PROCESSO CRIATIVO, IDENTIDADE E CULTURA PRODUÇÃO CERÂMICA NO VALE DO JEQUITINHONHA.doc

May 28, 2017 | Autor: Camila Lima | Categoria: Cultural Studies, Identidade cultural, Processos Criativos, Ceramica
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PROCESSO CRIATIVO, IDENTIDADE E CULTURA: PRODUÇÃO CERÂMICA NO VALE DO
JEQUITINHONHA


Camila da Costa Lima
Universidade Estadual Paulista / Instituto de Artes / Fapesp -
[email protected]


RESUMO
Este artigo promove uma reflexão sobre os elementos relacionados com a
produção cerâmica do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, enfatizando como
tradições, técnicas e matérias-primas permeiam o processo criativo e
resultam em obras com qualidades particulares: formas, cores e temáticas
que associados ao estilo específico de cada artista/ceramista, colaboram
para construção da identidade local. Dentro deste contexto serão
apresentados casos que afirmam como além da riqueza estética, estas
cerâmicas muito representam sobre sua cultura de origem.

PALAVRAS-CHAVE
Produção Cerâmica. Processo Criativo. Cultura. Tradições.

RESUMEN
En este artículo se promueve una reflexión sobre los aspectos de la
producción de la cerámica del Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, con
énfasis en las tradiciones, técnicas y materias primas que permean el
proceso creativo y el resultado en trabajos con particulares cualidades:
formas, colores y temas que asocian con el estilo específico de cada
artista / ceramista, colaboran para la construcción de la identidad local.
Dentro de este contexto se presentarán casos alegando que además de la
riqueza estética, estas cerámicas representan su cultura de origen.
PALABRAS CLAVE
Producción de cerámica. Proceso creativo. Cultura. Tradiciones.

1. Produção cerâmica do Vale do Jequitinhonha: elementos formadores da
identidade local

A produção cerâmica do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, é uma
tradição que se estende por gerações. Este fato se justifica pela própria
história do território, rico em matéria-prima de qualidade, além da
realidade social e econômica dos habitantes.

Nas localidades com intensa produção: Campo Alegre, Coqueiro Campo,
Santana do Araçuaí e Acaraí, a cerâmica é feita quase exclusivamente por
mulheres, muitas delas não tiveram acesso ao estudo e tão pouco saíram da
região desde o nascimento. Em vários casos, o primeiro contato com o barro
ocorreu ainda na infância, aprendendo técnicas e processos de modo
informal, com suas mães e avós. Como resultado são elaboradas peças que se
originam da habilidade destas ceramistas em unir a realidade em que vivem
às tradições locais, tornando estes componentes de inspiração para suas
criações. Neste cenário, o tradicional dialoga com o atual: experiências de
vida e o olhar para os fatos cotidianos do entorno se somam para a
elaboração de cerâmicas que ao mesmo tempo em que preservam a cultura local
também se inovam, diante do estilo de cada ceramista.

Nos últimos anos, por suas características, as cerâmicas do Vale do
Jequitinhonha tiveram seu valor reconhecido, passando inclusive a compor
exposições, acervos de instituições e coleções, mas acima de tudo, as
ceramistas passaram a adquirir orgulho de seu trabalho e melhores condições
de vida. Salienta-se que cada peça está intimamente relacionada com sua
cultura de origem e sua valorização contribui para o desenvolvimento da
técnica e preservação das tradições locais.

Quando se trata de cerâmica, há a interação de uma sequência de
processos que abrangem a seleção de matéria-prima, modelagem, acabamento,
secagem e queima. São etapas variadas que se envolvem e se complementam
para a obtenção de um resultado final – o objeto cerâmico. Neste processo,
cada elemento possui sua importância no contexto da criação, bem como, para
análise do objeto, seja aquele aplicado durante a sua produção ou adquirido
nas relações e usos. Há a importância em reconhecer o objeto cerâmico como
uma fonte de informação, elaborado em um momento único, através de práticas
que muitas vezes se perpetuam com o tempo e possibilitam a geração de
conhecimentos que contribuem para a construção da identidade local.

