Processamento sintático: a batalha pela região de Broca

May 24, 2017 | Autor: M. Terra Teixeira | Categoria: Neuroscience, Syntax, Cognitive Neuroscience, Sentence Processing, Broca area
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Processamento sintático: a batalha pela região de Broca Mariana Terra Teixeira1 O intenso esforço para caracterizar a região de Broca tem produzido muitas visões sobre sua anatomia e suas funções. Anatomicamente, a discussão parece se centrar nas áreas de Brodmann 44 e 45. Funcionalmente, a discussão é sobre, no mínimo, quatro funções, entre linguísticas e não linguísticas, nas quais a região parece estar envolvida. Grodzinsky e Santi (2008) trazem dados de estudos com ressonância magnética funcional (fMRI) para argumentar que a área de Broca é especializada no processamento sintático, e que o papel das áreas de Brodmann 44 e 45 parece ser específico para o movimento sintático, pelo menos no que diz respeito ao processamento da linguagem. Essa proposta dos autores reflete uma tentativa de se definir princípios gerais para a representação neural do conhecimento linguístico. No entanto, esse estudo gerou repercussões. Willemns e Hagoort (2009), em uma resposta aos autores, argumentaram que é muito difícil que regiões corticais, tal como a área de Broca, sigam uma regra de funcionamento de “uma-área-umafunção”. Segundo Willemns e Hagoort (2009), há estudos com neuroimagem funcional que mostram o envolvimento da área de Broca no processamento semântico também, por exemplo. Foi através desse conflito de visões que se instaurou a “batalha pela região de Broca”, sobre a qual falaremos neste artigo. Discutiremos, aqui, os argumentos trazidos por Grodzinsky e Santi (2008) que geraram essa “batalha científica”. Cartas científicas foram trocadas entre os grupos de autores na revista Trends in Cognitive Sciences, a saber: “Broca’s region: battles are not won by ignoring half of the facts” (WILLEMNS; HAGOORT, 2009) e “Response to Willemns and Hagoort: an imperfect theory gets you further than random facts” (GRODZINSKY; SANTI, 2009). Percebemos posições teóricas distintas por trás da “batalha” sobre o papel funcional da região de Broca. A posição de Grodzinsky e Santi (2008) parte de uma visão modular da linguagem, na qual a linguagem é um módulo específico da cognição humana. Dentro desse quadro teórico, Grodzinsky e Santi (2008) têm uma visão especifista do funcionamento da área de Broca: para os 1 Mariana Teixeira é formada em Letras Português/Espanhol pela UFRGS e mestre em Linguística pela PUCRS. Atualmente, é doutoranda em Linguística do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS com bolsa CNPq. Email: [email protected].

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autores, a área tem um papel específico no processamento do movimento sintático. A posição de Willemns e Hagoort (2009) pressupõe que a linguagem é uma habilidade de domínio cognitivo geral e que outros sistemas cognitivos do cérebro humano também precisam, por exemplo, combinar elementos independentes em uma representação geral coerente, portanto esse funcionamento não seria específico da linguagem. Os autores citam como exemplo o sistema visual, apesar de concordarem que a unificação das partes da linguagem em um todo coerente é uma tarefa mais complexa e que demanda mais tempo. Dentro dessa perspectiva, Willemns e Hagoort (2009) têm uma posição mais generalista em relação ao funcionamento da área de Broca, em que, no processamento da linguagem, a área sustenta uma memória de trabalho de domínio geral. Mesmo que Grodzinsky e Santi (2008) concordem que a área de Broca possa ser multifuncional, no que se refere ao processamento linguístico, os autores argumentam a favor da especialidade da região para o movimento sintático. Por outro lado, Willemns e Hagoort (2009) defendem a multifuncionalidade das redes cerebrais e dizem que é pouco provável que uma região cortical como a região da área de Broca tenha somente uma função, pois ela pode ser parte de mais de uma rede neural. Nessa perspectiva, a rede neural como um todo, e não somente um nó (uma área), teria uma função. Vejamos, então, os dados apresentados por Grodzinsky e Santi em seu artigo “The battle for Broca’s region”, que iniciaram essa “batalha”. Neste trabalho, os autores fazem uma revisão de estudos com pacientes afásicos e de estudos mais recentes com humanos saudáveis na ressonância magnética funcional relacionando os diferentes tipos de processamento sintático e a ativação das áreas de Brodmann 44 e 45. Os autores acreditam que a análise de dois métodos – afásicos e ressonância magnética funcional – distintos pode trazer mais clareza para a sua definição. Nesta revisão, os autores procuram testar quatro visões acerca do funcionamento da área de Broca. A primeira, percepção de ação (AP), diz que a área de Broca sustenta os mecanismos que associam observação e execução de ações, e que a nossa percepção e produção da linguagem funciona de uma maneira similar à percepção e execução de ações. A segunda visão, memória de trabalho (WM), acredita que a região mantém a memória de trabalho verbal necessária no processamento da linguagem. Ambas as visões têm a linguagem como domínio cognitivo geral. A terceira visão, complexidade sintática (SC), argumenta que a área está envolvida no processamento de inputs complexos, isto é, sentenças complexas exigem um maior envolvimento da área de Broca do que

