Princípio de Obrigação Mútua: um pressuposto para pesquisa em seres humanos

July 19, 2017 | Autor: Nilo Reis | Categoria: Ética Aplicada, Bioética e Biodireito, Etica
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PRINCÍPIO DE OBRIGAÇÃO MÚTUA: UM PRESSUPOSTO PARA PESQUISA EM SERES HUMANOS

NILO HENRIQUE NEVES DOS REIS

Tese apresentada como requisito parcial para Promoção na Carreira do Magistério Superior, da Classe de ADJUNTO para Classe de TITULAR, conforme disposto no Capítulo V do Estatuto Magistério Público das Universidades do Estado da Bahia.

BANCA Maria da Glória Sampaio Gomes Professora Titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Liliane Elze Falcão Lins Kusterer Professora Titular da Escola de Medicina e Saúde Pública (EBMSP) Alba Benemérita Alves Vilela Professora Pleno da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

Esta tese existe graças à minha esposa Sumaya, Musa inspiradora! Dedico estas linhas à memória de minha mãe, Verbena Neves dos Reis, e ao sempre presente pai, Nilo Alves dos Reis. Homem de espírito inquieto e espontaneamente dedicado aos filhos. Dedico também às professoras Elyana Barbosa e Eliane Elisa de Souza Azêvedo. Elyana teve um papel decisivo em minha vida intelectual, influenciando-me sobre muitos assuntos, como Filosofia da Ciência, por exemplo. A ela coube a minha introdução à Filosofia sob uma forma inusitada após a conclusão da graduação. Eliane mostrou-me a relevância da Bioética para a pesquisa em seres humanos e, sobretudo, que o compromisso ético com as pessoas deve ser uma postura consciente do cidadão. De um modo encantador, ela me pôs nas discussões sobre a Bioética, dando-me acesso a diálogos profícuos e impensáveis com vários pesquisadores das ciências. Agradecimento não menos expressivo a Eliab Barbosa, amigo e colega que sempre manteve a confiança em minhas ideias, e ao professor Charliston Pablo do Nascimento. Graças aos seus conselhos, convenci-me de que o claro e o distinto precisam de luz para ser mais bem compartilhados. Por fim, ainda que eu seja um incrédulo, agradeço especialmente à Santa Bárbara por ter se manifestado através de sua epifania em minha Musa.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..............................................................................................................1 2 ESCOLHA, CONFLITO E NATUREZA HUMANA .......................................................6 3 AS CIÊNCIAS, A BIOÉTICA E A CIDADANIA ...........................................................12 4 ÉTICA, CIDADANIA, CIÊNCIAS E RESPONSABILIDADE: BASES PARA UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA ...........................................................................................18 5 A DIMENSÃO DO INDIVÍDUO: A ESCOLHA ENTRE OS MEIOS E OS FINS ..........30 6 A LEI E AS CIRCUNSTÂNCIAS EM AUXÍLIO A UMA PEDAGOGICA MAIS CIDADÃ ..........................................................................................................................38 7 CONCLUSÃO ...............................................................................................................46 REFERÊNCIAS ................................................................................................................50

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1 INTRODUÇÃO Esta exposição parte da crença basilar de que todos os seres humanos compartilham da ideia de que é necessário existir um conjunto de normas éticas para organizar a vida social. Esse conjugado de princípios deve ser constituído sob o pressuposto da validade universal, orientando as ações dos indivíduos em todos os ambientes de sua existência. Tendo essa formulação geral, nas linhas a seguir, procuro discutir que as ciências que se envolvem com pesquisas científicas em seres humanos não podem prescindir de alguns pressupostos éticos. Dada a importância das ciências nas últimas décadas, há aqueles que solicitam uma moral especial para esses saberes, uma vez que seus quefazeres são obrigados, às vezes, a sacrificar o interesse de uns com vista a promover a felicidade de uma parcela ainda maior. Essa tese é inaceitável. O uso judicioso da razão humana exige que a consciência se presentifique em qualquer manifestação do cidadão contemporâneo. A cidadania é um significativo pilar do conjunto mencionado, sendo entendido como uma característica essencial da sociedade. E, nesta asserção do tempo, no qual as ciências ganharam um papel expressivo, é que os seus praticantes devem mostrar o exercício de suas liberdades em um estado que elege suas leis através de suas próprias vontades. Como se vê, a construção e vivência da cidadania são experimentadas pelos indivíduos em comunidade, o que decorre de leis resultantes de sua própria participação. Pois bem, dado que é do interesse básico de todos que haja princípios morais, propõe-se que seja acrescentado no cenário do trabalho das ciências que envolvem pesquisas em seres humanos o “princípio de obrigação mútua”. Acredita-se que esse seja um desdobramento do amadurecimento da cidadania. A menos que se adote a ideia equivocada de que tal conhecimento possa ser isento de responsabilidade. No mundo contemporâneo em que se instala o Estado Democrático de Direito, é indubitável que todos concordem que a cidadania é o princípio que sustenta e legitima a organização social. Sob ela se encontra a razão pela qual os indivíduos submetem à sua vontade as leis do Estado e é o motivo que permite a este elaborar, fiscalizar e fazer cumprir um conjunto de direitos e deveres daqueles com os seus assentimentos a fim de lhes proteger. Na ideia de cidadania está contida a ideia clara e incontestável de direitos e deveres de uns com os outros. A expressão “cidadania” se altera no tempo, mas, na atualidade, no direito à cidadania está intimamente reconhecida a qualidade de ser um ser humano, sendo necessário criar as condições de exercê-la em sua plenitude. Com base no ser humano e na cidadania,

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estabelecem-se as relações entre os indivíduos e as instituições, possibilitando-lhes uma interação a respeito das exigências que permite aos primeiros ter uma excelência de vida entre si, garantidas pelas segundas, de modo que é impossível pensar em cidadania sem qualidade de vida. Esta é uma propriedade inerente àquela. É evidente que se trata de um princípio abstrato que varia no espaço e no tempo, sendo mais experimentável em alguns locais do que em outros. Porém, não se pode colocar em dúvida que a cidadania é um fenômeno jurídico da sociedade democrática e se alicerça basicamente na ideia de igualdade de todos perante as leis. De acordo com estas, todos nascem e permanecem com direito à liberdade de agir segundo sua vontade. E dentro do Estado em questão, a liberdade pode ser entendida como a capacidade do indivíduo de agir de acordo com os seus desejos mais íntimos, porém nos limites das leis e costumes estabelecidos e socialmente referendados. Ora, desde que as respeite, o indivíduo é completamente livre. Essa liberdade só se complementa com o direito à justiça, à autonomia e à felicidade. Assim sendo, no interior da cidadania se encontram os próprios referenciais atribuídos ao vocábulo, sendo suas máximas gerais o princípio que sustenta o Estado Democrático de Direito. Embora sejam noções abstratas, estes princípios são universais e todos são obrigados a observá-los em suas relações com os outros e com as instituições. Pode-se afirmar que o princípio de obrigação mútua esteja contido na ideia de cidadania, à medida que a atividade científica está envolta na dimensão do indivíduo que responde aos problemas da existência humana por meio de uma escolha. A construção e efetiva realidade da institucionalização da cidadania é um destes problemas, máxime porque o indivíduo é livre para escolher a qualquer época e, em decorrência de sua escolha, será responsável por seus desdobramentos, podendo, inclusive, vir a ser privado de sua liberdade por decisão judicial. De início, compete observar que o ato de escolher não é simples processo mecânico. Pelo contrário, ele é a expressão mais genuína e significativa do indivíduo, o que o define como ser humano e o distingue dos demais seres por entender o que se passa em torno de si. A existência antropológica, a rigor, só ganha sentido quando o indivíduo se encontra livre para exercer as suas escolhas perante as resistências que a vida lhe oferece. A vida se apresenta em uma série de circunstâncias e entre elas se encontram os indivíduos em condição de reciprocidade. Esta ocorre porque o indivíduo vive em situação de conflitos, já que o ato de viver acontece para ele, respectivamente, em presenças de outras existências e, concomitantemente, pertencendo a um mundo que se impõe

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com seus valores e que é, ao mesmo tempo, interpretado pelos indivíduos em suas relações intersubjetivas, gerando uma multiplicidade de perspectivas. Devido à condição sem igual de ser um organismo com propósitos próprios e estando o indivíduo ladeado entre outros é que sobrevém o conflito. Acredita-se que parte das tensões provém das pulsões interiores presentes na natureza humana de cada indivíduo e por mais um componente fundamental que serve, às vezes, como o guia mais aconselhável para ponderar e pensar sobre o homem: a influência que o meio ambiente exerce sobre os indivíduos. De Platão a Weber, a história da filosofia possui distintas conjecturas acerca da origem e disposições dos elementos que incidem sobre o conflito e, igualmente, das proporções em que as mesmas se unem para formar o conflito que dá origem aos problemas da existência. Tal contribuição não será objeto de considerações nem de questionamentos, pois só se deseja, nesta oportunidade, assinalar a questão do conflito e como esse ingrediente é significativo em uma discussão sobre a natureza e função da ética na consciência do indivíduo. Neste escrito, parto da convicção de que a consciência precisa compreender a composição dos conflitos, pois essa requer a sua máxima concentração com desígnio de auxiliá-la nos momentos em que a escolha implica divergência entre os interesses do indivíduo da ação e os desdobramentos da mesma para a integridade do outro. Em virtude disso, defende-se a ideia de que o trabalho do especialista1 em ciências pressupõe alguns princípios para sua consecução; e mais, de uma consciência crítica disposta a entender que suas escolhas não são desinteressadas e geram efeitos sobre seus semelhantes. De natureza igual é a formação dos que estudam as ciências. Já houve um tempo em que a educação dos jovens especialistas (aspirantes a cientistas) podia ser dedicada aos mínimos saberes de sua área. Essa tradição2 formou especialistasindivíduos que se preocupam exclusivamente com os produtos das ciências e tecnologias, e não das suas ações e intenções. Essa perspectiva de pensamento, que segue os passos do positivismo, embora seus adeptos costumem negar que sigam esta orientação, acredita que o saber pelo saber se justifica em si. A partir da ideia de uma consciência crítica, não se pode edificar um conhecimento tão significativo às espécies sem entender acerca da constituição integral do

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Denomina-se todo praticante de ciências que acredita que o domínio de sua área de conhecimento acontece de forma desinteressada a valores externos e que se recusa a reconhecer os direitos que a cidadania confere ao indivíduo. 2

Trata-se dos programas reducionistas. Segundo estes, é “a estratégia segundo a qual o complexo é melhor explicado pela redução a seus constituintes” (BUNGE, 2002, p.333).

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homem e suas múltiplas interações com os outros e o meio ambiente. Deduz disso que a formação do especialista deva ser completa, reunindo suas competências 3 intelectuais e emocionais a partir de um princípio que incentive o reconhecimento de si como indivíduos entre indivíduos. A proposta parece ser um retorno a uma época passada, porém não é e, ao mesmo tempo, não deixa de aceitar sua contribuição. É verdade que a produção de conhecimentos no mundo contemporâneo ultrapassou os limites do que um modesto erudito moderno poderia reunir em seu patrimônio pessoal. Todavia, a sede de saber, entendida como a mais alta disposição do espírito humano, não tem limites, pois, mesmo sabendo que sua ínfima existência não seja suficiente para aprender nem sequer uma minúscula parte do conhecimento produzido nas últimas décadas, ela jamais renuncia à decisão de que se pretende alcançar. Mas descobrir não é tudo, pois a relação original e exclusiva da espécie é se tornar cônscio de sua identidade e do outro que lhe opõe. Eis a dupla transcendentalidade do existir humano: a partir da experiência, viver para si e para o outro. Sem dúvida, essa foi a razão de ser de filósofos e de cientistas da estirpe de Martin Buber e Albert Einstein, que se dedicaram a busca da “verdade” sem perder de vista a dimensão dos problemas da existência e sua correlação com o outro. Com intuito de ser coerente com a palavra “cidadania”, de que nela está contida a noção de liberdade com responsabilidade, parece-nos que esses dois pensadores souberam conciliar o exercício da pesquisa comprometido com o valor inerente ao seu humano. Ademais, em outro contexto, mas que se encaixa ao propósito defendido nestas linhas, transcrevo uma advertência moderna: “satisfaz tua paixão pela ciência, mas cuida para que seja uma ciência humana, com direta relevância para a prática e vida social” (HUME, 1999, p.13). Este escrito se insere no rol daqueles que debatem o uso crítico e a aplicação apropriada das ciências e tecnologias nos seres humanos. O desafio é esse; porém, a existência do indivíduo é sensivelmente circundada em encontros e conflitos com seus semelhantes, o que convida, a cada instante, ao despertar da consciência crítica que reconhece o respeito à dignidade como um fundamento da coexistência social. Trata-se de um discurso que tenta estabelecer uma harmonia entre teoria ética e prática científica, cuja potência criadora do cientista se edifica sob alguns pressupostos. Parto de uma tese realista, mas possuo crenças que transcendem a essa 3

Entende-se por competências as qualidades intelectivas e emocionais necessárias e/ou adequadas para envolver o ser na dimensão do indivíduo de modo crítico, pronto para agir conscientemente em suas tarefas, tendo a capacidade de compreender o outro por meio de um sentimento estético aliado a uma inteligência emocional.

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própria abordagem. De certo modo, essa tese realista, bem como minha crença fazem parte de uma estratégia de um discurso em que as ações e convicções íntimas do autor já estão presentes em críticas constantes na atividade científica. Portanto, este procura usar suas ideias para legitimar uma determinada conduta à comunidade científica. Devido à intenção, as fontes consultadas são tomadas como suficientes em si, limitadas ao próprio texto, tornando-se apenas uma bibliografia que apenas contribui para o seu diálogo. Assim sendo, elas fazem parte privativa desse itinerário. Dada essa peregrinação, optou-se por usar tão somente o nome e data (e, em caso de passagem escrita de obra, a página) dos livros consultados para edificação do ensaio. Esse expediente pode deixar no ar a ideia de que tais obras são atemporais, escritos autônomos. É evidente que eles foram escritos com um destino, um auditório peculiar, ou seja, um contexto específico. Portanto, ainda que se tome como objetos de referência contínua, o leitor deve saber que cada quadra de tempo traz suas especificidades, pondo o contexto lado a lado com as referências concretas de seus autores. Exposta tal advertência, pede-se que se suspenda nosso aviso à medida que tomo suas ideias como clássicos para esta discussão, poupando, assim, a contribuição dos epígonos e a longas transcrições à leitura que são, em grande medida, conhecidas pelo público. Portanto, não as convoco para legitimar pontos de vista, mas para o meu diálogo. Em casos de leitores eventuais, a forma adotada oportuniza ao incipiente ledor a consulta particular e a possibilidade de conhecer o conteúdo da fonte bibliográfica sem a concepção de juízo, sem exame prévio. Não há dúvidas de que a leitura mais aconselhável será a ininterrupta, aceitando a divisão interna apenas para identificar as palavraschave do título, uma vez que o argumento central se repete de forma acalorada em cada centímetro de tinta posto nos vocábulos. Assim sendo, estou consciente de que escrevo para um determinado público com vistas a convidá-lo a um diálogo sem subestimá-lo acerca de sua interpretação do que seja a vida e o papel da escolha para a mesma. E, em relação à estratégia de apresentação, colho a instrução de Barthes de que o dis-cursus mobiliza uma diversidade de ações, pois ele é “a ação de correr para todo lado, são idas e vindas, ‘démarches’, ‘intrigas’ (...), o enamorado não pára de correr na sua cabeça, de empreender novas diligências e de intrigar contra si mesmo” (BARTHES, 1981, p.1) e, como um apaixonado pelo tema, vivo com a sensação agridoce que o assunto me provoca.

