Processo sem verdade

June 13, 2017 | Autor: P. S. Matta | Categoria: Law, Criminal Law, Procedural Law, Filosophy Law
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Escola de Direito da Universidade do Minho – Instituto de Direito Judiciário Seminário “Prova Difícil” Paulo Saragoça da Matta – “Processo Sem Verdade”

PROCESSO SEM VERDADE

1. A verdade como condição de existência 1.1. A determinação das chamadas “circunstâncias de facto” é uma necessidade de toda e qualquer actividade humana. Mais: a determinação das circunstâncias de facto em que todo e qualquer ser humano vive é condição necessária à sua própria existência. Daqui decorre que iremos utilizar a expressão “determinação das circunstâncias de facto” no sentido de conhecer o real, determinar o que é a realidade, determinar aquilo "que é" (por oposição à determinação daquilo que “deve ser”, processo esse já do campo do ajuizamento, da racionalização, da valoração).

Ou seja, determinar “o que é” é uma condição intransponível para que possa viver-se: seja um primitivo hominídeo numa savana africana, seja o homo sapiens no exercício da actividade

agrícola,

piscatória

ou

de

recolecção,

seja

esse

mesmo

Homem

no

desenvolvimento de todas as artes, ciências, técnicas e conhecimentos que hoje compõem o universo da actividade humana. Todos têm de determinar as circunstâncias fácticas em que se movem. E têm de o fazer para poder decidir como "(re)-agir" perante essas mesmas circunstâncias de facto que o rodeiam. Ou seja: para viver. Nenhum ser humano, dada a sua dimensão intelectual e emocional, consegue determinar-se num ou noutro sentido sem primeiramente conhecer o terreno que pisa. Sejam circunstâncias de facto objectivas relativas ao mundo inanimado, relativas aos demais seres vivos com que se cruza, relativas aos demais humanos com que por definição tem de interagir. O Homem, portanto, vive permanentemente a determinar circunstâncias fácticas do mundo que o rodeia, fazendo-o com base nas capacidades de percepção sensorial com que está dotado e fazendo apelo ao acervo de conhecimentos que as actuações, reacções e interacções anteriores lhe proporcionaram. Num permanente processo

gnóstico de percepção e

elaboração racional. Toda a experiência humana, portanto, é um processo de confrontação permanente com o real e de opção entre uma infinidade de acções possíveis perante essa mesma realidade. O que o Homem busca, incessantemente, é pois conhecer o real, conhecer aquilo a que aqui se chama "aquilo que é".

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Claro que, uma vez que todo esse processo de gnose é filtrado pelos sentidos com que está dotado e os pre-conceitos que resultaram da experiência anterior pelo indivíduo vivida, a realidade pode assumir matizes diversos consoante o sujeito da gnose e da, consequente, acção a que o mesmo se determina. Tudo isto para firmar uma primeira conclusão: o Homem não conseguiria viver numa permanente

ignorância

do

real.

O

Homem

não

poderia

sobreviver

à

ausência

do

conhecimento daquilo "que é"… à ausência do conhecimento da verdade. Determinar a verdade das coisas é, por isso, conatural ao Homem. Não teria sobrevivido no processo da evolução no desconhecimento do real. No desconhecimento da verdade sobre as coisas. Buscar a verdade, portanto, é uma condição da existência.

1.2.

Mas se assim é inequivocamente no que respeita à natureza, ao mundo inerte e aos

seres vivos não humanos com que o Homem partilha a vivência, será que também o é no que diz respeito à interacção entre Homens? Conseguiríamos neste âmbito viver sem o conhecimento do "que é"? Imaginemo-nos então a viver num mundo sem Verdade. Num mundo de interacção com o nosso semelhante em que o conceito fosse conhecido mas expressamente desconsiderado. Aquilo que percepcionassemos do mundo natural era o que era. Tudo o resto, toda a interacção com os nossos semelhantes, deixaria de ter como pressuposto a verdade. Se perguntassemos as horas, a resposta seria errónea. Se perguntassemos uma direcção, a indicação seria falsa. Ao nos dirigirmos a alguém nunca diríamos nada conforme com aquilo que é. E igualmente ninguém nos responderia nessa base 1. Seria impossível viver num mundo assim. O conhecimento da realidade dos factos, a certeza sobre tais factos, é pressuposto inequívoco de toda a nossa actuação. Ninguém consegue pensar, optar, conduzir-se na vida, se partir do princípio de que tudo o que lhe dizem são não verdades. Ou, por outras palavras, se se assentar em que a Verdade será sempre diversa daquilo que nos dão a conhecer.

