Processo transexualizador: apontamentos sobre o papel do(a) psicólogo(a)

July 27, 2017 | Autor: I. Bonamigo Gaspo... | Categoria: Despatologização, Psicologia, Processo Transexualizador
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Processo transexualizador: apontamentos sobre o papel do(a) psicólogo(a) Icaro Bonamigo Gaspodini (1), Vanessa Rissi (2) (1) Escola de Psicologia, Faculdade Meridional – IMED, Brasil. E-mail: [email protected] (2) Escola de Psicologia, Faculdade Meridional – IMED, Brasil. E-mail: [email protected]

Resumo: Este artigo promove uma discussão acerca da atuação do(a) profissional psicólogo(a) frente ao sujeito transexual, principalmente no âmbito da saúde pública, especificamente durante o processo transexualizador garantido pelo Sistema Único de Saúde – SUS. O olhar da Psicologia para a transexualidade procura afastar-se da herança médico-psiquiátrica tradicional que a considera um transtorno mental, uma disforia de gênero. Através do aprofundamento dos estudos feministas, o gênero é concebido como uma construção sócio-histórica, expressada pelas performances de características consideradas masculinas ou femininas. Historicamente estigmatizadas pelos discursos jurídicos, médicopsiquiátricos e políticos, as transidentidades são entendidas aqui como manifestação do direito inalienável do indivíduo sobre seu próprio corpo, sua aparência e seu modo de vida. Para a construção desta análise, duas psicólogas atuantes no Processo Transexualizador do SUS foram entrevistadas, para que expusessem livremente sua percepção de aspectos éticos envolvidos em suas práticas. Ambas apontaram reflexões relevantes relacionados a colegas psicólogos(as) que, ou negligenciam sua importância no processo, ou atrapalham de diversas formas o caminho já bastante oneroso das pessoas em busca dos dispositivos de saúde que lhes é de direito. Este estudo contextualiza o processo de trânsito de gênero a partir de diferentes transidentidades sociais (transexualidade, travestilidade, transgeneridade), pautando-se nas reivindicações do movimento internacional de despatologização. As considerações deste trabalho extrapolam o contexto específico e propõem que a prática clínica acompanhe o movimento de despatologização das identidades, observando as questões de poder envolvidas nos discursos que definem olhares e fundamentam os fazeres da Psicologia. Palavras-chave: Psicologia; Processo transexualizador; Despatologização. Abstract: This article promotes a discussion regarding the professional performance of the psychologist when in contact with transsexual people, mainly in the context of public health, specifically during the transsexual transition process guaranteed by Brazilian health system (Sistema Único de Saúde – SUS). Psychology seeks to approach transsexuality differently from traditional medical-psychiatric heritage, which considers it a mental disorder, a gender disforia. Through the deepening of the feminist studies, gender is conceived as a social-historical construction, expressed through performances of male or female features. Historically stigmatized by juridical, medical-psychiatric and political discourses, transidentities are understood as manifestations of the inalienable right of the individual over their own body, appearance, or lifestyle. For the construction of this analysis, two psychologists who work with transsexual transition process have been interviewed, in order to freely manifest their own perception over ethical aspects of their practices. Both pointed out important reflections over some other professionals who do not understand their relevant part of the process, or even disturb the already difficult search for what is entitled to this people. This study contextualizes the gender transition process according to several social identities (transsexuality, transvestites, transgenderism), in agreement with the international depathologization movement, observing aspects of power involved in speeches that define practices in Psychology. Keywords: Psychology; Transsexual transition process; Depathologization. 1. INTRODUÇÃO Princípios e valores morais são pautados em noções de verdade: saberes que regulam práticas e

