Produção de conhecimento e aprendizado em Teoria das Relações Internacionais no Brasil

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5° ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS “REDEFININDO A DIPLOMACIA NUM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO” BELO HORIZONTE, 29 A 31 DE JULHO DE 2015

ÁREA TEMÁTICA: ENSINO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Produção de conhecimento e aprendizado em Teoria das Relações Internacionais no Brasil: aplicando Paulo Freire

IVI VASCONCELOS ELIAS UNILASALLE-RJ/ IUPERJ

Produção de conhecimento e aprendizado em Teoria das Relações Internacionais no Brasil: aplicando Paulo Freire

O artigo investiga a produção e a aprendizagem de conhecimento teórico em Relações Internacionais (RI) no contexto brasileiro com foco na conjuntura de ensino de disciplinas teóricas na graduação de RI. Um dos maiores problemas enfrentados pelos professores universitários no Brasil é a dificuldade dos alunos em compreender e escrever textos acadêmicos. A experiência de sala de aula aponta que parte desses problemas está estreitamente relacionada a uma semelhante falta de habilidade cognitiva discente no que se refere à compreensão das relações entre os argumentos e à percepção da importância desses argumentos para o desenvolvimento das teorias científicas. Argumenta-se que tal situação é agravada pelas características das disciplinas teóricas em RI, cujas teorias tradicionais – realismo e liberalismo – ainda ocupam espaço privilegiado na maioria dos currículos de graduação no Brasil. Nota-se que essas abordagens teóricas perpetuam um entendimento do sistema internacional baseado na política de poder e não tratam de tópicos relacionados ao contexto em que os estudantes brasileiros estão situados. O Brasil, um estado caracterizado como periférico, em desenvolvimento e do Sul global, possui uma agenda política permeada por temas como, por exemplo, pobreza, direitos humanos, para além das dinâmicas de conflito e cooperação. Consequentemente, não contribuem para estimular a análise crítica dos alunos, que tendem a simplesmente reproduzir os conceitos estudados em seus textos. Relaciona-se essa repetição à limitações das teorias tradicionais de RI. A partir de um marco teórico com base na pedagogia crítica de Paulo Freire, o presente trabalho busca propor elementos para pensar o ensino teórico das RI a fim de propiciar a abertura de espaços de pensamentos. Palavras-chave: pedagogia crítica, teoria das RI

O presente artigo busca apresentar uma discussão sobre o ensino de teoria das relações internacionais em nível de graduação relacionando o conteúdo das disciplinas teóricas da área à pedagogia de Paulo Freire. Argumenta-se que o ensino teórico de relações internacionais, em virtude da predominância curricular das teorias tradicionais de cunho positivista, realismo e liberalismo, pode ser ligado ao conceito de educação bancária proposto por Paulo Freire. Nesse sentido, o caráter positivista das teorias tradicionais e sua reivindicação universalista acerca das explicações sobre política internacional fazem com que o processo de aprendizagem dessas teorias pelos graduandos seja o de mera “importação” de conceitos e premissas teóricos. Sendo assim, observa-se que é comum os alunos falharem em entender e discutir conceitos, limitando-se, na maioria das vezes, a repetir o conhecimento teórico ensinado.

Sendo assim, tal qual a concepção bancária, os alunos apenas “enchem” a cabeça de conhecimento, o que não permite que o discente pense criticamente sobre a política internacional a partir de temas e questões a partir de uma visão oriunda do Brasil. Como consequência, a cognição do aluno é formada por concepções que levam à mera repetição do conhecimento, impedindo a emergência de um pensamento teórico crítico que possa formar um pensamento autóctone de relações internacionais contribuindo para um maior pluralismo teórico na disciplina. Apresenta-se, em primeiro lugar, uma breve problematização sobre o caráter das teorias tradicionais de RI e seu lugar na grade curricular brasileira. Em seguida procede-se a um exame da pedagogia crítica de Paulo Freire e, por fim, seus pontos de diálogo com o ensino de RI são explorados.