1

As crianças nunca recebiam uma explicação verdadeira. Nas Escolas apenas encontrariam respostas erradas. E assim nas faculdades, nas empresas, nas fábricas, nas instituições. Todas as opinões expendidas eram por definição contrárias ao efectivo entendimento do opinador. As opiniões de médicos, arquitectos, engenheiros, economistas, gestores, etc., eram sempre objectivamente contrárias àquilo que é. Como seria viver nesse mundo? Conseguiríamos manter a sanidade mental? Conseguiríamos levar a cabo os actos mais simples da nossa vida quotidiana? Seria possível pensar as dúvidas existenciais sobre a própria individualidade, personalidade, origem e destino? Como sobreviver? Como assentar toda a nossa vivência em falsas informações, falsos pressupostos, nenhuma certeza? Página 2 de 14

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Mas se isso é assim “na vida”, como será – como terá de ser – no âmbito da aplicação do Direito? No âmbito da jurisdição, i.e. no âmbito dos processos jurisdicionais? Poderá viver-se sem verdade? Ou terá mesmo, pela natureza das coisas, de viver-se sem verdade? Esta é uma das questões mais fulcrais a colocar no plano da filosofia do Direito, mas também, necessariamente, no plano do direito processual. Séculos de preocupação com disciplinar os processos e procedimentos, levaram os doutrinadores a esquecer-se muitas vezes dessa questão filosófica geral. Como se a preocupação com o quotidiano fizesse esquecer as questões fundamentais da existência. Como se a visão das núvens num pedaço de céu, fizesse esquecer o cosmos em que se integram.

2. A verdade e o Direito 2.1.

Na medida em que tem de ter vivência prática, um dos problemas fundamentais do

Direito tem de ser, fatalmente, a determinação judicial dos factos. Como a aplicação prática do Direito se faz através dos processos, esse problema torna-se um problema fundamental do processo, de todos os tipos de processo. Assim que a pergunta a fazer seja a seguinte: quando a lei disciplina a marcha de um inquérito, instrução e julgamento penal, quando regula a fase dos articulados, saneamento e julgamento civil, quando se estabelecem processos especiais por oposição aos comuns, qual é o objectivo de tudo isso? Para que existe processo? Existe processo porque há que aplicar o Direito aos litígios e conflitos criados na vida do Homem em comunidade, e, obviamente, porque se entende que esse processo aplicativo tem de ter metodologia, um caminho entre o que se sabe e o que se pretende saber, em ordem a que ao final haja o conhecimento efectivo do sucedido, e assim se possa determinar o que é de Justiça no caso concreto. Perante o acertamento daquilo que foi e é em termos de facto, determinar aquilo que deve ser em termos de Direito. Ora, se se admitir, sequer por um minuto, que no processo metodológico de averiguação sobre o que efectivamente sucedeu (aquilo que foi e que é), não vai encontrar-se verdade, não pode encontrar-se verdade, não tem por que descobrir-se verdade, i.e., se não vai efectivamente nesse processo saber-se o que foi e o que é,

então é a própria lógica

subjacente à metodologia processual que rui pela base. O Direito, se não for para ser aplicado àquilo que é, não tem ele próprio sentido. E desse modo, também não fará qualquer sentido disciplinar a busca metodológica. Perderá lógica Página 3 de 14

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preocuparmo-nos com o processo. Se se assume que não tem de descobrir-se efectivamente aquilo que é, então é o próprio Direito que deixa de ter lógica e sentido. Bastar-nos-á a anarquia, o arbítrio, o acaso.

2.2. Se é certo que a ordem normativa pressupõe, como condição da sua existência, a respectiva aplicação prática, não pode deixar de ser aplicação prática ao que é e ao que foi, não ao que se desconhece ter sido. É tudo uma questão de lógica básica e insofismável, por mais voltas que se dê ao conceito de lógica. Por isso, a organização de um processo judicial deve, e tem de, estar norteada necessariamente em torno do modo de determinação da factualidade à qual cabe aplicar o Direito. Dependendo do tipo de determinação de factualidade pretendida, assim se organiza o processo que visa tal determinação. Porém, para conseguir avaliar o que seja essa determinação da factualidade em sede judiciária, temos de ter sempre presente que os processos judiciais não são o único contexto em que surge essa necessidade de determinação das circunstâncias fácticas com base em informações e conhecimentos disponíveis em cada momento. Tudo conforme atrás enunciado.