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2 ESCOLHA, CONFLITO E NATUREZA HUMANA A vida, que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades o que em efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância – as possibilidades – é o que de nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege seu mundo, mas viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. (ORTEGA y GASSET, 1987, p.67)

Quanto à natureza, as palavras de Ortega y Gasset4, que empregamos como epígrafe, inscrevem-se dentre aquelas cuja atmosfera situa os problemas da existência humana em presença de circunstâncias que demandam ao indivíduo manifestar uma preferência entre as diferentes escolhas e, mais, enfrentar os efeitos que são dela resultantes. Do que ocorre em consequência a uma ação, sendo a causa ou determinado pela escolha, não prescinde a autoria, sendo, portanto, imprescindível à formação de uma consciência crítica para superar os impasses teóricos e práticos enfrentados pelo indivíduo em sua permanência no mundo. De acordo com o filósofo espanhol, viver é, por certo, cumprir o exercício da liberdade e da vontade livre em relação às causas que as impõem. Quanto à questão da ordem, ainda que se tenha em vista uma determinada perspectiva filosófica, a parte mais substantiva da epígrafe resulta na clareza de que o indivíduo age com certo fim por ele escolhido, pondo destaque ao julgamento da escolha como um ato circunspeto da ação humana. De modo que existir e agir exigem uma abordagem crítica que avalie as experiências, as intenções, o pensamento e, em particular, os desejos no momento da escolha, enfrentando os problemas da existência humana de forma responsável. Afinal de contas, independente das circunstâncias que se apresentem ao indivíduo, ou seja, o mundo dado como o conjunto de nossas possibilidades, é dado a cada instante em mais de uma possibilidade. Obviamente que a escolha se dá pela ação do indivíduo, quer positiva quer negativa (ORTEGA Y GASSET, 1987). A ação não é apenas um ato destacado dos demais, mas aquele a que se pode dar como humano, porque é o que torna o homem diferente das outras espécies, uma vez que o ato é em si e, ao mesmo tempo, reúne todas as ideias concebíveis que se confrontam com a realidade, posto que, ao se manifestar de um determinado modo, a ação contém um juízo que seleciona entre mais de uma alternativa. De modo que a ideia e o real, no 4

No cerne da questão, há uma citação que merece ser pontuada por tratar do assunto: “eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela não me salvo a mim” (1967, p.52).

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ato, estão em comunicação na própria vivência do indivíduo, pondo a considerar quais seriam os desdobramentos por outra preferência. De tal maneira que escolher é selecionar e é viver o conflito de antepor um desígnio e ser obrigado a conviver com o resultado daquela opção. A escolha é uma das ocasiões em que se dá para o indivíduo viver o conflito de ser humano. Em que pese a visão social de mundo, pois cada um tem a sua perspectiva e interpretação da realidade por que está presente neste mundo e defende seus interesses (LOWY, 1987), caberá ao indivíduo percorrer seu destino a partir de suas escolhas e circunstâncias, enfrentando o conflito de modo consciente ou não, vivendo as suas experiências em meio às projeções que aspira. Viver e escolher parecem ser os problemas centrais da existência humana após a constatação óbvia de quem se descobre como vivo. Estar vivo é uma situação dada, posto no mundo; já viver é uma ação baseada nas escolhas à medida que o homem se move entre a ideia de Homem e o próprio homem concreto, que se opõe àquela. Tal condição parece ser insuperável à consciência crítica. Assim, há entre os extremos, entre as imagens da ficção e o homem que se apresenta aí, em cada perspectiva, o problema da escolha como uma instituição referencial do indivíduo. A escolha é exercida porque põe em ação uma atividade entre as ideias estabelecidas, as quais moldam os padrões da moralidade que estruturam o sistema que organiza a sociedade, entre as ideias veiculadas em seu interior e, igualmente, nas relações entre os indivíduos. A tradição filosófica procurou entender como ocorre o processo da escolha, como um ato de vontade livre ou em relação aos interesses, seja no âmbito puramente pessoal, seja em relação ao coletivo. Procurou saber se a razão teria uma função primordial na escolha, em desvantagem aos sentimentos ou o reverso. Houve respostas a ambas as especulações, sendo que a melhor perspectiva fica a cargo da escolha. Uma coisa parece certa, tanto a contraposição da vontade pessoal à coletiva quanto a primazia da razão aos sentimentos envolvem o conflito. A vida oscila entre uma e outra escolha em meio a outras vidas. Eis o problema da existência. Afinal, a vida de cada um acontece simultaneamente a outras existências, vivendo em sociedade, a qual é formada por indivíduos com múltiplos interesses. É natural que, na busca pelo bem-estar pessoal, ocorram tensões que gerem conflitos. Parece que o conflito é inerente à condição humana (MAQUIAVEL, 2007; FREUD, 1978; DAHRENDORF, 1982) e a criação da sociedade o intensificou, de modo singular. Para

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tais autores, o conhecimento das singularidades mostra, de modo incisivo, que as sociedades são necessárias e, sobretudo, que os conflitos advindos dela devem ser expostos à luz de instituições capazes de domesticá-los. Sem desmerecer as diversas correntes filosóficas que se opõem a este discurso, percebe-se que o realismo político tem uma perspectiva mais atraente do conflito e, de natureza igual, do tratamento que deve ser dispensado quando se investiga os padrões de comportamento, dado que toma a experiência como passo inicial de qualquer investigação. Toma-se como pressuposto a série de casos que mostram os modelos idealizados nas obras de ficção, contrapondo a experiência concreta para uma análise. A história poderá servir como um laboratório para aquela proposição. Enfim, sob as coisas que acontecem nas quadras do tempo e que são igualmente registradas pelos escritores, pode parecer incorreto afiançar proposições gerais, mas se tem observado com certa regularidade que há uma divergência factual entre perceber como o homem tem sido e de imaginar como ele poderia vir a ser (MAQUIAVEL, 2007b). E, embora seja uma afirmação controversa, só é possível pensar nesse assunto porque essa característica tem sido sempre observável no transcorrer das eras. Mas há outra séria razão para ponderar sobre esse raciocínio, especialmente quando se pensa em vida coletiva. Uma das fragilidades da sociedade parece ser a luta constante entre os indivíduos para atingir seus objetivos particulares (DAHRENDORF, 1992). A busca da felicidade, da paz e da segurança tem sido o objetivo do indivíduo para viver em grupo, escapando aos males das inseguranças naturais e artificiais5. Através da instalação de um governo com o funcionamento eficiente da máquina estatal, procura-se elidir o horror e os males naturais dos conflitos. No entanto, é perceptível que a sociedade continua sendo uma arena de conflitos, resultado indiscutível do que o homem tem sido em todos os tempos. Essa constatação nega a visão concebida em algumas crenças de que o homem livre das obrigações artificiais impostas pela sociedade seria mais saudável, feliz e, consequentemente, mais natural. E parece que o fundamento decisivo da afirmação pode ser constatado pela escolha das “coisas” que o indivíduo julga necessárias para sua existência e da escassez destas para distribuí-las entre os indivíduos, gerando mais conflitos pela posse dos bens. Não se trata de uma verdade

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Independente do propósito da vida, percebe-se que o ser humano está sujeito às vicissitudes da existência, sejam decorrentes de sua fragilidade de ser um ser biológico, seja por viver em sociedade e sofrer os dissabores por ser obrigado a moderar na satisfação de suas pulsões instintuais.

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inquestionável, mas de um pressuposto antropológico de que os indivíduos têm como móbil de suas ações os seus interesses e motivos. A ideia de uma perfectibilidade humana com inúmeras virtudes sempre foi desejável, porém, excluindo os idealizadores de uma existência romantizada ou os discursos de políticos reformadores, resulta que não se deve apenas confiar nos instintos e na sorte. Uma coisa observável é que aqueles que renunciam às experiências pretéritas para idealizar os casos a favor e contra desse patrimônio intelectual, máxime esse característico sentimento de autointeresse que move os indivíduos, deixam de ser um teórico compatível com os fatos observados e colocam em risco suas próprias projeções. Se no transcurso do tempo se observa esse fenômeno com frequência, parece ser uma excelente razão para se dedicar ao estudo da natureza humana. Acredita-se, frequentemente, que, dentre os motivos, esteja a ideia de que a natureza humana contém uma regularidade nos móbeis de sua ação, ao qual o leitor, ao saber os laços íntimos entre esta relação, teria um domínio deste saber, que a ele ofereceria um aparato conceitual, sem precedentes, para conjecturar hipótese mais realistas. Afinal de contas, mudam as épocas, a arquitetura, as vestimentas, as técnicas, a compreensão dos sentimentos, porém, o interesse próprio continua sendo o móvel da ação humana. Embora haja uma difusão do interesse, esse traço da espécie humana persiste como uma condição em várias culturas na passagem do tempo. É evidente que a percepção poderá ser mais ou menos objetiva segundo a época. Tal proposição sugere que a natureza humana é imutável, mas não lhe nega possibilidades, como educá-la a conviver com seus pares. Aliás, esta é a ideia básica do processo educacional. Conforme se vê, no estudo da história se identifica esse pressuposto humano. Contudo, o estudo precisa ser feito de modo sistemático para que o leitor obtenha tais vantagens de sua familiaridade, sob o risco de não alcançar uma observação teórica adequada, concebendo formulações não compatíveis com a natureza humana, imaginando criaturas virtuosas e sem vícios. A essa altura, espera-se que, mais ou menos prontamente, todos reconheçam que saber como a natureza humana se manifesta nas diversas etapas do processo histórico possibilita formar um ponto de vista mais amplo, bem como permite compor uma coesão ajustada à própria interpretação da realidade, projetando uma ideia mais coerente do homem, seja até imaginando-o como poderia ser ou apenas aceitando o que tem sido.

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A partir dessa perspectiva e, igualmente, estudando as gerações passadas, em que se cogita a ideia de que ocorrências pretéritas possam se reproduzir com novas particularidades, parecem seguir o mesmo desdobramento. As revoluções políticas, por exemplo, desestabilizam a forma de governo com a implantação de um novo sistema político, por um período de tempo. A história tem ensinado que, após a situação anárquica, a estabilidade social só retorna através da violência com o uso da força, mostrando o quanto a natureza humana parece obedecer a uma regularidade. Por força entendem-se quaisquer meios e/ou artifícios que impelem um indivíduo a causar ou não uma ação. É bem provável que este instrumento, às vezes, possa recorrer à violência física para impor a obediência a uma determinada conduta do indivíduo. As leis, por exemplo, são um dos tipos de uso da força. Elas são usadas para produzir alguns efeitos desejados sobre os indivíduos, uma vez que estes são diferentes e precisam sobreviver em sociedade. Sendo assim, é inexorável sua existência para afirmar uma conduta que possibilite uma coexistência minimamente aceitável. Deduz-se que as leis se impõem pela coercitividade das elites dominantes, porém, às vezes, elas precisam necessariamente de um tempo para serem aceitas. Ocasionalmente, é preciso recorrer à violência como garantia da ordem. A força pode ser exercida de vários modos, até mesmo pela arte da argumentação, mudando a convicção de ânimo do indivíduo com a palavra. Destarte, a persuasão é outra forma de exercer a força, uma vez que o indivíduo é levado pelo convencimento a dispor de outro modo a sua crença. Ora, aplicando-se a força, planejam-se certas regularidades em determinadas situações estruturais. É evidente que a força persuasiva, nestes casos, passe despercebida para alguns indivíduos e não seja decifrável nem sequer ao protagonista, posto que as manifestações humanas jamais se revelam integralmente à observação dos indivíduos. Ainda que imposições externas limitem as possibilidades, como os problemas da existência não se suspendem aos indivíduos, a escolha, ainda assim, far-se-á presente, pois cada situação provoca motivações. A motivação humana será o móbil da escolha e ela será sempre de fórum íntimo, revelando, portanto, um espaço reservado para a própria escolha. De qualquer modo ou aspecto que se analise, ainda que a força se faça presente, o interesse do indivíduo continuará sendo o móbil de sua ação, mesmo que sua intenção não seja clara ao observador. Desse modo, por mais que ocorra a força, haverá ao indivíduo a oportunidade de manifestar o seu próprio interesse, seja pela violência, seja pela persuasão. Aliás, só se recorre à espada quando a palavra deixa de ser eficiente.

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A persuasão é capaz de alterar um propósito preconcebido, forçando o indivíduo a uma ação contrária a que fora anteriormente delineada. Por isso, a persuasão não deixa de ser um recurso inesgotável de influência e manipulação. De acordo com um florentino, o indivíduo é, por sua natureza, um ser híbrido, sendo parte animal, parte racional. A uma e a outra se deve recorrer para garantir a ordenação social (MAQUIAVEL, 2007b). Uma sugestão eficiente convence, principalmente, se existe uma ideia aceita entre os indivíduos, contribuindo com a ordenação das mentalidades e com a maneira como os homens aceitam a realidade. A persuasão recorre ao patrimônio dos valores que se tornaram as referências coletivas em determinado contexto cultural para convencer seu interlocutor, mas pode ter um sentido de estabilidade social e objetivos concretos que se baseiam em um modelo ideal sem impor restrições às liberdades fundamentais do indivíduo, deixando os excessos serem arbitrados por instituições legítimas que garantem as liberdades. Os ambientes sociais são construídos sobre valores e crenças que se integram a um sistema mais complexo que organiza a sociedade, contribuindo para a reprodução de crenças, valores e condutas que fundamentam a ordem social a partir desse consenso de ideias. Dentre as referências que moldam os valores da sociedade, têm destaque sui generis as ciências.

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3 AS CIÊNCIAS, A BIOÉTICA E A CIDADANIA As ciências têm proeminência nas referências sociais a tal ponto que esta fase da história poderia ser nomeada sem contestação como a Era das Ciências (LEÃO, 1991), posto que tal expressão revele a sua presença em todas as atividades humanas, seja na organização, seja na interpretação sociopolítica contemporânea. Ao se insistir nesse aspecto, tem-se em mente mais a presença do que a contribuição das ciências à espécie humana. Entretanto, o mais significativo em qualquer observação acerca da presença das ciências no universo humano é o fato de que poucos têm tempo para pô-las em crítica ou avaliá-las em meio à história do homem. E essa assertiva não deixa de causar certa apreensão, uma vez que as ciências se apresentam como a mais bem-sucedida experiência da espécie humana e produzem, em parte, a própria compreensão da realidade. Embora as ciências tenham fornecido as bases materiais da sociedade, a hegemonia do discurso científico provocou sua análise crítica, o que levou a uma reflexão sobre seu uso e sua correlação com o homem. A fabricação das ciências repercute sobre o indivíduo, transformando sua relação com o mundo, entre os indivíduos e as outras espécies, parecendo que, em determinados momentos, há uma oposição entre o humano e o meio técnico. Ora, esse trabalho humano tem repercussões morais e não poderia ser entregue tão somente nas mãos dos seus operadores. E, assim, a ética filosófica que pensa as ações humanas, ocupando-se sobre o valor da ação, seja esta boa ou má, seja esta certa ou errada, adentrou-se no universo das ciências como Bioética. O vocábulo “bioética” é a principal referência crítica quando se analisa a relação entre progresso, tecnologias e pesquisa envolvendo seres humanos. Do mesmo modo que se discute, em política, sobre como o homem deve ser e como ele é. Em ética, essa discussão acontece em uma relação mais profunda e indissociável, visto que põe em lume algum tipo de solidariedade como princípio constituinte da ordem social. Assim sendo, se a política discute as relações normativas que se estabelecem entre os membros para se ordenar a sociedade e civilizar os homens (ARISTÓTELES, 1985), a bioética discute quais são as ações aceitáveis na produção de conhecimento científico, discutindo a ética nas ciências para modelar uma atividade imprescindível ao universo humano, mas que “deve” ocorrer segundo alguns princípios morais básicos. Dessarte, tem-se uma ética que adota alguns princípios que julga necessários à atividade científica.