comportamentos através de uma rede de inteligibilidade, responsável pela manutenção da normatividade. Através de uma miríade de dispositivos, o poder/saber permeia a organização social, definindo, a partir de seus interesses, o que é normal e o que é patológico. (FOUCAULT, 1988). Entre as diversas manifestações da diversidade humana, ainda considerada, em muitos contextos, como desvio da normalidade, encontra-se a transidentidade, vivenciada de inúmeras formas, entre elas pela transexualidade, pela travestilidade e pela transgeneridade. A reflexão acerca da humanização dessas identidades sociais permanece praticamente invisível nos currículos dos cursos de Psicologia e demais Ciências Humanas. Enquanto ciência do comportamento, fortalecedora da autonomia das subjetividades e promotora da saúde psíquica, a Psicologia estrutura-se em fundamentos éticos de respeito à diversidade humana. Seus operadores devem produzi-la em constante observância ao Código de Ética Profissional do Psicólogo 1, documento que regulamenta as práticas de todos o(a)s psicólogo(a)s do país. Ao publicá-lo, o Conselho Federal de Psicologia (2005, p. 6) intencionou estabelecer “as responsabilidades e deveres do psicólogo, oferecer diretrizes para a sua formação e balizar os julgamentos das suas ações”. De acordo com os princípios fundamentais da profissão, as práticas em Psicologia devem respeitar e promover a liberdade, a dignidade, a igualdade e a integridade, tomando como referência a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O(a)s psicólogo(a)s devem se comprometer com a “eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, atuar de forma socialmente consciente, aprimorar-se profissionalmente (desta forma, contribuindo para o desenvolvimento da Psicologia), além de zelar por seu exercício profissional, “rejeitando situações em que a Psicologia esteja sendo aviltada”. O último princípio alerta para a consciência das relações de poder implícitas na posição que ocupa e aos “impactos dessas relações sobre as suas atividades”. (CRP, 2005, p. 7). As informações reunidas para a produção do presente trabalho são oriundas de pesquisa bibliográfica e participação em movimentos sociais de luta por direitos humanos LGBT. As constatações aqui presentes também advêm dos debates do III Trans Day NIGS, ocorrido em Florianópolis, Santa Catarina, nos dias 9 e 10 de outubro de 2012. O seminário sobre transfobia, cidadania e transidentidades, organizado pelo Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da Universidade Federal de Santa Catarina, reuniu nomes importantes do cenário nacional, que geraram momentos de discussões prolíficas e propostas de soluções para o problema da discriminação e da patologização das identidades. Para a construção desta análise, foram entrevistadas duas psicólogas que atuam no Processo Transexualizador no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), em uma das Unidades de Atenção Especializada do país. As entrevistas foram realizadas por correio eletrônico e ambas as profissionais mostraram-se solícitas e disponíveis para refletir sobre aspectos éticos de sua atuação profissional, bem como a de colegas. Propomos, portanto, uma reflexão sobre a ética psicológica no âmbito das transidentidades, considerando sua legitimidade e inteligibilidade, tentando responder à questão de como o(a) psicólogo(a) pode contribuir para que essas pessoas sejam vistas por vieses não-patológicos, validando sua experiência subjetiva como possibilidade de existência. 2. O TRANSPROCESSO De forma geral, vivemos em um contexto onde os papéis de gênero são definidos pela visão binária da complementaridade macho-fêmea. Os comportamentos considerados masculinos ou femininos foram estabelecidos, separados e hierarquizados. Entrelaçada nas relações de poder, a noção de uma verdade natural privilegia as masculinidades e subjuga as performances de feminilidades. (FOUCAULT, 1988; BUTLER, 1990, 2009).

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A versão atual é a terceira no Brasil. Foi desenvolvida ao longo de três anos, por comissões de psicólogos de todo o país, através de diversos espaços de discussão.