3. A verdade no mundo judiciário 3.1.

Partindo deste pressuposto básico, terá de concluir-se que no processo pode, deve e

tem de encontrar-se a verdade. Que verdade? A única que faça sentido perante aquilo que acaba de escrever-se: saber aquilo que foi e aquilo que é! Mas será possível, em sede de processo judicial, efectivamente saber-se aquilo que foi e que é? Não estaremos, por uma série de razões condenados à impossibilidade (decorrente da natureza das coisas ou de opções humanas)

de garantir o apuramento da verdade nos processos judiciais?

Vejamos:

a. Costuma salientar-se como limitação ao conhecimento da verdade no âmbito do Direito e dos processos judiciais a própria natureza destes processos. Diz-se, a tal propósito, que o facto de a busca da verdade ocorrer no âmbito de um processo judicial só por si limita a possibilidade daquela ser descoberta, porquanto um processo judicial tem necessariamente uma duração circunscrita no tempo, não permitindo uma investigação idêntica à que ocorre Página 4 de 14

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noutros

campos

da

experiência

humana,

v.g.,

a

área

da

ciência.

Findo

o

prazo

predeterminado e necessariamente curto para apuramento da verdade, o Juiz terá de tomar uma decisão sobre os factos e aplicar o Direito, não permitindo a investigação contínua, que por exemplo caracteriza o domínio científico. Acresce o facto, diz-se também, de a finalidade ou propósito dos sujeitos processuais não ter de ser coincidente com a finalidade do processo, i.e., a descoberta da verdade. Ou seja: mesmo que se atribua ao processo a finalidade de descoberta da verdade, o certo é que os sujeitos processuais, incluido o próprio Juiz ou Jurados, podem ter uma agenda própria, um propósito individual, que se aparte dessa descoberta da verdade. O que sucede, aliás, também fora do campo do direito, posto que os objectivos da ciência não têm porque coincidir com os objectivos ou finalidades dos cientistas2. Nesta conformidade, não vivendo em sistemas processuais de inquisitório puro, em qualquer processo os sujeitos podem, mais ou menos amplamente, requerer, produzir e juntar provas aos autos, o que pode permitir-lhes manipular o material probatório, seja pela junção de provas adulteradas, seja pela omissão de provas que lhes sejam desfavoráveis e que seriam determinantes ou relevantes para a descoberta da verdade. Nesta senda, aquilo que é uma garantia do direito de defesa dos sujeitos processuais em Tribunal, até mesmo um reflexo do mais geral direito à tutela efectiva, pode constituir do mesmo passo uma limitação à obtenção da verdade sobre os factos 3.

b. Uma segunda limitação à descoberta da verdade no domínio dos processos judiciais é representada pelas próprias regras processuais probatórias, existentes em todos os ordenamentos. Muitos autores, a este respeito, afirmam que a existência de tal tipo de regras limita ou mesmo impede a normal obtenção da verdade que se consegue noutras áreas da experiência. Vejamos: as regras processuais probatórias podem organizar-se em três grandes grupos4, a saber: regras sobre actividade probatória, regras sobre meios de prova e regras sobre

Van Fraasen, B. C., The Scientific Image, Oxford University Press, Oxford, 1980, p. 24, afirma: “o propósito da ciência, como é óbvio, não deve ser identificado com os motivos individuais dos cientistas. O propósito do jogo de xadrez é fazer um cheque mate ao adversário; mas o motivo para jogar pode ser a fama, o ouro e a glória”. 3 Claro está que toda a ampliação dos poderes do julgador na obtenção de material probatório pode mitigar essa limitação adveniente das agendas processuais dos demais sujeitos processuais, mais “atreitos” à tutela dos seus egoístas interesses particulares do que ao altruísmo da busca da verdade. 2

