PROCESSO CRIATIVO DO LIVRO: Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS PEDRO BALDUINO DE FREITAS AUSQUIA PROCESSO CRIATIVO DO LIVRO: Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas NATAL 2015
2 PEDRO BALDUINO DE FREITAS AUSQUIA PROCESSO CRIATIVO DO LIVRO: Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de Licenciado em Artes Visuais Orientador: Prof. Dr. Vicente Vitoriano Marques Carvalho NATAL 2015
3 PEDRO BALDUINO DE FREITAS AUSQUIA PROCESSO CRIATIVO DO LIVRO: Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas Monografia aprovada em //, para obtenção do título de Licenciado em Artes Visuais. Banca Examinadora: Prof. Dr. Vicente Vitoriano Marques Carvalho (Orientador) Prof. Dr. Rogério Júnior Correia Tavares (Examinador) Prof. Dr. Rubén Figaredo Fernandez (Examinador)
4 DEDICATÓRIA Dedico este esforço primeiramente à minha mãe, Silvana Balduino, detentora de todos os gestos, ações e amor que me mantêm de pé para continuar seguindo. Ao meu irmão, Daniel Balduino, que é o meu principal leitor, melhor amigo e comparsa de planos literários maquiavélicos. A minha tia, Simone Alves, que tanto insistiu em me apoiar. A minha vó, Santina Balduino, por estar sempre ao meu lado pra tudo e me ensinar a importância da família. A Patrícia Gomes por dar o pontapé inicial e me fazer acreditar que daria certo. A Cynara, que esteve do meu lado durante tantos anos e que me fez aprender tanto, sem nunca perder a paciência comigo, mesmo quando era muito necessário.
5 AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu irmão, Daniel Balduino, por ter participado do início de todo este processo e se divertido comigo o tempo inteiro. A toda minha família, em especial à minha mãe, Silvana Balduino, por qualquer tipo de apoio físico, material, espiritual e sentimental que me garantiram. Aos amigos e conhecidos que desejaram tudo de melhor para este projeto. Aos professores, em especial ao grande mestre Vicente Vitoriano pela orientação e por ser fonte de inspiração artística. Agradeço também a grande contribuição proporcionada pelos artistas Neil Gaiman e Dave Mckean, que além de servirem de referência para todo meu fazer artístico, estavam sempre solícitos aos insistentes contatos virtuais que eu tentava estabelecer. Finalmente, agradeço aos futuros leitores do livro Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas, e aos mongos por não terem levado embora este trabalho.
6 Façam boa arte. Eu estou falando sério. O marido fugiu com um político? Faça boa arte. Perna esmagada e depois devorada por uma jibóia mutante? Faça boa arte. Imposto de Renda te rastreando? Faça boa Arte. O gato explodiu? Faça boa arte. Alguém na internet pensa que o que você faz é estúpido ou mau ou já foi feito antes? Faça boa arte. Provavelmente as coisas se resolverão de algum modo, e eventualmente o tempo levará a dor mais aguda, mas isso não importa. Faça apenas o que você faz de melhor. Faça boa arte. Façaa nos dias bons também (GAIMAN, 2013, p. 4243).
7 RESUMO Este trabalho traz a descrição e a análise do processo de criação do livro infantil ilustrado Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas . Relato a experiência de construir um livro ilustrado cujo processo de trabalho envolve uma preocupação com a relação entre texto verbal e ilustração na obra. Analiso o percurso do projeto desde sua gênese objetivando desenvolver um processo criativo que trabalha os elementos visuais presentes nas páginas do livro em correlação de funções, aproveitando para isto concepções de autores como Scott McCloud, que faz uma análise sobre a linguagem da “arte sequencial”, Will Eisner, a quem cabem reflexões acerca do processo de trabalho na construção dos quadrinhos e outros autores que refletem sobre conceitos específicos da literatura ilustrada, textos intermidiáticos e processos criativos. PalavrasChave: Processo Criativo, Crítica Genética, Literatura Ilustrada.
8 Sumário 1. iNTRODUÇÃO
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2. PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES E REFERENCIAL TEÓRICO
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2.1. DIFERENÇAS DE CONCEITOS E FUNÇÕES ENTRE TEXTO E ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO
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2.2. CONTEXTO HISTÓRICO E ESTÉTICO DA RELAÇÃO TEXTO ILUSTRAÇÃO E DA ARTE SEQUENCIAL
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2.3. UM PARALELO ENTRE A RELAÇÃO TEXTOILUSTRAÇÃO E A RELAÇÃO ESCRITORILUSTRADOR
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3. A GÊNESE DE UM LIVRO ILUSTRADO
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3.1. O DESENVOLVIMENTO DO ENREDO
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3.2. O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA IMAGEM COMO UM PROCESSO DE ESCRITA
24
4. . CONCEPÇÃO GERAL
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4.1. CENÁRIOS, PERSONAGENS E A UTILIZAÇÃO DO ARQUIVO MORTO
30
4.2. TÉCNICAS EMPREGADAS
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5. DIFERENTES TIPOS DE TEXTO E UMA PROPOSTA METALINGUISTICA
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6. CONCLUSÃO
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7. BIBLIOGRAFIA
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9 1. INTRODUÇÃO Este é um trabalho teóricoprático, no campo das artes visuais, que teve como objetivo a produção de um livro infantojuvenil ilustrado e a subsequente análise do processo de criação do livro e da relação entre texto verbal e ilustração na obra com a intenção de compreender o comportamento interdependente entre elementos textuais verbais e elementos pictóricos ilustrativos presentes na obra. O livro intitulase Os Mongos Estão Levando As Nossas Coisas e conta a história de um protagonista que se muda para uma casa onde objetos começam a desaparecer. Analisando a relação entre texto verbal e ilustração presentes na obra, buscase responder questões como: quais as diferenças conceituais principais entre imagens pictóricas e texto verbal? Como se comporta, historicamente, esta relação na literatura ilustrada? Existe uma relação de hierarquia entre as funções de escritor e ilustrador que influa nta relação entre texto e imagem dentro da obra literária? O trabalho abordará também questões subjacentes à produção de uma obra de literatura ilustrada como o desenvolvimento do processo de trabalho do autor da obra, conceitos referentes aos meios artísticos utilizados e aplicabilidade didática do livro infantil ilustrado. O trabalho se justifica por apresentar o livro ilustrado como um produto de mais de uma área de conhecimento, e tenta minimizar a relação hierárquica que estabelece o escritor como autor original da obra e o ilustrador como um profissional dispensável enquanto criador. Para isto, o processo de construção do livro busca elaborar um equilíbrio entre os elementos visuais contidos na obra (texto e ilustração). Em entrevista, o escritor Odilon Moraes (2008, p. 3) fala sobre a diferença entre ilustrar um livro com texto de outro autor e ilustrar um livro cujo texto é de sua autoria: “Quando o texto é de outro autor, há certas indicações que me orientam. Há aqueles escritos para serem entendidos apenas como tal, e não como parte de algo que será completado por um desenho. É ótimo quando
10 você descobre, na narrativa, uma abertura para a ilustração. Mas, na maioria das vezes, o autor escreve de forma a resolver o texto somente com o uso das palavras, mesmo quando ele tem sensibilidade para a criação de imagens literárias. Há escritores muito generosos em convidar o leitor para imagens – não sei se voluntariamente ou não –, e suas criações permitem que a ilustração interfira de maneira radical, a ponto de ser possível propor uma narrativa paralela.”
