóicos contactam directamente, por inconformidade, as rochas do substrato que frequentemente estão caulinizadas sob os depósitos mais antigos. As litofácies depositadas variam desde conglomerados com matriz arenolutítica a arenitos lutíticos e lutitos. Estes testemunhos formam depósitos de terraços e enchimentos de pequenas depressões situadas em paleovales largos, com orientação transversal à fachada atlântica. As etapas erosivas de encaixe fluvial modelaram vários níveis de terraços, mas só algumas escavaram um novo talvegue no substrato. No conjunto das ocorrências, nas várias bacias, foram reconhecidos cinco ciclos de glipto/sedimentogénese com representação regional. A cada um correspondeu escavação de novo talvegue no substrato seguida de colmatação do paleovale (Alves & Pereira, 1999, 2000; Pereira et al., 2000).

2.1. SEDIMENTAÇÃO DESDE O PLACENCIANO AO PRIMEIRO CICLO DE GLIPTO/ SEDIMENTOGÉNESE DO Q UATERNÁRIO

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A etapa cenozóica mais antiga, conservada no NW de Portugal, é constituída por materiais depositados por sistemas fluviais a flúvio-lacustres fossilizando, já, vales de redes de drenagem exorreicas. Está representada pela Formação de Alvarães, localizada na região de Alvarães (a sul do rio Lima) e por ocorrências nas bacias do rio Minho, rio Lima e rio Cávado, jazendo em paleovales fluviais cujos traçados é possível seguir até à foz (Alves, 1995a, 1995b, 1996; Alves & Pereira, 1999, 2000; Pereira et al., 2000). Nos sedimentos predominam os clastos de composição siliciosa (quartzo e quartzitos) e de minerais resistentes e, na fracção argila, a caulinite. Num dos bordos da Formação de Alvarães, região de Paço-Vila Fria, observaram-se vestígios dos mantos de alteração fonte destes materiais. Trata-se de alterites graníticas, profundamente caulinizadas, deslocadas em escoadas sobrepostas contendo linhas de pedra, sendo ravinadas pela Formação de Alvarães (Alves, 1995a, 1999a). Porém, verifica-se que o substrato do enchimento desta etapa cenozóica mais antiga se encontra frequentemente caulinizado, sendo esta paleoalteração supergénica relacionada com a instalação dos depósitos por efeito da permanência prolongada da toalha freática (Serrano, 1973; Barbosa, 1983; Alves, 1989, 1995a). Esta alteração, foi observada sob a Formação de Alvarães e restantes ocorrências desta etapa sedimentar nas várias bacias estudadas do Entre-Douro-e-Minho. É nalguns locais extensa e profunda sendo explorada como fonte de materiais não metálicos, nomeadamente argilas e areias especiais. A Formação de Alvarães, cuja proposta de definição formal, baseada na caracterização e descrição de acordo com o Código Estratigráfico Internacional, foi apresentada por Alves (1999a), é constituída por dois membros: o membro inferior designado por Membro de Chasqueira e o membro superior designado por Membro de Teodoro (Figura 4).

Fig. 4 - Litofácies e elementos arquitecturais da Formação de Alvarães no perfil de Chasqueira (entre parêntesis figuram as litofácies menos frequentes) e esboço da orientação das paleocorrentes (baseado em Alves, 1995a, 1999a).