1. O contexto de ensino de Teoria das Relações Internacionais no Brasil: breves apontamentos Na graduação de RI do Brasil, as teorias tradicionais – realismo e liberalismo – ainda ocupam espaço privilegiado nos currículos de graduação. Nota-se que essas abordagens teóricas não tratam de tópicos relacionados ao contexto em que os estudantes brasileiros estão inseridos, isto é, o de um país como o Brasil considerado um estado em desenvolvimento, emergente, periférico e do Sul global. Essas teorias caracterizam o internacional como o âmbito da política de poder cujos temas principais giram em torno do conflito e da cooperação. A persistência dessa ênfase curricular perpetua um entendimento das Relações Internacionais como uma disciplina afastada de temas como pobreza, desenvolvimento, meio ambiente e direitos humanos, mais afeitos ao cotidiano político no qual está situado o aluno. As perspectivas críticas que permearam a disciplina no pós-Guerra Fria, chamadas póspositivistas, e que dialogam com as ciências humanas de forma mais ampla ainda ocupam pouco espaço nas grades curriculares de graduação e acabam relegadas ao âmbito do hermetismo teórico. Tais teorias pós-positivistas compreendem de forma ampla as contribuições oriundas do Construtivismo, Teoria Crítica, Pós-modernismo, Pós-estruturalismo, Pós-colonialismo e os Estudos de gênero. É possível constatar, portanto, que é privilegiado um conhecimento técnico na graduação de RI em detrimento do conhecimento crítico. Destarte, pode-se dizer que o ensino teórico na graduação de Relações Internacionais no Brasil, em grande medida não contribui para estimular a análise crítica dos alunos e confirma o imaginário da política internacional como a repetição e

reafirmação de ações estatais baseadas na lógica de poder. Esse aspecto reflete-se na cognição dos alunos, que tendem a simplesmente reproduzir os conceitos estudados na escrita de textos acadêmicos sobre política internacional especialmente em avaliações escritas. Assim, com o propósito de problematizar o processo de ensino e aprendizagem das teorias em Relações Internacionais, este artigo tem como principal objetivo apresentar uma aproximação com a pedagogia crítica proposta por Paulo Freire. Os debates tradicionais da disciplina representam o modo como o campo de estudos de RI se define em larga medida. Esses debates mantêm a predominância de uma disciplina centrada na visão americana e o seu comprometimento com metodologias positivistas. De acordo com Tickner, a disciplina de RI ainda hoje produz suas teorias sobre o mundo a partir de países do centro reivindicando um universalismo em suas principais premissas acerca do funcionamento da política global. Não haveria uma reflexão de fato plural e internacional acerca de suas próprias práticas privilegiando, assim, um locus geográfico específico na produção teórica em RI. Observa-se que, ironicamente, não haveria na disciplina espaço para reflexões de fato globais, mas a perpetuação de um discurso teórico que se pretende universal (Tickner, 2011). A história disciplinar que compõe a narrativa dominante no campo de estudos de RI é descrita como uma sucessão de debates teóricos que envolvem disputas sobre noções de certo/errado baseadas na epistemologia positivista. Ole Waever identifica que há nessa narrativa a delimitação dos centros de poder da disciplina, especialmente a projeção dos EUA como potência. O primeiro debate marca a ascensão americana e o segundo, a afirmação do caráter científico em RI com a disseminação de parâmetros teóricos como a escolha racional, o quantitativismo e a aplicação de modelos formais (Waever, 1998). Na mesma linha, Hoffman analisa que o pós-2ª Guerra Mundial constituía um ambiente favorável para a tradição científica, sendo uma peculiaridade americana a busca pela resolução de problemas na política internacional por meio da aplicação do método científico. Este seria supostamente livre de valores e calcado em um processo que inclui as fases de investigação empírica, formulação e teste de hipóteses. O método científico passaria a ser, então, o parâmetro para a avaliação da credibilidade científica de outras abordagens teóricas constituindo um poderoso discurso de autoridade (Hoffman, 1977) A preferência por modelos e análises com base no estabelecimento de relações de causalidade ocasiona uma ausência de reconhecimento da legitimidade e do entendimento interpretativo de teorias críticas com ontologias e peistemologias