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resultado probatório. E todas elas, directa ou indirectamente, em maior ou menor medida, conformam a investigação do que é a verdade dos factos, bem como as conclusões àcerca dessa mesma verdade. O simples facto de as regras sobre actividade probatória por vezes limitarem o tempo e o modo como a proposição, admissão e produção de prova podem ter lugar, poderão limitar a efectiva descoberta da realidade dos factos investigandos5. O mesmo se diga relativamente às regras sobre meios de prova e meios de obtenção de prova – esta situação é particularmente sensível no domínio do processo penal, em que as limitações a determinados meios de prova pode directamente determinar que a verdade num determinado processo nunca seja conhecida, ou seja conhecida mas compulsivamente excluída do próprio processo. Mas as regras que mais profundamente podem limitar a efectiva descoberta da verdade são as regras relativas ao resultado probatório. As regras que instituem casos de prova legal e casos em que o julgador fará uso do princípio da livre apreciação das provas. Ou seja, regras que prescrevem ao julgador o modo de avaliar o material probatório carreado para os autos, seja de acordo com um valor predeterminado pelo legislador, seja de acordo com regras de racionalidade geral. Ora, se é certo que no caso da regra da livre apreciação da prova as únicas limitações que podem advir à descoberta da verdade são as impostas pelo próprio contexto processual em que se limitam os meios de prova e sua produção (e as gerais capacidades gnósticas do ser humano), já no caso das regras da prova legal há um comando para que o julgador se abstraia das regras gerais de racionalidade e bom senso do caso concreto, atribuindo um determinado resultado probatório a certo um meio de prova6. Assim parece ser óbvio que essas regras de prova legal possam efectivamente ser um obstáculo a que, no caso concreto, a verdade seja apurada. Tanto maior seja o número de

4

Neste sentido Jordi Ferrer Beltrán, Prueba y Verdad en el Derecho, 2ª Ed., Marcial Pons, Madrid-Barcelona, 2005, p. 60. 5 Jordi Ferrer Beltrán, ibidem, afirma ao invés que os dois primeiros tipos de regras probatórias “não supõem um impedimento para que possa atribuir-se valor de verdade aos enunciados declarativos de factos provados”. E segue: “Ou seja, não impedem que esses enunciados sejam susceptíveis de verdade ou falsidade. Outra coisa é que, obviamente, possam incidir aumentando ou diminuindo as possibilidades de que o enunciado que se declare provado resulte a final verdadeiro, i.e., que corresponda aos factos realmente ocorridos. Neste sentido Gascón fala, muito eloquentemente, de regras epistemológicas e regras contra-epistemológicas, em função de contribuirem ou entorpecerem na tarefa da descoberta da verdade”. 6 Idem, ibidem: “Não se exclui, todavia, que possa atribuir-se racionalidade à decisão geral do legislador de atribuir um específico valor probatório a um determinado meio geral de prova. Em todo o caso, as razões para negar essa racionalidade deverão ser distintas das que servem para julgar a racionalidade da decisão do caso concreto”. Página 6 de 14

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regras de prova legal que existem num ordenamento, e tanto mais provável será que a verdade nos concretos processos judiciários não venha a ser efectivamente conhecida.

c. A terceira limitação à possibilidade de encontrar a verdade no âmbito judiciário, é encontrada no instituto do caso julgado. Com efeito, o objectivo último do caso julgado é garantir que se põe fim à discussão jurídica através do processo judicial. Não sendo uma fatalidade do processo (ou seja, é logicamente admissível regra inversa), o certo é que é extremamente generalizada, ao ponto de poder dizer-se que é hoje uma regra sem excepção7.

d. Por outro lado, não podemos esquecer as limitações advenientes da própria capacidade de gnose humana, porquanto os julgadores são humanos, e como tal sujeitos às mesmas limitações dos demais. E nem tudo é susceptível de apreensão pelo espírito humano em todos os casos e circunstâncias. Aliás, tal é transversal a todo o processo de gnose, seja no âmbito judiciário, seja no âmbito histórico, técnico e científico.

e. Por fim, igualmente inolvidável como factor limitativo da efectiva busca da verdade é o facto de em processo, pelo menos na maioria deles, se investigar a verdade não de factos, mas de enunciados de facto. O que é tanto mais determinante do sucesso da investigação da verdade quanto a apresentação da questão ao julgador estiver no domínio da disponibilidade das partes. Assim que nos processos cíveis a precisa construção dos enunciados possa logo levar ínsita a maior ou menor viabilidade da investigação àcerca da veracidade dos factos a que respeitam8.

