Professores indígenas: atores de pesquisa e autores de livros

June 1, 2017 | Autor: F. Guimarães | Categoria: Educação Escolar E Formação De Professores Indígenas
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Foto: Luiz Quaglia

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Ano XVI - Nº 63 Presente! revista de educação

Professores indígenas: atores de pesquisa e autores de livros Francisco Alfredo M. Guimarães*

Professores indígenas de todo o país estão vivenciando, através desses cursos, uma profunda mudança de paradigmas, principalmente no modo como a pesquisa torna-se elemento fundamental na formação, propiciando o desenvolvimento de uma série de projetos centrados em estudos de campo em suas aldeias.

* Professor de História Indígena da UNEB, Mestre em educação (UFBA), formador e um dos coordenadores do Magistério Indígena da Bahia e do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da UNEB. [email protected]

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As sociedades indígenas na Bahia tiveram uma participação efetiva ao longo de todo processo de colonização, o que as pôs em contato estreito com diferentes agentes coloniais nas mais diversas frentes de expansão (madeireiras, agrícolas, pecuárias, mineradoras, entre outras). Quanto à educação escolar desses povos, sabese que foi baseada em modelo educacional que remonta ao período da formação dos aldeamentos missionários e da realização do trabalho de catequese ao longo dos séculos XVI e XVII. Desde essa época, a oferta de educação escolar para as comunidades indígenas esteve orientada por um mesmo princípio: a aniquilação da diversidade e das identidades étnicas indígenas. No diagnóstico realizado pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), com base em levantamentos da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), consta que atualmente os povos indígenas na Bahia apresentam uma população aproximada de 22.212 pessoas de 14 diferentes etnias, com a seguinte distribuição: Extremo Sul: 7.799 indivíduos das etnias Pataxó e Tupinambá de Belmonte; Sul e Baixo Sul: 6.120 indivíduos das etnias Pataxó Hã Hã Hãe (inclusive Baenã, Kamakã, Kariri-Sapuyá e Tupinambá do Caramuru) e Tupinambá de Olivença; Norte e Nordeste: 7.150 indivíduos das etnias Atikum, Kaimbé, Kantaruré, Kiriri, Pankararé, Truká, Tumbalalá, Tuxá e Xukuru-Kariri e Oeste: 1.143 indivíduos das etnias Atikum, Kiriri, Pankaru (Quinane) e Tuxá (UNEB, 2007). O Censo Escolar 2007 aponta a existência na Bahia de 57 escolas (2,2% das escolas indígenas no Brasil) que atendem a 6.316 estudantes (o que representa 3,7% dos estudantes indígenas no país) de 12 etnias em seus próprios territórios, distribuídas em 21 municípios baianos.  Dentre essas escolas, em que trabalham aproximadamente 350 professores, sete estão vinculadas diretamente à Secretaria Estadual de Educação , as demais são mantidas por secretarias de educação de 19 municípios. Apesar da desproporcionalidade apresentada, é importante destacar que, independentemente da vinculação administrativa, todas as 57 escolas indígenas estão

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atreladas às Diretorias Regionais de Educação (DIRECs). Como a legislação federal define que essa modalidade de ensino é de responsabilidade da esfera administrativa estadual, o que foi ratificado em nosso estado através do Decreto 8.471/2003, esses dados evidenciam a influência que as administrações municipais ainda exercem sobre as comunidades indígenas no campo educacional. Sobre a modalidade/nível de ensino oferecido nas 57 escolas indígenas, o mesmo diagnóstico esclarece: (...) três oferecem apenas Educação Infantil, 54 desenvolvem o Ensino Fundamental de 1ª a 4ª série, 22 o Ensino Fundamental de 1ª a 8ª série, sendo que quatro dentre estas últimas, além do Ensino Fundamental, oferecem o Ensino Médio - as Escolas Indígenas Pataxó de Barra Velha, Boca da Mata e Coroa Vermelha, ambas no município de Porto Seguro, e Pataxó Hãhãhãe no município de Pau Brasil (UNEB, 2007:12).  Quanto à distribuição dos alunos por séries na educação escolar indígena no estado da Bahia, em outro diagnóstico, a UNEB apresenta os seguintes dados: 53,05% no Ensino Fundamental (primeira fase), 18,58% no Ensino Fundamental (segunda fase), 10,97% na Educação de Jovens e adultos, 3,78% no Ensino Médio e 13,58% na Educação Infantil. Os percentuais apresentados evidenciam um fenômeno preocupante: a saída de jovens estudantes de suas respectivas aldeias para dar continuidade aos seus estudos em escolas não-indígenas, sendo assim “privados de seus direitos com relação à educação escolar indígena específica e diferenciada em suas próprias comunidades” (UNEB, 2008) – o que justifica a necessidade de ampliação das políticas públicas na área educacional e do ensino médio nas aldeias para por fim ao êxodo de estudantes indígenas.