diversas. Essa ausência, por sua vez, contribui para a reprodução da hegemonia americana e do status quo tendo em vista que o tipo de análise produzido no âmbito acadêmico também inspira a formulação de políticas. O universalismo das teorias tradicionais de RI assume que a disciplina se pretende internacional, ou seja, relevante para todos os povos e estados. Porém, constitui uma mitologia da história da política internacional como uma narrativa progressista, eurocêntrica e vestfaliana. Nesse sentido, não reconhece o legado histórico dos processos de imperialismo, colonização e descolonização. De acordo com Halperin, a disciplina de RI nasce no começo do século XX motivada por uma preocupação com a administração do imperialismo, ou seja, na busca por soluções para o gerenciamento da dominação em nível global, as RI surgiram como uma espécie de “ciência ocidental”. (Halperin, 2006.) Willinsky observa que o conhecimento da humanidade dentro de um contexto global imperial possibilitaram o surgimento e disseminação de ideias acerca de raça, cultura e nação que foram instrumentalizadas pelo Ocidente para dividir e “educar” o mundo. (Willinsky, 1998). Nesse cenário, as vozes críticas ainda estão engajadas à tradição do conhecimento ocidental, ou seja, partindo de seus conceitos, sendo que os colonizados/dominados não conseguem espaço para contar sua própria história. Mesmo com a disseminação das teorias de cunho pós-colonial, observa-se que muito do debate que se engaja com a chamada produção teórica da periferia ainda permanece pautado pelas bases lançadas pelas teorias tradicionais. Como consequência, pouco é avançado na produção e legitimação de novos conhecimentos com origem em lugares fora do centro. É relevante, então, colocar os seguintes questionamentos levantados por Tickner: qual conhecimento é considerado legítimo e qual conhecimento é ignorado nas RI? Há ainda enormes desigualdades em recursos materiais que determinam onde e por quem o conhecimento é produzido (Tickner, 2011). A combinação das hierarquias de poder e a ausência de uma autorreflexão disciplinar tornam difícil a criação de uma disciplina mais inclusiva. A inclusão deve ser pensada não só a partir das fronteiras geográficas, mas também das metodológicas. O apego das RI a modelos europeus e americanos desenha uma assimetria de fluxos de conhecimento entre o Norte e o Sul. Há um cenário de dependência intelectual em que categorias e conceitos do chamado Terceiro Mundo possuem aplicação e reconhecimento escassos em outros contextos sociais e culturais. Sendo assim, em grande medida, é negada aos estados da periferia global a condição de

sujeitos ativos na construção de seu próprio conhecimento acerca da política internacional. A grande maioria do conhecimento sobre a periferia é produzida e/ou validada por acadêmicos dos países centrais. A periferia é representada a partir de conceitos que evocam superioridade e diferença como, por exemplo, subdesenvolvimento, autoritarismo e falência estatal. São ressaltados os elementos que estão ausentes e não

a

análise

dos

aspectos

encontrados

nas

periferias.

A

repetição

e

institucionalização dos conceitos fazem com que estes pareçam objetivos, neutros e estáticos. De acordo com Doty, a hegemonia é observada precisamente na geração de categorias com caráter estático para interpretar o mundo. Tais categorias determinam as formas pelas quais se pode analisar e entender realidades específicas. (Doty, 1996). Tickner observa que na periferia há produção importante de conhecimento autóctone. A importação de conhecimento ocorre em geral dentro de um contexto de conhecimento local pré-existente com o qual o conteúdo de ambos se modifica. As contribuições do Sul caracterizam-se, então, por localizar-se nas fronteiras do conhecimento dominante, mas não totalmente fora delas. (Tickner, 2010). No entanto, os conhecimentos locais não conseguem projeção suficiente para nortear o debate teórico ou mesmo adquirirem espaço na grade curricular universitária. Exemplos dessas contribuições locais são a teoria da modernização e o pensamento cepalino, a teoria da dependência e a questão da autonomia. 2. A pedagogia crítica e do oprimido proposta por Paulo Freire Paulo Freire defende que os “oprimidos” seriam capazes de superar o sentimento de impotência e agir por si mesmos para transformar socialmente sua existência. A educação na concepção freireana deveria ser fundamentada na realidade cotidiana dos que estão aprendendo a ler e a escrever. Sendo assim, a educação deveria, portanto, ser realizada com a pessoa em um processo que conjuga permanentemente engajamento, colaboração e responsabilidade social e política de alunos e professores (Gauthier; Tardif, 2010:309). A educação é apresentada por Freire como um caminho para a libertação que se realiza em duas etapas. A primeira ocorre quando os indivíduos se tornam conscientes da sua opressão e transformam o status quo por meio da práxis. A segunda, culmina em um processo permanente de ação buscando a emancipação. (Freire, 2011a).