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Se, por um lado, a política sugere que o homem se entrega aos desejos naturais - portanto, o exercício de sua liberdade não pode prejudicar outrem -, em ética, por outro lado, não se pode tornar o outro um objeto, sob o risco de introduzir a violência nas relações humanas. A partir daí, na decisão ética do pesquisador, e no domínio de sua atividade, a bioética estimulará o cientista a agir como sujeito autônomo e consciente, respeitando os princípios estabelecidos para a realização da sua pesquisa científica. Desse modo, a bioética tem um problema mais substancial do que a política, uma vez que sua reflexão deve promover a atividade científica e, ao mesmo tempo, a consciência do cientista, entendendo-o em sua capacidade crítica, mas dentro de um contexto em que a totalidade dos saberes escapa ao conhecimento dos indivíduos e, de igual conteúdo, reconheça a presença das pulsões naturais que impele a ação pelo autointeresse em uma sociedade que reproduz tais valores. É de se destacar que, no início da pesquisa científica, o progresso das ciências e da tecnologia requisitasse uma determinada lógica de produção que ignorava certos valores fundamentais ao homem, a exemplo o reconhecimento da Igualdade. Ao tempo em que a bastilha caía, uma série interesses políticos, econômicos e sociais se uniam para descobrir na cidadania a expressão teórica de suas reivindicações. Com o tempo, a ideia de cidadania deixou de ser uma palavra entre outras e veio a ser o fundamento do indivíduo, revelando-se como um conflito irreconciliável dentro do contexto sociopolítico, e a afirmação do próprio indivíduo. A compreensão da cidadania decorre do conflito das contradições estruturais, de um lado, que difunde, através de uma pedagogia que a identifica com a democracia, a ideia de uma sociedade sem privilégios e restrições políticas, sociais e econômicas em virtude de classes e, ao mesmo tempo, nega em estendê-la efetivamente a todos sob o risco de perturbar o domínio das elites sobre as massas. A contemporaneidade mostra tal enfermidade como um produto da luta política ideológica. Não obstante, a ideia de cidadania ao indivíduo ganha força, paulatinamente, nas cartas constitucionais e órgãos internacionais, o que exigirá uma revisão sobre as contradições entre a teoria e a prática política, mostrando que a sociedade só pode se instalar com instituições que escolhem livremente suas autoridades e representantes e que estes, no exercício da legislatura, elaborem, divulguem e, sobretudo, garantam direitos e deveres de cada um em relação aos outros e o inverso. O dever de obediência do indivíduo com o Estado está condicionado ao direito de proteção deste com aquele. A cidadania só ocorre, de fato, quando a sua natureza formal se torna, além de jurídica, moral, tornando-se o princípio constituinte das ações dos indivíduos em uma sociedade. Dada esta condição, a dignidade se

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efetivaria na mentalidade das pessoas. Todavia, ela está ainda sendo construída. Em uma ou em outra, ela se torna condição necessária do estatuto da cidadania. Assim, a própria ideia de cidadania se fundamenta no ideal de dignidade da pessoa humana a tal ponto que se tornou um princípio substantivo da bioética. E a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, da Organização das Nações Unidas, contribuiu decisivamente para motivar o valor do humano na construção de qualquer lógica que envolvesse o indivíduo. No que se refere à dignidade, percebeu-se que a pessoa despojada dessa condição perde seu mais sagrado valor, sendo substituído por um objeto. Além disso, compreendeu-se que o progresso das ciências não pode ocorrer sem valorizar a liberdade e a autonomia do indivíduo. Esses princípios não são, segundo a bioética, incompatíveis com o progresso. Pelo contrário, o progresso, a liberdade e a autonomia podem coexistir sem o comprometimento ético da pesquisa científica. A bioética foi particularmente sensível às demandas contemporâneas e, após um período de discussão à luz de princípios alicerçados em critérios de justiça e moralidade, baseados na ideia de que é preciso defender o ser humano das ações dos seres humanos, deliberou-se que a vida humana só fica completa quando se integram a dignidade, a liberdade, a autonomia e, em especial, esta nova sugestão: o princípio de obrigação mútua. Esses valores são obrigações consideradas genuínas à pessoa, à medida que garantem a proteção aos participantes da pesquisa6. Por princípio de obrigação mútua se entende o comprometimento autônomo da pessoa com seus pares, tendo como base deste compromisso a descoberta responsável e mútua de que o indivíduo só se torna um ser quando é percebido (BERKELEY, 1973). De acordo com este filósofo, não há uma realidade material sem um espírito que a perceba. Essa concepção nos dá a convicção de que há uma íntima conexão entre os indivíduos de tal monta que não há possibilidade de se reconhecer em nossa própria identidade sem a evidência do outro. Trata-se de uma relação recíproca em que o pressuposto básico em lide é que o outro é a chave de minha instauração como pessoa. Portanto, é preciso reconhecê-lo como indivíduo e, de natureza igual, estimulá-lo à criação das condições necessárias para o desenvolvimento do indivíduo, correlacionando às suas habilidades intelectuais e emotivas a ponto de que essa associação torne-se inquebrantável. Em face das possibilidades de escolha, e tendo uma posição privilegiada na hierarquia social, a ação mais desejável deve sempre começar por aquele que teve 6

De acordo com a resolução vigente em solo pátrio, denomina-se participante todo aquele que aceita ser convidado a participar de uma pesquisa que envolve seres humanos. No convite, é preciso conter a justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão adotados. Eles devem esclarecidos após explicação e confirmação da conscientização do empreendimento com a assinatura do Termo de Esclarecimento Livre e Esclarecido.

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a oportunidade da instrução formal. No caso específico das ciências que lidam com seres humanos, o pesquisador responsável é quem ocupa a posição mais privilegiada. Esse hábito tem como objetivo o bem-estar dos que não tiveram as mesmas chances e promoção de justiça social. Desse modo, ocorre a operação pela qual se transpõe a individualidade particular dos membros em busca da igualdade condicional entre pessoas, em que cada um dos indivíduos reconhece o motivo da igualdade como valor que funda as relações humanas. De um para outro e mutuamente. Pelo princípio, há uma unicidade entre competências intelectuais e emocionais do indivíduo. Ele visa, antes de qualquer coisa, à fundação de uma harmonia entre habilidades, subordinando a intelectual à inteligência emotiva7. Esta, sem o uso da inteligência, é pura manifestação fisiológica que não percebe que a vida é incompleta sem o outro. A existência sem o reconhecimento da reciprocidade só estimularia a busca de vantagens individuais em prejuízo ao interesse público e, portanto, ao estado de guerra (HOBBES, 2008). A escolha de cada um repercute sobre o outro, já que os problemas da existência implicam a todos. Tal situação deve ser o caráter primeiro de toda consciência e a marca da inteligência emotiva ao definir que o indivíduo é a unidade universal da pessoa, que só é alcançada quando os indivíduos se veem obrigados a cuidarem uns dos outros, pois “seu ser é ser percebido” (BERKELEY, 1973, p.1920). Tendo a bioética para pensar os problemas da existência, o princípio de obrigação reflete as

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A história da filosofia é uma sucessão de proposições a respeito da superioridade da razão ou das pulsões instintuais sobre a outra. De fato, o poder da natureza se concentra nas forças mais primitivas, sendo as suas frustrações um marco inicial para originar as patologias. Todavia, é imprescindível, sem temer as enfermidades, educar os sentimentos para a vida mais inteligente em sociedade. Uma vez que esta é a fonte de parte dos males, é inexorável apontar que, sem ela, os indivíduos estão totalmente entregues a fragilidades de seus corpos e dificilmente teriam consciência de sua própria existência. Destarte, é preciso diminuir as expectativas sobre o poder da razão sobre os sentimentos, no entanto, atribuindo todo valor a estes sentimentos, posto ser pouco provável se esperar deles da espécie humana. A identificação da vida como a busca pela felicidade é o mais grave problema de nossa espécie, uma vez que conviver em conformidade à razão ou aos sentimentos exclui um dos dois ingredientes que forma o ser humano e, ao mesmo tempo, recairá sobre o relacionamento de uns com outros, pois cada um vive em relação ao outro. Até porque o outro se opõe à nossa identidade, porém, somente ele pode nos perceber, dando-nos uma dimensão do nosso próprio “eu”. Viver exige distinguir os dois termos da equação, que se apresentam de múltiplas formas, cada um a seu modo, procurando um bem-estar, exaltando virtudes e evitando vícios que foram construídos em seus relacionamentos. Maquiavel (2007b) deixou a ideia de que os homens só fazem o bem por necessidade, e que o conflito seria inevitável, contudo, com leis favoráveis à liberdade e instituições eficientes para domesticar os conflitos, os homens. Desse modo, o sentido da moral deve ser sentido e, ao mesmo tempo, pensado como matéria de educação, tornando-se uma pedagogia que procura estimular a capacidade crítica aliada ao discurso que visa um fim: uma linguagem entre pessoas. Talvez fosse considerável pensar contrariamente a um filósofo prussiano e, assim, preparar um tipo de pedagogia moral baseado, em um primeiro momento, na ideia de que a ação moral fosse produzida, tendo em vista os efeitos que delas derivam. À guisa dessa perspectiva, progressivamente incentivando um ensino crítico aos estudantes de ciências, fomentando o diálogo e, ao mesmo tempo, exaltando a ideia de que o conhecimento tem em mira o bem-estar do indivíduo, este não pode ser vitimado em nome de um saber em si. Reconstrói-se uma prática educativa que insere o produtor de conhecimento em um contexto que lida com seus semelhantes e se edifica um solo de princípios que une uns aos outros.

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condições teóricas e práticas da bioética. Trata-se de um pressuposto moral para a atividade científica, portanto, uma prévia condição. A não observação deste princípio invariavelmente introduz a violência no experimento científico, uma vez que recusa ao indivíduo que participa da pesquisa o que faz parte substantiva de sua condição basilar: ser percebido como ser humano. Como todo trabalho científico segue uma orientação geral a partir de um conjunto de questões que formam um corpus disciplinador, esse princípio serve para orientar a própria atividade. De maneira simples, trata-se mais de uma atitude inserida em um programa de conhecimento com conteúdo e metodologia que defende uma concepção aberta para as áreas de especialização em ciências, propondo uma mudança comportamental. Este elemento ao corpus tem como ideia fundamental que as ações devem ser éticas por princípio nas pesquisas e que os conflitos entre teoria e prática devem ser postos em discussão pela bioética. Um dos aspectos surpreendentes da discussão bioética é a importância que se atribui à vida humana como um valor em si, revelando-se significativo para as ciências, distinguindo que a edificação do conhecimento científico só deve ser pensada para o bem-estar dos indivíduos, promovendo benefícios diretos ou indiretos. Conforme mencionado anteriormente, a originalidade da contemporaneidade foi ter descoberto a cidadania como algo mais do que uma expressão teórica. Esta deixou de ser apenas um argumento e se tornou parte fundamental dos programas políticos. O sistema político não tem mais como não reconhecer ou não considerar essa reivindicação das massas. No decorrer do tempo, a democracia tem exigido cada vez mais moralidade em todos os setores da sociedade, o que pressupõe um senso de justiça por parte das instituições para com os cidadãos e destes a obrigar aquelas a reconhecerem seus deveres com a sociedade. Foi esse senso de obrigação que se tornou ponto de partida para o Relatório Belmont8. E, como efeito, as repercussões dos abusos incentivaram uma profícua discussão ética no meio da atividade científica. A bioética ganhou espaço acadêmico e o debate teórico se tornou uma questão também jurídica. Os praticantes de ciências que envolviam seres humanos foram obrigados a reconhecer direitos aos participantes da pesquisa e, ao mesmo tempo, a pensar sobre as mãos que trabalham ciências e fabricam tecnologias. Como parece óbvio, a 8

Três casos envolvendo pesquisas em seres humanos e divulgados chocaram a opinião pública e, em seguida, provocaram o Congresso Nacional dos Estados Unidos da América a discutir o tema por meio de uma comissão que identificasse princípios norteadores para conduta científica na experimentação humana. A comissão se reuniu na cidade de Belmont e, em 1978, o resultado dos trabalhos ficou conhecido como Relatório Belmont. Os princípios básicos da pesquisa eram: o respeito às pessoas, a beneficência e a justiça.

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perspectiva da bioética defende que não pode mais ser produzido saber científico de modo independente da reflexão ética. Logo, o ser humano é a lógica das ações e o fundamento último da existência das ciências. Por mais estranha que pareça, foi a não observância desse critério que provocou um debate filosófico acerca da atividade das ciências. O convite à ética foi, em parte, resultado dos anos subsequentes às experiências científicas. Aliás, a ética principialista decorre de casos que chocaram a opinião pública, mostrando que a natureza humana, com suas paixões e motivações, igualmente, manifestavam-se nessas atividades. A dimensão psicológica do indivíduo sofre a influência dos referenciais culturais da sociedade do consumo, porém, as circunstâncias não delimitam o que o indivíduo pode vir a ser, tampouco elimina o direito intransferível do indivíduo de escolher a sua ação moral. Embora seja uma tradição das ciências desvincularem produção de tecnologia de seu uso, como se fossem dois momentos distintos, uma parcela de responsabilidade pertence ao indivíduo. De modo hesitante, a sociedade começou a observar mais cuidadosamente o trabalho dos cientistas e percebeu que abusos contra a dignidade dos seres vivos, em especial o ser humano, eram preocupantes para as normas sociais e, embora fosse aceitável exaltar a liberdade do especialista, era preciso regular as normas para as finalidades do sistema, criando prescrições na relação profissional e, de natureza igual, contribuir para o funcionamento das relações de cooperação do sistema. Em meio à crise proveniente dos abusos se recorre à ética. O recurso à ética foi uma resposta a uma prática médica legitimada na crença de que o conhecimento se justifica por si. Não é coincidência que todas as vezes que a sociedade se encontra ameaçada em sua ordem, devido à corrupção dos valores, recorre-se à discussão ética para extrair uma ideia reconstruída de homem. Quando a violência assume proporções inimagináveis provoca abalos sentimentais que exigem a purificação e renovação espiritual por uma perspectiva ética. Esse ato foi recorrente na história. De tal modo que a ética tem tido também uma função pedagógica, a saber: remodelar a ideia de Homem. Afinal de contas, é pela reflexão ética que a cultura molda o paradigma de ser humano que ela idealiza. Além disso, ela sempre se torna uma alternativa mediadora dos conflitos.