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sentenças simples. A quarta visão, movimento sintático (SM), é a defendida pelos autores e sustenta que as áreas de Brodmann 44 e 45 são responsáveis pela computação do movimento sintático. Essas duas últimas visões veem a linguagem como um domínio cognitivo específico. Os autores trazem, no artigo, estudos com afásicos e adultos saudáveis que corroboram o funcionamento da área de Broca na computação do movimento sintático. Segundo uma revisão feita por um dos autores, Drai e Grodzinsky (2006), trazida no artigo, pacientes com afasia de Broca têm grande dificuldade em processar sentenças que envolvam movimento sintático de um argumento da frase, uma operação que movimenta um argumento e o retira da sua posição canônica na sentença. Estudos com dois tipos de estruturas sintáticas que têm movimento na sua construção e realizados com afásicos de Broca de várias línguas (alemão, chinês, holandês, inglês, hebraico) são compilados nessa revisão para uma análise também quantitativa acerca da dificuldade no processamento sintático dos pacientes desses estudos. Uma das sentenças utilizadas nos estudos são as sentenças passivas, como a frase “O rapaz foi beijado pela menina”, em que o sujeito [o rapaz] é deslocado da posição de complemento do verbo para a posição de sujeito, de “foi beijado [o rapaz] pela menina” para “[O rapaz]i foi beijado ti pela menina”, em que t representa o vestígio, a lacuna, deixado pelo deslocamento do argumento [o rapaz]. A outra estrutura utilizada nos estudos com os afásicos, que também movimenta elementos na sua construção, são as sentenças relativas de objeto. Na sentença relativa de objeto “O gato [que o cachorro perseguiu] era grande”, por exemplo, o argumento [o gato] é tanto sujeito da oração principal quanto objeto da oração relativa encaixada, dessa maneira o constituinte [o gato] tem de se deslocar da posição de objeto da oração encaixada para a posição de sujeito da oração principal: de O gato [que o cachorro perseguiu [o gato]] era grande, temos, após o movimento, O gatoi [que o cachorro perseguiu ti] era grande, em que t é o vestígio (do inglês, trace) deixada pelo constituinte [o gato]. Segundo Grodzinsky e Santi (2008), nos estudos contabilizados nessa revisão teórica, os afásicos falantes de inglês e hebraico compreendem sentenças relativas de sujeito, mas falham na compreensão de sentenças relativas de objeto. Já os afásicos chineses têm um padrão de compreensão exatamente inverso, isto é, compreendem relativas de objeto e não compreendem relativas de sujeito. Isso é evidência, segundo os autores, para a sua visão que diz que a área de Broca está envolvida no movimento sintático, pois o chinês e o inglês (assim como o hebraico) têm