7

Com efeito, houve exemplos históricos de casos em que os litígios podiam ser propostos e repetidos infinitamente bem como de situações em que o sistema de recurso era infindável. Eram as chamadas lides imortais (A. Giuliani, “Prova (filosofia)”, in Enciclopedia del diritto, Milão, 1988, pp. 527 e ss.). Também na UniãoSoviética vigorou em tempos um sistema segundo o qual todas as sentenças, civis ou penais, podiam ser revistas sem limite temporal determinado. Era mesmo visto como um formalismo burguês inaceitável obstaculizar a possibilidade de rever uma sentença até obter uma decisão aceitável, fosse na determinação dos factos, fosse na aplicação do direito. 8 Não é desconhecida a arte de alguns causídicos mais experientes que dominam na perfeição o modo de alegar da forma mais conveniente a tutelar os interesses dos respectivos constituintes, numa clara manifestação do que atrás referimos serem casos de discrepância entre o interesse do processo e o interesse dos sujeitos processuais. Página 7 de 14

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4. O dilema Perante tudo isto, julgamos estar perante um efectivo dilema: em termos lógicos e filosóficos, no processo pode, deve e tem de encontrar-se a verdade. Mas em simultâneo, decorre da natureza das coisas, haver casos em que não pode efectivamente apurar-se a verdade em sede judiciária; haver situações em que é a própria lei que entende que não deve apurar-se tal verdade; haver momentos no domínio dos processos em que não tem de encontrar-se a verdade. Em todos os casos por haver contra-valores ao valor da verdade.

Assentámos, para efeitos desta investigação, em que “Verdade” significa “aquilo que é” – e aquilo que foi –, a realidade objectiva, necessariamente no sentido de verdade história. A verdade, para efeitos de processo (tal como para o historiador e o jornalista), é o conhecimento do pretérito, do efectivamente ocorrido. Neste sentido o que se busca no processo é uma verdade prática e operativa (operacional, pragmática), não uma verdade filosófica ou metafísica. E é essa mesma verdade que, pelas aduzidas razões lógicas e filosóficas, não pode deixar de procurar encontrar-se no âmbito do judiciário. Porém, as limitações enunciadas, e quem sabe outras, obstaculizam muitas vezes a descoberta da verdade, pelo que a questão tem de colocar-se: pode haver processo sem verdade?

Com uma dose de verdadeiro cinismo, senão mesmo de hipocrisia, a Doutrina secular encontrou um modo de legitimar essa fatalidade de nos processos podermos encontrar o Direito a ser aplicado aquilo que claramente se sabe que “não é, nem foi”! Mas que é e que foi aquilo que o processo, segundo as próprias regras, deu como tendo sido o sucedido. Para tanto, como se fosse um purgador de má consciência ou declaração da incapacidade do Direito de garantir a descoberta da verdade (d’aquilo que é), a Doutrina desenvolveu o conceito de verdade processual, formal, judicial ou forense, por oposição à verdade material, real, objectiva. Para essa doutrina, portanto, a verdade material é aquela que existe fora do processo judicial. Muitas vezes essa verdade é cognoscível no processo. Porém, admite também que esta verdade possa em muitos casos ser inalcançável no processo judicial. E assim, aquilo que é obtido no processo através da actividade probatória, passa a ser verdade por ter autoridade judicial… é a verdade formal.

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Assim que, coincida ou não com a verdade material, a verdade formal é a que é dotada, para a Lei, para a Doutrina e para a Jurisprudência, de autoridade jurídica. Coincida ou não com factos realmente ocorridos, atribui-se a qualificação de formalmente verdadeira à declaração de factos provados realizada pelo Tribunal na Sentença. Assim, a declaração dos factos provados adquire uma dimensão e força constitutiva da realidade, porquanto para o Direito aquilo que consta da Sentença passa a ser a única verdade. Esta distinção, no dizer de alguns, “põe o acento tónico na autoridade que se confere à declaração de factos provados realizada pelo julgador e na irrelevância jurídica da verdade material uma vez resolvido o caso”9. Em suma, seria mais uma, das muitas, ficcções existentes em Direito. Aliás, a distinção encontra-se de tal modo cristalizada no pensamento e na legislação vigente na maioria dos ordenamentos jurídicos, que inclusivamente se utiliza como uma das notas distintivas entre o processo civil e o processo penal 10.