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4 ÉTICA, CIDADANIA, CIÊNCIAS E RESPONSABILIDADE: BASES PARA UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA O retorno à ética envolve cada vez mais a discussão da cidadania, uma vez que o indivíduo percebe que fazer parte de uma comunidade exige, no mínimo, seguir as regras do jogo social, seja pela juridicidade do contrato social, a fim de se evitar a repressão, seja pelo acordo tácito, por considerá-las dignas para uma criatura superior que transcendeu a parte de sua natureza animalesca. Afinal de contas, no instante em que se aceita as regras para si, esperase, de igual natureza, que o outro também as respeite. Ora, de qualquer modo ou aspecto que se analise, é oportuno observar que as regras cumprem um papel prescritivo no modo de agir dos indivíduos, seja com vista à coexistência pacífica, seja com relação à busca de um destino mais favorável ao indivíduo. Sem dúvida, o sentido moral difundido pela cultura motiva as ações daqueles que estão envolvidos em seus valores, uma vez que, frequentemente, há uma noção de moralidade no “ar”. No fim de contas, os indivíduos convivem entre si e são suscetíveis aos dramas decorrentes por partilhar e habitar os mesmos espaços de seus semelhantes. Assim sendo, os indivíduos aceitam o sentido da moral imposta pela sociedade, posto que, na condição de habitante, sempre haja um ideal do bem-viver entre os seus semelhantes. Até mesmo em lugares insuspeitos de sentido moral, os indivíduos devem conviver de acordo com as normas estabelecidas, como será ilustrado mais adiante. Talvez por isso a palavra ethos, do grego, tem a ideia de hábito, e mores, do latim, a ideia de costume, o que parece ser a soma das características habituais de um organismo, sendo a conduta comum o conteúdo central destes vocábulos. Assim, o indivíduo está convencido da qualidade social das regras coletivas ou as aceita para não sofrer as consequências por suas transgressões, cabendo apenas ajustar a sua natureza à forma, de tal modo que os padrões morais serão entendidos como valores de sua vontade. É evidente que a autoridade das regras deve ser examinada por uma consciência crítica, que é a atitude que distingue a pessoa do indivíduo. Assim, o tempo vai depurando as imposições inconsistentes que, por sua natureza, devem ser cumpridas para a coexistência pacífica. A ironia da condição humana consiste em tomar consciência desta imposição contextual e se tornar consciente de que, a qualquer circunstância, deve tomar uma decisão e que sua escolha, cônscia ou não, é uma escolha entre possíveis alternativas e sujeita de ser escolhida por seus semelhantes. A ironia se oculta nos problemas objetivos que cada um enfrenta e que diz respeito a todos. Um exemplo pode ser o uso da violência como uma forma

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de constranger e provocar a ruína do outro, a fim de obter um sentimento ligado à satisfação de um impulso instintual. Defende-se que a satisfação absoluta dos instintos de nada diferiria os homens dos animais. Consequentemente, a realidade neste estado natural talvez fosse assustadora e indesejada pela maioria. Trata-se de hipótese aceitável. Porém, os homens seguiram por um caminho que os levou à construção de cidades, estados e instituições. Por meio de lutas contra a natureza e, em especial, intestinas (MAQUIAVEL, 2007a), ocorreram várias transformações que deram à luz indivíduos que convivem e estruturam suas relações a partir de princípios formais ou reconhecidos socialmente. Essa construção inconclusa trouxe a ideia de liberdade que, na sociedade contemporânea, ganhou contornos inusitados em cenários políticos impensados aos seus formuladores, que, mais uma vez, associaram a ideia de indivíduo e liberdade e engendraram o conceito de cidadania, que é a matriz da prosperidade e paz social. Do que se discorreu, deduz-se que a cidadania produz efeitos sobre as condições concretas das outras instituições que formam o Estado. Este pode ser desagradável. Porém, a pluralidade de interpretações a respeito da realidade mostra que é necessário para assegurar as condições do bem-viver: a segurança dos indivíduos, por exemplo. Há muito, percebeu-se, passando de Platão a Weber, que o problema central da política consiste em encontrar os fundamentos para se justificar a obediência. A ordem social não é apenas desejável, mas uma questão de utilidade pública para o bem-viver. As instituições democráticas se estruturam sobre esse alicerce. A cidadania contemporânea é um fenômeno em construção9, que visa à ordenação para se edificar um bem público para todos e para cada um. Por isso, o sistema democrático dividiu as instituições, cabendo ao Legislativo a elaboração das leis, ao Executivo a observância das normas e ao Judiciário o exercício da coerção repressiva para punir a conduta dos que transgridem as normas. As leis precisam ser redigidas em um determinado ritual para que sejam aceitas como peças fundamentais da ordenação jurídica, visando ao menor prejuízo e, ao mesmo tempo, melhorando as relações entre o coletivo e o individual. Da mesma maneira ocorre com as prescrições morais, ainda que as ideias gerais não estejam postas em um código. Deduz-se que sua característica mais acentuada seja a permanência do interesse da ordem pública, de modo que o interesse comum pode ser associado a uma ideia de justiça. Esta só tem validade quando consegue a universalidade, sendo suficiente em si para se tornar o paradigma 9

Escreve-se assim porque a cidadania é um fenômeno jurídico nas democracias contemporâneas, mas há profundas e sensíveis diferenças entre ser um cidadão de um país e de outro.

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no interior das tensões que se fazem presentes nas circunstâncias em que o indivíduo é convocado a decidir entre as possíveis escolhas. Essa universalidade é encarnada no interior do indivíduo a tal ponto que a face da paz exterior veiculada em público não se sustenta aos saques de sua consciência. A universalidade se impõe por vários recursos da cultura, que são tomados como invariáveis para o indivíduo em sua maneira de se comportar em relação às circunstâncias. A cultura tem suas expressões máximas de conduta e as transforma lentamente, porque começam na tenra idade com avisos, sugestões, recomendações e, sem que o indivíduo perceba, transformam-se em obrigação. É natural que o indivíduo as aceite, posto que se desenvolva como beneficiário de uma tradição e, por essa natureza, é envolvido em suas regras de tal monta que sofre as suas influências e as tem como as suas referências. Dessa maneira, o indivíduo tende a se comportar com reações que se adéquam à noção dos “mandamentos sociais”. Sem dúvida, ao longo do tempo, transformações nas estruturas sociopolíticas exigiram que princípios morais fossem alterados como um meio de instrumentalizar as regularidades comportamentais dos indivíduos. É evidente que cada período possui suas peculiaridades, bem como interpretações e atitudes acerca deste conceito e os fins almejados por tais princípios, posto que as regras sejam moldáveis às circunstâncias. Conforme indicado antes, adere-se aos valores e crenças ao longo da existência social que mal se percebe a restrição à liberdade que se foi imposta. Todavia, tais limitações à sua livre ação não impedem que o indivíduo seja responsabilizado, posto que sua ação produz algum tipo de prazer ou tenta diminuir ou eliminar alguma dor, primeiramente para si. De todo modo, as circunstâncias produzem momentos de decisão, mas esta será tomada pela intenção do indivíduo. Por isso que é significativo pensar sobre a qualidade moral de palavras como dever, poder, certo e errado (HARE, 2003), bem como apropriado e não apropriado, máxime quando implica a existência do outro. Através delas ocorre a síntese do que o homem concebe como ação ideal, ainda que seja pela restrição do que não se poderá fazer que alguns ponham em ação a sua “escolha”. Recusar o valor semântico e universal – posto que devam ser válidas universalmente – destas palavras é ceder à tentação da obrigação que organiza a existência coletiva para se entregar à paixão natural, aquela que esquece que viver é sempre se relacionar de modo autêntico com o outro, reconhecendo sua dignidade em busca de um fim maior.

Porque essa é a origem e o

fundamento da reflexão ética: a busca da felicidade só ocorre quando há o reconhecimento de si através do outro.

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A ideia está tão incrustada na pele humana que, mesmo às avessas, ela determinará padrões. De sorte que é oportuno perceber que a palavra “ética” não deixa de ganhar contornos inusitados nos vários setores da existência humana, a ponto de exercer função construtiva em lugares inimagináveis, a exemplo dos setores excluídos da sociedade e, mais uma vez, a partir dela, reivindicarem a criação de um código próprio. E não há nada de insuspeito nesta assertiva, pois bastaria um simples passeio ao “mundo” do crime para se constatar a veracidade de tal declaração. A vida em sociedade exige regras para se evitar conflitos ou, pelo menos, os caminhos para dirimi-los. E os postos à margem da lei também possuem seus códigos de conduta. Na condição de sentenciados, e entre seus parceiros de crime, eles respondem por seus excessos, mostrando que aqueles que se entregam totalmente às pulsões naturais não estão isentos de serem, mais uma vez, punidos. De qualquer modo ou aspecto que se analise, o indivíduo será prisioneiro de sua decisão. Seja qual for a circunstância, é preciso conciliar a liberdade de ação à responsabilidade decorrente do ato. Todavia, parte dos indivíduos tenta minimizar o conflito de sua decisão com a automação de seu comportamento, como se ele apenas atendesse às necessidades impostas pelas circunstâncias. Sem dúvida, as leis são um obstáculo para esses e, igualmente, servem para disciplinar os excessos e, como modelo pedagógico, a formação do cidadão. Dada a natureza humana, é indubitável pensar em modelos sem recorrer às leis e, de modo especial, entender a sua relação com o patrimônio da ética, uma vez que há um acentuado clamor por esta na sociedade. Por essa linha de pensamento se foge ao ato moral consciente, uma vez que se age em conformidade apenas às normas. Tendo em vista que a comunidade, em sua maioria, recusa-se a ser responsável por suas escolhas, é preciso disciplinar a prática com outros recursos, deixando a possibilidade de o indivíduo reivindicar sua dimensão de indivíduo entre outros. Mas por que recorrer às normas? Porque a dimensão do indivíduo se relaciona com o social e essa aproximação, dado os interesses contrários, põe problemas objetivos que solicitam ações práticas. Elas servem para proteger danos subsequentes, a fim de regular o sistema por meios de instituições socialmente legitimadas. Em outras palavras, o arsenal impositivo das normas é necessário para incluir o indivíduo que se nega a abandonar a condição biológica, integrando-o a uma ordem social. Todavia, com base na tese defendida aqui, é impossível transferir a escolha, posto que o que define a condição humana das demais espécies é o ato de escolher. Reconhece-se que é com a vida, em problemas práticos relativos a todos, que se impõem as decisões. Devido às decisões, pode se vir a ter parte de seus direitos suspensos, como a liberdade de se locomover livremente no território, ficando restritas,

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por força da lei, as penitenciárias. Mais uma vez inserido nestas circunstâncias, tornando-se um sentenciado em meio aos seus semelhantes, descobre que outros problemas práticos se impõem e que existem referências de condutas. Afinal de contas, “as luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas” (FOUCALT, 1975, p.195). Este filósofo procurou nos apontar que o poder é plural, mas a sua passagem específica nos mostra que a obediência às “leis” é um fato disciplinador e regulador da vivência humana, posto que até mesmo os contraventores (VALVERDE, 2005) precisam de princípios cautelares. Dessa maneira, aqueles que não respeitam os bens juridicamente tutelados pelo Estado e, portanto, ficam à margem da organização social fazem parte de algum grupo dentro da própria sociedade. Negar a imposição de leis em uma pluralidade de existência é uma ilusão, pois o homem precisa passar por um longo processo educativo para ceder aos desejos mais diversos e presentes à sua natureza e contribuir de modo profícuo no social. Devido à proeminência da ética em todos os setores da existência humana, ocasionalmente, ela se torna a luz das regras que ilumina o autêntico sentido do ser em qualquer época. Para isso, é preciso conceber valores ideais sem perder a dimensão do indivíduo que exige princípios objetivos em sociedade. A partir da estreita relação entre “subviver”10 e viver de forma plena, a ética ocupa todas as camadas da cultura, estruturando e, ao mesmo tempo, interpretando e dando sentido à própria vida, pois a sociedade precisa de valores para autorregular o significado da vida. Portanto, a vida plena ilustra seu mais puro significado. Embora a palavra ética tenha sido usada indiscriminadamente pela sua polissemia, ela ainda é um mistério ao homem que surpreende e alimenta a existência de que haverá um dia em que as obrigações e benefícios da produção humana serão distribuídos de modo mais justo. Porque a ética e a ideia de justiça se tocam e nada no universo ocorre de modo desinteressado. A função primordial da ética é a busca da felicidade que só pode acontecer com uma sociedade minimamente organizada para a civilidade social. Sem essa base e sem a renúncia de certos desejos agressivos, não haveria nem sequer a ordem social (FREUD, 1978a). Por isso, a ética domina as percepções que formam e moldam o sentido da própria vida. E não poderia ser diferente, visto que ela é a base das escolhas humanas e, ao mesmo tempo, organizadora das relações do indivíduo consigo e com as outras pessoas. Assim, ela também se encontra no 10

A língua portuguesa não permite a expressão subviver, mas a realidade mostra que muitas “pessoas” estão subvivendo em suas existências.