A tradição de se fazer cerâmica no Vale do Jequitinhonha é antiga.
São variados os fatores que exercem influência sobre esta prática, mas pode
ser citado como um elemento de peso, a riqueza de argila de boa qualidade e
em abundância na região:

Na arte popular, a maior parte dos artistas surge em
comunidades que, por razões geográficas, econômicas ou
sociais, permitiram a um grande número de pessoas dominar
uma técnica específica, como a cerâmica, nas regiões
oleiras, ou o entalhe de madeira nos locais onde esta
constitui matéria-prima abundante, só para citar alguns
exemplos. (MASCELANI, 2009, p. 19) 




Há locais em que são realizados tipos específicos, com
características semelhantes às produzidas por gerações passadas – peças
ricamente trabalhadas que se tornaram "símbolos" da produção local,
sobretudo, galinhas, bois, noivas e bonecas. A exploração destas figuras
pode ser relacionada com elementos do dia a dia das ceramistas, mas também
de seu imaginário, sonhos e desejos. Nota-se seja na representação da noiva
com vestido decorado, jóias, cabelos penteados, acompanhada do noivo, na
mãe amamentando seu filho ou simplesmente nas galinhas que ornamentam
potes, muito da realidade local e das vivências pessoais.

As cerâmicas, por vezes, retratam quem as fez, mesmo quando se parte
de um tema comum – o estilo característico de cada ceramista colabora para
que haja diferenciação entre as produções. Cita-se como um exemplo as obras
de Noemisa Batista dos Santos que retratam cenas do cotidiano em um estilo
totalmente particular: figuras delicadas, decoradas por flores pintadas ou
em relevo nas cores vermelho e branco. Noemisa, em entrevista no ano de
1974 a Lélia Gontijo Soares discorreu sobre seu trabalho, apresentando
processos e representações presentes em suas produções:

Depois de boizinho e cavalinho, passei para os cavalos
montados, depois fiz noivado, caçador de onça, já fui
ideando umas coisas minhas e fazendo. Eles encomendava,
eu mudava, fazia já de outra qualidade. Hoje eu faço uns
quarenta bonecos. Tem um doutor fazendo consulta com um
menino, roda de fiar, roda de girar mandioca, galinha,
galo, vaca, bezerrinho, um moço andando na frente dos
soldado com o braço amarrado pra trás, cadeia, igreja,
oratório, batizado, abelha tirando mel, folião, cantador,
uma porção. (SOARES, 1984, p.51)




Para Noemisa Batista o fazer cerâmica ocorria de modo natural,
elaborou assim um vasto repertório de personagens. A maioria de suas obras
são verdadeiros cenários: figuras organizadas sobre superfícies, criando
cenas de casamento, batizado, profissões, caça (Figs. 01 a 03).



Figura 01: Noemisa Batista, Casamento, Caraí, déc. 1990.

(Acervo Coleção Lalada Dalglish – Foto: Camila da Costa Lima)






Figura 02: Noemisa Batista, Mulher fazendo pão, Caraí, déc. 1990.

(Acervo Coleção Lalada Dalglish – Foto: Camila da Costa Lima)






Figura 03: Noemisa Batista, Tatu, Caraí, déc. 1990.

(Acervo Coleção Lalada Dalglish – Foto: Camila da Costa Lima)




Salienta-se que comumente no Vale do Jequitinhonha, a produção da
cerâmica dialoga com outras atividades domésticas – modela-se uma peça,
cuida-se dos filhos, realiza-se uma queima e prepara-se o almoço da família
– há uma interação entre as atividades, destacando a naturalidade do fazer
e o modo como a cerâmica está presente no cotidiano. Daí também ser comum
temáticas e processos percorrerem gerações de uma família, auxiliando na
preservação de tradições, trabalho e renda.




2. Tradição e criação na produção cerâmica: processo criativo, identidade e
cultura

A tradição construída no Vale do Jequitinhonha em torno da produção
cerâmica modificou a vida dos ceramistas, de suas famílias e da arte
popular brasileira. Estas cerâmicas possuem a elas agregados elementos,
sociais, culturais, históricos e, diante de seu estudo e valorização têm
ajudado a manter vivos aspectos relacionados com as tradições locais.
Segundo Magaly Cabral[1]: "... todo e qualquer objeto não é somente
matéria, com propriedades físico-químicas. Ele foi produzido a partir de
práticas sociais, ele tem significações diversas". Significações estas que
foram projetadas no objeto durante o seu fazer e a estas serão somados
novos aspectos ao longo de sua existência, tornando este objeto único, um
elemento impregnado de informações.