Ora, como bem salienta parte da doutrina, esta diferenciação não pode ser aceite sem mais, porquanto “a diferença entre as limitações à ‘descoberta’ da verdade no processo civil e penal é claramente contingente, dependente da regulamentação processual de cada ordenamento, e, ademais, é uma mera diferença de grau”11, sendo que muitas das limitações atrás enunciadas à descoberta da verdade atingem também o processo penal – desde logo a primeiramente indicada. Carnelutti combateu a distinção entre verdade formal e verdade material. Escreveu o autor que a verdade formal “não é mais que uma metáfora, sem lugar a dúvidas; na realidade, é fácil observar que a verdade não pode ser mais que uma, de forma que a verdade formal ou jurídica ou bem que coincide com a verdade material, e não é mais que verdade, ou diverge dela, e não é mais que não verdade”12.

9

J. Ferrer Beltrán, idem, p. 62. Naquele, em que impera com muito maior amplitude o princípio do dispositivo e em que existem regras de prova legal, o objectivo institucional é apenas a verdade formal. Neste, ao invés, busca-se a verdade material, como objectivo institucional do próprio processo, atenta a gravidade dos direitos e interesses limitados com a jurisdição. 11 Idem, p. 63. 12 Francesco Carnelutti, La prova civile, 2ª Ed., Edizioni dell’Ateneo, Roma, 1947, pp. 29 e 30. Nos seus escritos a este respeito, Carnelutti lançou uma clara luz sobre o problema conceptual em apreço. Porém, não trouxe uma solução teórica substancialmente distinta ao problema de base, ficando-se essencialmente por um jogo terminológico que efectivamente não resolve substancialmente o dilema. 10

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Partindo deste entendimento, por consequência, quando se afirma que está provado um enunciado falso não cabe senão afirmar-se o cometimento de um erro, não estando o enunciado verdadeiramente provado. Questão diversa é afirmar que o erro tem autoridade jurídica e que até seja insusceptível de infirmação por via de recurso. Mas estas reflexões da doutrina do Século XX acabaram por ter uma consequência relevante: boa parte dessa mesma doutrina abandonou a relação conceptual entre prova e verdade13, sendo que outros, talvez fruto de alguma confusão entre a tese da relação conceptual e a tese da relação teleológica entre prova e verdade, abandonaram ambas as teses 14. Assim que a doutrina actual se divida entre três alternativas opções teóricas acerca da relação entre Prova e Verdade:

a. Prova como fixação de factos Carnelutti veio sustentar que “o processo de busca sujeito a normas jurídicas, que restringem e deformam a sua pureza lógica, não pode sinceramente ser considerado como um meio para o conhecimento da verdade dos factos, mas como uma fixação ou determinação dos próprios factos, que pode coincidir ou não com a verdade dos mesmos e é absolutamente independente dela”15. Neste sentido, Carnelutti não se afasta substancialmente da tese da noção de verdade formal que tanto criticou. Também aqui há uma força constitutiva da Sentença do que seja a verdade. Com efeito, tanto a vinculação da prova jurídica à fixação formal dos factos, como a vinculação à noção de verdade formal pressupõem a sua desvinculação à noção de verdade. Além de que permite chegar à conclusão (pouco racional, a meu ver) de que está provado aquilo que o Tribunal entende estar provado.

13

Neste sentido M. Serra Domínguez, Contribución al estudio de la prueba, in Revista jurídica de Cataluña, 1962, p. 357 (“O lógico teria sido abandonar para sempre o conceito de verdade como fim da prova jurídica e procurar por outros caminhos a via da solução”) e J. Montero Aroca, Nociones generales sobre la prueba. Entre el mito y la realidade, in Cuadernos de derecho judicial: La prueba, Consejo General del Poder Judicial, Madrid, 2000, p. 23 (“Tradicionalmente a função da prova tem-se referido à descoberta da verdade, dando-se assim origem a outro mito em matéria de prova”). 14 M. Miranda Estrampes, La mínima actividad probatoria en el proceso penal, Bosch, Barcelona, 1997, pp. 36 e 37. 15 F. Carnelutti, cit., p. 30. Página 10 de 14

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Confunde, por fim (como sucedia com a tese da verdade formal), a atribuição de efeitos jurídicos, de autoridade, a uma decisão judicial, e a sua correcção, mesmo jurídica. Confude-se a infalibilidade com o carácter jurídico definitivo ou não da decisão.