Neste relato, Moraes nos apresenta uma perspectiva sobre a subordinação que a ilustração sofre frente ao papel do texto escrito. A partir disto, em alguns casos em que as funções de escritor e ilustrador são assumidas por diferentes profissionais, o processo de criação do livro ilustrado é compartimentado “numa verdadeira ‘linha de montagem’, onde o escritor concebe inicialmente a narrativa que, em seguida, entrega ao artista para que este possa dar vida ao mundo de suas ideias verbalizadas” (MOURA, 2011, p. 10). Esta linha de montagem apresenta efeitos colaterais na literatura infantojuvenil ilustrada que muitas vezes surgem representados na diagramação do livro através de uma solução estética que separa, espacialmente (na página), o texto da ilustração, às vezes até deixandoos em páginas separadas. Desta forma, o produto final desta pesquisa se propõe a expor soluções para esta cisma entre os elementos principais da obra, o texto verbal e a ilustração, através de um processo de construção que preze pela relação de interdependência entre estes. Assim, este trabalho vem a ser um referencial para pesquisadores que estejam desenvolvendo trabalho sobre literatura ilustrada com ênfase em semiótica, design, comunicação social e arteeducação. Para responder às questões referentes à relação textoimagem e desenvolver a análise do processo de trabalho do livro, essa pesquisa recorrerá às reflexões sobre literatura ilustrada presentes em Camargo (1995) e Rolla (2006), às reflexões sobre semiótica em Peirce (1995), e a reflexões sobre estrutura do gênero das histórias em quadrinhos contidas em Eco (2008), Eisner (2010), McCloud (2005) e Cirne (2005). Uma contextualização histórica da literatura ilustrada também pode ser
11 encontrada em Mccloud (2005). Para análise do processo de criação, os fundamentos da crítica genética abordados por Salles (2008) mostramse pertinentes. Ainda pretendese abordar as definições estéticas de textos intermidiáticos dadas por Clüver (2001). Livros ilustrados de autores como Gaiman (2003, 2006) serão utilizados como referências visuais, assim como anotações, desenhos, fotografias e arquivos pessoais do autor desta pesquisa. Esta pesquisa se classifica como analítica, uma vez que pretende analisar a construção do livro, explicando e interpretando as decisões tomadas durante o processo de trabalho com base no referencial teórico. 2. PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES E REFERENCIAL TEÓRICO 2.1. DIFERENÇAS DE CONCEITOS E FUNÇÕES ENTRE TEXTO E ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO Segundo Peirce (1995, p. 46), um dos pais da semiótica, “um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo representa algo para alguém. Dirigese a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que eu, por vezes, denominei fundamento do representamen. ”
A semiótica de Peirce (1995) subdivide os signos em três principais categorias: o ícone, o índice e o símbolo. O ícone é um signo cujas condições de significação prescindem a existência de seu objeto, podendo propor a interpretação sem que haja conexão dinâmica alguma com o objeto que representa. Já o índice estabelece significação através de um vínculo existencial com seu objeto. Desta forma, é a existência do objeto que determina suas possibilidades de interpretação. O símbolo
12 é um signo que representa através da concretização de uma ideia/conceito. A relação estabelecida entre o símbolo e os conceitos que representa é inteiramente subjetiva e se refere a convenções estabelecidas pelo indivíduo. Podemos compreender a partir disto que o livro ilustrado possui diferentes tipos de signos e que cada elemento visual na obra (texto, ilustração ou espaço vazio) possuem características próprias que devem ser lidas e interpretadas de maneiras diferentes. A leitura da palavra escrita no livro não é feita da mesma forma que a leitura das ilustrações. Ao contrário das ilustrações, que estabelecem relações de significação com o objeto representado, a palavra escrita precisa de “conhecimento especializado para decodificar os símbolos abstratos da linguagem” (MCCLOUD, 2005, p. 49), ou seja, uma série de regras e convenções que devem ser reconhecidas pelo indivíduo para que a leitura e a interpretação sejam efetivadas. Ao texto é atribuída função de expor a mensagem do livro, narrar à história, descrever situações. A leitura da ilustração pode requerer níveis de percepção mais complexos quanto mais for afastada de sua relação de similaridade com o objeto representado. À ilustração, comumente é dada a função de ornar ou elucidar o texto (CAMARGO, 1995). Uma vez que a leitura das ilustrações pode demandar certo nível de complexidade assim como a leitura da palavra escrita, assumese que à ilustração podemse dar funções mais complexas que a mera representação. Como diz Luíz Camargo (1995, p. 1), a ilustração pode, assim, representar, descrever, narrar, simbolizar, expressar, brincar, persuadir, normatizar, pontuar, além de enfatizar sua própria configuração, chamar atenção para o seu suporte ou para a linguagem visual. É importante ressaltar que raramente a imagem desempenha uma única função, mas, da mesma forma como ocorre com a linguagem verbal, as funções organizamse hierarquicamente em relação a uma função dominante.
13 Ainda segundo o autor, a ilustração possui dois comportamentos principais: o denotativo e o conotativo . O primeiro referese ao objeto representado e o segundo a como ele representa. Estes comportamentos são paralelos às funções denotativas e conotativas do texto. Apesar de possuírem diferenças de conceitos e funções, a ilustração e o texto escrito configuram os elementos principais da obra de literatura ilustrada, precisando dialogar entre si para que o livro funcione em sua totalidade. Camargo (1995) utiliza o termo coerência intersemiótica para designar a maneira coesa de se estabelecer o diálogo entre texto e imagem no livro infantil ilustrado. Segundo o autor, o termo trataria da convergência ou nãocontradição entre os significados denotativos e conotativos da ilustração e do texto. 2.2.
CONTEXTO
HISTÓRICO
E
ESTÉTICO
DA
RELAÇÃO
TEXTOILUSTRAÇÃO E DA ARTE SEQUENCIAL A literatura ilustrada já apresentou inúmeras maneiras de associar texto e imagem garantindo uma relação harmoniosa entre estes elementos. As revoluções tecnológicas e os avanços de novas técnicas trazem possibilidades cada vez mais amplas e numerosas de construção visual e plástica destas obras. O livro infantil ilustrado, por possuir ilustração de maneira intrínseca, conta com um desenvolvimento da relação textoimagem mais maduro. Grande parte das histórias infantis ilustradas conta com ilustrações que estabelecem uma disposição sequencial entre uma e outra, estabelecidas pelo desenrolar da narrativa textual (que também é sequencial), cabendo a estas ilustrações e ao texto a definição dada por McCloud (2005, p. 8): “imagens estáticas justapostas em sequência deliberada” . Ao texto também cabe esta definição, pois assumindo as letras como imagens, sua justaposição em sequências deliberadas ocasiona as palavras que por sua vez ocasionam as frases (MCCLOUD, 2005). É importante afirmar que esta justaposição referese à característica do arranjo dos elementos no espaço da página, diferente da animação e outras artes sequenciais que estabelecem uma sequência regrada pelo tempo (MCCLOUD, 2005, p.7). Esta definição é atribuída a uma tentativa de definir com mais
14 especificidade o que Eisner (1985) chamaria antes de Arte Sequencial ou Histórias em Quadrinhos. Alguns escritores e ilustradores que trabalham com literatura infantil ilustrada assumem a linguagem dos quadrinhos em sua obra, uma vez que esta linguagem apresenta uma sobreposição de palavra e imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça suas habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõemse mutuamente. A leitura da revista em quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual. (EISNER, 1985. p. 8).