Formação de professores indígenas

Em decorrência da promulgação da Constituição Federal de 1988 (artigos 210, § 2º, e 231), que redirecionou a orientação ideológica

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do Estado, imprimindo novos conceitos e novas práticas no seu relacionamento com os povos indígenas, em todo o país as escolas indígenas vêm passando por profundas transformações e assumindo um novo significado para seus povos: meio eficaz e legítimo para a garantia de acesso aos conhecimentos ocidentais, sem que para isso tenham que deixar de lado suas riquezas culturais e lingüísticas. Várias experiências indicam que a consolidação da Educação Escolar Indígena, tendo como base a afirmação de uma concepção pedagógica centrada na diferença, na especificidade, no bilingüismo e na interculturalidade, constitui-se numa tarefa complexa, mas que, segundo Grupioni, (...) tem encontrado soluções muito diferentes em várias localidades do país, e para a qual não há um único modelo a ser adotado, vista a complexa heterogeneidade e diversidade de situações sociolingüísticas, culturais, históricas e de formação e escolarização vividas pelos professores índios e por suas comunidades (GRUPIONI, 2006:51). Para se atingir esse propósito, um dos objetivos explicitados na legislação vigente é de que devam ser implementados programas de formação inicial e continuada de professores indígenas, para que os mesmos possam assumir, de forma autônoma, a condução do processo educacional em suas aldeias. Considerando a legislação nacional e as pressões do movimento indígena e indigenista por uma educação escolar específica e diferenciada, o processo de mudança no campo institucional tem início na Bahia em 1996 com o oferecimento do Curso de Magistério Indígena, realizado numa parceria entre a UNEB, UFBA, SEC, FUNAI e MEC. Em 2002, foram formados 96 professores e, em 2003, tivemos a abertura de uma nova turma com 108 professores de 13 etnias do nosso estado, os quais ainda estão em processo de formação. A proposta curricular desse curso está lastreada em (...) estudos sócio-antropológicos e pedagógicos, e baseada nos dispositivos legais construídos após a Constituição Brasileira de 1988, com ênfase na LDB de 1996 e seus desdobramentos. Em conformidade

com esses dispositivos, adota a perspectiva da educação escolar específica, diferenciada, intercultural e comunitária, tão bem-detalhada no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas - RCNEI/ MEC. (SEC, 2006, p. 6).

Para consolidar esse processo de mudança, o Estado da Bahia, através do Decreto 8.471/03, criou a categoria de Escola Indígena no âmbito do Sistema Estadual de Ensino e passou a se responsabilizar oficialmente pelo oferecimento da Educação Escolar Indígena. Dando continuidade à perspectiva de formação de professores indígenas, a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) iniciará, agora em 2009, o Curso de Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena, o qual tem como objetivo a formação de professores habilitados para o exercício da docência e da prática educativa nos níveis fundamental e médio da educação básica, bem como para atuarem no campo da pesquisa, da produção e gestão do conhecimento para a educação comunitária. Serão atendidos 108 indígenas por semestre, sendo 54 por pólo - municípios de Paulo Afonso e Teixeira de Freitas. Conforme está definido no projeto do referido curso, o desenvolvimento de competências profissionais referendadas pelo conhecimento acadêmico-científico terá como ênfase o (...) diálogo permanente com os saberes e práticas tradicionais, valores, atitudes e habilidades relevantes para suas comunidades de origem. Esta formação diferenciada implica a capacitação progressiva para elaboração, gestão, desenvolvimento e avaliação dos projetos político-pedagógicos, currículos, programas e produção de materiais didáticos específicos, fundamentados na cultura tradicional de cada povo  (UNEB, 2008).  