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espaço das ciências e sofre profundas transformações com a interpretação de natureza humana e a infraestrutura econômica. Não há conhecimento desinteressado em um mundo em que os indivíduos convivem entre outros indivíduos. O que há, de fato, é a possibilidade de um saber crítico e responsável com outrem. A este respeito, é preciso entender o valor das ciências e sua relação com as forças que dominam a produção. Deve-se observar que tais forças definem o próprio sentido de dever, impondo uma perspectiva social aos indivíduos. A ideia de dever não pode ser entendida como uma propriedade natural, quando, em verdade, os juízos morais são edificados com bases em crenças. Portanto, são os juízos controversos que exprimem e compartilham os valores de uma (infra)estrutura econômica. Uma obrigação ética é, em certa medida, uma invenção artificial, uma medida imaginária criada pelas forças influentes que controlam a cultura. E este sentido de “dever ser” se encontra na família, na religião, na escola, no exercício da profissão. Este sentido do “dever” é eclipsado pelas potências que dominam as estruturas sociais e forma crenças (in)fundadas que condicionam a ordenação social. Talvez por isso, quando se busca refletir sobre o valor da ética nas ciências, as análises dão ênfase às estruturas formais das ciências e ao estado de desenvolvimento das tecnologias, ao invés de perscrutar as mãos daqueles que as operam ou o modo de produção que as condiciona. Criam imagens românticas de que o trabalho dos especialistas é neutro e livre de valores externos às ciências. É preciso dizer que, em uma época em que o discurso de responsabilidade social se torna uma exigência ética, parece ser discutível a ideia de que os discursos do especialista em ciências e das ciências sejam impessoais e, por decorrência, livres de uma conduta ética. Tais crenças são difundidas no público a ponto de o mesmo aceitá-las como uma verdade natural e não como uma construção humana. Todavia, uma análise do conteúdo revela que essa perspectiva está comprometida com a ordenação do próprio sistema que interpreta o que é a realidade. Talvez um modo apropriado seja discutir o uso das tecnologias e suas repercussões no horizonte humano ou entender por que os operadores das ciências reivindicam para si a responsabilidade de fixar os limites e critérios apropriados de suas próprias atividades. Este caminho, que é adjunto a outro, é saber precisamente o que são as ciências e, por decorrência, seus profissionais. Em uma segunda atitude, indiretamente tratada, porém vinculada ao ponto de vista geral – a perspectiva da bioética –, é associar este tema a uma reflexão ética, dando, portanto, ênfase a essa reflexão, na medida em que a escolha humana desempenha um papel decisivo na discussão deste tópico. Além disso, é preciso construir moralmente um programa de

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educação capaz de unir pesquisa e ética com vista à promoção da felicidade do individuo (ARISTÓTELES, 1987), moldando o caráter profissional, estimulando as competências11 intelectuais e emotivas sob uma base moral, comprometendo-se com seu semelhante a ponto de sua ação principiar pelo respeito à liberdade, à autonomia, à dignidade da pessoa humana e à obrigação mútua. Esse assunto poderá ser extremamente novo ou mesmo ignorado, mas, cotidianamente, os centros universitários lançam profissionais no mercado de trabalho que aspiram tão somente ao sucesso profissional imediato. E, dado o objetivo primordial, eles parecem ser incapazes de se comunicar moralmente com outrem, tendo apenas como pilar deste diálogo o tribunal de sua consciência. Em sua maior parte, são especialistas incapazes de ouvir o outro, incapazes de lidar com suas próprias frustrações e, acima de tudo, sem a mínima capacidade de lidar com as ofensas que a arena dos conflitos impõe em múltiplas formas, máxime morais. Esses indivíduos, por sua vez, serão os especialistas que ocuparão uma função significativa na ordenação social, tendo que justificar a “realidade” através das ciências. Parece ser uma ironia humana solicitar ao filho predileto da sociedade científica que seja também o teórico que estabeleça os critérios morais da atividade científica, uma vez que o cientista é parte vital do sistema, cabendo opinar sobre o que é a vida. De fato, os especialistas influenciam as condutas “apropriadas” e não as dos indivíduos, baseadas em saberes e também em crenças que sistematizam do saber “extraído” da pesquisa científica. Cabe notar que a sua lógica e compreensão da realidade são ajustadas para melhor condução de seus objetivos. Assim sendo, é preciso que a bioética se impregne na atividade do especialista em ciências, de modo que sua referência primordial seja o humano e não o conhecimento em si. Para que ocorra uma mudança substantiva, seria preciso que a comunidade científica assumisse sua função de forma crítica, propondo uma transformação radical e revolucionária no ensino de ciências. De início, a educação do especialista deveria estimular as liberdades civis e o princípio de obrigação mútua a ponto de o mesmo se tornar o protagonista de sua existência e de sua atividade. Esse programa antecederia ao processo de repasse dos conteúdos de ciências, posto que a existência digna da pessoa seja a razão de ser da atividade científica. Como primeiro passo, 11

Entende-se por competências a capacidade de o indivíduo realizar tarefas, considerando-as como o conjunto de suas qualificações técnicas, porém, sob uma perspectiva moral, na qual a ética assume uma posição de hierarquia que o torna consciente de suas escolhas e, ao mesmo tempo, responsável pelos seus desdobramentos.

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estimular a criticidade dos conteúdos ao mesmo tempo em que se aviva o conhecimento do sistema, promovendo um debate crítico acerca das convenções, das questões relativas à liberdade, à dignidade, à ética do indivíduo e, de natureza igual, ser contra as posições dogmáticas em seu comprometimento como cidadão e com os outros membros da sociedade. Além disso, estimular criticamente o papel da cidadania e o respeito à dignidade, de modo a comprometer o trabalho científico com uma perspectiva mais humana. O saber tem como meta única a promoção do bem-estar das pessoas. Tendo em vista o conteúdo do programa, adotar-seá uma área de conhecimento em humanidades nos cursos de ciências desde o início da formação até o egresso do especialista, com a obrigatoriedade de o trabalho de conclusão de curso estabelecer uma conexão entre conhecimento científico e responsabilidade social. Tal postura, ao longo do tempo e com várias análises e ingerências, promoveria um conhecimento crítico, correlacionando o esforço interpretativo e dialético do saber com a responsabilidade social, pondo a ideia de que todo empreendimento científico envolve obrigação mútua. De fato, esse programa estimularia a inteligência emocional do especialista, mostrando que, ao lado da competência intelectual, molda-se o caráter do cidadão. Creio que o passo decisivo se inicia com a exaltação da inteligência emotiva em uma abordagem mais humanística. Sem a competência emocional para lidar com as obrigações éticas com outrem, as ações, decerto, tendem a buscar o bem-estar pessoal, fazendo tão somente as ações necessárias para atrair esta condição apenas para si, mostrando, consequentemente, uma ausência moral em virtude da imperícia emotiva que não foi edificada ao longo de sua existência. Esse problema é, em parte, de ordem pedagógica. Desde cedo, educa-se mais para o consumo do que para o diálogo; menos para a tolerância e mais para a solidão. Formam-se mitos de que as estruturas são naturais e que o espírito só se realiza com a satisfação material. Constrói-se a ideia romântica de que o indivíduo depende exclusivamente de si para alcançar seus sonhos. Talvez seja recente demais para se ocupar com a ausência de capacitação emocional do especialista, principalmente quando a repercussão do seu trabalho não considera os direitos dos outros porque as ciências possuem uma lógica isenta de valores morais. Simultaneamente ao trabalho pedagógico, é preciso preparar as condições de um padrão de comportamento aceitável, ainda que seja preciso recorrer à juridicidade da norma. Não há conhecimento que preceda a vida. O sentido desta é construído entre indivíduos e pessoas.

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Portanto, se há uma questão precípua, essa é a indagação do (re)conhecimento de um por parte do outro. Este e aquele só se tornam claros porque se opõem. A questão da alteridade se revela de imediato. Perceber outrem é o primeiro passo para ser reconhecido. Por isso, é imprescindível rever os princípios, métodos e teorias que orientam a pedagogia do especialista com vistas a uma orientação que caminhe rumo à cidadania. Esse procedimento é necessário, visto que os indivíduos não irão mudar sua conduta apenas pela persuasão. É preciso tipificar pelo menos as restrições ao procedimento. Quando não existe uma lei que “pune”12 os infratores por seus atos, prescinde-se da justiça. É evidente que não se resolve o problema sem submeter o indivíduo à obediência, principalmente quando não há boa intenção para que aja assim. O ideal seria a adoção de uma consciência crítica que refletisse acerca do valor dos princípios, do papel e das repercussões da tecnologia no universo humano, ao mesmo tempo em que se ressaltem, por um processo pedagógico, padrões de conduta que põem a dimensão dos princípios como um elemento substantivo que mostre que viver exige qualidade nas condições de viver. Portanto, como qualquer operação humana, as ciências devem ser disciplinadas, tendo como referência básica o bem-estar do indivíduo. A história revela que o convencimento pela persuasão, a partir dos princípios da dignidade, da liberdade e da autonomia do indivíduo, seja mais instrutivo e pedagógico e menos traumático aos indivíduos. Apesar de usar palavras como dever em suas linhas, paradoxalmente examinando-a pelo cálculo da punição, percebe-se que deve haver um espaço de liberdade e autonomia para o pesquisador responsável desenvolver seu trabalho, pondo-se como um imperativo pedagógico o respeito aos princípios sobrescritos, de sorte que a norma seja profícua em qualidade do que em restrições, garantindo aos indivíduos o livre exercício de suas atividades ao tempo em que promove a observância de uma pesquisa ética. À medida que se indaga acerca da ética, em que os indivíduos tenham dentro de suas metodologias o pressuposto de obrigação mútua, torna-se significativo ressaltar, pela perspectiva da bioética, que aos mesmos compete edificar as suas regras, dando um solo de legitimidade sem precedentes na elaboração de um padrão de conduta. No que compete aos princípios, quer seja pelo uso judicioso da consciência, quer seja pelo receio das punições, os cientistas devem 12

Eis uma referência direta à Resolução 466/2012. Esta orientação tem uma função pedagógica e, embora aponte as bases que lhe deram sustentação, procura promover uma atitude de comportamento na crença de que a comunidade científica venha a reconhecer a importância do participante da pesquisa, por parte do pesquisador responsável, por uma motivação crítica e consciente de seu papel social. Esta Resolução entrou em vigor em 12 de dezembro de 2012, substituindo as Resoluções 196/1996, 303/2000 e 404/2008, do Conselho Nacional de Saúde.

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ser consultados para propor prescrições de conduta em suas atividades (formando uma espécie de habitat, similar à etimologia do vocábulo ethos, que se costuma traduzir por costume), tendo em vista a efetiva institucionalização da cidadania. A reflexão ética não se opõe à atividade científica. Uma se relaciona com a outra, porém, seria profícuo se a segunda atraísse a primeira, posto que avançasse de modo decisivo na construção da metodologia científica autônoma. A posição da bioética parece estimular esta perspectiva sem se adentrar em correntes específicas, percebendo que o ser humano vive segundo imposições de condutas que são postas pela cultura em seus vários níveis. Esse raciocínio permite conjecturar que imposições surgem como desdobramento das aglomerações humanas e que, por necessidades éticas, todo o trabalho deve ser disciplinado. Talvez para tornar a vida menos insegura, atraindo a pesquisa para a ética, o que consente em pensar que esses padrões podem, aos poucos, tornarem-se regras claras que organizem o trabalho das ciências. Esse modelo originário pode vir a ser, simplesmente, o critério utilizado para as décadas seguintes edificarem uma conduta responsável no tratamento do homem. Essa ideia poderá construir a perspectiva de um bem comum, principalmente quando a ideia de cidadania vai ganhando força na construção do Estado moderno. Foi escrito antes que a política e a ética se encontram na dimensão do indivíduo e, do mesmo modo que a política, na discussão moral se imagina como o homem poderia vir a ser, ao invés do que ele tem sido. Em ambas as perspectivas, há uma concordância que o homem precisa de regras para viver em sociedade, caso contrário reinaria o conflito sem fim e sem os meios de freá-lo. À questão, no entanto, falta uma reflexão crítica sobre as regras, pois, enquanto alguns simplesmente aceitam, outros negam, outros tentam entender o fundamento das estruturas das coisas e como estas influenciam sobre suas próprias decisões. Eis porque as normas não podem apenas satisfazer as exigências legais, sendo preciso adotá-las criticamente pela comunidade científica. Por isso, estimula-se a consciência crítica do especialista. Trata-se de uma pedagogia que busca um ideal sem descuidar de valores objetivos. Do real se construirá o ideal. Tendo em vista que as ações humanas possuem um determinado valor, será preciso explorar a composição dos códigos, a natureza das regras, o porquê das restrições e, em especial, a dimensão do indivíduo como vetor de direitos inalienáveis, inclusive dando licença ao indivíduo de ser feliz em respeito a sua natureza humana. Põe-se o dever ao indivíduo, porém, colocando-o com uma consciência aberta e crítica, pronta para o diálogo solitário, sobretudo para a comunicação com o próximo.

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Mas o realismo político ensina que não se deve esperar ações morais dos indivíduos sem que haja mecanismos externos para penalizar aqueles que não cumprem aquilo que havia sido deliberado por uma consciência reflexiva. O cidadão, ao contrário do indivíduo, cumpre aquilo que lhe foi determinado porque entende conscientemente que o seu dever moral de cidadão deve ser desempenhado de forma incondicional (KANT, 2011). Como estes são raros, é preciso pensar em universalizar os atos. E, em dada medida, o especialista é preparado para ser um indivíduo com a consciência ingênua em um mundo fragmentado, vítima da realidade exterior que lhe determina comportamentos e ideias. Para ele, a realidade é recebida em certos enquadramentos que não permite a reflexão da própria regra. O especialista tem sido treinado para o diálogo solitário, como se fosse apenas parte da grande engrenagem que aceita passivamente o mundo à sua volta. Os limites substantivos dos riscos e gradações variadas13 em uma pesquisa científica exemplificam, em parte, a resistência da comunidade de pesquisadores em admitir que seus protocolos de pesquisa possuam, pelo menos, a remota chance de provocar danos aos participantes. Em outro exemplo ilustrativo, e essa hipótese se confirma, basta observar a construção do termo de consentimento livre e esclarecido 14 como uma atividade mecânica que se coloca conforme a regra exigida, porém, escapando de uma redação crítica que personifique o diálogo entre indivíduos ao esclarecer sua escolha ao outro. Instituído para efetuar a comunicação entre os envolvidos na pesquisa, o termo não cumpre a função precípua de deixar claro ao participante da pesquisa as intenções do empreendimento e como se dará a responsabilização do pesquisador perante o participante, sendo necessário aos comitês de ética em pesquisa em seres humanos esclarecer aos pesquisadores que a sua linguagem não é acessível a outrem e precisa se ajustar às normas. Trata-se de uma ocasião pensada para o diálogo entre pesquisador e participante da pesquisa, no qual, graças a este expediente, o participante teria

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A regra vigente entende que a pesquisa com seres humanos envolve riscos, sejam os mais remotos possíveis. Portanto, não há pesquisa sem riscos. A realidade dos Comitês de ética aponta que ainda é grande o número de Protocolos de Pesquisa que querem dispensa do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por acreditarem que a sua não contém riscos. A verdade é que muitas pendências se dão em razão desta interpretação. 14

Em atendimento às exigências da Resolução 466/2012, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou TCLE (como é comumente designado pelos envolvidos em pesquisas em seres humanos) deve atender a uma série de critérios para que o respeito devido à dignidade humana não seja violado por parte dos pesquisadores. Como já tem sido observado, trata-se de uma tarefa hercúlea para o pesquisador explicar, em uma linguagem clara e acessível, por que decidiu convidar aquela comunidade para participar da pesquisa, expondo os riscos, danos à sua integridade e, sobretudo, assumindo sua responsabilidade dos prejuízos decorrentes. Em geral, os antigos termos de consentimento eram formais em excesso, protegendo exclusivamente os pesquisadores. A nova mentalidade destitui a ideia de que toda atividade científica com seres humanos envolve riscos e o pesquisador tem a responsabilidade indeclinável de assegurar que o procedimento seja ético do início ao fim, inclusive garantindo que o participante possa, a qualquer momento, abandonar a pesquisa sem ônus.

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oportunidade de conhecer o protocolo de pesquisa, sua contribuição e, especialmente, tomaria consciência plena para, então, participar do empreendimento. Não obstante, as experiências dos Comitês15 de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos mostram, contudo, que a proposição defendida por um instrumento disciplinador ainda está longe de ser uma medida comum entre os pesquisadores, permitindo a hipótese de que os procedimentos exigidos são atendidos em virtude da obrigação imposta pelos Comitês de Ética e não por acolhimento aos princípios. Dessa forma, não há como prescindir das normas no atual contexto. Sem o recurso às obrigações, as concepções éticas representam apenas um obstáculo ao especialista.

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De acordo com a Resolução 466/2012, os Comitês de Ética em Pesquisa devem “desempenhar papel consultivo e educativo em questões de ética” com os pesquisadores. Não obstante a esta atribuição, os próprios membros tem participado de fórum de discussões no quais tem se procurado refletir acerca de suas próprias atividades, fomentando um espaço acadêmico profícuo para pensar a ética na pesquisa.