Ainda segundo Eisner (1985), os quadrinhos assumemse como linguagem por empregarem uma série de imagens e símbolos reconhecíveis que utilizados repetidas vezes estabelecem uma “gramática” da arte sequencial. Por estas razões também pretendese abordar, de forma híbrida e em sua maior parte, elementos da linguagem dos quadrinhos em Os Mongos . Assim, acredito ser pertinente uma contextualização histórica que aborde mais precisamente a evolução da arte sequencial, dos quadrinhos e da relação textoilustração. As imagens justapostas em sequência deliberada de McCloud (2005) referemse aos quadrinhos. No entanto, a arte sequencial é mais antiga que a linguagem das histórias em quadrinhos. Na Antiguidade temos os hieróglifos e pinturas egípcias como os representantes mais primitivos da arte sequencial. A pintura egípcia possuía um sistema de leitura organizado sequencialmente e espacialmente. As cenas eras dispostas em faixas onde a sequência de imagens era lida em ziguezague e de baixo para cima. A ordem de leitura era expressa pela Lei de Frontalidade que estabelecia o sentido da sequência. Existia uma coerência entre as imagens e sua sequência narrava uma história.
15 Na arte précolombiana também é possível observar características da arte sequencial que, semelhante à pintura e aos hieróglifos egípcios, estabelecia uma ordem regrada pela justaposição de ícones e símbolos, sendo possível ler as imagens. Um dos exemplos mais significativos desta manifestação dos povos précolombianos é o manuscrito Garras de tigre descoberto por Cortês em torno de 1519 (MCCLOUD, 2005). Neste manuscrito é possível identificar elementos icônicos e simbólicos misturados espacialmente.
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Figura 1 – Detalhe de “Garra de Tigre”, Manuscrito encontrado pelo famoso explorador espanhol Cortês por volta de 1519. British Museum, Londres. Fonte: GettyImages.
Muito antes de Cortés começar a colecionar manuscritos de povos précolombianos, na França foi confeccionada a Tapeçaria de Bayeux, um imenso tapete bordado, datado do século XI, que representa a conquista Normanda na Inglaterra em 1066.
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Figura 2 – Detalhe da “Tapeçaria de Bayeux”. Musée de laTapisserie de Bayeux, Normandia. Fonte: GettyImages.
Nos dois últimos exemplos podemos ver que os símbolos textuais são inseridos no mesmo espaço destinado aos ícones da ilustração no suporte. Atualmente, dentro da estabelecida linguagem dos quadrinhos, existe um elemento que tem como função a separação espacial do texto: o balão . Este elemento será melhor abordado nos tópicos referentes à análise do processo de criação de Os Mongos, mas é pertinente comentar desde já que um processo de criação que preze por desfragmentar as barreiras conceituais entre texto e imagem no livro ilustrado deve considerar também a desfragmentação das representações simbólicas destas barreiras. A invenção da prensa móvel de Gutenberg é considerada um dos eventos mais importantes da Idade Moderna e ocasionou uma revolução na disseminação das imagens. “A forma de arte que servia aos ricos e poderosos, agora poderia ser desfrutada por todos” (MCCLOUD, 2005, p. 16). Um dos exemplos máximos da popularidade dos meios artísticos literários foi a série de gravuras O Progresso de uma Prostituta de William Hogarth, publicadas em 1732. Apesar de conter poucos quadros e nenhum texto, é importante a alusão desta obra neste trabalho, pois apresenta um exemplo de imagens popularizadas pela viabilidade de um processo de reprodução técnica (tal qual o livro infantil e as histórias em quadrinhos de hoje) e exemplifica a importância narrativa das imagens justapostas em sequência sem o auxílio do texto. A ausência do texto é explorada nos momentos finais da trama de Os Mongos.
18 Apesar da importância da narrativa sequencial da obra de Hogarth, é dado à Rodolphe Topffer o título de pai dos quadrinhos modernos. Suas histórias “empregavam caricaturas e requadros , além de apresentar a primeira combinação interdependente de palavras e figuras na Europa” (MCCLOUD, 2005. p.17. Grifos do autor).
Figura 3 – Detalhe de “Histoire de Monsieur Cryptograme”, desenhos e texto de RodolpheTopffer, 1830. Notase a numeração dos requadros que reforça o caráter sequencial da narrativa. Fonte: Wikipédia.
Muito do que é produzido hoje em relação ao texto ilustrado se compõe como uma mistura de técnicas vista a grande variedade de processos tecnológicos atribuídos à arte. A relação textoimagem se torna cada vez mais difícil de ser diagnosticada, uma vez que a ilustração convive e faz parte do contexto da história da arte. Ela é um objeto de reprodução e está inserida em uma indústria
cultural.
Interrelacionase
com
outras
linguagens. Transita em um espaço multifacetado. Pertence a um período em que diferentes manifestações
19 artísticas interagem e penetram (MOKARZEL, 1998, p.68).
No decorrer do século XX, muito se desenvolveu em termos de histórias em quadrinhos, principalmente se tratando de crítica e pesquisa na área. Um dos maiores pesquisadores do gênero foi Will Eisner, também quadrinista que, em seu livro Quadrinhos e Arte Sequencial (1985), diagnosticou a linguagem dos quadrinhos e desenvolveu sua “gramática”. Outros críticos e pesquisadores como McCloud (2005), Eco (2008) e Cirne (2005) também contribuíram de forma relevante para a análise dos quadrinhos. Muitas das considerações técnicas destes pesquisadores sobre os elementos das histórias em quadrinhos e a relevância das técnicas empregadas atualmente para o processo de criação de Os Mongos serão abordadas nos próximos tópicos. 2.3. UM PARALELO ENTRE A RELAÇÃO TEXTOILUSTRAÇÃO E A RELAÇÃO ESCRITORILUSTRADOR Para se considerar uma relação textoilustração que dialogue de maneira harmoniosa, é necessário considerar que o processo de trabalho do livro ilustrado possui estes dois elementos principais que, por serem distintos, contam com processos de elaboração diferenciados. A palavra escrita é o maior exemplo de abstração da imagem, exprimindo conceitos subjetivos. No livro a palavra escrita se apoia muitas vezes na ilustração para afunilar as possibilidades de interpretação do texto, por isso a ilustração se aproxima do nível de complexidade da leitura textual, podendo assumir várias funções: representativa, descritiva, narrativa, simbólica, expressiva, estética, lúdica, conativa, metalinguística, fática e pontuação (CAMARGO, 1995, p. 1). No entanto, visto que texto e ilustração compõemse como áreas de atuação epistemológica separadas (as letras e as artes, respectivamente), o processo de trabalho por vezes é compartimentado num sistema onde cada profissional, por mais que busque dar o melhor de si em sua própria área de conhecimento, acaba por ignorar a relação entre as duas áreas.
20 O processo de trabalho do livro ilustrado deve ser pensado desde o início, não como a produção de uma obra que contenha texto e ilustração como elementos principais, mas como uma obra onde a relação entre estes elementos efetive a comunicação. Pensando deste modo, o processo de construção das histórias em quadrinhos proposto por Eisner (1985) e McCloud (2005) é o mais satisfatório, pois estes dois pesquisadores assumem os quadrinhos como uma linguagem que possui vocabulário próprio composto pela relação textoimagem. Segundo Eisner (1985), escrever o roteiro do quadrinho é conceber a ideia, criar o diálogo entre os elementos e propor a arquitetura da página. Num processo de criação em que escritor e ilustrador (que Eisner chama de “artista”) sejam profissionais diferentes, o roteiro deve conter instruções para o artista transportar a ideia da mente do escritor para a do ilustrador. Para Eisner (1985, p. 122123), cada componente está subordinado ao todo. O escritor deve se preocupar desde o início com a interpretação da sua história pelo artista, e o artista deve aceitar submeterse à história ou à ideia. A separação entre a criação escrita e o desenho está diretamente envolvida com a estética do veículo, pois a segregação efetiva entre a criação escrita e a arte proliferou na prática dos quadrinhos modernos.