Além disso, observa-se um processo de ensino-aprendizagem de comportamentos femininos e masculinos em qualquer contexto social, legitimando pedagogias de gênero unicamente fundamentadas na suposta essência das características sexuais. A obrigatoriedade de papéis definidos para cada sexo biológico é ensinada por pais, professores, amigos e ídolos como sendo de ordem natural. A heteronormatividade define que, nas relações entre os gêneros, todas as práticas que não servirem à reprodução devem praticar sua “diferença” em qualquer lugar que não o dos “normais”. 2.1. Transidentidades A autopercepção de algumas pessoas simplesmente não condiz com a realidade discursiva de seu corpo biológico. A maioria de seus pensamentos, emoções e comportamentos são considerados como sendo do “outro sexo”. Nesse sentido, as pessoas que apresentam essa incongruência procuram adequar seu corpo ao que vivenciam subjetivamente. No entanto, as modificações corporais são apenas um dos elementos do espectro de transicionar, pois deve-se considerar, entre outras, a questão do reconhecimento social (mudança de nome e gênero nos documentos, por exemplo). Parte de nossa identidade se configura no nome que carregamos, apresentamos e ao qual somos referidos. A mudança de registros para adequação de documentos pessoais continua ineficaz, pelo menos no Brasil2. Ao pensarmos nas transidentidades, é comum utilizarmos uma variedade de termos que ainda buscam seu espaço entre os discursos. Novos termos e definições são capazes de promover novos pensamentos sobre determinada questão e, numa perspectiva identitária, novas relações de respeito mútuo e garantia de direitos a identidades consideradas como abjetas. Nesse sentido, ao falarmos de transgeneridade, estamos ampliando a questão para qualquer pensamento ou ato que rompa com as normas estabelecidas para cada gênero. A transexualidade é uma de suas manifestações e difere do que entendemos por travestilidade, onde existe uma ambiguidade de gênero, ou fronteira entre masculino e feminino, ou ainda, uma forma corporal híbrida (FERREIRA, 2009; KULICK, 2008; PRÓCHNO, ROCHA, 2011), compondo um conjunto de características diferentes da transexualidade, onde, geralmente, não se aceita a fronteira entre os gêneros, mas busca-se uma adequação por um dos polos do binarismo homem-mulher. Destaca-se, também, que nem todos(as) os(as) transexuais desejam realizar cirurgias de transgenitalização. Ainda pelo mesmo viés binário do gênero, a transexualidade é vivência psicossocial do gênero não atribuído à genitália que o sujeito apresentou ao nascer. A transmasculinidade é uma possibilidade identitária vivenciada por homens que nasceram em corpos anatomicamente femininos, mas que, geralmente desde a infância, sentem-se como meninos, garotos, homens. Para Ávila e Grossi (2010), o transhomem3 não possui a mesma visibilidade em relação à experiência das transmulheres 4. No entanto, observa-se uma quebra de silêncio entre transhomens brasileiros, cujo movimento social se expressa nas ações da ABHT – Associação Brasileira de Homens Trans e nas interrelações proporcionadas pelas redes sociais, onde se constata crescente respeito social em relação às histórias de enfrentamento de um oneroso sofrimento subjetivo. A organização das transmulheres é mais antiga, tendo conseguido, no ano de 1997, a garantia das cirurgias de transgenitalização do fenótipo masculino para o feminino em hospitais universitários, em caráter experimental. Em um viés contrário à perspectiva identitária, a Teoria Queer aborda o sofrimento advindo da diferença de gênero como consequência de uma matriz binária de pensamento, cujas diversas maneiras de inserção tornaram a heteronormatividade o fundamento legítimo de uma ética essencialista. Identidades não devem ser cristalizadas nem promovidas, sob o risco de impedirmos as possibilidades de existência e realização pessoal. Na abordagem queer, as diferenças entre transidentidades (transexualidade, travestilidade e transgeneridade) são irrelevantes e desviam o propósito de humanização da diversidade.

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O processo de mudança de registro no Brasil é realizado através de diferentes artifícios legais, no entanto, se houvesse uma lei que determinasse sua legitimidade, as transpessoas não dispenderiam tantos esforços para conseguir seu direito. Nesse sentido, a Argentina figura como exemplo de facilidade no processo jurídico. 3 Ou ainda: homem trans, transexual masculino, FTM (female-to-male). 4 Ou ainda: mulher trans, transexual feminina, MTF (male-to-female).

