Prisão-Privada

July 5, 2017 | Autor: Pablo Rosa | Categoria: Prisão, Privatizações
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Prisão-Privada

Pablo Ornelas Rosa

Para que serve uma privada? Certamente essa não seria uma pergunta difícil de ser respondida. Poderíamos contestar, argumentando simplesmente que a privada serve para depositarmos dejetos não aproveitados pelo corpo humano. Sendo assim, sua função poderia ser reconhecida como uma espécie de depósito de resíduos desagradáveis que o corpo não consegue absorver e, consequentemente, necessita de um espaço para que possa ser despachado para bem longe dos nossos olhos, narizes, bocas, mãos, enfim, para muito distante da nossa presença limpa e higienizada.
E a prisão, para que serve? Já essa pergunta se coloca um pouco mais provocativa causando certo desconforto ao sujeito questionado, uma vez que propõe certa ponderação a algo bastante naturalizado, isso para não dizer imponderável. Possivelmente um sujeito que nunca visitou uma prisão no Brasil argumentará que aqueles que se encontram privados de liberdade encontram-se nessas instituições totais justamente porque cometeram algum delito e, portanto, justifica-se sua permanência nesses espaços após um julgamento contemplado por uma pena atribuída por um juiz de direito. No entanto, aqueles que tiveram o desprazer de visitar uma prisão brasileira, encarando uma das realidades mais degradantes da condição humana na contemporaneidade, certamente se sensibilizará com a miséria humana encontrada, que provavelmente o levará a questionar a violação de direitos presente na insalubridade desses espaços mórbidos e assustadores.
O declínio dos direitos sociais decorrente da emergência de políticas econômicas neoliberais fundamentadas no livre mercado passaram a incentivar o sucateamento de prisões e demais instituições estatais no intuito de transformar esses espaços supostamente prejudiciais à administração pública em negócios altamente rentáveis. Ao possibilitar a ascensão e difusão de uma nova economia política que incide sobre esses corpos sujos, desagradáveis e improdutivos, as políticas neoliberais fundamentadas em um Estado que opera através de intervenções mínimas no mercado e máximas nas penalizações e punições, propuseram novos produtos bastante lucrativos para serem comercializados através da mercantilização da suposta sensação de segurança.
As consequências negativas das experiências de privatização de prisões nos Estados Unidos foi muito bem apresentada por Wacquant (2003) que, ao relatar as características do Estado estadunidense amparado no mito do individualismo possessivo, mostrou certa transformação da guerra contra a pobreza em guerra contra os pobres e seus direitos sociais que eram garantidos por um Estado caritativo.
A destruição deliberada do Estado social e a hipertrofia súbita do Estado penal transatlântico no curso do último quarto de século são dois desenvolvimentos concomitantes e complementares. Cada um a seu modo, eles respondem, por um lado, ao abandono do contrato salarial fordista e do compromisso keynesiano em meados dos anos 70 e, por outro, à crise do gueto como instrumento de confinamento dos negros em seguida à revolução dos direitos civis e aos grandes confrontos urbanos da década de 60. Juntos, eles participaram do estabelecimento de um "novo governo da miséria" no seio do qual a prisão ocupa uma posição central e que se traduz pela colocação sob tutela severa e minuciosa dos grupos relegados às regiões inferiores do espaço social estadunidense. Desenha-se assim a figura de uma formação política de um tipo novo, espécie de "Estado centauro", cabeça liberal sobre corpo autoritário, que aplica a doutrina do "laissez faire, laissez passer" ao tratar das causas das desigualdades sociais, mas que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as consequências (Wacquant, 2003: 55).