No caso das histórias em quadrinhos, a compartimentação do processo de trabalho em uma equipe com diversos profissionais se dá, primordialmente, pela característica popular desta mídia, que sofre pressões com deadlines partidos do mercado industrial e editorial. As consequências destas linhas de produção são diversas: desde problemas com direitos autorais, até o enfraquecimento do “entrelaçar” entre texto e imagem (EISNER, 1985). No entanto, não é apenas no mercado de quadrinhos que tais processos se compartimentam. O título de autor, dado ao artista responsável pela história escrita em códigos textuais no livro ilustrado, coloca o ilustrador e o seu trabalho na posição de uma “função adicional”, ou um “material extra” daquele livro, que poderia
21 ser ilustrado por outros artistas em diferentes edições (o que muitas vezes acontece), mas permanece íntegro enquanto obra desde que o texto não seja substituído ou modificado. A produção do livro ilustrado que segue uma linha onde a criação escrita é prévia ao desenvolvimento das ilustrações que dialogarão com ele no produto final não é incomum e reforça o ideal de subordinação da ilustração frente ao texto escrito. Ora, se já vimos que ambos os elementos podem ser tão complexos em seus processos de leitura e interpretação (quanto o outro), por que é atribuído ao texto e não à ilustração o valor da autoria? Por que são destinados espaços diferenciados para cada tipo de signo na composição/diagramação da página?
Figura 4 – Fotografia de páginas do livro “Um gato chamado Gatinho” ilustrado por Ângela Lago e escrito por Ferreira Gullar. Um exemplo de livro ilustrado onde o processo de criação e a exposição do texto e da ilustração são feitos separadamente. Fonte: Wikipedia.
22 Em entrevista a Lívia Deorsola, o escritor e ilustrador Odilon Moraes (2008, p. 2) fala sobre o trabalho com literatura ilustrada, aproximando a definição de ilustrador da autoria literária: “A ilustração de livros é como um gênero à parte, porque é uma espécie de escrita, já que possui incrível força narrativa. Neste sentido, me vejo como escritor na medida em que se considera a capacidade da ilustração de criar uma história. Isso coloca o ilustrador inteiramente no universo da literatura.”
A solução proposta por Eisner para a não compartimentação do processo de trabalho da obra é o processo de criação de um único indivíduo que detenha o controle do texto e da ilustração, pois se deve levar em conta que em vista desta interdependência, portanto, não há outra escolha [...] senão reconhecer a primazia da escrita. Ao fazêlo, contudo, devese reconhecer imediatamente que, numa configuração perfeita (ou pura), o escritor e o artista deveriam estar incorporados na mesma pessoa. A escrita (ou o escritor) deve deter o controle até o fim (EISNER, Will. 1985, p. 127).
No entanto, muito teóricos propõem outros métodos que abrangem a possibilidade do trabalho em equipe e, ainda assim, garantem uma preocupação entre estas relações intermidiáticas. O desenvolvimento do roteiro do livro ilustrado Layout Full Script, proposto por Moore (1998), provê ao escritor a possibilidade de trabalhar com o roteiro em formato de rascunhos, já apresentando ao ilustrador a composição da página. O ilustrador por sua vez, detém a autoridade de intervir no rascunho proposto pelo escritor, e assim, cada um vai dando suas considerações antes mesmo de o ilustrador partir para a produção plástica da página final. Este processo colaborativo também pode ser empregado sem a necessidade, por parte
23 do escritor, em compor o rascunho da página se este puder transpor suas ideias através do roteiro convencional (todo em texto escrito). Um caso bem sucedido deste último exemplo é o da maioria dos trabalhos colaborativos entre os artistas Dave Mckean (ilustrador) e Neil Gaiman (escritor), principalmente as obras de literatura infantil. Em obras como O Dia em que troquei meu pai por dois peixinhos dourados (1996) e Os Lobos dentro das paredes (2006), o processo de trabalho de Gaiman é feito através do roteiro convencional, onde, através de uma descrição específica dos elementos contidos na página, expõe ao ilustrador Dave Mckean o conceito que, por sua vez, poderá ser alterado e aprimorado através da ilustração. Sobre sua relação de trabalho com Gaiman, Mckean ressalta que a palavra final do texto é sempre de Gaiman e a palavra final das ilustrações é sempre sua (WAGNER et al. 2007, p. 238). O resultado desta colaboração é a relação harmoniosa entre texto e ilustração onde “as palavras fazem parte das imagens, se complementando, criando uma narrativa visual que explora o uso da ilustração, da colagem e da tipografia para trabalhar os conceitos de intermidialidade” (HERSKOVIC, p. 3, 2011). A construção narrativa de Os Mongos foi feita de forma híbrida, apropriandose das possibilidades de construção do roteiro citadas. Texto e ilustração foram desenvolvidos pelo autor desta pesquisa adotando o método de trabalho individual proposto por Eisner (1985). No entanto, devese levar em conta que parte da narrativa literária também contou com o auxílio de um escritor colaborador, Daniel Balduino de Moura, irmão do autor deste trabalho. 3. A GÊNESE DE UM LIVRO ILUSTRADO 3.1. O DESENVOLVIMENTO DO ENREDO Durante todo o curso de Licenciatura em Artes Visuais cumprimos componentes acadêmicos de conteúdo específico das artes visuais que não apenas desenvolvem as técnicas de produção plástica através da prática e do treino como estimulam a compreensão sobre o fazer artístico. Na disciplina de História e Metodologia do Ensino em Artes Visuais ministrada pelo professor Vicente Vitoriano fomos estimulados através do exercício de um
24 ensaio autobiográfico a buscar as origens dos nossos processos criativos através da escrita de relatos sobre como a arte se apresentou em nossas vidas e como desenvolvemos conhecimento autodidático em arte através de estímulos sociais e experiências. Em meu exercício deixei claro como fui exposto a conteúdo literário infantil desde cedo e como a literatura ilustrada se tornou um objeto de fascínio e, posteriormente, referencial de pesquisa. Desde antes de cursar Licenciatura em Artes Visuais preservo o desejo de escrever e ilustrar um livro infantil e o ensaio autobiográfico proposto aprimorou minha capacidade de compreensão acerca da busca por referências e interpretação das experiências que poderiam se tornar a gênese de uma obra literária. O enredo de Os Mongos surgiu através de uma adaptação de eventos reais que aconteceram em julho de 2011, durante o período de férias da faculdade que passava com a minha família em uma casa nova no Rio de Janeiro. Por estarmos em processo de mudança muitos objetos pessoais e utensílios domésticos se encontravam perdidos em meio à bagunça da mudança. Outro elemento importante para o enredo de Os Mongos foi um barulho misterioso que acontecia sobre o forro de madeira da nova casa. Utilizando minha percepção sobre estes singelos acontecimentos e minha necessidade de me expressar enquanto artista, escrevi uma história em que uma criança acaba de se mudar para uma nova casa com sua família. Nesta casa barulhos estranhos começam a ser percebido apenas pelo protagonista do livro (um garoto chamado Daniel) e estes barulhos surgem associados ao desaparecimento repentino de objetos importantes para cada um dos demais personagens habitantes da casa e membros daquela família: o videogame de Daniel, as tintas de pintura do Irmão Mais Velho e o chocolate para pizzas de chocolate da Mãe . A partir disto, o protagonista inicia uma busca pelos objetos perdidos e por respostas para o mistério apresentado. Muitos dos aprendizados acerca da estrutura dramática e processos de escrita que foram obtidos de forma compartimentada durante a participação em diversos componentes curriculares optativos (Redação Criativa, Produção de Jogos Digitais, TV e Vídeo, Expressão Visual) foram importantes para o desenvolvimento básico do enredo de Os Mongo s. Durante este primeiro momento de descoberta intuitiva do