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5 A DIMENSÃO DO INDIVÍDUO: A ESCOLHA ENTRE OS MEIOS E OS FINS Considerando que a felicidade do indivíduo seja a razão de sua ação, somente será útil aquilo que lhe proporcionar prazer e afastá-lo da dor. Em um sistema capitalista, um objeto ou ideia só merecem valor no mercado quando sua qualidade recebe a natureza de ser um bem econômico, trocável por outros bens, tornando-se algo “útil”. O cientista, como produtor de bens úteis, torna-se um homo oeconomicus pelas obras técnicas e pela contribuição às crenças impostas pela cultura. As utopias sempre estiveram presentes na literatura, tendo como ponto fulcral a ideia de crítica ao contexto cultural. De certo modo, o personagem Robinson Crusoé (DEFOE, 1997) traz a sinopse que a modernidade já anunciava marginalmente ao debate político: a independência econômica do indivíduo como um fato anterior à sua conquista política. Entregue às suas forças naturais, seria perfeitamente concebível ao indivíduo superar as intempéries circunvizinhas e se constituir como ser autônomo. A Crusoé, todavia, mesmo entregue totalmente às suas pulsões naturais, faltava um sentido do ser. E esse não foi encontrado na glorificação do seu trabalho e talento em vencer as forças naturais que lhe opunham. Uma vez conseguido, tudo voltava a ser supérfluo. Não obstante, foi somente com o encontro com o outro que ele (re)conheceu sua identidade. A presença do outro volta a dar sentido à sua vida. No encontro com o que lhe opõe se constroem as relações de domínio e submissão, mas é também a oportunidade de se estabelecer uma linguagem mais produtiva, uma que instale a reciprocidade como benéfica a ambos. Para que isso ocorra, é preciso convocar a pessoa crítica que age livremente, condicionada apenas pelo senso crítico que reconhece no outro o seu semelhante, ainda que seja aquele que opõe. Ao usar a palavra encontro, procura-se enfatizar o momento em que ele percebe a face do seu semelhante. Conforme sobrescrito, o edifício de seu talento era incompleto sem outrem para admirar sua própria vitória. De sorte que o homo oeconomicus desmorona ao perceber que a ação humana não pode ser pensada sem outros humanos. Somente face a face com aquele que lhe opõe, ele se realiza como projeto humano, o que, mais uma vez, permite pensar que “ser é ser percebido” (BERKELEY, 1973, p.19-20). É na dimensão do indivíduo que o ser percebe que não há nada além do humano. A verdadeira sabedoria parece não consistir no domínio da mente contra as paixões nem sequer na vida contemplativa e na exaltação da razão, mas em perceber que a

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natureza humana está sempre vulnerável às suas essências só as transcendendo com o auxílio de outrem. Diferentes daqueles que se abrem para o outro, para o homo oeconomicus, as crenças têm uma particularidade, já que os saberes produzidos por eles têm um alto valor no mercado, pondo de lado quaisquer princípios que não estejam em composição com os seus trabalhos. E, dado o valor e prestígio de sua atividade, é compreensível, para ele, que haja flexibilidade dos padrões morais ou a sua inteira isenção, uma vez que o conhecimento científico se justifica por si mesmo. Esse homo procura ser bem-sucedido na sociedade. E não há como as ciências escaparem ao destino imposto por esse ser, uma vez que sua mentalidade é um reflexo das condições concretas de sua sociedade, portanto, as ciências serão um tipo de coisa que ele é. Essa perspectiva impõe, mais uma vez, uma consciência ingênua do especialista, uma que não se responsabilize moralmente com o uso indevido de seu trabalho, uma que limpe suas mãos incapazes de se comprometer de modo cônscio com aqueles que o circundam. Em uma transcrição malfadada de Ortega y Gasset (1987): ele salva a si somente. Não há dúvida de que caberá às ciências apontar o desenlace das espécies e de todo o planeta. A ela caberá lançar as luzes sobre todas as partes obscuras da ignorância humana e, sobretudo, transformar e informar o pensamento de vanguarda de amanhã. É obvio que as ciências se tornaram o refúgio dos indivíduos e, ao mesmo tempo em que desvendam os segredos da natureza, começam a guiar o futuro da humanidade (HUXLEY, 2009). Diante de um saber profético, tem sido difícil ou quase inútil, portanto, denunciar seus exageros. Embora as ciências tenham a proeminência do saber, é preciso focalizá-las em sua relação íntima com o sistema econômico que vigora na sociedade global para se entender que o caminho de conhecimento, almejado pelo especialista, não é um fim em si próprio. Do mesmo modo será a ética. O que ela é e de que modo ela poderia ser só encontram sentido se o ponto de referência for a pessoa. Enquanto ideia, ela tem um polo, uma meta, mas, no interior de um sistema hegemônico, há uma polaridade que, se não a define em um sentido, pelo menos a determina em vários pontos. O capital, cuja influência no pensamento humano não é possível de modo algum negar, é o objeto de consideração e, igualmente, o responsável pela sua primazia no sistema jurídico e no imaginário coletivo. A pessoa é a única razão de ser da reflexão ética, mas, no interior de um sistema econômico e político, sofre as influências destes, sobretudo se favorece as incidências da natureza humana, estimulando pulsões que prejudicam

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a tomada de consciência, renunciando ou exaltando certos valores que propõem que a felicidade individual deve ocorrer em detrimento da coletiva. Quando o cidadão se coloca resignado no interior de um sistema, torna-se coadjuvante na trama de seu destino como indivíduo, ainda que tal ato seja uma escolha. É preciso reconhecer o valor do ser humano em si, ainda que se recorra ao pressuposto da cidadania. Este valor não é gratuito (SARTRE, 1897). O indivíduo vive entre indivíduos e se determina no que deseja ser entre estes. A escolha sempre terá como objetivo o melhor para si e, como um entre outros, está sujeito às mesmas consequências das escolhas daqueles. Seja como for, vive em reciprocidade, quer seja em relação aos meios, quer seja em relação aos fins, pois tudo ocorre no plano social. O sistema exerce sua influência a ponto de ser o interesse pelo capital que permite às ciências as suas motivações cognitivas que, aparentemente, são romanceadas na superfície. Porém, em última instância, é o capital que atribuirá valor às coisas16, determinando como um produto em um sistema de consumo. Portanto, o capital lhe dará o caráter de sua “utilidade”. A análise do produto científico, bem como seu papel ao lado da produção, distribuição e consumo (MARX, 1985), é deixada de lado pelo especialista, cuja ingênua atividade acredita ser o seu trabalho científico pura pesquisa de conhecimento e domínio das forças naturais. A natureza convencional do progresso e da tecnologia científica será garantida como propriedade, permanecendo como um recurso da economia capitalista. Por ser uma das fontes principais do capital, o especialista acredita que seu trabalho está além desta circunspeção. E é evidente que as ciências ocupam uma posição estratégica sem igual perante os outros saberes. Afinal de contas, as ciências, de modo generalizado, conseguem explicar a realidade e gerar benesses à ideologia do modo de produção dominante com mais eficiência do que outros saberes. De certo modo, há uma ideia acerca da atividade das ciências que consiste em “observar, deduzir e interpretar” a realidade sem interferir na interpretação dos dados obtidos. Ao interpretar a realidade, elas tentam descrevê-la em teorias e leis, com a intenção de fazer previsões para os conhecimentos de suas áreas específicas, tornando possível o controle dos seus produtos científicos. Desse modo, à primeira vista, o cientista deve ser apenas um especialista competente em seu círculo de saber. Por um lado, tal excelência profissional permite a ele conhecer melhor uma fração da realidade, à medida que a dedicação particular a um determinado assunto lhe possibilita maior 16

É todo e qualquer produto à disposição das pessoas e com valor de troca.

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compreensão do mesmo. Por outro lado, é indubitável que a investigação específica de um único ponto do ‘mundo’ retira-lhe a possibilidade de vislumbrar o conjunto do universo disponível à observação, reduzindo-o a uma única perspectiva. Para o cientista, assim, a realidade assemelha-se a pedacinhos de uma grande torta que as ciências retalham com o propósito de melhor descrevê-la; mas é preciso lembrar que a realidade não é a soma da totalidade das partes e que a torta será dividida de forma desigual. Portanto, devido às extremas consequências deste poder, é necessário que os indivíduos desenvolvam outras competências e obrigações, já que eles convivem conjuntamente com outros indivíduos. Este sentido de obrigação mútua se colocará como a questão fundamental da atividade científica, pois caberá à bioética, pelo menos, apontar uma ética nova para a época das ciências. Acredito que, na mesa onde se fatia a torta, virá à tona uma ética mais condizente com a cidadania, pois, em algum momento de sua existência, a sensibilidade e a inteligência se manifestarão e, conjuntamente, assumirão o princípio de obrigação mútua, distinguindo o especialista do cientista. Por isso, a bioética exige uma consciência crítica desperta que tem a intenção de conhecer a totalidade das estruturas, enquanto a consciência ingênua apenas se dedica ao estudo de uma ínfima parte, na mesma proporção que aceita que a totalidade, como um fato dado, é uma realidade dotada de fundamentação. Se, do ponto de vista metodológico reducionista, foi concebida a ideia de quanto menor fosse o recorte da realidade, maior seria o êxito da pesquisa, a especialização trouxe uma contribuição decisiva para a sociedade. Contudo, poucos foram os cientistas capazes de superar o reducionismo de suas áreas e alargar ainda a condição humana. A maioria, para descrever os fenômenos com detalhes mais minuciosos, perderam a ideia universal de indivíduo. De fato, qualquer pesquisador sério precisa de uma habilidade intelectual para fornecer contribuições significativas ao edifício científico. Entretanto, além de sua habilidade intelectiva, ele também precisará ser capaz de lidar com seus próprios sentimentos e, ao mesmo tempo, estabelecer relações com os outros, visto que, sem dúvida, a existência humana não é vivida de modo isolado, mas sim em coexistência com os de sua espécie, até mesmo em seus laboratórios. Assim, a marca fundamental da existência humana é o contato com seus semelhantes. Portanto, uma parte essencial do trabalho do cientista dependerá, sem dúvida, de sua competência emocional em conviver com o outro. As competências intelectuais e emotivas precisam ocorrer de modo simultâneo para que o indivíduo seja, mais do que um especialista, um cientista completo que domina sua área e, ao mesmo tempo, mantém o interesse pelo indivíduo

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universal, aceitando os conflitos de suas escolhas de modo consciente e crítico. Assim, duas qualidades precisam se tornar irredutíveis ao perfil do especialista: competência intelectiva e inteligência emotiva. Acontece que tais atributos não são um imperativo comum na educação desse profissional. A maximização da competência intelectiva produziu uma dívida emotiva em sua formação profissional, criando uma linguagem técnica que torna a comunicação um diálogo entre surdos (BUBER, 2004). E, ao se observar atentamente o passado, pode-se verificar os danos causados por esse tipo de conduta. Essa separação gerou repercussões nefastas ao indivíduo. Graças ao reducionismo, difundiu-se a opinião de que é preciso produzir em ritmo sempre maior e que o indivíduo só se realiza sozinho, sem o contato de seus semelhantes, a ponto de as universidades públicas abraçarem o slogan “publiquem ou pereçam”. Há algum tempo que se cultua a ideia romântica de que o indivíduo nasceu para o trabalho e de que ele precisa ter uma extraordinária capacidade intelectual voltada exclusivamente para sua área de atuação. Celebra-se o divórcio entre competências, estimulando a formação de consciências ingênuas que renunciam ao diálogo com outros saberes e áreas. Essa exigência descuida-se da dimensão do indivíduo que não vive os problemas da existência de modo consciente, que é a maneira mais provável de reconhecer o valor do outro como uma condição necessária para a plena potencialidade de si própria. Analisando

as

competências,

pode-se

perceber

as

diferenças

de

condutas

comportamentais dos operadores das ciências. A construção e a descoberta de conhecimento não ocorrem de modo unilateral. Elas são submissas ao reconhecimento de seus pares e, em um sentido mais restrito, às questões jurídicas, econômicas, políticas e sociais, que demandaram um diálogo lógico formal e afetuoso com seus semelhantes. Do mesmo modo ocorre em sua formação: ele precisa de seus pares, pois ele é um entre outros e não deixa de ser cidadão ou perde direitos e deveres em seu exercício profissional. O indivíduo é único em tempo integral, portanto, não “deve” apartar competências. Afinal de contas, o descuido com a inteligência emotiva terá repercussões na sua competência como um princípio de conduta. Parece que cuidar do outro em uma sociedade científica implica em uma espécie de boicote consigo próprio, não podendo ser “útil” nem sequer vantajoso ao especialista ir além de seu campo de trabalho. A noção de moral pressupõe uma noção de direitos e deveres. E mais, exige também uma capacidade crítica para avaliar o próprio princípio que fundamenta se estes direitos e deveres são justos. Desde o início, o escrito se vincula ao conceito de indivíduo como aquele

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que tem direito à cidadania. Foi intencional à medida que a cidadania está em construção em solo pátrio, ainda que esta seja reconhecida apenas no direito. O conceito de indivíduo é entendido como um ser humano passivo diante da realidade, enquanto a pessoa assume uma posição consciente perante as circunstâncias que a vida lhe oferece. O indivíduo reclama por direitos e se diz vítima das circunstâncias todas as vezes em que é obrigado a exercer o poder de decisão que marca a condição humana. Ele só recorre ao discurso moral quando suas intenções têm um interesse em vista. Dedicar-se a estas reflexões é descuidar-se de si próprio para uma consciência ingênua. A consciência crítica transforma o indivíduo em pessoa; portanto, um sujeito ativo socialmente. Este sacrifício poderá levar o indivíduo a pensar se o bem-estar produzido pelo mercado é justo, o que seria um desperdício de tempo para o especialista. A educação com propostas baseadas no reducionismo estimula a dedicação isolada do especialista como o caminho para realizar seu sonho de conhecimento, a fruição das benesses conquistadas pela sua ocupação. Estimula-se nos cursos superiores um repúdio à especulação filosófica e uma dedicação exclusiva à sua área de saber, de modo que há uma apologia romântica da atividade científica, na qual o indivíduo é estimulado a isolar-se como um requisito necessário para o sucesso de sua metodologia de pesquisa. A descoberta científica é considerada a mais elevada atividade humana, posto ser o esforço intelectual atendendo às suas expectativas. Ora, este estado de ânimo, embora marcado por exaltada alegria, não corresponde necessariamente à realidade de quem o experimenta. Afinal de contas, a vida reclama seu direito de ser vivida plenamente. Destarte, parece ser um erro acreditar que a genialidade necessita do afastamento de seus semelhantes para ser criativo. Pelo contrário, o domínio dos fenômenos pela razão pode contribuir para a formação da inteligência emotiva, posto ser o relacionamento com o outro nosso maior problema e, de natureza igual, nossa salvação. Assim sendo, a introspecção, com certeza, fortalece o entendimento, mas é o diálogo que possibilita reconhecer e dignificar o valor da existência humana, ao mesmo tempo em que põe em questão o seu problema central: o sentido da vida. Este está além das aparências, pois se esconde nos problemas da existência, exigindo que o indivíduo reflita acerca de sua individualidade e encontre o indivíduo universal, este que tem o princípio de obrigação mútua como pessoa com os seus semelhantes. Assim sendo, o passo decisivo é reconhecer, de modo consciente, o outro como um ser humano com direitos jurídicos, com instituições que promovam a cidadania. De modo contrário à proposição antecedente, fomenta-se a exaltação do indivíduo para se incentivar o divórcio da existência em si com a cidadania. Em algum ponto da