Embora sejam grandes as semelhanças entre as políticas neoliberais adotadas pelos governos estadunidenses e brasileiros a partir do anos 1970 no primeiro país e 1990 no segundo, é possível verificar certas distinções, sobretudo, no que se refere ao sistema carcerário. No Brasil, as propostas de privatização dos presídios tem acontecido de maneira mais discreta e lenta, diferentemente dos Estados Unidos, atual campeão mundial no número de pessoas encarceradas. Contudo, é importante destacar que atualmente o Brasil ocupa a terceira posição, tendo aproximadamente 711.463 mil presos em seu território nacional.
Os números apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ aos representantes dos tribunais de justiça no dia 04 de junho de 2014 levaram em conta as 147.937 pessoas que se encontravam em prisão domiciliar, algo que não era contabilizado anteriormente. Com esse acréscimo foi possível verificar a superação do terceiro lugar no Ranking, anteriormente ocupado pela Rússia. Portanto, embora sejam perceptíveis certas diferenças entre as políticas econômicas adotadas pelos Estados Unidos e Brasil, o sistema carcerário possibilita a localização de certa tendência de mercantilização da vida, sobretudo, a partir de discursos que tangenciam a problemática da segurança pública.
No final de 2014 foi lançado um importante documentário que trata das primeiras experiências de privatização de prisões no Brasil, intitulado "Quanto mais presos, maior o lucro". Esse vídeo possibilitou a difusão de informações que mostram o quão falaciosos são os discursos de livre mercado que perpassam o campo da segurança pública, sobretudo, no que se refere a questão do sistema carcerário e seus impactos na sociedade.
O anúncio da inauguração da "primeira penitenciária privada" do Brasil em Ribeirão das Neves/MG, ocorreu em janeiro de 2013. Porém, o modelo apresentado já existia em pelo menos 22 (vinte e dois) presídios de 7 (sete) Estados do país, com a diferença que nesse caso específico de complexo Parceria Público-Privada – PPP o processo ocorreu desde sua licitação e projeto, enquanto que as outras experiências se fundamentavam em unidades públicas que passaram a serem administradas por instituições privadas.
Segundo relato apresentado por Bruno Shimizu, coordenador do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a privatização das prisões é algo inconstitucional que passou a ser impulsionado por elementos políticos muito bem construídos que perpassam o sucateamento do sistema penitenciário decorrente do longo processo de privatizações deliberadas dos serviços públicos essenciais a partir da adoção de políticas neoliberais de livre mercado, no intuito de justificar o quão oneroso era ao Estado a manutenção dessas instituições responsáveis pela permanência e, possivelmente, produtividade desses supostos sujeitos perigosos a sociedade. Esse processo de sucateamento dessas instituições, visava entregar a iniciativa privada a manutenção desses espaços que, a princípio, não eram rentáveis, transformando-os em um negócio altamente lucrativo.
Em entrevista realizada no documentário supracitado, Laurindo Minhoto, professor de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP, constata que a experiência das prisões privadas deve ser entendida como uma "espécie de experimento modelar, uma espécie de ponta de vanguarda do Estado neoliberal. Se trata de criar uma nova área de negócios e estender a lógica empresarial para o âmago de uma função do Estado moderno".
A insensibilidade e a ganância que operam por meio de processos de sujeição e assujeitamento voltados exclusivamente para os ganhos, resultado da produção desse sujeito histórico que Foucault (2008) chamou de homo oeconomicus, fez com que o neoliberalismo ascendesse nos Estados Unidos, não atuando somente como uma alternativa técnica de governo, mas como um novo modo de pensar, um novo estilo geral de pensamento, de análise, de imaginação e de racionalidade que acabou sendo governamentalizado.
No neoliberalismo – e ele não esconde, ele proclama isso – também vai-se encontrar uma teoria do homo oeconomicus, mas como o homo oeconomicus, aqui, não é em absoluto um parceiro da troca. O homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo. Essa coisa é tão verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo oeconomicus, parceiro da troca por um homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda (Foucault 2008: 310-311).