25 que viria a ser o enredo de Os Mongos contei com o auxílio de um coautor, Daniel Balduino. A partir disso, todo o processo de trabalho que será relatado nesta pesquisa foi desenvolvido por um único autor. 3.2. O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA IMAGEM COMO UM PROCESSO DE ESCRITA A trama de um livro geralmente se inicia com premissas simples: personagens, lugares e problemas em suas dimensões mais primitivas. A partir disto devese partir para um desenvolvimento mais aprofundado destes elementos, sendo recomendado para isto um processo de escrita organizado e sistematizado. Depois de um levantamento dos referenciais teóricos abordados nos primeiros tópicos deste trabalho, e da decisão de construir uma obra com características de quadrinhos, optei por adotar o processo de escrita Layout Full Script ou Full Script Detailled proposto por Moore (1998). Neste processo de escrita o autor deve desenvolver um roteiro escrito de forma inteiramente textual (com opcional auxílio de alguns rascunhos que determinem os elementos da imagem) de modo que um artista que venha a ler este roteiro possa desenvolver um conjunto de imagens a partir dele sem muitas variações da ideia inicial proposta pelo roteirista. É um processo que promove a hierarquia do texto escrito sobre o processo de ilustração. As primeiras páginas de Os Mongos foram construídas desta maneira. No entanto durante este processo de escrita totalmente detalhado utilizando apenas códigos textuais, os seguintes questionamentos foram surgindo: não há a necessidade de desenvolver um roteiro preocupado com o mínimo de variações que possam ocorrer no caso de um artista visual vir a ilustrálo se todo o livro Os Mongos seria construído por um único artista, tornando este processo trabalhoso e obsoleto para o contexto; sobre o Full Script Detailled é observável que mesmo que haja uma preocupação em garantir que o texto do roteirista seja transmitido em formato de ilustrações para a obra final com o mínimo de variações de intenção a partir do texto escrito, isto é quase impossível se enxergarmos o ilustrador como um ser/artista nãopassivo e nãomecânico no processo de construção da imagem e
26 enxergarmos a própria imagem como um conjunto de símbolos que carregam infinitas e subjetivas possibilidades de interpretação; Partindo do ponto de que esta pesquisa visa desconstruir a hierarquia entre autor sobre ilustrador, texto sobre ilustração, este processo de escrita mostrase contraditório aos objetivos pretendidos. O processo de escrita de Os Mongos foi sistematizado da seguinte maneira: utilizando papel e lápis, as páginas do livro foram desenvolvidas em formato de rascunho de desenho, onde cada desenho representava uma página inteira com todos os elementos posicionados, agregando o texto escrito à cena desenhada juntamente com outros elementos da página como desenhos de personagens e cenários. A escolha de palavras e formação de frases, que obedecessem ao enredo que foi proposto de forma primitiva no momento anterior, deveria obedecer também o seu caráter espacial e imagético dentro da folha do rascunho. Dessa maneira “as regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõemse mutuamente” (EISNER, p. 8. 1985) não apenas no produto final, mas também em seu processo de criação.
Figura 5 Rascunho de uma da páginas do livro Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas . Fonte: Pedro Balduino, 2014.
27 No entanto, como vimos anteriormente, o texto inserido em uma obra de literatura ilustrada possui funções diferentes das ilustrações, assim como sua forma enquanto signo remete a diferentes maneiras de leitura. Ou seja, mesmo que construídos em um processo de criação conjunto, na obra final o texto e a ilustração serão lidos e identificados como tipos diferentes de signos. Nos quadrinhos o texto escrito pode se apresentar de diferentes formas e com diferentes funções: onomatopéia, narração, discurso direto entre tantas outras. Símbolos específicos da linguagem dos quadrinhos são muitas vezes utilizados para definir as funções das palavras em um contexto narrativo, como é o caso do “balão” ou “nuvenzinha”. Em sua obra Apocalípticos e Integrados , Umberto Eco (2008) apresenta as bases da escrita crítica sobre quadrinhos ao analisar detalhadamente a página inicial de Steve Canyon1 . Nesta análise, sobre os “balões” e outras maneiras de desenhar a palavra para assim diferenciar suas funções enquanto elemento legível na página, Eco (2008) diz que: “Elemento fundamental dessa semântica é, antes de mais nada, o signo convencional da ‘nuvenzinha’ (que é precisamente a ‘fumacinha’, o ‘ectoplasma’, o ‘ balloon’) , o qual, se traçado segundo algumas convenções, terminando numa lâmina que indica o rosto do falante, significa ́ discurso expresso’; se unido ao falante por uma série de bolinhas, significa ‘discurso pensado’. [...] Outro elemento é o signo gráfico usado em função sonora, com livre ampliação dos recursos onomatopéicos de uma língua”
Podemos dizer assim que, na linguagem dos quadrinhos, os diferentes tipos de balões remetem a diferentes tipos de discursos gramáticos e intenções propostas pelo texto, assim como as diferentes maneiras de desenhar a palavra. No entanto “o balão pode ser um símbolo fundamental, mas nem sempre o é. Haja vista as realizações de Feiffer, Wolinski e Henfil, apena para citar alguns poucos nomes” 1
Conhecida série quadrinística americana de 1947 criada por Milton Cannif.
28 (CIRNE, 2005). Para ilustrar esta colocação proposta por Moacy Cirne (2005) em seu artigo Quadrinhos, Memória e Realidade Textual , segue uma tirinha de Henfil.
Figura 6 Henfil, 1980. Fonte: escoladecriacao.espm.br
Podemos ver que o recurso visual utilizado pelo artista para substituir o balão na tirinha é apenas uma linha que, de maneira simples e precisa, liga o desenho do personagem ao texto em discurso direto referente à sua fala. A importância de recursos visuais que caracterizem o desenho da palavra dentro de sua função na obra quadrinística é fundamental, e sua desconstrução mostrase um exercício de escrita da arte sequencial. Deste modo, a liberdade criativa por buscar e criar recursos próprios para estes fins foi assumida no processo criativo de Os Mongos . Se para as palavras existem elementos específicos da linguagem dos quadrinhos que elucidam suas diferentes funções, assim também é para as cenas retratadas pelas ilustrações. Os diferentes elementos ilustrativos compostos e organizados dentro dos espaços dos requadros da página são chamados enquadramentos (ECO, 1970). Estes enquadramentos ao serem dispostos em sequência são a base da arte sequencial contemporânea e “a relação entre os
29 sucessivos enquadramentos mostra a exigência de uma sintaxe específica, melhor ainda, de uma série de leis de montagem” (ECO, p.147, 1970). No processo de criação de Os Mongos diversos tipos de montagem e justaposição de requadros foram escritas neste momento inicial de desenvolvimento de rascunho das páginas. Para garantir um ritmo de leitura da obra proposto por uma montagem específica de requadros e cenas, diversos recursos próprios da gramática dos enquadramentos foram apropriados. Assim, algumas páginas passaram a ser rascunhadas utilizandose das divisões de requadros em uma mesma página, enquanto outras continham toda a cena ocupando uma única página sem nenhum elemento que dividisse estes requadros, por exemplo.
30 Figura 7 Rascunhos de páginas do livro Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas. Nestes rascunhos podemos ver exemplos de diferentes utilizações de enquadramentos e baloneamentos. Fonte: Pedro Balduino, 2014.