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a sua estrutura das relativas espelhadas. Em inglês, o termo antecedente vem antes da relativa, como no exemplo acima em português, em que o termo antecedente “o gato” está antes da relativa iniciado pelo pronome relativo que, que está entre colchetes. Em chinês, a posição canônica do termo antecedente é depois da oração relativa, desta maneira, na relativa de objeto em chinês não temos movimento, somente na relativa de sujeito 2, padrão ao contrário do inglês, que, como vimos, funciona conforme o exemplo dado em português acima. O mesmo ocorre com diferenças acerca da formação das passivas em alemão e holandês se comparada à formação das passivas em língua inglesa. Os pacientes afásicos alemães e holandeses compreendem bem sentenças passivas, ao passo que os afásicos falantes do inglês não. Isso pode ser explicado pelas diferenças no tipo de movimento para a formação da sentença passiva. Em holandês e alemão, o verbo principal fica no final da frase e o movimento feito pelo constituinte, que representa o paciente da ação, para ir para a posição de sujeito, não passa pelo verbo. Por exemplo, na sentença passiva do alemão “Der Vater wird vom Sohn geküsst”, o paciente [der vater] se movimenta, mas não cruza pelo verbo geküsst: “wird vom Sohn [der vater] geküsst” ---> “[Der vater]i wird vom Sohn ti geküsst”. Assim, os autores concluem que são as diferenças cross-linguísticas no movimento necessário para a construção das sentenças que geram diferença na compreensão dessas sentenças pelos afásicos. Esses dados seriam uma evidência para a visão de Grodzinsky e Santi (2008) de que a área de Broca está relacionada com o processamento de movimentos sintáticos exigidos para a compreensão de sentenças. Grodzinsky e Santi (2008), além de estudos com afásicos, trazem dados de estudos com fMRI para corroborar a sua visão. Os autores relatam, entre outros estudos com adultos saudáveis, um estudo de Santi e Grodzinsky (2007) com ressonância magnética funcional que também corrobora a função específica para o movimento sintático das áreas de Brodmann 44 e 45. No estudo de Santi e Grodzisnky (2007), os autores buscaram testar as quatro visões sobre as possíveis 2 Um exemplo de relativa de objeto em chinês seria: [gou zhue] de mau hen xiao Dog chased that cat very big (The cat that the dog chased was very big.) Assim, o objeto cat está depois da oração relativa e não precisa ser movimentado, pois já está na sua posição final. Como ocorre com a relativa de sujeito em inglês, em que não temos que mover o sujeito, como em: “The cat [that chased the dog] was very big”.

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funções da área de Broca: a percepção de ação, a memória de trabalho verbal, a complexidade sintática e o movimento sintático. Segundo os autores, é difícil que uma teoria unificada da linguagem com os córtices motores consiga dar conta dessas nuances do processamento sintático. No entanto, as teorias de memória de trabalho e complexidade sintática parecem dar conta de explicar os dados vistos com os afásicos: a complexidade sintática postula que movimentos na formação das sentenças dificultam a compreensão das frases pelos afásicos e a memória de trabalho verbal diz que qualquer relação de dependência entre posições não adjacentes na frase requer um link entre elas e, por isso, a memória de trabalho é exigida. Dessa forma, a tarefa do estudo feito pelos autores envolve dois tipos de sentenças, ambas têm relações de dependência, por isso, envolvem memória de trabalho, mas somente uma tem movimento na sua estrutura. São sentenças reflexivas, como “John knows that Maryi pinched herselfi”, em que é preciso ligar o pronome ao seu referente; e sentenças relativas de objeto, “John loves the womani who David pinched ti”. As sentenças reflexivas não têm movimento, mas têm a relação de dependência entre o referente e o pronome, as sentenças relativas de objeto têm relação de dependência entre o constituinte [the woman] e o seu vestígio t e possuem também, como já vimos, movimento na sua formação. Os resultados mostraram um efeito linear positivo na área de Broca para as sentenças relativas, que continham movimento, e nenhum efeito linear positivo para as sentenças reflexivas. Os autores concluem que esse cenário é favorável para uma organização cerebral que se alinha com (pelo menos algum) princípios sintáticos abstratos. Desta maneira, o movimento sintático parece ser uma especialidade da área de Broca. Em uma carta científica destinada a Grodzinsky e Santi, Willemns e Hagoort (2009) reagem a essas conclusões dos autores, que dizem ser prematuras. Willemns e Hagoort (2009) argumentam que, apesar de os autores mencionarem que a área de Broca pode ser multifuncional, eles concluem que o papel principal da região de Broca na compreensão da linguagem é relacionado, especificamente, com o movimento sintático. O fato de os autores oscilarem entre uma visão multifuncional e uma visão específica da função da área de Broca, segundo Willemns e Hagoort (2009), ilustra o problema de suas conclusões, pois é extremamente questionável que a área de Broca obedeça a uma regra de funcionamento do tipo “uma-região-uma-função”. Willemns e Hagoort (2009) citam estudos em que as áreas de Brodmann 44 e 45 estão envolvidas em