Professores indígenas de todo o país estão vivenciando, através desses cursos, uma profunda mudança de paradigmas, principalmente no modo como a pesquisa torna-se elemento fundamental na formação, propiciando o desenvolvimento de uma série de projetos centrados em estudos de campo em suas aldeias. Ao apontar as especificidades da formação de professores indígenas, Grupioni, afirma:

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O professor indígena deve ser formado também como pesquisador, não só de aspectos relevantes da história e da cultura do seu povo mas também dos conhecimentos significativos nas diversas áreas do conhecimento. Tal como estabelecido em documento do MEC, os professores indígenas têm a difícil responsabilidade de serem os principais incentivadores à pesquisa dos conhecimentos tradicionais junto aos membros mais velhos de suas comunidades e da difusão entre as novas gerações, visando à sua continuidade e reprodução cultural: assim como estudarem, pesquisarem e compreenderem os conhecimentos reunidos no currículo escolar à luz de seus próprios conhecimentos (GRUPIONI, 2006, p.53).

Considerando que a formação de professores indígenas requer um quadro qualificado de professores nos cursos de formação, sobretudo com experiência de pesquisa com povos indígenas, na Bahia, a participação da UNEB tem sido fundamental nesse processo, não só pelo seu caráter multicampi, está presente em praticamente todas as regiões do estado, mas, sobretudo, pela articulação que vem sendo feita entre essa formação e projetos complementares, como é o caso do projeto Publicação de Livros Didáticos para Escolas Indígenas na Bahia.

Tradição oral: matéria-prima para os livros didáticos

Desenvolvido em parceria com a Coordenação de Educação Indígena da Secretaria da Educação-SEC, o projet o Publicação de Livros Didáticos para Escolas Indígenas na Bahia destaca a produção dos livros Vida e Cultura do Povo Tuxá de Ibotirama, Nosso Povo: Leituras Kirirí - Educação Diferenciada na visão do Povo Kirirí e Leituras Pataxó: Raízes e Vivências do Povo Pataxó, que já estão sendo adotados pelas escolas indígenas dessas etnias. Mesmo ainda não integrando formalmente um Programa de Ações Afirmativas na UNEB, a publicação desses livros constitui-se na primeira e mais significativa investida de universidades baianas no sentido de apoiar as comunidades indígenas no campo educacional. A sua produção foi orientada por uma equipe de professores da área de estudo Sociedade/Natureza/Cultura do Curso

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de Magistério Indígena, são eles: Francisco Guimarães, especialista em etnohistória; Ricardo Panfilio de Souza, etnomusicólogo; Márcia Resende Spyer, geógrafa com vasta experiência em projetos de produção de livros de autoria indígena. Esse projeto tem como princípio o domínio por parte dos professores indígenas de teorias e métodos de pesquisa que permitam um registro adequado de sua tradição oral, bem como o acesso a acervos documentais e bibliográficos. Tais referenciais se constituem em matéria-prima para que façam (re)criações textuais e ilustrações para os livros. Consideramos nesse processo duas perspectivas historiográficas que são apresentadas e trabalhadas ao longo da formação: • a escritura de uma história a partir da ótica dos próprios indígenas, via tradição oral, ligada ao caráter sociocultural de cada povo e suas representações sobre si mesmos. • a escrita de uma história indígena focada nas perspectivas socioculturais e históricas definidas por representações acadêmicas nas quais prevalece uma concepção de história sedimentada, caracterizada por uma visão do índio pelo não-índio. Todo material produzido durante o processo de pesquisa e da produção dos livros didáticos é fruto de um trabalhado coletivo desenvolvido pelos professores de cada uma das etnias indígenas. Tais professores assumem uma condição privilegiada enquanto pesquisadores por serem parte integrante de suas respectivas comunidades e por se constituírem em importantes agentes de mobilização cultural. Essa condição favorável para o desenvolvimento do projeto tem contagiado os professores e as comunidades indígenas em torno de um ideal comum: fazer da escola um centro irradiador do movimento de afirmação e resistência étnica. O trabalho desenvolvido nas aldeias tem sido capaz de revelar a existência de memórias e recordações com um valor histórico inestimável, demonstrando como a história oral é capaz de ampliar os limites do conhecimento histórico no campo da história social, ao estimular o in-