2.2. O processo transexualizador O processo de adequação do corpo à identidade de gênero é chamado de transexualizador, nome sugerido pelo próprio movimento transexual (SANTOS, 2011), que conseguiu, em 1997, o primeiro avanço: o Conselho Federal de Medicina aprovara, em caráter experimental, a realização de neocolpovulvoplastias 5 e neofaloplastias6 em hospitais universitários adequados para pesquisa. No ano de 2002, as cirurgias para as transmulheres perderam seu caráter experimental e puderam ser realizadas em outros hospitais. Através da Portaria nº 457, de 19 de agosto de 2008, o Ministério da Saúde passa a garantir a atenção integral aos usuários do Sistema Único de saúde (SUS) no Processo Transexualizador, desde que diagnosticados com o Transtorno de Identidade de Gênero ou transexualismo. Ainda assim, as cirurgias para os transhomens continuam consideradas como experimentais e não estão previstas no regulamento do sistema de saúde pública. No Brasil, as Unidades de Atenção Especializada garantem o Processo Transexualizador através do SUS, e estão localizadas em apenas quatro capitais: Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e Goiânia. O usuário é atendido por uma equipe multidisciplinar que conta com médico cirurgião, anestesiologista, equipe de enfermagem, endocrinologista, psiquiatra, psicólogo e assistente social e procedimento cirúrgico ocorre somente após dois anos de acompanhamento hormonal e psicoterápico. 2.3. O movimento de despatologização As manifestações da diversidade humana têm sido historicamente controladas por mecanismos de poder que penetram todas as esferas de relações sociais. Da possessão demoníaca, os diferentes passaram a ser criminosos que deveriam ser excluídos do convívio entre os normais, para então, apropriados pela medicina, receberem seus rótulos de doença e a possibilidade de tratamentos normalizadores. Foi somente a partir do ano de 1999 que a homossexualidade deixou de se ser vista como a “doença do homossexualismo”, um desvio sexual da heteronormatividade. Paralelamente, em outra situação, no entanto, a transexualidade ainda se encontra nos manuais de diagnóstico psiquiátrico sob a etiqueta do transexualismo. Nesse sentido, a STP 2012 (Stop Transpathologization 2012), plataforma ativista com mais de 100 organizações e quatro redes internacionais, luta pela retirada do Transtorno de Identidade de Gênero dos manuais internacionais de diagnóstico psiquiátrico (DSM e CID). Além desta reivindicação principal, a campanha ainda inclui a “retirada da menção de sexo dos documentos oficiais”, a eliminação de “tratamentos de normalização binária para os intersexuais 7”, o “livre acesso aos tratamentos hormonais e às cirurgias (sem a tutela psiquiátrica)”, bem como promove a luta contra a transfobia através de ações de educação, reinserção social, e profissional. (BENTO; PELÚCIO, 2012). No paradigma atual, o tratamento hormonal, as cirurgias de transgenitalização e o acompanhamento psicoterapêutico só são garantidos para os indivíduos que conseguem adquirir seu laudo de doente mental. A contradição levanta a pergunta: como um transtorno mental pode ser tratado com cirurgias plásticas? O CRP de São Paulo deixa claro, em seu Manifesto, o apoio à Campanha STP 2012 e salienta os seguintes pontos: o alinhamento entre sexo-gênero-desejo não pode ser considerado algo natural a priori; a pluralidade das identidades de gênero refere possibilidades de existência, manifestações da diversidade humana, e não transtornos mentais; a patologização das identidades trans fortalece estigmas, incentiva a discriminação e contribui para a marginalização. (CRPSP, 2011). O Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde pode ser considerado um avanço na conquista de direitos, mas ainda deixa muito a desejar quando não inclui os transhomens em sua cobertura, nem 5