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processamento semântico, codificação sintática e, também, no processo de unificação, uma parte do modelo de compreensão da linguagem proposto por Hagoort (2005), o MUC - Memory, unification, control. Segundo Hagoort (2005), a área de Broca é responsável pela parte de unificação de seu modelo de linguagem – MUC. O giro frontal inferior esquerdo, segundo o autor, é responsável pela recuperação de informação lexical, armazenada majoritariamente no lóbulo temporal, e pela unificação de frames individuais em constituintes frasais. No modelo da linguagem de Memória, Unificação e Controle (MUC), o papel de unificação do giro frontal inferior esquerdo seria expandido pela área de Broca e seria responsável pela unificação de partes em nível fonológico e semântico também. Grodzinsky e Santi (2009) respondem a carta de Willemns e Hagoort (2009). Os autores dizem que concordam em dois pontos com Willemns e Hagoort (2009): “(i) que a região de Broca é, provavelmente, parte de um conjunto de redes neurais e (ii) que deveria se pensar em como múltiplas funções são organizadas dentro da região de Broca”. (GRODZINSKY; SANTI, 2009, p. 102). Os autores argumentam que focaram na sintaxe, pois os estudos em sintaxe estão mais avançados e são relativamente mais claros, o que não acontece com os dados empíricos recorrentes de estudos semânticos. Em estudos sobre o processamento semântico, mesmo quando a área de Broca está envolvida, muitas outras áreas também estão. Os autores argumentam que isso se deve, possivelmente, à natureza pré-teórica das noções de “significado” e “semântica” que têm alguns neurolinguistas. Embora Willemns e Hagoort (2009) argumentem por um envolvimento semântico da área de Broca, os estudos citados por eles utilizam estímulos como sentenças falsas e agramaticais em uma mesma tarefa: “Dutch trains are YELLOW/WHITE/SOUR*3”(exemplo de HAGOORT et al., 2004). Segundo Grodzinsky e Santi (2009), nenhuma teoria semântica linguística generaliza acerca dessas distinções. Para finalizar, os autores argumentam que se restringiram a uma única função (sintática), bem definida, porque não queriam cair em uma tentativa de explicar descobertas ao acaso. Evidentemente, tanto a proposta do movimento sintático de Grodzinsky e Santi (2008) quanto o modelo de processamento da linguagem de Hagoort (2005) parecem bastante plausíveis e explicativos. Mais estudos são necessários para entendermos o funcionamento do processamento da 3 O asterisco indica a agramaticalidade da sentença com SOUR: *Dutch trains are sour não é uma sentença gramatical.

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linguagem no cérebro humano. Evoluções tanto da divisão anatômica quanto funcional do cérebro humano são necessárias. Por enquanto, ficamos com as conclusões em que ambos os grupos de autores estão de acordo: (i) a região de Broca é, provavelmente, parte de um conjunto de redes neurais e, com certeza, uma delas é de processamento da linguagem (nos resta ainda definir quais exatamente são as funções linguísticas dessa área, mas entre elas está, provavelmente, a computação do movimento sintático); e (ii) estudos que pensem em como múltiplas funções podem ser organizadas dentro da região de Broca são muito bem-vindas. Referências GRODZINSKY, Y.; SANTI, A. The battle for Broca’s region. TRENDS in Cognitive Sciences, v. 12, n.12, 2008. GRODZINSKY, Y.; SANTI, A. Response to Willemns and Hagoort: an imperfect theory gets you further than random facts. TRENDS in Cognitive Sciences, v.13, n.13, 2009. HAGOORT, P. On Broca, brain, and binding: a new framework. TRENDS in Cognitive Sciences, v. 9, n.9, 2005. SANTI, A.; GRODZINSKY, Y. Working memory and syntax interact in Broca’s area. Neuroimage, v.37, 2007. WILLEMNS, R. M.; HAGOORT, P. Broca’s region: battles are not won by ignoring half of the facts. TRENDS in Cognitive Sciences, v.13, n.13, 2009.

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