4. CONCEPÇÃO GERAL 4.1. CENÁRIOS, PERSONAGENS E A UTILIZAÇÃO DO ARQUIVO MORTO Um dos primeiros componentes curriculares obrigatórios no Curso de Artes Visuais é o Desenho de Observação I. Nesta disciplina nos são ofertados diferentes conhecimentos do desenho básico de figuras humanas, paisagens, objetos e demais elementos que podem vir a compôr uma cena observável. Muitas técnicas para o aprimoramento do desenho são empregadas neste componente curricular, como a utilização de thumbnails2 para um melhor desenvolvimento da representação das posições de um corpo humano, ou a utilização do ponto de fuga3 como um guia para a construção de um cenário em perspectiva. No momento inicial do processo de criação das imagens das páginas do livro Os Mongos , a elaboração do desenho de rascunhos, muitos destes preceitos básicos de desenho foram adotados uma vez que o caráter mais importante desta primeira fase seria a composição de um rascunho que servisse como guia para um posterior aprimoramento e definição de detalhes estéticos. Estes primeiros rascunhos eram dotados de tamanho primitivismo em seu acabamento que qualquer espectador que não estivesse envolvido no processo de criação do livro desde seu início sequer compreenderia as intenções destes desenhos. No entanto, este primitivismo era rico em informações que me guiaram para as próximas fases de construção da página e estas informações eram visualmente baseadas em preceitos básicos e técnicas do desenho de observação de cenários absorvidos durante a disciplina de Desenho de Observação I, ministrada pela Prof. Verônica Lima. Todos os personagens estavam presentes nos rascunhos das páginas em formas de thumbnails e a maioria dos cenários foram rabiscados de
2
Versões simplificadas de imagens utilizadas para tornar mais fácil o processo de assimilação e reprodução. É uma técnica muito comum no aprendizado do desenho da anatomia humana. 3 Técnica utilizada no desenho de cenas em perspectiva, onde um ponto é a base para as linhas guias que formarão a ilusão proposta.
31 forma simples com apenas algumas linhas guias que propunham perspectivas e pequenos detalhes a serem acrescentados posteriormente. Passado este primeiro momento de criação dos rascunhos, a trama do livro estava desenvolvida e todas as páginas do livro já eram dotadas de um exoesqueleto que deveria agora ser melhor desenvolvido, dotado de forma, detalhes, definição estética. Como citado anteriormente, a maioria dos personagens do livro foram inspirados em pessoas de meu convívio ou em personagens de outras obras de arte que assumo como referências gerais para todo o meu fazer artístico. Neste momento o próximo passo seria dar forma a todos os personagens do livro. Assim, através de diversas pinturas em aquarela e desenhos à lápis, desenvolvi o conceito de todos os personagens, adotando técnicas de criação de personagens para os quadrinhos como a técnica de anatomia expressiva que consiste em uma adaptação para o estilo da ilustração de um inventário que o artista retém a partir da observação do mundo real (EISNER, 1985). Como resultado deste processo de criação das imagens conceituais que viriam a guiar o meu trabalho posteriormente, desenvolvi um banco de dados com inúmeras pinturas e desenhos que apresentavam os personagens do livro em inúmeras situações e com todos os detalhes necessários para sua identificação e reprodução.
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Figura 8 Pintura conceitual do personagem Daniel do livro Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas . Fonte: Pedro Balduino, 2014.
A trama de Os Mongos se baseia em um elemento fundamental: A Casa Amarela, o cenário onde todos os problemas do personagem protagonista começam a acontecer e a locação principal de todo o desenrolar do enredo. Assim como outros elementos da história de Os Mongos , a Casa Amarela do livro também foi baseada em uma casa amarela real, a casa onde parte de minha família morava no Rio de Janeiro, onde surgiram as primeiras ideias do livro. Desta forma, numa tentativa de ambientar a história em um cenário verossímil ao real e adaptar minhas memórias em um contexto ficcional, busquei trazer às ilustrações do livro o máximo de informações e detalhes da casa amarela do Rio de Janeiro.
33 No entanto, diferente do processo de desenvolvimento das imagens conceituais dos personagens, não recorri à representações plásticas feitas por mim para servir de base para as próximas fases de acabamento do livro, e sim à fotografias e vídeos que documentei da casa, com foco nos detalhes que pretendia utilizar na ilustração do livro e que se apresentassem como pertinentes no desenrolar da história, pois “uma boa pesquisa pode fazer a diferença [...] pode valer a pena tirar algumas fotos no lugar [...] Dedique algum tempo para se perder nos ambientes que você desenha e seus leitores igualmente o farão” (MCCLOUD, 2005). Tanto as pinturas em aquarela e os desenhos a lápis, que desenvolvi ao adaptar pessoas reais para o estilo de ilustração proposto para o livro e assim criar o conceito dos personagens, quanto as fotografias e vídeos que documentei para servir de base para a construção das imagens dos cenários, são um conjunto de documentos e objetos que compõem o arquivo morto de um artista, que se trata do arquivo de referência de imagens que um artista coleciona durante o curso de sua carreira. Expressões como banco de imagens também são usadas para tal fim [...] tais arquivos contém fotos, recortes, rascunhos, textos, enfim, toda sorte de objetos que, eventualmente, servirão em determinados trabalhos [...] Desse modo, qualquer artista por mais talentoso que seja às vezes precisa de um material de referência para representar algo com exatidão, seja um desenho ou pintura, é fundamental sempre quando possível recorrer a referências (MOURA, p.14, 2011).
Além dos elementos citados também fazem parte do arquivo morto desta pesquisa livros ilustrados infantis de outros autores, mais especificamente dos livros infantis produtos da parceria entre Neil Gaiman e Dave Mckean. 4.2. TÉCNICAS EMPREGADAS
34 Desde o início de minha carreira de artista busco (por) um processo criativo que me garanta um estilo próprio, uma unidade estética e temática que torne o meu trabalho reconhecível. O Curso de Artes Visuais se mostrou um processo constante de autodescoberta, experimentação de técnicas e exposição à referenciais. Após muita prática, estudo, pesquisa e experiências adquiridas no ambiente acadêmico desenvolvi um conjunto de técnicas de criação de imagens através do qual eu me sinto confortável, sempre apoiado na liberdade proporcionada pela arte contemporânea em seu caráter de flexibilidade das expressões. A impressão de manipulações digitais em pigmento a partir de uma matriz em aquarela é a técnica mais presente em meus trabalhos artísticos atualmente. Este processo se inicia com a concepção de um rascunho a lápis que depois é coberto e definido com pintura em aquarela sobre papel, criando uma matriz que é então fotografada e manipulada digitalmente através de softwares de edição de imagens para depois ser reproduzida em tiragens limitadas em impressoras à base de tinta. Uma das características principais deste conjunto de técnicas é a seu caráter reprodutível, característica fundamental para que eu optasse por este conjunto de procedimentos para criar as imagens das páginas de Os Mongos. Uma questão fundamental a se refletir sobre este processo técnico de criação da imagem remetese diretamente ao famoso ensaio A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica de Walter Benjamin (1994), que questiona a perda da aura da obra de arte conforme esta é reproduzida. Esta aura proposta pelo autor se refere ao aqui e o agora da obra de arte a sua existência única no lugar em que se encontra [...] Poderia caracterizarse a técnica de reprodução dizendo que liberta o objecto reproduzido do domínio da tradição. Ao multiplicar o reproduzido, coloca no lugar de ocorrência única a ocorrência em massa. Na medida em que permite à reprodução ir ao encontro de quem apreende, actualiza o reproduzido em cada uma das situações (BENJAMIN, Walter, p. 4, 1994).