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A composição sedimentar desta formação é caracterizada, resumidamente, pelo predomínio de quartzo quer na fracção grosseira quer na dimensão areia, de caulinite com elevado grau de cristalinidade (Alves, 1999a, 1991), de alguma ilite e goetite associadas. Os dois membros formam uma coluna de quarenta metros de espessura máxima visível, actualmente com o seu ponto mais elevado a 76 metros de altitude (v. g. de Sião). Existem vestígios geomorfológicos de que este enchimento possa ter sido mais espesso e extenso cobrindo locais a altitude de 100m (Alves, 1995a). O Membro de Chasqueira é um lutito, com proporções quase iguais de limo e argila e 10% de teor médio em areia, e de composição caulinítica e goetítica. Este membro atinge 18m de espessura na localidade tipo, tem cor vermelha, com manchas claras por lixiviação do ferro ao longo dos traços radiculares. Ocorrem raramente arenitos com estratificação entrecruzada planar, arenitos com laminação horizontal e esporadicamente seixos de quartzo, subangulosos a subredondos. O predomínio das litofácies finas reflecte a manutenção de condições favoráveis à acreção vertical, por alimentação quer de escorrência local quer a partir dum sistema fluvial organizado de onde herdou os seixos rolados. Admitese a génese na dependência dum sistema flúvio-lacustre, também activo noutros sectores da paleobacia onde ocorre este membro. Nestes lutitos foram colhidos fósseis de lenhite Juniperoxylon pachyderma atribuída ao Pliocénico (Teixeira et al., 1969; Teixeira, 1979; Teixeira & Gonçalves, 1980) e sementes de Ceratophyllum, Eurya, Sparganium e Mneme (?) provavelmente do Pliocénico superior a Plistocénico inferior (Gregor in Alves, 1995a). O Membro de Teodoro contacta por disconformidade o Membro de Chasqueira ou por inconformidade as rochas do substrato. É predominantemente arenoso, associado a lutitos e alguns conglomerados, igualmente caulinítico com teor em goetite muito variável. As litofácies observadas são, por ordem decrescente em frequência, arenitos com estratificação entrecruzada do tipo côncavo associados a alguns conglomerados com o mesmo tipo de estratificação, lutitos e conglomerados maciços, conglomerados e arenitos com estratificação entrecruzada planar e lutitos bioturbados ou laminados. Identificaram-se três sequências básicas positivas terminando frequentemente em lutitos muito espessos, atingem três metros, ravinados pela sequência seguinte. O Membro de Teodoro representa o preenchimento de canais fluviais activos por agradação vertical, migração e abandono progressivo dos mesmos, pertencendo a um sistema fluvial organizado, do tipo entrançado arenoso e cíclico. As paleocorrentes, determinadas por medição do eixo dos ventres da estratificação, indicam tendência para um fluxo com orientação próxima da do paleovale, com alguma alimentação lateral por pequenos afluentes. O fluxo aquoso circulava com trajecto por Anha, marcado por depósitos actualmente sob as areias dunares, em direcção à foz no Atlântico. O volume de

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sedimentos depositados e o grau de desgaste dos clastos (figura 2) sugerem que estes materiais provêm de uma bacia com área e comprimento superiores à do actual rio Neiva. Pela análise morfológica do relevo no interflúvio das bacias do rio Lima e do sistema fluvial Cávado-Homem foi proposto que a Formação de Alvarães tenha sido gerada por um rio precursor do actual rio Neiva e incluindo o rio Homem, um paleorio Homem-Neiva. A preservação da coluna de sedimentos da referida formação beneficiou da redução da área da bacia de drenagem, após a captura do rio Homem para a bacia do rio Cávado e posteriormente também do desvio do trajecto do rio Neiva para sul dos depósitos (Alves, 1995a, 1995b, 1996, 1999a, 1999b). A Formação de Alvarães, atribuída à unidade alostratigráfica SLD13 definida por Cunha (1992) e ao Placenciano (Alves, 1999a), é um testemunho dum sistema fluvial exorreico instalado entre as bacias de drenagem do rio Lima e do rio Cávado, contemporâneo destes e do rio Minho. Desta etapa cenozóica ocorrem ainda outros testemunhos nas restantes bacias, correlacionados com base nos fósseis vegetais. Os conteúdos paleontológicos encontrados na Formação de Alvarães, na unidade inferior de Prado (bacia do rio Cávado) e na Formação de Barrocas (bacia do rio Minho) foram interpretados como climaticamente equivalentes, indicadores de clima quente e húmido e atribuídos ao Pliocénico superior a Plistocénico inferior (Ribeiro et al., 1943; Teixeira, 1944, 1979; Teixeira et al., 1969, 1973; Teixeira & Pais, 1976; Teixeira & Gonçalves, 1980; Braga, 1988; Pais, 1989; Gregor in Alves, 1995a; Pais, informação oral). A unidade inferior dos depósitos de Prado (na margem direita do rio Cávado), com vinte e sete metros de espessura na zona mais central, formou-se também na dependência dum sistema flúvio-lacustre. Esta unidade é constituída por um empilhamento de leitos areno-lutíticos, variando no seu conteúdo arenoso. Difere do Membro de Chasqueira pela maior frequência de areia, presença de esmectite além da caulinite e pela cor cinzento escuro a esverdeado. As litofácies da unidade inferior de Prado sugerem que o local tenha permanecido sob condições confinadas, mas sendo frequentemente invadido por canais secundários do sistema fluvial. Nesta unidade foram encontrados macrorrestos vegetais de lenhite, Osmunda cf. parschlugiana (UNG.), Lygodium gaudini HEER , Populus, pólenes de Pinus, Populus, polipodiáceas (Ribeiro et al., 1943; Teixeira, 1944; Teixeira & Gonçalves, 1980) e de Engelhardtia (Braga, 1988), atribuídos ao Pliocénico superior. A sedimentação fluvial propriamente dita, colmatando o paleovale inicial da rede do rio Cávado, observa-se bem entre Prado e Ucha, onde afloram espessos depósitos de terraço, entre 50 a 100 metros de altitude, resultantes quer de trajectos anteriores do rio Cávado quer de afluentes contemporâneos (Figura 5).