Segundo Foucault (2008), a concepção neoliberal estadunidense resulta de dois elementos que são, ao mesmo tempo, métodos e análises de sua programação. O primeiro fundamenta-se na teoria do capital humano e, o segundo, na análise da criminalidade e da delinquência. Como a teoria do capital humano culmina com a governamentalização dos pressupostos econômicos em campos considerados não-econômicos, a questão da criminalidade e da delinquência vai se tornar uma prática governamental a partir do controle deste problema por meio da intensificação de seu tratamento do ponto de vista estritamente econômico.
A transformação dos presos em capital humano, justificativa dos tributários das privatizações dos presídios, mostra que estas atividades ilícitas e criminosas, podem gerar lucro ao serem produtivas, possibilitando um maior controle sobre os indivíduos tidos por grande parte da sociedade como não confiáveis e perigosos. A captura desses sujeitos e sua conversão em trabalhadores precários, mas produtivos, bem como a transformação de suas ações em trabalho rentável, pressupondo salário, possibilitou a emergência de um novo tipo de mercado, fundamentado no exercício do controle e do governo das condutas dos indivíduos que possuem algum tipo de vínculo com este tipo de atividade. Deste modo, a governamentalização dos pressupostos econômicos em campos considerados não-econômicos, conforme averiguou Foucault como sendo um dos elementos da Teoria do Capital Humano, fez com que emergisse esse novo mercado que visa ampliar o número de presos no intuito de garantir uma produtividade mais intensa, já que os trabalhadores encontram-se encarcerados no mesmo local em que produzem e dormem.
Além disso, é importante destacar que garantias trabalhistas como décimo terceiro salario, férias, fundo de garantia, seguro desemprego, dentre outros, não se faz presentes nesses espaços, uma vez que operam nessas instituições totais a partir da exceção a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Não obstante, também é importante destacar que nos acordos assinados entre os consórcios vencedores das licitações e os Estados, há previsão de que os governos deverão garantir ao menos 90% das vagas das prisões privadas ocupadas com condenados pela justiça, conforme informações apresentadas no documentário supracitado. Desse modo, torna-se perceptível o desinteresse dos Estados e governos em adotarem políticas sociais de redução de criminalizações que decorreria na redução de encarceramentos. Assim, ao invés de presenciarmos a redução de encarceramentos, verificamos o contrário, pois constatamos que os Estados e governos passaram a incentivar as privatizações com intuito de garantir a manutenção desse mercado nefasto que opera por meio da mercantilização da miséria humana.
Segundo o documentário "Quanto mais presos, maior o lucro", atualmente no Brasil, a permanência mensal de um preso gera um custo de aproximadamente R$ 1.300,00 por mês podendo variar até R$ 1.700,00, numa penitenciária pública. Na PPP de Ribeirão de Neves, o consórcio de empresas recebe do governo estadual de Minas Gerais R$ 2.700,00 reais por preso por mês e tem a concessão do presídio por 27 anos, prorrogáveis por 35 anos. Hamilton Mitre, diretor de operações do Gestores Prisionais Associados - GPA, o consórcio de empresas que ganhou a licitação, argumenta que o pagamento do investimento inicial na construção do presídio se dá gradualmente, dissolvido ao longo dos anos no repasse do estado. E o lucro também. Mitre insiste que com o gasto total de R$ 280 milhões no investimento da construção do complexo esse payback, ou retorno financeiro, só vem depois de alguns anos de funcionamento.
Assim como uma privada tem a função de despachar os excrementos humanos para um local seguro aos nossos sentidos como o olfato, o paladar, audição, tato e visão, a prisão visa despachar esses supostos excrementos da sociedade, os sujeitos perigosos, para esses espaços distantes e mórbidos que passaram a ser sucateados com a perspectiva de futuramente alimentarem negócios altamente rentáveis como o trabalho escravo dentro de prisões que visam ampliar o seu público. A imagem da privada em uma prisão mostra nitidamente como as políticas neoliberais operam de maneira violenta não somente sucateando essas instituições ao ponto de desumanizá-las e tornar quase que necessária a privatização desses espaços administrados de forma privada, mas principalmente revelam o que há de pior na condição humana contemporânea, o descaso com o outro e a possibilidade de sempre ganhar com a desgraça. Toquemos a descarga e deixemos nosso excremento humano ir embora. Contudo, devemos resistir a desumanização advinda da extrema ambição trazida pelo individualismo e pela meritocracia presentes nos discursos covardes das políticas neoliberais que visam exclusivamente a intensificação de ganhos.

Referências Bibliográficas
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Filmes
SACCHETTA, Paula. Quanto mais presos, maior o lucro. [Filme-video]. Produção joaoemariadoc.com. Reportagem de Paula Saccheta. São Paulo, 2014. DVD, 15:51 min. color. son.





 





ROSA, Pablo O. Prisão-Privada. In RIGON, Bruno S.; SILVEIRA, Felipe L.; MARQUES, Jader. Cárcere em Imagem e Texto. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. (No Prelo).
Pós-Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestre em Sociologia Política e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Atualmente é professor nos Programas de Mestrado em Sociologia Política e em Segurança Pública e coordenador do Grupo de Pesquisa Poder, Subjetividade e Resistência da Universidade Vila Velha – UVV. E-mail: [email protected] . (http://lattes.cnpq.br/1908091180713668)
Dados extraídos do site http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/28746-cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira no dia 05 de fevereiro de 2015.
Dados extraídos do site https://www.youtube.com/watch?v=Xmae89KBuiY no dia 05 de fevereiro de 2015.



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