Ressalta-se que cada aspecto envolvido na construção de uma peça
possui um significado relacionado tanto com o ceramista que a originou como
com a localidade de origem. Nesta concepção, formas, cores e decorações não
são apenas elementos que compõem uma peça, simplesmente contribuindo para
sua apresentação estética, mas sim atributos que representam cultura,
remetem a uma história e contexto mais amplo, como exemplifica Carlos
Rodrigues Brandão sobre os significados presentes na decoração aplicada em
um pote de barro:

Potes servem para guardar água, mas flores no pote servem
para guardar símbolos. Servem para guardar a memória de
quem fez, de quem bebe a água e de quem, vendo as flores,
lembra de onde veio. E quem foi. Por isso há potes com
flores. (BRANDÃO, 1982, p. 107)




Neste sentido, os elementos estéticos de uma obra não apenas a
decoram, mas possuem significado de símbolos culturais e a ela agregam
valor, contribuindo na formação de aspectos que se somam e se constituem
como caracterizadores de um local.

Quando falamos em valor agregado, estamos nos referindo
diretamente a questões de identidade cultural. Usada num
sentido mais imediato, identidade é aquilo que
identifica, é o que nos dá a origem, nos dá a procedência
de determinado objeto, seu pertencimento a um grupo, a um
território de cultura. (LIMA, 2010, p. 31)




Para uma ceramista, dificilmente um pote estará completo se não
tiver as tradicionais pinturas de motivos florais realizados com
engobes[2]. No Vale do Jequitinhonha, peças distintas: jarros, pratos,
moringas, esculturas zoomorfas e antropomorfas possuem pinturas de flores
(Figs. 04 a 06).



Figura 04: Áurea Gomes Barbosa, Moringas, Campo Alegre, 2011.

Foto: Camila da Costa Lima



Figura 05: Sergina, Ciranda de bois, Campo Alegre, 2011.

Foto: Camila da Costa Lima



Figura 06: Sergina, Galinha com base trípode, Campo Alegre, 2011.

Foto: Camila da Costa Lima




A ceramista ao realizar a sua flor no pote deixa a sua marca ao
mesmo tempo em que reafirma uma tradição local. Cria-se uma relação entre o
pessoal e o cultural – cada flor pintada ou modelada é única, mas o
elemento flor, neste contexto, é uma questão de identidade.

O objeto cerâmico pode ser entendido como elemento identificador de
uma cultura, portador de significados que colaboram para a formação da
identidade local, sendo que, componentes são inseridos às obras, ao mesmo
tempo em que tais obras produzidas estão diretamente relacionadas com sua
região de origem. Os desenhos e decorações, em muitos casos, se constituem
como marcas culturais e cabe ao artista/ceramista aplicar elementos que
represente a sua cultura e a si mesmo.




REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Folclore. São Paulo, Brasiliense, 1982.

CABRAL, Magaly. Museus e patrimônio universal. Revista Museu, Rio de
Janeiro, 18 Maio 2007. Disponível em < http: //
www.revistamuseu.com.br/18demaio/artigos > Acesso em: 12 fev. 2012.

LIMA, Ricardo Gomes. Objetos: percursos e escritas culturais. São Paulo:
Centro de Estudos de Cultura Popular; Fundação Cultural Cassiano Ricardo,
2010.

MASCELANI, Angela. O mundo da arte popular brasileira. Rio de
Janeiro: Mauad, 2009.

SOARES, Lélia Gontijo. Bonecos e vasilhas de barro do Vale do
Jequitinhonha, Minas Gerais – Brasil. Rio de Janeiro: Ministério das
relações exteriores, MEC, FUNARTE, 1984.



Camila da Costa Lima
Doutoranda e Mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP,
desenvolve pesquisa sob vigência de bolsa pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp. Pesquisadora sobre técnicas e
processos cerâmicos, cultura popular e documentação museólogica, membro do
Grupo de Pesquisa Panorama da cerâmica latino-americana: do tradicional ao
contemporâneo.





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[1] Menção de Magaly Cabral na palestra Museus e patrimônio universal
durante Conferência Geral do ICOM (International Council of Museums) em
Viena, no ano de 2007.


[2] Engobes são tintas elaboradas a partir da mistura de barro com água.
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