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Figura 5 – Esboço cartográfico da sedimentação cenozóica na bacia do rio Cávado. Nos perfis transversais estão representados os ciclos regionais de glipto/sedimentogénese cenozóicos identificados nesta bacia, relativos a três locais tipo (adaptado de Alves & Pereira, 2000).

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A este episódio de sedimentação no paleovale do rio Cávado pertencem também os depósitos na região de Vila Verde-Amares, em Barcelos e os depósitos de Gemezes que marcam o trajecto até à foz deslocada para norte da actual, junto à base do Monte de Faro (Esposende). Os depósitos de Cruto representam a sedimentação do rio Cávado neste ciclo. São predominantemente arenosos com alguns níveis conglomeráticos e abundante matriz caulinítica. A composição sedimentar e arquitectura deposicional, típica de sistema fluvial entrançado arenoso, são semelhantes às do Membro de Teodoro da Formação de Alvarães, mas não se observam lutitos tão espessos. Contemporâneos do enchimento de Cruto são os depósitos de QuebrosasEspinheira e de Cervães-Ucha gerados por dois importantes afluentes da margem direita do rio Cávado. Caracterizam-se pela sobreposição de várias sequências básicas positivas, de um a três metros de espessura cada, constituídas por litofácies conglomeráticas clasto-suportadas, com ou sem estratificação e terminando em lutitos cauliníticos laminados, ravinados pelas sequências seguintes. Os conglomerados são polimíticos, constituídos por calhaus subangulosos de quartzo (até 30cm), granito e xisto alterados, denotando a grande capacidade de erosão dos fluxos e proximidade das vertentes (Alves & Pereira, 1999, 2000). Na bacia do rio Minho esta etapa cenozóica está representada pela Formação de Barrocas (S. Pedro da Torre-Valença). A região entre Valença e V. N. de Cerveira foi uma área chave para a observação quer da arquitectura deposicional quer das relações entre os vários ciclos de glipto/sedimentogénese (Figura 6). O paleovale entre a região de S. Pedro da Torre (portagem da A3) e a antiga cerâmica de Cornes, foi escavado, a cotas superiores a 50 metros, por múltiplos canais. No enchimento deste paleovale, que pode ter ultrapassado quarenta metros de espessura, junto ao substrato caulinizado observam-se conglomerados, com calhaus muito rolados de quartzito e algum quartzo, aos quais se seguem lutitos preenchendo canais abandonados. Sobre estes depósitos finos, cauliníticos, por vezes espessos e fossilíferos, ocorrem até ao topo vários níveis de conglomerados semelhantes aos da base (Pereira, 1989, 1991; Alves & Pereira, 1999, 2000; Pereira & Alves, 2001). Neste episódio incluem-se os vestígios de depósitos que se observam para montante a cotas crescentes. Os vestígios mais elevados são os conglomerados de Prado (Melgaço) que ocorrem na margem esquerda do rio Minho sobre granito alterado entre 95 e 100 metros de altitude, e os de Salvatierra na margem direita, aflorando a 120 metros de altitude (Lautensach, 1945; Teixeira, 1952; Zbysewski, 1958). Na jazida de Corgos foram identificados, por Andrade (1945), pólenes de Pinus (com dimensões e morfologia de sylvestris), Quercus, Castanea, Salix, Betula, Polen vestibulum, Gramineae, Schizaceae, Polipodiaceae e Cyatheaceae. Este conteúdo paleontológico tem características mais temperadas que o da Formação de Barrocas. Nos pólenes e esporos recolhidos nos lutitos da Formação de Barrocas destacam-se a espécie Taxodium hantkey Gregor e o género

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Figura 6 - Esboço cartográfico da sedimentação cenozóica na bacia do rio Minho. No perfil esquemático representa-se a sucessão dos ciclos regionais de glipto/sedimentogénese cenozóicos interpretados na região S. Pedro da Torre – Valença. A espessura dos depósitos não está representada à escala (adaptado de Alves & Pereira, 2000).