Constituição de uma neovagina. Construção de um neofalo. 7 Intersexuais são pessoas que nascem com condição médica de duplicidade nas características sexuais atribuídas a machos e fêmeas. Os hermafroditas são um exemplo de condição intersexual. Uma das violências cometidas ao sujeito intersexual é a cirurgia de normalização na infância, quando os pais decidem com o médico sobre o gênero da criança. 6

sequer entende que as travestis podem ter acesso à hormonioterapia sem serem consideradas transexuais. Tal situação contradiz a perspectiva da autonomia pela qual se baseia o SUS, em que o usuário em desconforto físico ou psíquico deve possuir garantia do acesso integral em busca de seu bem-estar. Ações de luta contra a medicalização da sociedade culminam no reconhecimento das subjetividades e identidades, evitando o pensamento de “tolerar” o que não se encaixa numa faixa de normalidade considerada como “natural, correta e desejável”. Práticas psicológicas devem se fundamentar nesse movimento e contribuir para a validação das diferentes expressões da pluralidade humana. 3. DEPOIMENTOS SOBRE A ATUAÇÃO PROFISSIONAL DO(A) PSICÓLOGO(A) O profissional da Psicologia constitui-se como parte fundamental da equipe multidisciplinar de atenção integral ao usuário do Sistema Único de Saúde que realiza o Processo Transexualizador. Logo em seguida ao acolhimento desse usuário, o(a) psicólogo(a) realizará avaliação psicológica, que pode variar entre uma e três sessões, não devendo restringir sua lógica em permitir ou impedir os procedimentos cirúrgicos, mas levantando as aspectos que possam ser trabalhados em psicoterapia. Nessa parte do processo, o trabalho da Psicologia é de extrema relevância, pois se forem apontados elementos condizentes com outros diagnósticos psiquiátricos, o usuário será encaminhado ao psiquiatra para diagnóstico diferencial. Com o objetivo de resguardar o sigilo das profissionais psicólogas que se propuseram a contribuir com o presente trabalho, não serão citados os seus nomes, bem como não será identificada a Unidade de Atenção Especializada em que prestam seus serviços. Ao ser questionada sobre quais seriam as principais questões éticas a serem observadas em seu trabalho como psicóloga do Processo Transexualizador, a Psicóloga A refere: “todas as questões que envolvem minha função como terapeuta [...] são iguais a qualquer outro paciente em psicoterapia, por que seria diferente para as pessoas trans? Não sei se entendi direito sua pergunta”. Segundo a Portaria nº 457, o(a) psicólogo(a) atuará na elaboração do sofrimento subjetivamente vivenciado pelo sujeito, bem como acompanhará questões práticas, tais como o afastamento do trabalho, e a comunicação da decisão a pessoas envolvidas (família, cônjuges, etc). Em anexo ao documento, alguns aspectos emocionais são elencados para que o(a) psicólogo(a) leve em consideração no acompanhamento pré e pós-cirúrgico, entre eles, a autoestima, a autoimagem, a elaboração de aspectos conflituosos da infância e adolescência, o controle da ansiedade e a síndrome de angústia pós-cirúrgica. Estas recomendações acabam por perder o sentido quando se estabelece a obrigatoriedade do acompanhamento psicológico, por desconsiderar a autonomia do sujeito, posicionando-se como um paciente de seu transtorno, sobre o qual não tem controle. Segundo a Psicóloga A, “Um dos principais dilemas que a meu ver ferem a ética é a necessidade de o psicólogo ter de submeter-se às exigências definidas pela determinação do CFM8, quanto à obrigatoriedade de acompanhamento psicológico do paciente trans, por dois anos, para que ele tenha acesso às cirurgias”. Percebe-se que a profissional concorda com o conteúdo do manifesto do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (2011), que defende o movimento de despatologização das identidades trans, um olhar que diverge da forma pela qual o procedimento do SUS é regulamentado, ou seja, estabelecendo que se não houver diagnóstico de transexualismo, o usuário perderá seu direito às cirurgias . Sobre isso, ela afirma que um de seus dilemas éticos é “ter que emitir um laudo de transexualidade... ora... não existe nenhum teste que me capacite a dizer que alguém é ou não