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teresse pelas famílias e comunidades indígenas, validando suas experiências. Por se tratar de um segmento pouco documentado em nosso país e tratado de forma estereotipada, genérica e preconceituosa nos livros didáticos nacionais, essa perspectiva se torna mais relevante. A ênfase na esfera local tem proporcionado aos professores indígenas um rompimento com um ensino focado nas “grandes imagens da história” encontradas nos livros didáticos oficiais, ao criar condições para que eles façam o registro da história presente em suas casas, nas casas de seus parentes, enfim, em suas próprias comunidades, revelando o significado e o valor da cultura e da tradição oral para o desenvolvimento de trabalhos pedagógicos comprometidos com a identidade e a auto-estima dos estudantes indígenas. Temos, assim, a realização de pesquisas e a produção de materiais didáticos comprometidos com as especificidades e diferenças culturais, capazes não só de deflagrar movimentos de afirmação da identidade étnica e seu reconhecimento como um aspecto vital para as sociedades indígenas como também diminuir a distância até então existente entre a escola e a comunidade, ao trazer a história para perto, ao relacionar o mundo da sala de aula e do livro didático com o mundo social direto e diário da comunidade em que vive o estudante indígena. Em um dos momentos de avaliação do Curso de Magistério Indígena, em 2002, os professores Pataxó afirmaram o seguinte: Os povos indígenas, com suas histórias, contos, danças, mitos e seu jeito de ser, vêm transformando todo esse referencial em material didático [a ser utilizado] em sala de aula. Mas isso só é possível porque temos a ajuda da comunidade local em que vivemos. Os mais velhos têm um papel muito importante (...) nesse processo, que é de busca de uma educação específica e diferenciada para melhor atender às demandas do nosso povo.

Para concluir, podemos dizer que o objetivo maior desse trabalho tem sido o de afirmar o valor das tradições orais para o ensino escolar nas comunidades indígenas, destacando a importância das músicas, dos mitos e ritos como recursos

que proporcionam ao trabalho pedagógico uma particularidade, um significado humano precioso e uma abertura para uma perspectiva cognitiva e intelectual comprometida com as epistemologias indígenas.

Referências

BAHIA, Secretaria da Educação – Programa de Formação para o Magistério Indígena – Proposta Curricular / Salvador, 2006 BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP). Censo escolar 2007. Brasília, DF: MEC/INEP/deeb, 2007.   GRUPIONI. Luis Donizete Benzi. (org) Formação de Professores Indígenas: repensando trajetórias. Brasília, MEC, 2006. GUIMARÃES, Francisco Alfredo Morais. As Ações Afirmativas para os Povos Indígenas no Âmbito da Universidade do Estado da Bahia- UNEB in Anais Eletrônicos do II Seminário Povos Indígenas e sustentabilidade: saberes e práticas interculturais na Universidade. UCDB: Campo Grande, 2007 UNEB. 2008. Projeto do Curso de Graduação em Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena.Bahia. UNEB. 2007. Documento Final de Propostas para um Redimensionamento do Programa de Ações Afirmativas “Inclusão E Igualdade Racial na Formação de Uma Nova Cultura Universitária”

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