De acordo com Freire, o alfabetismo compreende a capacidade do indivíduo de efetuar uma leitura crítica e política do mundo que o cerca e, consequentemente, de transformá-lo. Nesse sentido, é proposto não apenas um método de aprender a ler e a escrever, mas uma tomada de posição crítica perante os discursos ideológicos de seu tempo a partir do seu próprio contexto sociopolítico. (Freire, 2011a) Há o reconhecimento de que, assim como a riqueza material e o poder político, o conhecimento é também distribuído de forma desigual no mundo. A educação seria o prolongamento da atividade política e sua realização concreta na convivência entre as pessoas. Esta concepção seria oposta à ideia de que a realidade é “dada”, ou seja, inerte, passiva e independente da ação humana. A educação para a liberdade de Freire é um ato político que busca denunciar os sistemas hierárquicos, autoritários e de exclusão e exigir a adoção de uma posição coletiva para a construção de uma ordem social democrática e mais inclusiva. A pedagogia da libertação, portanto, tem por objetivo levar os alunos a refletirem sobre sua experiência histórica e sua situação social e pessoal no intuito de questionarem o presente e perceberem que a realidade existente pode ser mudada. Em sua pedagogia, Freire traz como base de suas reflexões a preocupação em reconhecer a desumanização como realidade histórica. A pedagogia seria, então, um instrumental de busca pela humanização. A humanização e desumanização são entendidas como possibilidades dentro da história num contexto real e objetivo para homens que são seres inconclusos. A vocação da humanidade seria negada permanentemente na injustiça, exploração, opressão e violência. A desumanização não é destino dado, mas resultado de uma ordem injusta que gera violência dos opressores e esta, o “ser menos”. (Freire, 2011ª) Sendo assim, recuperar a humanidade é uma forma de criá-la por meio de homens como “seres para si”. Há nesse intuito a busca por transformar os homens em sujeitos restauradores da humanidade e não apenas fomentar no homem o desejo de ocupar o lugar do opressor mimetizando suas ações. Nos dizeres de Freire, “Quem melhor que os oprimidos se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que reles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela.” (Freire, 2011a, p.31)

Portanto, na concepção de Freire, a pedagogia do oprimido tem que ser forjada com o oprimido e não para o oprimido, sendo este homens ou povos, na luta

incessante de recuperação de sua humanidade. Por conseguinte, a opressão e suas causas devem ser objeto da reflexão dos oprimidos para gerar o engajamento necessário à libertação. É neste engajamento que a pedagogia se fará e refará. Nesse contexto, os oprimidos têm que se descobrir “hospedeiros” do opressor. A pedagogia do oprimido não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestação da desumanização. O poder dos opressores é expresso em falsa generosidade e jamais ultrapassa a debilidade dos oprimidos. A ordem social injusta é a fonte geradora, permanente desta generosidade que se nutre da morte, do desalento e da miséria. (Freire, 2011a) É importante ressaltar que os oprimidos em um primeiro momento deste descobrimento, em vez de buscar a libertação, tendem a ser opressores ou subopressores adotando uma postura chamada de “aderência” ao opressor.

De

acordo com Freire, “A estrutura de seu pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se formam. O seu ideal é, realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre estiveram e cuja superação não lhes está clara, é ser opressores. Estes são o seu testemunho de liberdade”. (Freire, 2011a, p.44).

O conhecimento dos oprimidos de si mesmos se encontra prejudicado pela imersão na realidade opressora. Reconhecerem-se contrários ao outro não significa lutar pela superação da contradição. Freire identifica que nesse ponto a tendência é ocorrer uma quase-aberração na qual um dos pólos da contradição pretende não a sua libertação, mas a identificação com o seu contrário. Isto de deve ao fato de que a situação concreta, vigente, de opressão, não foi transformada. Essa aderência é mantida por meio da prescrição, ou seja, da imposição de uma consciência por outra na mediação opressores-oprimidos. As prescrições possuem um sentido alienador na medida em que transformam a consciência recebedora em consciência hospedeira da consciência opressora. Por isto, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito que está pautado em bases estranhas a eles, a pauta dos opressores. A superação dessa situação implica o reconhecimento crítico da razão desta situação, para que através de uma ação transformadora que incida sobre ela, se instaure uma outra, que possibilite aquela busca do “ser mais”. (Freire, 2011a,p. 46). Os oprimidos que introjetam as prescrições dos opressores temem a liberdade, na medida em que esta exige o preenchimento do vazio deixado pela expulsão do