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contemporaneidade, elas começaram a se constituir em esferas separadas uma da outra, mas foi com a justificativa da filosofia positiva que essa lógica de agir se estabeleceu como um marco temporal e ganhou proporções extemporâneas. A ideia de conhecimento científico como saber superior do positivismo, livre de valores axiológicos e que se dedica apenas à investigação dos fatos observáveis se tornou a expressão da “verdade”. A partir desse ponto, começou a se impor uma mentalidade educacional, cujo princípio englobará ideias como “se é real, é científico; logo, é útil e vantajoso”. Eis as bases da ordem e do progresso da sociedade aconselhadas pelas ciências. A ruptura transformou o homem coevo em um “escravo” da matéria, em uma criatura que imagina que a dedicação aos prazeres do sentido é o fundamento e a finalidade da vida, mas de modo superficial, visto que ele ignora que a realidade se dá na coexistência de individualidades como o caminho para fundar o próprio valor de si. Ele se desconhece e, ao mesmo tempo, se recusa a conhecer o outro. Não se percebendo como indivíduo entre individualidades, ele absolutiza sua existência e relativiza a do outro. Fromm (1980) já tinha expressado tal preocupação com esse estado de desejabilidade constante do homem. Este sentido do ser promove um ideal irrefletido de existência plena à medida que confunde o sujeito com o consumo de felicidade em se obter coisas. A consequência dessa atitude é a perda da dignidade e o não reconhecimento da autonomia e liberdade do outro, pois cada um imagina que o outro está à disposição das suas paixões. Paradoxalmente, este homem17 busca seu valor na aquisição de bens e isolamento. A este dado, no domínio cultural contemporâneo, os indivíduos procuram o máximo de “prazer” como sinônimo de felicidade, priorizando, portanto, o culto de que “eles têm tais coisas” a seu bel-prazer e poderá viver isolado dos demais ou manter-se à distância para melhor desfrutar as suas propriedades. As culturas difundem tais crenças. A leitura de Fromm mostra que o indivíduo contemporâneo preocupa-se unicamente em adquirir bens materiais (objetos) para si com o intuito de que tais “coisas” possam fornecer-lhe prestígio e poder. Entretanto, esta supervalorização, em detrimento de uma formação moralmente aceitável, tem provocado um relativismo moral que solicita uma reflexão ética acerca da própria moral deste ser hodierno. E, no caso da bioética, com a posse desse patrimônio, cabe refletir e adotar as medidas pedagógicas cabíveis para que a pesquisa seja ética

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Nessa compreensão, há uma hierarquia que, obviamente, começa com o homem, passa para o indivíduo e, por fim, instala-se na pessoa, que se confunde com o cidadão que continua em construção. Em quaisquer etapas, fica reconhecida a ideia de que todos são seres humanos.

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e responsável. Uma vez que o indivíduo vive dentro do ambiente cultural, decorrerá, portanto, um choque moral acerca do valor da própria moral, que, muitas vezes, não será testemunhada conscientemente pelo indivíduo. Ora, se é verdade do ponto de vista social, este valor fará parte da natureza profissional do especialista, negando-lhe a questão axiológica do mérito moral e, igualmente, a condição de uns cuidarem dos outros como indivíduos de obrigação mútua. Afinal de contas, cada indivíduo é congênere ao outro e este com/para aquele. Ora, esta é uma dificuldade imediata, pois somente com o outro, e de modo inseparável, serão experimentados os problemas da existência que define a situação humana no tempo vivido. Tal situação implica em um estado de contínuo conflito; porém, do ponto de vista ético, é salutar ter humanos colidindo entre si, com visões concorrentes, em disputas, pois isso exige diálogo e regras de convivências que nascem de uma comunicação autêntica (BUBER, 2004) e recíproca que solicita e impõe a cada um o dever de cuidar do outro. Atendendo este pressuposto, elimina-se parte considerável da violência nas relações humanas, uma vez que o diálogo entre indivíduos conscientes reivindica o nascimento da pessoa que identifica a condição de obrigação mútua e a dimensão do indivíduo como uma condição necessária para a existência dos indivíduos. É por essa razão que o bem comum se constitui, em parte, pela distribuição de bens materiais e, por outra parte, nas condições indispensáveis para o uso e gozo destes bens, que devem atender à incoação de reciprocidade e ao reconhecimento à dignidade de todos.

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6 A LEI E AS CIRCUNSTÂNCIAS EM AUXÍLIO A UMA PEDAGOGICA MAIS CIDADÃ A norma é o que está determinado na regra, sendo, no caso da lei, o último critério que estabelece o que é legal do que não o é. De sorte que a norma seja a forma aceitável de se proceder a uma ação. Em geral, as leis recorrem ao uso da força para se imporem como conduta; porém, no caso da ética, não é somente a que está em jogo, mas a que deve ser. Por um lado, as leis são colocadas como uma medida preventiva de se evitar que mais abusos sejam cometidos. Elas servem como instrumento repressor tão somente às consciências ingênuas que se recusam a reconhecer o direito dos outros. Por outro lado, a ética é a medida de reflexão para uma condição ideal, pois, ao mesmo tempo em que informa a norma de um dever moral, não perde de vista a ideia de uma condição melhor sobre os direitos e deveres dos indivíduos. A partir desta concepção, a bioética procura convencer o pesquisador ao tempo em que se mudam os programas de educação em ciências, apelando à sua consciência, mostrando-lhe que a conjunção dual, pesquisa e ética, reúne as condições apropriadas para o progresso da ciência e das tecnologias. Para a bioética, existe um parentesco entre prática e princípios, podendo as ciências se desenvolverem a partir de uma mentalidade de obrigação mútua. Por isso, é preciso modificar hábitos da comunidade científica tendo que, às vezes, recorrer à força das leis, porque a história ensina que não se deve confiar apenas no uso da palavra (MAQUIAVEL, 2007b). Não há diálogo autêntico (BUBER, 2004) com quem não tem a intenção de usar a palavra como instrumento de encontro com o outro. A palavra, quando autêntica, é elástica. E, usada como ferramenta pedagógica, pode modificar as mentalidades. Todavia, não se deve renunciar a possibilidade do uso das leis sob o risco de romancear a ideia de homem. A originalidade da proposição consiste em não confiar no extremismo da violência, mas integrá-la como parte de um processo pedagógico que reconhece que o diálogo é quem tem função precípua na educação das mentalidades. A finalidade das ciências pode ser experimentada paralelamente à moral, pois são partes constitutivas do protocolo de pesquisa quando envolve seres humanos. De sorte que a produção da ciência exige uma consciência desperta, inserida no contexto histórico, conhecedor das forças produtivas e das relações de trabalho, consoante as observações de Marx (1985). Este procurou descrever a sociedade com intuito de entender seu funcionamento e como ocorre a exploração da força de trabalho com vistas à conscientização e libertação dos operários. Porém, ela já argumentava que cada quadra da história tinha suas crises e que estas provocavam mudanças sociais sucessivas na organização política até o tempo em que os

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trabalhadores tomavam consciência de suas realidades. Para ele, a ideia de conflito é inerente às transformações que ocorrem no tempo, sendo, uma após a outra, para controlar os meios de produção, o que gera os conflitos de classes. Todavia, Dahrendorf (1992, p.20) acredita que “a teoria de Marx é arrumada demais para ser útil”. Sem discutir o mérito da assertiva, percebe-se que as revoluções trazem à superfície forças que, uma vez reconhecidas, impõem-se socialmente. A cidadania é o exemplo que ilustra essas forças. Sem dúvida que será preciso recorrer a vários expedientes para assegurar aos participantes da pesquisa que seus direitos sejam preservados. Talvez um desses instrumentos seja uma linguagem clara e acessível, uma que tenha a intencionalidade de comunicar verdadeiramente com outrem. Recomendações são úteis às consciências críticas e às ingênuas. Estas e aquelas devem saber que elas são propostas com vistas a um fim, no caso, que gere desdobramentos desagradáveis. Em alguns casos, castigos precisam ser infligidos pelo excesso de uns e como modelo pedagógico para outros. Assim sendo, a pena não é nada mais do que a retribuição por algo que se cometeu no excesso. A consciência crítica tem essa noção clara de que a sociedade precisa reagir, com base na lei, contra as ações indevidas de qualquer um para garantir a ordem social para todos. Por isso que a pena é sempre posterior ao ato, permitindo que a pessoa seja livre até para cometê-la. A pessoa livre sabe que o castigo nem sequer é proporcional à infração, porque entende que aquele que comete o ato precisa ser humanizado e tenha a oportunidade de se conscientizar de sua decisão anterior. Os indivíduos, ao contrário, não reconhecem este processo. Em virtude disso, as condições de obrigação que não punem procuram estabelecer um procedimento que entende a construção social das ciências que envolvem seres humanos, resguardando a dignidade, a liberdade e a autonomia do participante da pesquisa. Ainda que não tenha deixado explícito em suas linhas, é possível descortinar que a inovação e o progresso são motivados pelas forças do mercado; porém, o indivíduo não perde sua possibilidade de escolha. A sociedade tem múltiplas interações que precisam, pelo menos, ser conhecidas e, em especial, as ciências como parte constituinte deste mecanismo precisam ser entendidas pelos seus operadores. Tendo percebido esse fato, é significativo sublinhar o papel da ética como uma razão da ação humana, adotando-a como um princípio. A sociedade contemporânea identificou que cidadania exige dignidade. Destarte, o respeito à dignidade entre os membros da sociedade é uma espécie de óleo necessário para

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permitir a plenitude do viver, máxime na pesquisa envolvendo seres humanos. Por idêntica razão, foi imprescindível recorrer a um conjunto de sentimentos para constituir os preceitos necessários para um protocolo de pesquisa. É provável que o respeito ao outro seja constitutivo neste empreendimento, mas, aliado à liberdade e à autonomia do participante, pode lhe conferir a dignidade fundamental. Por sua vez, não reconhecer o valor do outro poderá gerar conflitos de múltiplas ordens, inclusive uma que introduz unicamente a violência para dirimi-lo. A parte mais significativa do ser humano é ser um depósito emocional que pode recorrer ao intelecto para lidar com este conteúdo. Somente em uma sociedade estável essas pulsões podem acontecer de modo profícuo, ainda que haja espaço para uma variação dos humores. O uso da violência como ferramenta única fere o princípio de obrigação mútua. Porém, paradoxalmente, há problemas objetivos que exigem medidas preventivas e o auxílio às leis. É preciso criar um espaço de manifestações do conteúdo emocional, permitindo aos ingressos em cursos superiores praticar o exercício do diálogo ao lado crítico de se produzir ciência. No entanto, um diálogo construtivo e emancipado que entenda as pulsões da natureza humana e o respeito recíproco com seus semelhantes. Conforme sobrescrito, os especialistas egressos das universidades públicas têm como mentalidade que o progresso deve subordinar quaisquer princípios, posto que as atividades científicas estejam acima do contexto social e de princípios, e consideram que o experimento científico é neutro e imparcial. Acreditam, inclusive, que a linguagem científica não deve ser passível de crítica ou de contestação por parte do não especialista. Este obstáculo precisa ser revisto pelos educadores, porque impede ao especialista compreender e, tampouco, reconhecer a dignidade inerente ao outro. Sem esse pressuposto, acredita-se que a violência já esteja latente nas correlações. Os programas de educação em ciências precisam ser revistos para estimular uma formação mais crítica, mais cidadã, pois só assim haverá espaço para a reflexão acerca da realidade. Acredita-se que a consciência crítica entende que o estudo das partes é necessário para o desenvolvimento e progresso das ciências, porém, é preciso saber que, ao se dedicar a esta parte exclusiva, perde-se parte da realidade geral. Tendo conhecimento desta escolha, ele recorre ao diálogo com os outros saberes e compensa suas horas de estudo escutando e refletindo sobre outras compreensões das estruturas sociais e a crítica ao seu próprio trabalho e metodologia.

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Em vista disso, é preciso conhecer o sentido do que é a realidade, ainda que em sua forma embrionária, para orientar o bem-viver, assim como entender as manifestações do gênero humano consigo e com os outros. Não há um indivíduo além das relações humanas, posto que a história seja construída pelas escolhas e circunstâncias dadas. Ao se observar a natureza humana na história, percebe-se que os móbeis da ação humana parecem ser o autointeresse, de modo que todos buscam o prazer, quer seja material, quer seja espiritual. A mais significativa observação desta proposição é que cada um procurará ser o responsável pela maximização do seu prazer, captando as opções disponíveis em prejuízo dos demais. Se, em busca do êxito pessoal, cada qual procura exercer o domínio sobre os outros e as coisas, como em um jogo inconsciente em que todos são peças e jogadores do mesmo xadrez, então, de algum modo, o interesse de cada um se relaciona com o interesse de todos. Neste vaivém das peças, na perseguição individual dos objetivos, cada um vai se alienando ao não reconhecer a importância do outro para sua própria felicidade, perdendo a estima e o reconhecimento da dignidade de si, pois, não se reconhecendo a dignidade do outro, não haverá o reconhecimento, por parte do outro, da sua. Sendo assim, a inteligência emocional precisa ser desenvolvida desde o ensino das ciências básicas e estimulada nos cursos superiores por meio de uma cadeia de estudos humanitários. É preciso notar que o reconhecimento do outro é uma tarefa difícil para a consciência ingênua porque exige o diálogo com o outro, o diferente. Da mesma maneira, a existência do outro tem de deixar de ser oculta e disfarçada na sociedade atual, pois, se cada um entende que a sociedade existe apenas para servi-lo, os laços que os unem se esconderá nos grupos nos quais se faz parte e cada qual esconderá sob sua pele os seus reais interesses. A consciência desperta precisa assumir seu lugar na sociedade contemporânea, perceber que seu resgate depende da salvação do outro. De modo que o especialista possa descortinar os véus que cobrem a sua formação e reconhecer a dignidade da criatura humana, valorizando o próprio ser humano que foi “coisificado” em uma sociedade de consumo e transformado em mais um produto de “vitrine” no mercado capitalista. As ciências recebem o mérito pela utilidade de transformar seu domínio de conhecimento em um produto de consumo. Ela faz parte da estrutura socioeconômica, bem como seus operadores que valorizam mais os seus bens do que as relações humanas. Porém, é preciso reconhecer que, em um ambiente formado para esta atitude comportamental do