35 Em um contexto histórico em que a pintura se apresentasse como a mais avançada tecnologia de reprodução, uma aquarela seria a etapa final deste processo de criação da imagem. Porém, o estudo de um processo de criação é um estudo do tempo, do tempo da criação (SALLES, 2008) e no contexto atual da História da Arte, na contemporaneidade das revoluções tecnológicas, as técnicas de reprodução são tão numerosas e desenvolvidas que o processo criativo que adotei para produzir o livro Os Mongos assume a pintura em aquarela como uma das etapas iniciais da construção de uma obra definitiva, o papel pintado com aquarela tornase a matriz, assim como a madeira o é para a xilogravura. Não há, portanto, uma obra original a ser apreciada em sua existência única no lugar em que se encontra, e sim, um conjunto de imagens justapostas em sequencia deliberada reproduzidas em grande quantidades de tiragens no formato de livro. Com os rascunhos de todas as página de Os Mongos prontos, todas as artes conceituais dos personagens e o material fotográfico e literário de referência do arquivo morto preparados, o próximo passo foi construir as matrizes em aquarela sobre papel de todas as páginas do livro.
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Figura 10 Comparação entre as diferentes fases de criação do livro Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas. Acima: Páginas 1 e 2 em formato de roteiro (ou rascunho). Abaixo: Matriz em aquarela das Página 1 e 2. Fonte: Pedro Balduino, 2014.
E possível exemplificar através da última imagem que as matrizes em aquarela quando prontas ainda apresentam uma grande quantidade de elementos ausentes e ainda são muito primitivas para serem consideradas compreensíveis enquanto página finalizada. Isso se deve ao fato de que durante o processo seguinte, o de manipulação da fotografia destas matrizes, muitos elementos fotográficos são adicionados e editados, como é possível ver na comparação a seguir:
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Figura 11 Comparação entre as diferentes fases de criação do livro Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas. Acima: Matriz em aquarela das Páginas 1 e 2. Abaixo: Versão final das Páginas 1 e 2. Fonte: Pedro Balduino, 2014.
Alguns detalhes como a imagem da casa saindo de dentro das caixas de papelão e até mesmo os azulejos do chão da casa são adicionados durante o processo de manipulação digital das matrizes. As fotografias utilizadas para complementar a imagem são proveninentes de arquivos de imagem baixados da internet selecionados durante a pesquisa de composição do arquivo morto, além de arquivos de imagens pessoais documentados pelo autor desta pesquisa. Além deste acréscimo de elementos fotográficos, as páginas sofrem outras edições e manipulações como: alteração de brilho, contraste e saturação, recorte, transformação e redimensionamento de alguns elementos, eliminação de outros, desfoque entre outros efeitos próprios do software de edição de imagens utilizado neste processo, o Adobe Photoshop. Todo o conhecimento acerca da utilização desta ferramenta foi adquirido durante a participação no Componente Curricular Desenho em Computador II .
38 Em relação às palavras, alguns textos com função de narração e discurso direto foram selecionados para serem trabalhados posteriormente sendo escritos através da ferramenta texto do software , enquanto outros textos com funções de onomatopéias ou textos que se apresentam como elementos cenográficos do enredo4 foram desenhados diretamente sobre a matriz, utilizando a técnica da aquarela e da nanquim sobre o papel. O processo de selecionar quais elementos da ilustração na página seriam pintados na matriz em aquarela sobre papel e quais seriam adicionados posteriormente através de arquivos de imagem durante o processo de manipulação digital, foi exclusivamente intuitivo e baseado nas experiência anteriores que obtive com a prática desta técnica híbrida sendo, portanto, um processo subjetivo. É possível, no entanto, observar um padrão onde os elementos principais da cena/página (personagens e objetos que interagem com estes e, às vezes, textos onomatopéicos) são pintados, e elementos secundários (cenários, demais detalhes relacionados a estes, textos de narração e discursos diretos) são adicionados posteriormente durante a manipulação no software . Todo este processo de trabalho, que abre margem para a utilização sistemática de técnicas artísticas tanto quanto para um processo intuitivo e subjetivo de decisões conceituais, mostrase bem sucedido através da escrita da imagem baseada em um único autor sugerida por Eisner (1985), dado o fato de que a liberdade em tomar decisões para um melhor resultado final não sofre hierarquias autorais ou contradições entre os autores. 5. DIFERENTES TIPOS DE TEXTO E UMA PROPOSTA METALINGUISTICA Durante todo a construção do livro Os Mongos diversas técnicas, métodos e propostas foram abordadas para que a relação entre texto verbal e imagem pictórica encontrasse um equilíbrio de valores entre si dentro do contexto da obra literária. Mesmo buscando um equilíbrio de valores entre texto verbal e ilustração dentro do livro ilustrado, neste momento é necessário relembrar que estes são tipos 4
No tópico seguinte, onde serão abordados os conceitos de texto intermidiático, será explicada a eventual utilização do texto verbal enquanto elemento cenográfico do enredo.
39 distintos de signos e que, portanto, apresentam métodos distintos de leitura, onde a ilustração estabelece uma comunicação mais direta que o código verbal escrito (ROLLA, 2006). Vimos que o texto verbal pode assumir diferentes funções e que, na linguagem das histórias em quadrinhos, estas funções podem ser representadas por inúmeras técnicas de composição visual e elementos semânticos, como os balões por exemplo. Além dessas, existem diferentes maneiras de diagnosticar o texto verbal dentro do contexto da literatura ilustrada. Segundo Claus Clüver (2001), nos livros ilustrados encontramse presentes três tipos de texto verbal: o texto multimídia, o misto e o intermidiático. O texto multimídia é caracterizado por “combinações de textos separáveis e separadamente coerentes compostos em mídias diferentes” (CLÜVER, 2001, p. 341). O texto misto ou mixed media “contém signos complexos em mídias diferentes que não alcançariam coerência ou autosuficiências fora daquele contexto” (CLÜVER, 2001, p. 8). O texto intermidiático “recorre a dois ou mais sistema de signos e/ou mídia de uma forma tal que os aspectos visuais [...] se tornem inseparáveis” (CLÜVER, 2001, p. 8). Livros ilustrados onde o texto verbal pode ser separado da ilustração e ainda assim podem ser compreendidos e apreciados enquanto obra, são livros multimídia, ou seja, compostos por mais de uma mídia (texto e ilustração) independentes uma da outra. Os outros tipos de textos verbais presentes na literatura ilustrada propostos por Clüver (misto e intermidiáticos) são os que mais se afastam do conceito de texto multimídia e, portanto, mais se aproximam dos objetivos alcançados em Os Mongos .
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Figura 12 Página 6 do livro Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas. Fonte: Pedro Balduino,
2014.
Na imagem anterior é possível ver um exemplo de como o enredo de Os Mongos é dependente tanto das palavras quanto das ilustrações para apresentar todas as informações necessárias ao desenrolar da história. O texto verbal que poderia completar a lacuna na frase foi substituído pelo símbolo da seta que guia a atenção do leitor até as figuras, garantindo uma relação de complementação e, desta forma, a coerência necessária para a compreensão da história não fica dependente apenas a uma das mídias do livro, tornando o livro incompleto se estes elementos forem separados.
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Figura 13 Página 4 do livro Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas. Fonte: Pedro Balduino,
2014.