outro com sua autonomia. A liberdade que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca que só existe no ato de quem a faz. A liberdade não deve ser encarada como um ponto ideal mitológico, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. É condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos. Os oprimidos sofrem uma dualidade: não sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. Noz dizeres de Freire, “entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo” (Freire, 2011a, p.48). Se faz indispensável aos oprimidos, para a luta por sua libertação, que a realidade concreta de opressão já não seja para eles uma espécie de mundo fechado do qual não podem escapar, mas uma situação que apenas os limita e que eles podem transformar. Sendo assim, é preciso que os oprimidos reconheçam os limites que a realidade opressora lhes impõe e tenham neste reconhecimento o motor de sua ação libertadora. Somente há a superação da contradição em que se acham quando o reconhecerem-se oprimidos os engaja na luta por libertar-se. É preciso que se entreguem à práxis libertadora. O que caracteriza os oprimidos, como consciência servil, é fazer-se coisa e transformar-se em “consciência para outro”. Neste processo de superação, os oprimidos deixam de ser uma designação abstrata para se tornarem homens concretos, injustiçados e roubados. A exigência radical, segundo Freire, é que a superação da contradição só pode ser verificada de maneira objetiva na transformação. A realidade social e objetiva não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens e também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade, se esta, na inversão da práxis, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens. A realidade opressora, ao constituir-se como um quase mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona como uma força de imersão das consciências. A relação do indivíduo com o real ocasiona um laço particular, a consciência humana, que é expressa na linguagem. Na visão de Freire, a consciência possui diferentes graus de apreensão da realidade e pode ser: primária, mágica ou crítica. A consciência primária se resume à sobrevivência e à função dos imperativos biofísicos dessa sobrevivência. Não está presente a consciência histórica e o engajamento. A consciência mágica é caracterizada pelo indivíduo que atribui a entidades superiores como, por exemplo, o destino e a sorte, o poder de dominar a realidade. Esta consciência subestima a capacidade do homem de interpretar a realidade e está diretamente relacionada ao conceito de alienação proposto por Marx. Por fim, a

consciência crítica se caracteriza pela substituição de explicações mágicas pela análise permanente da realidade que incita a uma disposição para a ação transformadora. (Gauthier; Tardif, 2010, p.314). A consciência crítica busca ir além da superfície dos problemas, aprofundando a análise das situações a fim de propiciar o surgimento de questionamentos nos indivíduos tornando-os capazes de rever suas posições e contradições. Na visão de Freire, o desenvolvimento dessa consciência crítica supõe uma volta às fontes da democracia. É por um processo de conscientização, pelo qual a escola é tão responsável quanto o estado, que o ser humano pode chegar a uma consciência crítica. Sendo assim, a pedagogia da libertação busca impulsionar a consciência crítica e a práxis libertadora. É necessário que o indivíduo aprenda com sua própria prática. Nas palavras de Freire: “para que a alfabetização dos adultos não seja uma pura mecânica e um simples recurso à memória, é preciso dar-lhes os meios de se conscientizar para alfabetizar-se (...), pois, à medida que um método ativo ajuda o homem a tomar consciência da sua problemática, da sua condição de pessoa, e logo de sujeito, ele adquirirá instrumentos que lhe permitirão fazer escolhas (...) Então, ele se politizará a si mesmo”. (Freire, 2011c, p.125).

Para impulsionar a conscientização, Freire propõe um método dialógico oposto à educação tradicional, que ele chama de educação bancária. O caráter bancário da educação consiste basicamente na concepção de que o processo de aprendizado compreende depósito, transferência e transmissão de conhecimento. Dessa forma, os alunos comparecem à escola como clientes que vão ao banco sacar seu depósito de conhecimento e “encher” a cabeça. O conhecimento depositado nos alunos já fora previamente fabricado e selecionado pelos mestres. O aluno é visto, então, como um recipiente vazio que deve ser preenchido pelas riquezas dos conhecimentos oficiais e aprovados pelos poderes estabelecidos. (Freire, 2011c; Gauthier; Tardif, 2010). A educação bancária é, portanto, estritamente passiva e pautada na hierarquização entre o docente, ou aquele que detém o conhecimento legítimo; e o aluno, receptor passivo do conhecimento e que não conhece nada. Nessa concepção, a tarefa do docente consistiria em trazer conhecimentos para os alunos que, segundo Freire, não serão aqueles da experiência vivida relacionada ao contexto social e político dos alunos, mas os da experiência narrada ou transmitida. (Gauthier; Tardif, 2010: 317). Os alunos, em seu papel submisso e passivo, atuariam como meros repetidores de conceitos cujos conteúdos refletiriam o conhecimento oficial considerado legítimo por fontes hierárquicas de poder. Como resultado, a educação