b. Prova como convicção do juiz acerca dos factos Maioritária no seio dos processualistas é a tese sustentada, por exemplo, por Montero Aroca, segundo a qual “a prova é o conjunto de operações por meio das quais se obtém o convencimento do juiz relativamente a dados processuais determinados”16. Já Cabañas afirma: “… a palavra prova identifica (…) na sua melhor acepção técnica e pura, o já referido estado psicológico de convencimento do juiz sobre a veracidade de todos ou alguns dos factos alegados pelas partes. Com efeito, uma afirmação de facto não estará ‘provada’ ainda que se utilize em tempo e forma oportunos alguns dos instrumentos previstos na lei, se a final tal actividade não excita no juiz a certeza da realidade física do acontecimento descrito nessa afirmação”17. Também este entendimento, como o anterior, confunde o carácter jurídico, mesmo definitivo, de uma resolução judicial e a sua infalibilidade. Se a finalidade da prova enquanto actividade é convencer o julgador relativamente a factos, tal finalidade será atingida independentemente do sentido em que tal convicção se forme, independentemente de os factos dados como provados serem ou não os que resultariam logicamente provados em face do material probatório dos autos, tal como independentemente de terem sido os efectivamente ocorridos ou não. Paralelamente, se em vez de se ver a prova como actividade se entender a mesma como resultado probatório (facto provado), também se dirá que um facto está provado quando um juiz dele se convence, não havendo espaço para o erro: se o juiz se convence, o facto está provado; na inversa, não o está. Tudo dependendo apenas do mundo psicológico do julgador, o que desemboca numa concepção irracional (ou quase) da prova. Esta concepção padece ainda de outro vício: confunde a noção de prova com a atitude proposicional do juiz relativamente aos factos que se declaram provados, vinculando a prova com a crença / convicção, deixando sem enquadramento todos os casos em que o juiz se vê

16

Montero Aroca, cit., p. 27. J. C. Cabañas, La valoración de las pruebas y su control en el proceso civil. Estudio dogmático y jurisprudencial. Trivium, Madrid, 1992, p. 21. 17

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obrigado a dar determinados factos como provados independentemente e até contra as suas crenças sobre os factos do caso18.

c. Prova como certeza do juiz acerca dos factos Segundo esta concepção, prova é a actividade processual que tende a alcançar a certeza do julgador relativamente aos dados trazidos ao processo pelas partes. Há, necessariamente, alguma confusão entre a “certeza” a que alude esta tese e a “convicção” a que se refere a tese anterior, termos em que vários autores assimilam esses dois conceitos, bem como o de “crença”19. Ademais, o mesmo carácter subjectivista anotado à tese anterior, mereceria aqui também a mesma censura. Numa tentativa de clarificação desta ambiguidade conceptual, Montero Aroca distingue dois tipos de certeza, a saber: certeza como convencimento psicológico, que valeria para os casos de livre apreciação da prova, e certeza como convencimento objectivo, imposta pelo legislador nos casos de prova legal.

Apesar das críticas enunciadas a estas três concepções, elas têm a vantagem de não distinguir diversos tipos de verdade, como anteriormente se fazia entre verdade material e verdade formal. Em todo o caso, tão pouco são elas próprias claras e com limites bem delimitados. Por fim, padecem, como a tese da verdade formal, do vício de dependerem da decisão judicial para determinarem o que seja prova – nenhuma delas consegue criar “um parâmetro externo à própria decisão do juiz sobre os factos que permita avaliar a correcção da mesma. Por isso, assim delineadas, desembocam necessariamente numa concepção irracional de prova jurídica”20.

Mais recentemente, há quem venha tentar resolver a questão com mais um jogo semântico21. Nesse sentido afirma que “a finalidade da prova como instituição jurídica é a de permitir alcançar o conhecimento acerca da verdade dos enunciados fácticos do caso. Quando os específicos meios de prova incorporados no processo trazem elementos de prova suficientes a 18

Assim todos os casos de prova legal existentes em todo e qualquer ordenamento jurídico. Assim E. T. Liebman, Manual de derecho procesal civil (trad. Sentís Melendo), EJEA, Buenos Aires, 1980, p. 275, V. De Santo, El proceso civil, T. II, EUDEBA, Buenos Aires, 1991, p. 289, Miranda Estrampes, cit., p. 57. 20 J. Ferrer Beltrán, cit., p. 68. 21 J. Ferrer Beltrán, cit., pp. … a … . 19