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Engelhardtia que sugerem condições do tipo subtropical (Pais, 1989; Alves & Pereira, 1999, 2000). Os elementos termófilos citados dificilmente poderiam ter sobrevivido a um grande arrefecimento, sendo desconhecida a sua presença nas associações florísticas da Europa após o Plistocénico inferior (Pais, informação oral). As características mais temperadas da flora da jazida de Corgos suportam a hipótese de ter ocorrido um episódio de encaixe fluvial no ciclo mais antigo, do Placenciano ao Plistocénico inferior, representando um primeiro embutimento quaternário na colmatação anterior, sem atingir o soco. A superfície de ravinamento que corta o episódio de sedimentação anterior, é raramente observada e somente clara quando faz a transição entre os níveis argilosos inferiores com os conglomerados do episódio posterior. O enchimento é constituído por sequências positivas. Na base ocorrem conglomerados, com clastos até 30 cm de dimensão e imbricação evidente, seguem-se conglomerados com estratificação entrecruzada planar. A sedimentação, embora francamente conglomerática, no fim do ciclo termina com a deposição de finos de decantação em canais abandonados (Alves & Pereira, 1999; 2000; Pereira & Alves, 2001). Em resumo, no rio Minho a colmatação mais antiga decorreu entre o Placenciano e o Plistocénico inferior, o mesmo paleovale que contém este enchimento comporta um segundo ciclo embutido, de características sedimentares semelhantes ao anterior. Este embutimento deve ter sido provocado pelo arrefecimento que atingiu a Europa antes do Plistocénico médio, e materializa o primeiro episódio regional de gliptogénese quaternária (Alves & Pereira, 1999, 2000). Na bacia do rio Lima os vestígios dos depósitos mais elevados ocorrem próximo de Refoios do Lima e de Ponte de Lima e preenchem um paleovale, aproximadamente a 70 e 50 metros de altitude, modelado no substrato granítico e metassedimentar. Nas propostas anteriormente apresentadas (Alves, 1995a, 1995b, 1996, 1999b) estes foram considerados como dois níveis de terraço, respectivamente T1 e T2. É clara a ligação destes enchimentos a uma rede de afluentes organizada, dos quais ocorrem terraços na margem direita, em Faldejães (a norte de Ponte de Lima), Lanheses, Meixedo, Vila Mou e Torre. A composição sedimentar dos terraços T1 e T2 assemelha-se à descrita para as restantes bacias, incluindo a caulinização do substrato. Devido à ausência de níveis fossilíferos não é possível assegurar que os vestígios mais antigos interpretados como níveis de terraço T1 e T2 sejam realmente correlativos do primeiro e segundo ciclos descritos. Na bacia do rio Minho também não é certo que, por exemplo, os conglomerados de Melgaço que constituem o enchimento do paleovale, dito inicial, para montante de Valença pertençam ao primeiro ou ao segundo ciclos. Por esta razão foram apresentados em Alves & Pereira (2000) como testemunhos indiferenciados dos ciclos 1 e 2.

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Em síntese, os dois ciclos estão representados regionalmente. O primeiro decorrido durante o arrefecimento que atingiu a Europa antes do Plistocénico médio. É o primeiro ciclo de glipto/sedimentogénese do Quaternário. Nas bacias do Entre-Douro-e-Minho estes dois ciclos podem preencher paleovales distintos (caso da bacia do rio Lima) ou o mesmo paleovale (caso de S. Pedro da Torre na bacia do rio Minho).