bancária gera alienação e não permite a emergência da consciência crítica. A consciência bancária é um espaço vazio a ser preenchido com informações que nada têm a ver com a subjetividade vivida do aluno. A conscientização fruto da pedagogia da libertação constitui uma ruptura com os mitos interiorizados e permite que o indivíduo atinja outros níveis de consciência, especialmente a consciência da opressão de ser um objeto em um mundo em que apenas alguns sujeitos detêm o poder. A educação como prática da liberdade é, ao mesmo tempo, um ato de conhecimento e uma abordagem crítica da realidade. Para tanto, a pedagogia libertadora utiliza o método dialógico para superar a simples transferência de conhecimento e de valores para os alunos. Importante ressaltar que o diálogo torna-se possível apenas quando ocorre a superação das posições de poder na interação entre docente e aluno. É necessário, portanto, que o aluno seja reconhecido como sujeito ativo em uma interação de cooperação e intercambialidade dos papeis de professor e aluno. O sujeito ativo é capaz de liberdade e consciência. Em resumo, para Freire, os métodos pedagógicos não são ferramentas independentes dos contextos, indivíduos e intenções. Destarte, não existe uma pedagogia ideal, sendo que toda abordagem pedagógica deve responder aos problemas reais vividos pelas pessoas, em vez de ser uma aplicação abstrata de ideias importadas de outro lugar. A obsessão pelos métodos tende a afastar as ideias filosóficas e políticas, privilegiando considerações instrumentais e operacionais.

3. A pedagogia crítica e o ensino teórico de Relações Internacionais

É possível observar diversos pontos de convergência entre os pontos de discussão levantados acerca do ensino teórico e a produção de conhecimento na área de RI. A disciplina é marcada pela narrativa da repetição da política de poder e a busca pela explicação da lógica da anarquia. Estes aspectos são centrais para as teorias tradicionais, realismo e liberalismo, que predominam nos currículos de graduação em RI. Sendo assim, o caráter positivista prevalece seja por estes marcos teóricos, como também por disciplinas que privilegiam o conhecimento técnico e bancário sobre o mundo. A graduação em RI perpetua, assim, a interpretação da política internacional por meio de lentes que são colocadas por discussões e debates ocorridos nos países centrais. Os parâmetros do centro são colocados como parâmetros para o debate teórico e legitimação do conhecimento nas RI. Dessa forma, a disciplina é fundada na

imposição de suas bases de pensamento que, por sua vez, revela uma estrutura desigual de distribuição de conhecimento. O pensamento de Paulo Freire traz contribuições de sua pedagogia crítica para pensar o papel da periferia global que pode ser entendida como ocupando o lugar do oprimido no pensamento freireano. A educação e o processo ensino-aprendizagem constituiriam a oportunidade para promover o engajamento que levaria a mudança por meio da conscientização e da práxis. O alfabetismo seria a busca de tomada de posição crítica sobre o mundo. O aluno levado a refletir sobre sua experiência histórica questiona a política internacional e, consequentemente, promove a humanização das RI e afasta o caráter bancário do ensino reforçado pelo positivismo. Nesse sentido, o sul global tornar-se-ia também sujeito na produção de conhecimento em RI e não apenas reprodutor de teorias. A pedagogia crítica de Freire é um instrumento para pensar não apenas a predominância da reprodução de teorias e debates, mas para conduzir à abertura de espaços de inovação de pensamento com base no engajamento crítico do aluno com sua própria realidade política. Ao refletir criticamente sobre seus problemas e questões, a produção de conhecimento incentivada na graduação é capaz de legitimar novos temas e questões como objeto de política internacional rompendo na prática com a separação doméstico– internacional colocada na disciplina de RI. Sendo assim, a valorização dos saberes por meio do método dialógico freireano traz o internacional para o contexto no qual o aluno está inserido. Nesse sentido, a transformação da produção de conhecimento em RI passa pela renovação da conexão local-global, ou seja, a reflexão crítica e a práxis acerca dos temas que afetam o cotidiano no aluno sendo conjugados com a ligação desses temas em outros contextos políticos, sociais e econômicos do âmbito global.

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