Na imagem anterior, o conceito de texto intermidiático de Clüver é aplicado. Ao atribuir ao texto verbal presente na página (onde lêse temível, terrível, ruível ruído, sucessivamente) características de objeto cenográfico como a sombra projetada na parede e a interação que estabelece com o personagem presente (que olha diretamente para o texto apresentado como uma figura que flutua no ambiente em direção teto), este texto passa a possuir também aspectos visuais de ilustração, assume funções híbridas dentro da página e propõe uma leitura ainda mais complexa. Posteriormente, na trama de Os Mongos , Daniel descobre que os mongos são criaturas esquisitas difíceis de serem descritas e que possuem prazer em levar as coisas das pessoas, principalmente se estas coisas forem novidades para eles. A partir disto, o personagem principal se depara com o maior de todos os problemas até agora: os Mongos se cansaram de levar os objetos pessoais dos demais personagens e voltaram sua atenção para as coisas mais importantes de toda a
42 história: as palavras e as ilustrações. As letras do livro começam a desaparecer, assim como o acabamento dos cenários, as cores, linhas e traços de toda a ilustração. E sumindo as letras, Daniel passa a não compreender mais a interlocução com outros personagens, nem sabe mais identificar em que cômodo da casa se encontra ou que conjuntos de linhas disformes já foi um dia algum objeto importante para a resolução de seu mistério. Ele tem agora apenas algumas páginas sobrando para resolver este problema e reaver as letras e os cenários, antes que todo o livro se torne um monte de simples páginas brancas, sem informações relevantes a serem lidas.
Figura 14 Página 27 do livro Os Mongos Estão Levando As Nossas Coisas . Fonte: Pedro Balduino, 2014.
Partindose do pressuposto de que a relação entre texto verbal e ilustração foi uma das principais forças motoras que impulsionaram esta pesquisa e a criação do livro Os Mongos , a ideia de sumir com estes elementos nas páginas do livro e tornar
43 este fato um dos principais fatores relevantes da história, é uma proposta metalinguística para fechar todo este processo de criação e pesquisa. Um vez que o livro infantil ilustrado configurase como importante ferramenta para a prática da arteeducação (ROLLA, 2006) esta metalinguagem também é uma proposta lúdica, já que não se pode esquecer que o livro Os Mongos é direcionado para o público infantil, que pensa e lê os textos e as ilustrações de maneiras diferentes do público adulto. Como dito por Walter Benjamin em seu artigo Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, “de repente as palavras vestem seus disfarces e num piscar de olhos estão envolvidas em batalhas, cenas de amor e pancadarias. Assim, as crianças escrevem, mas assim também elas lêem seus textos” (BENJAMIN, p.70, 2002). O arteeducador deve compreender que as primeiras impressões de mundo estabelecida pela criança ocorrem através da relação estabelecida com as imagens e que “ao transformar essas imagens em expressão, pela linguagem verbal, entra na composição literária o elemento prazeroso. Esse componente gerador de prazer advém sobretudo da natureza lúdica da linguagem” (AMARILHA, p.27, 1997). Também é importante frisar que segundo Piaget, um dos principais teóricos do desenvolvimento cognitivo (na infância), este desenvolvimento acontece através do lúdico, a criança precisa brincar para crescer e para se equilibrar com o mundo (PIAGET, 1989). Estas são algumas das bases teóricas em que o arteeducador pode se basear para utilizar o livro infantil ilustrado como importante ferramenta de sua prática, e utilizar o livro Os Mongos Estão Levando as Nossa Coisas em sala de aula. Para não deixar pontas soltas: no fim da história, Daniel consegue reaver o seu videogame, as tintas do Irmão Mais Velho, os chocolates da sua Mãe, as ilustrações e as palavras que sumiram. 6. CONCLUSÃO Ao final desta escrita, constato que minha intenção com a análise do processo criativo do livro Os Mongos Estão Levando as Nossas Coisas foi a de elucidar, com o máximo de clareza, um método de criação do livro preocupado, do começo ao fim, com os elementos principais da literatura ilustrada presentes na obra: o texto verbal
44 e a ilustração, como estes elementos se comportam mutuamente e a importância dessa relação na escrita e na leitura do livro. A contextualização histórica e conceitual das artes sequenciais se mostrou pertinente ao demonstrar que as artes sequenciais são um meio de expressão antigo e que muitos dos preceitos utilizados hoje nos quadrinhos e demais livros de literatura ilustrada são assumidos em suas produções. Acredito que os procedimentos técnicos adotados desde os momentos iniciais de desenvolvimento do enredo, até a fase de acabamento das páginas foram condizentes com os objetivos pretendidos por esta pesquisa. Espero que a leitura desta pesquisa se mostre útil para profissionais que pretendam trabalhar nas diferentes áreas relacionadas às artes e à comunicação visual, bem como a leitura do produto final deste trabalho, o livro Os Mongos Estão Levando as Nossa Coisas , se mostre bem sucedida e que esta obra literária possa servir de ferramenta didática para os profissionais da arteeducação. É importante deixar claro que mesmo que Eisner (1985) tenha sugerido o método de trabalho de um único autor, e que esta pesquisa tenha assumido este método como forma pertinente para concretizar os objetivos de respeitar a relação entre texto e ilustração na obra e minimizar as hierarquias de trabalho nas linhas de produção do mercado editorial, o que vale a pena ser deixado como legado deste trabalho é uma reflexão acerca destas problemáticas apresentadas e não uma imposição de procedimentos ideais. Mesmo que um livro seja escrito por um escritor e um ilustrador ou até mesmo uma equipe de trabalho composta por uma grande quantidade de profissionais, no contexto da arte contemporânea sempre existirá a liberdade e flexibilidade para estabelecer métodos de trabalho cada vez mais inovadores e conscientes e isso deve ser encorajado. E para alcançar esta consciência sobre o fazer artístico, a pesquisa em arte deve ser estimulada e cada vez mais produzida. Este é um dos principais aprendizados que carrego junto com a formação no curso de Licenciatura em Artes Visuais.
45 7. BIBLIOGRAFIA AMARILHA, Marly. Estão Mortas as Fadas? Literatura Infantil e Prática Pedagógica. Rio de Janeiro: Petrópolis: Editora Vozes, 1997 BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Tradução de Ricardo Rosenbusch. São Paulo: Editora 34; Duas Cidades, 2002. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994. CAMARGO, Luíz. Ilustração do livro infantil . Belo Horizonte: Editora Lê, 1995. CIRNE, Moacy. A escrita dos quadrinhos. Natal: Sebo Vermelho, 2005. CLÜVER, Claus. Estudos Interartes: introdução crítica. Tradução de Yung Jung Im e Claus Cluver . In: BUESCU, Helena et al. (Coord.). Floresta encantada: novos caminhos da literatura comparada. Lisboa: Dom Quixote, 2001. ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2008. EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1985. GAIMAN, Neil. Erros fantásticos: O discurso “faça boa arte” de Neil Gaiman. Tradução de Julio Moreira. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013. GAIMAN, Neil. O Dia em que troquei meu pai por dois peixinhos dourados. Tradução de Viviane Diniz. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. GAIMAN, Neil. Os Lobos Dentro das Paredes. Tradução de John Lee. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. HERSKOVIC, C. Textos intermidiáticos na literatura infantojuvenil de Neil Gaiman e Dave Mckean. In: XII Congresso Internacional ABRALIC, 211, Curitiba; XII Congresso Internacional ABRALIC Centro, centros: petica e estética. Curitiba: ABRALIC, 2011. MCCLOUD , Scott. Desvendando os quadrinhos . Tradução de Hélcio de Carvalho e Marisa do Nascimento Paro. São Paulo: M. Books, 2005. MOKARZEL, Marisa. Artes Visuais e suas interfaces. 2. ed. Belém: Unama, 2008. MOORE, Allan. Como escrever estórias em quadrinhos. Comics Jornal, Rio de Janeiro. vol. 119, p. 9195, Janeiro de 1988.
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