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favor da verdade de uma proposição (o que não deve confundir-se com a proposição ser verdadeira), então pode considerar-se que a proposição está provada. Nesse caso o juiz deve incorporar a proposição do seu raciocínio decisório e tê-la por verdadeira”. E segue: “…o que importará será aquilo que o juiz teve por verdadeiro, e perderá relevância aquilo que é verdadeiro”; “… a noção de aceitação (…) resulta ser uma atitude voluntária e é independente relativamente às crenças que o sujeito tenha acerca da verdade do enunciado. I.e., é perfeitamente possível que alguém decida aceitar como verdadeiro um enunciado, mesmo quando creia (acertadamente ou não) que é falso.”. Salvo o devido respeito, esta construção acaba por padecer dos mesmos vícios que assaca às teses que critica e pretende substituir: cria uma verdade objectiva a par de uma verdade processual, resultante de existirem elementos probatórios a favor dessa conclusão, mesmo que a proposição seja falsa. Não fala em duas verdades, mas pressupõe-nas necessariamente sob outra nomenclatura.

5. Pistas de reflexão Dissémos atrás que em processo pode e deve encontrar-se toda a verdade, i.e., aquilo que é, sem tibiezas nem concessões. Só aquilo que é, é que é verdade. E só a verdade material pode ser, em termos da lógica, dos princípios e dos fins do Direito e da Justiça, verdadeira verdade (passe-se o pleonasmo). Por outro lado, não pode ser o acidental a caracterizar a instituição probatória… e a essência da prova não é, quer estatística quer substancialmente, as situações da sua limitação ou incapacidade de consecução do objectivo da prova. Não é pelo facto de na Europa fazer calor em Janeiro que deixa de ser Inverno; não é pelo facto de haver uma tornado em Londres que transforma a Inglaterra numa terra de tornados; não é pelo facto de haver crianças que nascem com Trisomia XXI que tal doença passa a ser característica da espécie humana. Cabe é buscar o que é a essência conceptual da prova, bem como a sua teleologia: como regra. E depois de estruturar o que seja a regra, analisar as excepções e dar-lhe enquadramento bastante no seio da teoria geral assim gizada.

Ou seja, questão totalmente é diversa do conceito e teleoliga da prova é a de saber o que pode ou não processualmente fazer-se com o acidental, in casu, a conclusão processual de que a verdade não foi atingida (quando é de tal modo manifesta ou patente a desconformidade entre os resultados do apuramento do que é e aquilo que efectivamente é por vias de outros processos gnósticos),

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a descoberta efectiva dessa verdade que, por razões outras que não a da impossibilidade gnóstica, não pode ser considerada no processo.

À primeira questão responderia com as regras do abuso de direito e da fraude à lei, autorizando a Justiça a, ao abrigo de tais institutos e fazendo apelo ao carácter soberano da função desempenhada, impedir que processualmente se obtenha a afirmação de um Direito contrário àquilo que é ou que foi. Tudo porque se a fattispecie não está preenchida, não poderá determinar-se o que deve ser nesse sentido!

À segunda questão a resposta afigura-se-me ainda mais simples. Estar-se-á aí perante um problema que tem de ser resolvido em sede de cada tipo de processo e ponderando o peso dos valores feridos com a violação procedimental ocorrida (sem prejuízo de dever também questionarse se todas essas normas limitativas fazem sentido em face do objectivo de busca da verdade material que deve nortear sem excepções qualquer processo).

No domínio do processo penal, uma vez determinada toda a verdade, e firmada toda a factualidade, a violação de regras de proibição de prova ou de outras de idêntica valia ou função, concluir-se-á, se for o caso (dependendo da magnitude da violação processual ocorrida) pela "não punibilidade da conduta" por razões processuais ou investigativas. À semelhança do funcionamento do quinto elemento da teoria da infracção no que concerne ao direito penal substantitvo.

Tal solução terá também uma função pedagógica dos agentes da investigação, estigmatizados socialmente que ficarão por terem sido com a sua incúria ou ilegal comportamento os responsáveis pela impunidade do agente. Mas a verdade material tornar-se-á conhecida e ficará firmada na sentença penal... essa a verdade! Questão diversa a punição.

Igual solução, mutatis mutandis, para lides cíveis, onde aliás a incidência de tais inviabilidades probatórias por razões formais é muito menor que em processo criminal.

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