transexual... porque devo submeter-me mais uma vez a uma exigência de uma portaria e não respeitar a autonomia do sujeito”. A solução encontrada pela profissional é construir um relatório em comum acordo com o usuário. Eliminamos a primeira pergunta ao entrevistar a Psicóloga B, enviando apenas a solicitação de exposição de algum dilema ético já vivenciado em seu contexto de trabalho: “Bom, temos vários dilemas éticos no nosso cotidiano de atendimento neste ambulatório [...] um dilema ético que tenho enfrentado com frequência é sobre o atendimento de outros psicólogos ou psiquiatras, da rede pública ou de consultórios 8

Conselho Federal de Medicina

particulares. Chegam para nós várias pessoas que já passaram com outros profissionais anteriormente. E tem aqueles que dizem que a transexualidade não existe, que não é ‘normal’ ter discordância entre a identidade de gênero e o sexo biológico”. Sobre o laudo exigido para a realização das cirurgias, a Psicóloga B afirmou que alguns profissionais apenas aparentemente entendem a situação de seus pacientes, encaminhando-os com laudos e/ou relatórios inadequados ou nem sequer enviando-os: “Nós aqui atendemos todos que chegam com esta demanda, e se a pessoa já faz psicoterapia, pedimos para o psicólogo fazer o laudo e o relatório psicológico, que são instrumentos formais necessários para: encaminhamento para a Justiça para entrar com processo para a mudança de nome no registro civil; e para o encaminhamento ao Hospital X para a realização da cirurgia de redesignação sexual. Alguns endócrinos particulares ou da rede pública topam fazer o acompanhamento médico do uso de hormônios e também pedem laudo psicológico e/ou psiquiátrico para iniciar o atendimento. Nós oferecemos orientação para os psicólogos de fora, para a confecção destes instrumentos, por exemplo, socializando o modelo de laudo e o modelo de relatório (que parte do modelo que o CRP orienta utilizar). O que tem acontecido é que em alguns dos casos que estou acompanhando, que já fizeram psicoterapia fora daqui, o psicólogo envia laudo ou relatório inadequados, ou insuficientes, ou nem envia o relatório, ou nem entra ou retorna o contato conosco. O paciente fica na promessa do psicólogo anterior e temos que iniciar o processo dele aqui no serviço, desde o começo, e muitas vezes, ele já fez terapia por alguns anos. Isto significa: fazer o processo de psicodiagnóstico para que possamos fazer o laudo (que é o nosso fluxo de atendimento), e depois, se quiser fazer cirurgia, tem que fazer psicoterapia por pelo menos 2 anos (regra do protocolo SUS). E é a solução proposta por mim a todos que ficam nesta situação. Nem todos aceitam. Entendo que o que esses psicólogos fazem é um desserviço a estes pacientes, pois atrasa e atrapalha a resolução ou melhoria de muitos dos problemas que eles vivem, e agrava o sofrimento deles. Eu suponho que estes profissionais não se sintam seguros para assinar o laudo ou relatório e se ‘comprometer’ com as intervenções que o paciente quer fazer no corpo, tanto por hormônios, quanto por cirurgia.” O(a)s transexuais da pesquisa de Sampaio e Coelho (2012, p. 646) reclamaram que os profissionais psicólogos, por vezes, promovem “desconforto, sentimentos de exclusão e discriminação, por desconhecimento ou curiosidade” e que, em algumas situações, promovem a desistência do paciente ao argumentarem sobre “a seriedade e irreversibilidade” do processo transexualizador. Além disso, o(a)s transexuais consideram fundamental que a decisão final seja da própria pessoa. Sobre casos mais críticos de desrespeito à dignidade humana por parte de práticas psicológicas, a Psicóloga B relata: “Além disso, já aconteceu de pacientes quererem denunciar profissionais que atenderam inadequadamente, negando a identidade de gênero do paciente e prometendo a ‘cura’ deste problema, e me pedirem orientação se podem ou não fazer isto. Foi uma saia justa, mas como foram situações realmente absurdas, que o próprio Conselho condena, informei sobre a orientação do Conselho de Psicologia, tentando