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indivíduo, seja extremamente difícil, para ele, reconhecer o valor próprio de ser um ser humano. A questão é que os cursos superiores reforçam esse móbil da existência do ser humano, incentivando-os a ganhar mais “coisas”. E tal pensamento é antigo, apenas se expressando com maior ou menor força na cultura ocidental. Se esse fato é cultural, o universo dos profissionais das ciências reflete esse imaginário. Sem dúvida, esses operadores também são reprodutores da ideologia dominante, mas podem vir a se tornar críticos. Desse modo, as lições da ética apontam a sua reflexão na afirmação do valor da dignidade humana, mostrando o insuspeitável e, ao mesmo tempo, procurando moldar um espírito científico mais elevado. Afinal de contas, este é o papel da educação, educar as pulsões naturais que procuram tão somente a autossatisfação. Compete, ainda, ao processo educacional despertar a consciência com vistas a formar um cidadão ideal, capaz de interagir de modo crítico, construtivo e harmônico com seus semelhantes, gerando um ambiente de estabilidade coletiva que possa ser estendido às próximas gerações. À primeira vista, este é o espírito constitutivo da instituição educacional: moldar humanos para conviver com outros humanos. De modo desigual à proposta mencionada, tenta-se, nos cursos atuais, mostrar que as escolhas humanas sejam alvo de demandas externas ao trabalho científico, justificando o abandono à discussão sobre as mãos que operam em detrimento das necessidades estruturais. Talvez seja por isso que a bioética enfrenta uma resistência, por parte do especialista, quando este não aceita o papel da escolha no esqueleto sociopolítico. Se isso parece lógico, não parece ser moral renunciar a escolha. Viver uma existência humana autêntica parece exigir a autoria responsável de seus atos. Tampouco parece ser simples acusar as instituições ou o mercado por suas (in)ações. Quer seja no âmbito da obrigação, quer seja no âmbito do valor, as ações remetem ao seu autor, exigindo um espírito crítico, dado que nunca se sai de si mesmo, ainda que o mundo externo desconheça suas escolhas e (in)ações, a consciência terá registrado em sua memória. Se as ciências sistematizam a realidade e impõem a própria interpretação do que seja a realidade, é preciso construir uma educação científica que estimule a reflexão do especialista a ponto de comprometê-lo com o outro, com vistas a reconhecer a dignidade da pessoa em uma sociedade que pauta sua dinâmica no lucro. Se não há dúvida da presença da ideologia capitalista na atividade científica, no mesmo tempo em que perdure tal proposição pode se conceber uma educação que mostre ao profissional das ciências que seu estudo não é impessoal e, igualmente, que o conhecimento produzido por ele não é neutro axiologicamente e livre de

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escolhas. Em qualquer fato ou construção científica há um juízo de valor e um conhecimento social. Ao tempo em que a consciência ingênua perde o pressuposto de que juízos de fato e de valor18 não são campos distintos do saber, introduz a ideia de que todo conhecimento reflete sobre a espécie humana. Na prática, parece ser absurda a ideia de que existiria um conhecimento dissociado do próprio ser humano à medida que o destino da pessoa é construído por meio das escolhas entre seus semelhantes. A própria sociedade parece identificar que o progresso da ciência e da tecnologia deve visar ao benefício para o ser humano, reforçando a ideia de que a consciência do especialista deve estar inserida no contexto histórico. Destarte, deixa de existir a pessoa pura, o pesquisador fora da história, posto que todo indivíduo seja um ser social, produto e criador da cultura. Tal atitude leva a pensar que há mais motivos para se discutir acerca da convergência destes juízos do que para diferenciá-los. É bem verdade que se podem apontar juízos quase isentos de valor, mas, a rigor, a dicotomia serviria apenas para promover a ideia de impessoalidade que favorece a conduta de não reconhecimento da dignidade, já que os “cientistas” se propõem a fazer juízos de fatos e não juízo de valor e, em virtude disso, estariam além do campo ético. Além disso, se o conceito de realidade é humanamente construído com os outros, os especialistas não podem invocar uma moral especial para suas atividades, uma que lhes permitisse tratar o humano de uma forma menos humana. A noção de escolha exige o princípio de obrigação mútua como princípio íntimo que organiza a sociedade e que somente uma ingenuidade (com intenção propositada) não perceberia que eles são edificados em um ambiente social. Em uma sociedade que regula a ideia de felicidade na aquisição de coisas, a consciência terá dificuldades para abandonar sua ingenuidade e, do mesmo modo, não ser contaminada pelas ideologias do mercado político-econômico. De sorte que toda atividade que envolve o conflito exige a escolha consciente, a fim de examinar a conduta moral mais apropriada de seu funcionamento. A postura que introduz a violência no universo humano requer a discussão ética e o desenvolvimento da inteligência emocional para se produzir, em breve espaço de tempo, uma ação científica justa. Assim, o problema das ciências e das tecnologias não pode subverter a causa primeira de sua existência: o indivíduo, com as prerrogativas da cidadania. 18

Parece que são duas coisas distintas, visto que uma se limita à descrição dos fenômenos factuais e o outro, sobre os objetos da cultura que podem ser interpretados com auxílio dos sentimentos éticos, estéticos. A problemática se torna um pouco mais explícita quando se percebe que várias estruturas e explicações acerca dos fenômenos são explicadas com base na conveniência do que o estudo espera interpretar.

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Este não pode ser marginalizado por nenhuma necessidade dos efeitos de sua existência; ele é a questão central. A inteligência emocional é base para se elaborar direitos e deveres, uma vez que a inteligência emotiva dialoga e aceita os princípios, ela se engaja em seu fiel cumprimento de conhecer e compreender o outro, dando ao conceito de humano uma referência positiva. No universo da escolha, apesar da influência do sistema financeiro determinar a utilidade das coisas, já foi sublinhado a originalidade da escolha como ato humano exclusivo, que implica na existência do próprio ser. Não há dúvida que não se pode renunciar a esse conflito, à medida que ser humano é viver no paradoxo de escolher o melhor para si e o que é melhor para o outro (KANT, 2008), sabendo que o outro tem este mesmo dilema perante suas próprias escolhas. E não se trata apenas de justificar o ato, pois cada um escolherá o argumento que legitima sua escolha como suficiente e necessária (SARTRE, 1987). Eis a diferença da consciência crítica para a ingênua: a primeira não renuncia sua condição paradoxal como entende o princípio de obrigação mútua como um passo decisivo para a construção efetiva da felicidade. Exposta ao problema da existência, a consciência crítica reivindica para si a escolha de selecionar, raciocinar, ordenar e julgar sua ação. Essa exigência solicita um esforço hercúleo da própria consciência e ela não se opõe à vinculação moral, pelo contrário, dado que a ética tem como fim último a busca da felicidade do indivíduo (ARISTÓTELES, 1987). O problema é que o vocábulo é, muitas vezes, entendido na busca pelo prazer. Este é, em geral, entendido como algo próximo à satisfação. Porém, em uma compreensão contextual, em uma perspectiva comprometida com o sistema econômico, a ideia de felicidade é exterior à reflexão do indivíduo, pois deixa de ser o caminho da ação última da espécie humana e se torna nada além do testemunho do prazer ligado à satisfação instintiva, ou o mero deleite das pulsões da natureza humana. Logo, o homem não pode se voltar para além de sua natureza humana, que tem como móbil de sua ação apenas sua autossatisfação. Não obstante, a possibilidade de se tornar, de fato, um indivíduo só ocorre em vida social, compartilhando uma correlação com seus semelhantes, gozando de segurança e liberdade entre liberdades. Em coletividade, o indivíduo pode usufruir de um estado de segurança, sendo submetido, minimamente, às tensões naturais. Decorre que, por contradição, para gozar as benesses da ordem social, ele precisa renunciar, em parte, à ideia de que a felicidade basta somente para si, uma vez que,

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conduzindo sua existência pelas funções orgânicas, causaria certamente a anarquia (HOBBES, 2008). Com base nas funções fisiológicas e motivações psicológicas, chega-se a um nível de desenvolvimento. Porém, é somente pela educação, que o homem se torna de fato homem. A ideia de um ideal de homem é e continua, decerto, sendo a última utopia da civilização. Entretanto, na sociedade contemporânea, a ideia de prazer se manifesta de um modo opressivo, sendo a mola de funcionamento social.

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7 CONCLUSÃO Na sociedade hodierna, o útil não é nada além do que mais um elemento que dissimula a compreensão da própria realidade. Em uma sociedade de consumo, “útil” é “ter” coisas à sua disposição, ou, de modo estranho, ser “útil” a algo. Assim, na atualidade, o espírito do indivíduo preocupa-se em possuir coisas para si, tornando seu próprio corpo uma coisa para si e para os outros. Tal perspectiva é tão evidente que, mesmo em uma sociedade plural, o corpo não é mais um reflexo para si diante do espelho, mas apenas uma imagem. Se, em sociedade, se recebe as influências externas que moldarão os gostos, devido à sua composição, caberá a ela influenciar os aspectos afetivos e ter ascendência sobre o caráter e a identidade do indivíduo. Exposto isso, é inevitável que se cuide da inteligência emocional, preparando-a para lidar com as emoções de modo que as contrariedades da vida social não se tornem uma perturbação que afete a sua correlação com os outros indivíduos. É preciso conceber um processo educacional criativo, revolucionário, que promova efetivamente o bem comum e que não se esqueça das pulsões da natureza humana; que considere a história como um laboratório; que julgue acerca do papel da escolha; que reconheça as forças econômicas que dominam o imaginário; e, finalmente, que entenda que viver é interagir com outros, escolhendo o que se quer ser em circunstâncias que afetam, mas não lhe negam a oportunidade da escolha em meio ao conflito decorrente da multiplicidade de perspectivas. A dimensão do indivíduo que enfrenta os problemas da existência requer o princípio de obrigação mútua como constituinte para a existência plena do indivíduo como pessoa. O ensino de ciências é o caminho mais apropriado para modificar o cenário atual, pois recorre mais à palavra dialógica do que à imposição das leis. Tal tendência pedagógica deverá apontar para espaços de liberdade consoante a liberdade do indivíduo; que promova a bilateralidade das competências, dando ênfase à inteligência emocional reflexiva e instauradora e, ao mesmo tempo, seja capaz de unir as duas potências em um caminho para reconhecer que a existência de cada um compromete a do outro. Uma educação que não recusa o conflito de entender as pulsões naturais, mas que se interessa pela manifestação deste fenômeno de modo crítico, entendendo que uma existência plena só ocorre quando a pessoa humana tem sua liberdade, autonomia e dignidade reconhecidas. Destarte, a vida intelectual e a vida emotiva podem caminhar paralelas, como uma opção viável para uma nova perspectiva ética, uma perspectiva

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que reorienta a trágica condição humana para usufruir do sucesso tecnológico sem o peso de ações imorais. Da leitura de Fromm (1980; 2000), parece que a espécie conquistou a natureza ao tempo em que se perdeu entre seus frutos artificiais. O universo humano ficou lotado de coisas, porém, o ser humano ainda se sente frágil em seu interior e, deste modo, paradoxalmente, precisa de mais bens para se sentir livre. A sensação de liberdade foi construída sob a égide da materialidade e da posse, a ponto de o traço característico do homem contemporâneo ser o poder do seu cartão de crédito, uma vez que satisfação só advém pela prática das compras. A ideia do consumo radical é uma “realidade”, a ponto de o homem contemporâneo conceber que ele é o que ele possui, pois a sua “felicidade [...] consiste na emoção de olhar vitrines e comprar tudo o que lhe é possível, à vista ou a prazo” (FROMM, 2000, p.3). Este tipo de mentalidade inflaciona o sentimento egoísta – presente na natureza do indivíduo – e resume os problemas da existência às ideias de possuir “coisas” para nosso domínio individual. E nestas condições ambientais se perde a dimensão humana do outro, porque o mais importante é desfrutar o máximo de prazer proporcionado pelas benesses culturais. Ao longo do tempo, as ciências passaram de produto criado pelos homens para indicadores das normas e padrões de normalidade da espécie humana. De modo que a ninguém se surpreenda que a nova ética seja proposta pelas ciências. É bem verdade que uma série de circunstâncias políticas, econômicas e sociais contribuiu para que este saber se tornasse a referência no universo humano. E nesta linha de raciocínio, as ciências mostraram um saber prático e proveitoso sem igual, tornando-se parte constitutiva do universo humano. De modo que é possível afirmar que elas começaram a delimitar a própria definição de “realidade humana”, pois possibilitaram inflacionar a tendência de valorizar apenas aquilo que é de ordem material, o que leva ao homo oeconomicus. Na busca desenfreada pela posse de bens materiais, o homo oeconomicus tornou-se um consumidor radical de coisas, o homo consumericus. Defoe (1997) invoca uma situação hipotética para enfatizar que a incumbência fundamental do homem é se encontrar com seu semelhante. As necessidades impostas pelas circunstâncias não devem perder de vista os aspectos éticos e compromissos que se deve ter com os outros. Do homem autossuficiente e servo de suas crenças, ele reconhece naquele que lhe opõe sua identidade e funda o homo sapiens pósmoderno.

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Diferente de Defoe (1997), o homem contemporâneo está se moldando apenas para o consumo pelo mero consumo. Com a perda do homo sapiens para este que vigora na sociedade, esqueceu-se a ideia de que o autorreconhecimento ocorre através da consciência crítica e, assim, como esta é evitada a todo custo, o sentido de ser cede lugar a uma criatura carente e incompleta de próprio sentido ou voltada para o sentido de viver para o consumo. Não é uma ficção contemporânea afirmar que os indivíduos vivem suas “realidades” para o consumo absoluto de coisas e o menor contato autêntico com outrem. Embora o mundo tenha se tornado menor, permitindo o encontro do homem com seu semelhante, este se mantém fechado em seu círculo de desejo. Em que pese a contribuição do progresso técnico científico das ciências para diminuir as distâncias entre as pessoas, ela inevitavelmente colaborou de algum modo, sobretudo com as especializações, para que as relações humanas se tornassem frugais e, assim, enfraquecessem o contato direto. E a experiência emotiva precisa da vivência para exercitar sua afeição pelo outro e vice-versa, pois somente em correlações entre os indivíduos e conscientes de suas escolhas o indivíduo poderá se tornar uma pessoa. É preciso agora recomeçar pelo reconhecimento do outro para se ter o conhecimento de si. Uma nova aventura intelectual e sensitiva se faz presente ao indivíduo, uma que demandará a consciência crítica e o princípio de obrigação mútua para transpor a condição individualista e, ao mesmo tempo, imporá novos problemas da existência sem desaprender o papel da escolha para o homem. Afinal, o ser humano só se percebe como ser humano através do olhar do outro (BERKELEY, 1973). Finalmente, do que foi exposto, acredito que não podem as ciências prescindir de uma ética que tenha como pressuposto o princípio de obrigação recíproca entre indivíduos nem sequer em momentos de exceção. De sorte que é perfeitamente compatível desenvolver pesquisas científicas com ética sem evitar os dilemas trazidos pelos problemas da existência. Decerto que são desejos difíceis de vê-los em prática, mas a existência põe, lado a lado, exigências objetivas e condições ideais. E a perspectiva de que a ética não é só o que se põe em normas como também é uma ideia inspiradora que alimenta um grau sempre mais elevado para uma atividade imprescindível à espécie humana. Dadas essas conquistas e, igualmente, conhecendo o histórico da criatura humana, não é possível renunciar às leis e ao seu poder coercitivo e pedagógico. Sem este auxílio, é inconcebível qualquer transformação na mentalidade dos indivíduos. A história é um laboratório e tem ensinado como os homens têm agido, a causa dos conflitos e papel dos interesses, a função do diálogo e o recurso à força das

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leis, principalmente quando os homens são descobertos em suas faltas; em geral, põem a culpa como fruto das circunstâncias, abrindo mão do seu poder de decisão ética. Expostas essas considerações, abandono parcialmente a perspectiva do realismo político e creio que seja possível pensar no que o indivíduo poderia vir a ser, pois se há situações objetivas imediatas, há também aspirações.

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