2.2. TERCEIRO

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CICLO DE GLIPTO /SEDIMENTOGÉNESE CENOZÓICO

O terceiro ciclo também decorreu sob condições favoráveis à meteorização química e está identificado nas bacias dos rios Lima, Minho e Cávado. A composição sedimentar deste enchimento é semelhante à do anterior, com clastos de quartzo e quatztito e matriz dominantemente caulinítica. Esta semelhança resulta quer da exumação do soco alterado, sob condições propícias à meteoriação química, quer da herança de partículas dos depósitos mais antigos. Nos depósitos de Valença/Vila Nova de Cerveira, na bacia do rio Minho, o novo ciclo de encaixe fluvial ravina o enchimento anterior, aprofundando o talvegue (figura 6). Sobre este novo paleovale, modelado aproximadamente a 30 metros de altitude, acomodou-se um novo empilhamento de vinte metros de espessura de sedimentos. Sobre a base, mais ou menos regularizada, assentam conglomerados grosseiros, com clastos até 25 cm, resultantes de preenchimento de canais. A perda gradual da energia do transporte é expressa pela sucessão de níveis conglomeráticos mais finos e substituição progressiva por sedimentação predominantemente arenosa. Localmente são identificados canais secundários preenchidos por arenitos com estratificação entrecruzada do tipo côncavo e escavados no preenchimento grosseiro da base. Em locais com menor dinâmica desenvolveram-se planícies arenosas, percorridas por canais largos pouco profundos, repetindo-se o mesmo estilo de sedimentação. A migração progressiva do canal principal, em direcção à margem direita, permitiu ainda a exposição prolongada deste sector da bacia e a sua inundação regular, traduzida pelas fácies de decantação finas com traços radiculares da ocupação vegetal. Este processo de migração modelou uma superfície de terraço relativamente regular entre 30 e 40 metros de altitude. A organização das litofácies salienta o carácter cíclico de um modelo arquitectural do tipo entrançado em cascalho, com enchimento e migração de canais até à constituição de planícies, onde, em fim de ciclo, são decantadas fácies finas (Alves & Pereira, 1999; 2000; Pereira & Alves, 2001). Na bacia do rio Lima este é de todos os ciclos o que se encontra melhor preservado (figura 7). Está representado pelos depósitos mais extensos que ocorrem entre Correlhã (Ponte de Lima) e Darque (Viana do Castelo), preenchendo o paleovale escavado entre 50 e 20 metros de altitude.

Figura 7 - Esboço cartográfico da sedimentação cenozóica na bacia do rio Lima, função dos ciclos regionais de glipto/sedimentogénese identificados (baseado em Alves, 1995a; Alves & Pereira, 2000).

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Isabel Caetano Alves

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Tem também vestígios em terraços dos afluentes da margem direita e da margem esquerda (Alves, 1995a; Alves & Pereira, 2000). Nos depósitos da bacia do rio Lima as litofácies dominantes variam de conglomerados com matriz areno-lutítica a arenitos lutíticos, sendo raras as camadas de lutitos. Comparados com os da bacia do rio Minho os clastos das litofácies conglomeráticas são mais finos, predominam seixos de 16 a 32mm, assemelhando-se em termos dimensionais à sedimentação nos terraços do rio Cávado. O cortejo de minerais pesados e o espectro litológico dos clastos são pouco variados e também expressam grande semelhança com a composição dos depósitos anteriores. A composição dos sedimentos deste enchimento reflecte modificações pós deposicionais da mineralogia inicial, com progressão dependente das características das litofácies expostas e da drenagem interna dos depósitos (Alves, 1991, 1995a, 1995b, 1996, 1999a, 1999b; Pereira & Alves, 1993). A alteração é responsável pela diminuição de cristalinidade da caulinite, aparecimento de gibsite, vermiculite e interestratificados irregulares do tipo (10-14v). O estudo exoscópico realizado, comparando amostras de vários depósitos das bacias, revelou que estas modificações atingiram também os grãos de quartzo e ocorreram nos sedimentos já imobilizados (Pereira & Alves 1993). Os grãos de quartzo provenientes do enchimento deste ciclo, possuem marcas químicas sobre os efeitos mecânicos. Estes reflectem transporte em meio fluvial, do qual resultaram arrancamentos, fragilização de arestas e amorfização das partes mais salientes. A dissolução química é intensa na superfície dos grãos, tendo sido removida a maioria da sílica amorfizada, resultante do choque por transporte fluvial. Figuras de dissolução geométricas, de contornos muito nítidos, ocorrem também sobre as neogéneses de quartzo (herdadas), observando-se muitas suturas químicas na superfície dos grãos. Estas marcas sugerem imobilização em ambientes de elevada energia química, quentes e húmidos, com facilidade na evacuação da sílica (Alves,1995a, 1995b, 1996). Nos sedimentos da Formação de Alvarães, também observados neste estudo exoscópico, são abundantes as marcas de dissolução e precipitação química, dominando as primeiras, geradas na dependência das marcas mecânicas. O ataque químico intenso, traduzido pelo alargamento e aprofundamento de centípedes, crescentes e “Vs”, assim como de fraquezas estruturais, sugere imobilização longa em ambientes de elevada energia química, mas ao contrário dos sedimentos do rio Lima acima descritos, com evacuação moderada de sílica. A profundidade dos efeitos químicos de dissolução aumenta nos grãos que se encontram mais próximo da superfície, em consequência da melhor drenagem devido às características geomorfológicas inerentes à localização destes sedimentos (Alves, 1995a, 1996). Observam-se também na Formação de Alvarães mudanças no cortejo mineralógico inicial da fracção
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