não influenciar a decisão. Mas de qualquer forma, a discriminação que eles passam em todos os lugares, inclusive nos consultórios médicos e psicológicos é frequentemente tema durante os atendimentos, e já trabalho com eles as repercussões emocionais e formas de enfrentamento e ampliação da autonomia deles.” Nesse sentido, encontra-se no Art. 2º, alínea b, do Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005), a constatação de que é vedado ao profissional da Psicologia “induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais”. Ao concluir sobre a incompreensão do fenômeno da transexualidade, a Psicóloga B afirma que esta questão está imbuída “de muitos preconceitos de gênero. E isto não vai mudar tão rápido. O que fazer? Aqui, vamos tentando apagar incêndios... e tento avaliar, junto com os pacientes, as necessidades, expectativas e o quanto os hormônios e a cirurgia realmente vão ajudá-lo... o que às vezes, os outros profissionais não me parece que fazem”. As práticas psicológicas neste contexto correm o risco de serem prejudicadas pela insuficiência de conhecimento, no entanto, talvez mais perigosa, a imparcialidade de profissionais que não separam seus próprios julgamentos e preconceitos das determinações éticas da profissão podem gerar situações discriminatórias e motivar exclusões.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O trânsito entre os gêneros, bem como a quebra de seus padrões normativos, incita, de alguma forma, a violência contra quem “ousou” desacomodar-se com o próprio corpo e precisa adequá-lo ao que vivencia subjetivamente. Se não formos sequer capazes de cuidar com as palavras que usamos para nos dirigir às transpessoas, estaremos sempre inseridos num local de preconceito, negação e invalidação das identidades e liberdades individuais. É uma travesti que nos procura, e não “um travesti” ou, pior ainda, “um traveco”. Uma transmulher ou uma transexual não “nasceu homem”, muito menos, é “no fundo, um homem”. Essas noções de sociabilidade permitem maior grau de respeito e inclusão de populações consideradas como minorias sociais. Em qualquer contexto em que insira sua prática, o(a) psicólogo(a) deve agir de acordo com os princípios éticos que regulamentam sua profissão e observar sua consonância com os princípios universais de dignidade humana. Enquanto parte integrante da equipe multidisciplinar que presta assistência integral ao usuário do Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde, o(a) psicólogo(a) tem a obrigação de reconhecer a legitimidade das transidentidades e pautar sua prática nos princípios humanizadores do movimento de despatologização das transidentidades. A Psicologia, nesse contexto, exercita um papel fundamental em promover o respeito às diversas manifestações da subjetividade nas performances dos sujeitos, construindo práticas despatologizantes e olhares sócio-historicamente embasados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁVILA, Simone; GROSSI, Miriam Pillar. Maria, Maria João, João: reflexões sobre a transexperiência masculina. In: Fazendo Gênero 9: diásporas, diversidade, deslocamentos. Florianópolis, 23 a 26 de agosto de 2010. BENTO, Berenice; PELÚCIO, Larissa. Despatologização do Gênero: Politização das Identidades Abjetas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 569-581, maio/ago. 2012. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria nº 457, de 19 de agosto de 2008. Aprova a Regulamentação do Processo Transexualizador no âmbito do Sistema Único de saúde – SUS. BUTLER, Judith. Gender Trouble. Nova York e Londres: Routledge, 1990. ––––––. Desdiagnosticando o gênero. Tradução de André Rios. Revista Physis, v. 19, n. 1, p. 95-126, 2009. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.482/97. Autoriza, a título experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.652/2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.482/97. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília: 2005.

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