Programas disciplinares e avaliação no ensino liceal (1926-1947)

June 2, 2017 | Autor: Carlos Beato | Categoria: História Da Educação, Historia da Educação, História das Disciplinas Escolares
Share Embed


Descrição do Produto

21/02/2016 00:32:00







Programas disciplinares e avaliação no ensino liceal (1926-1947)





Carlos Beato


Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, Portugal





RESUMO
Este artigo esboça a análise da avaliação escolar nos liceus do Estado Novo entre 1936 a 1947, em disciplinas como o "português," a "história" e as "ciências físicas e naturais."
Estudaram-se os programas de matérias das disciplinas e também as orientações oficiais sobre os modelos de avaliação, assim como as próprias provas de exames escritos realizadas nessas disciplinas.
Nas disciplinas estudadas, mostra-se que os processos de avaliação diferiram, sendo que na história e no português tiveram sobretudo o aspeto formativo ideológico desejado pelo regime, enquanto as ciências pelas suas "dificuldades" intrínsecas foram utilizadas na eliminação dos excessos sempre que conveniente.

PALAVRAS-CHAVE
Programas e exames, provas-exemplo e pontos-modelo, seleção e avaliação.



A construção da rede legislativa que suportou a ditadura militar e do Estado Novo é um processo que se inicia logo nos dias imediatos ao golpe militar de 28 de maio de 1926 e que progrediu com avanços e recuos, hesitações diversas e procedimentos de tateamento bem patente na elevada percentagem de diplomas legislativos que mereceram retificações, esclarecimentos, alterações, modificações, remodelações, reorganizações, e novas publicações.
A legislação foi sucessivamente afeiçoada de modo a não deixar de fora nenhum dos interesses de cujo apoio o regime necessitava para se eternizar e a controlar ao mais mínimo pormenor a vida interna dos organismos na dependência do Estado, devendo a sociedade, em geral, funcionar como um tipo de orquestra especial em que todos os movimentos são comandados e controlados pelo governo maestro, o que também determinou algumas idas e vindas, alguns avanços e recuos, algum caminhar em ziguezague na procura da almejada "perfeição."
No que diz respeito ao setor da instrução pode registar-se, como exemplo, que a primeira medida de fôlego saída sob os auspícios da ditadura, o Estatuto do Ensino Secundário, datado de 2 de outubro de 1926, mereceu nova publicação retificada duas semanas depois, em 16 de outubro, e que, no período de nove meses que vai desde esta última data até 11 de julho de 1927, sofreu nada menos que quinze emendas, uma significativa média de quase duas por mês, o que ilustra bem a referida sinuosidade.
O mesmo processo de tentativa e erro parece poder associar-se às sucessivas alterações de ministros ou de programas personificados. Desde o golpe militar até 21 de janeiro de 1930 foram nomeados dez ministros, o último dos quais foi repetente. Este, Gustavo Cordeiro Ramos, conseguiu, quando bisou, a proeza de se manter três anos e meio à frente do ministério, numa altura em que o regime tendia à consolidação com o poder a passar do foro militar para o civil, com a fulgurante ascensão de António de Oliveira Salazar que, com a entrada em vigor da Constituição de abril de 1933, documento fundador do Estado Novo, foi designado presidente do Conselho de Ministros.
Depois dessa estabilidade ministerial o processo voltou a identificar-se com os tempos anteriores, já que nos trinta meses seguinte foram nomeados como ministros da Instrução Pública quatro individualidades sendo a última destas António Faria Carneiro Pacheco, o ministro que, trazendo a estabilidade de volta, conseguiu pela primeira vez estar mais que quatro anos à frente do ministério. Essa longa duração reflete a sua adequação a ministro/programa dos "anos de ferro" impostos pelo Estado Novo que se revelou, ainda mal tinham passado três meses da sua posse, ao criar o ministério da Educação Nacional, substituindo o anterior da Instrução Pública, numa medida plena de simbolismo.
Os programas ou o saber a ensinar
A atividade legislativa do regime de ditadura saído do golpe militar de 28 de maio de 1926 iniciou-se, no campo da educação, para lá de algumas medidas avulsas entretanto decretadas, com a publicação em outubro desse ano do Estatuto que reorganizou a Instrução Secundária, por imperativo do "dever de consciência" governamental a que "obrigava a melhoria tão desejada da instrução pública." Um mês passado publicaram-se, sem introdução ou notas explicativas que se reservaram para as disciplinas individualmente, "os programas dos cursos da instrução secundária."
Na revisão efetuada em 1930, apesar de se desvalorizar a importância dos programas como se percebe pela clara afirmação, presente no relatório do documento legal, de que não se lhes pode "atribuir influência decisiva nos resultados do ensino, porquanto o bom professor pode fazer excelente ensino com o pior programa, sendo a inversa inteiramente verdadeira, consideraram as autoridades ser necessário "não embaraçar a marcha do ensino." Ora "tal não sucedia com os programas do ensino secundário: para de outros defeitos não falar, bastará acentuar que eles haviam sido organizados para um plano de estudos já amplamente modificado." Sendo assim os programas eram revistos de modo a que se apresentassem "taxativos na medida do possível" e "exequíveis."
O certo é que passado um ano houve nova atualização dos programas dando sequência a uma série de revisões que só iriam ter alguma pausa a partir da sexta mudança em 1936. De facto, verificaram-se além das de novembro de 1926 e de setembro de 1930, já referidas, revisões em 1931, e em 1934, 1935 e 1936, após o que se seguiu um período com alguma estabilidade, sendo já em condições significativamente alteradas que, no pós-guerra, se verificaram novas reformas no ensino secundário.
É importante realçar a singularidade que, desde a fase inicial do regime, é atribuída à disciplina de História de Portugal com um enquadramento profundamente nacionalista.
Esse tratamento é merecedor de um "Esclarecimento," a propósito da "exatidão nas doutrinas" nos manuais de história, dignificado por decreto, quando se colocaram algumas dúvidas sobre a redação das instruções sobre os livros a adotar.
Para os governantes, o Estado "pode e deve definir a verdade nacional – quer dizer, a verdade que convém à Nação." Sendo assim, os manuais têm que expor os princípios que o governo determina, os quais têm por objetivo que os estudantes se conformem ao sentimento de ser Portugal "a mais bela, a mais nobre e a mais valiosa das Pátrias."
Consubstanciava-se essa ideia na obrigação expressa pelo artigo terceiro do decreto de que a elaboração dos manuais e, consequentemente, o ensino da história, no que constituía um verdadeiro programa de ação do nacionalismo conservador e autoritário, respeitasse as indicações seguintes:

Deve ser objeto de justificação e glorificação tudo quanto se tem feito, através dos oito séculos da História de Portugal, no sentido de fortalecer os seguintes fatores fundamentais da vida social: a Família, como célula social; a Fé, como estímulo da expansão portuguesa por mares e continentes e elemento da unidade e solidariedade nacional; o Princípio da autoridade, como elemento indispensável do progresso geral; a Firmeza do Governo, espinha dorsal da vida política do País; e o Respeito da hierarquia, condição básica da cooperação dos valores; e a Cultura literária e científica.

Tudo o que não se submetesse a estes princípios e que por isso seria "elemento de dissolução nacional, de enfraquecimento da confiança no futuro, falta de gratidão para com os esforços dos antepassados," não seria merecedor de qualquer contemporização e deveria "ser objeto de censura."
Também os programas da disciplina de Português foram alvo de cuidados especiais. De uns anos para os outros a diferença maior entre os respetivos programas, distinção a que não se pode, em boa verdade, chamar de descontinuidade, reside na respetiva impregnação ideológica, por vezes, subjacente em frases discretas.
Apenas como exemplo do que se pretende dizer confrontem-se os dois estratos correspondentes das "observações" dos programas. O de 1935 que já repetia os anteriores de 1934, de 1931 e de 1930 é o seguinte:

Deve o aluno ter adquirido o gosto pelas boas leituras; é tempo de o interessar pela dos nossos melhores autores, conforme a sua progressiva capacidade, e por isso aos textos de matéria real e essencialmente moral sucederão os textos literários, escolhidos segundo o critério estético e graduados segundo as classes que ele vai frequentando, procurando-se obter o conhecimento, de conjunto, da nossa literatura, a partir da época clássica, e o valor dos autores e das suas obras.

De reforma para reforma, o texto ia permanecendo, mas pode-se assinalar que a sua origem está mais atrás no tempo de I República. Assim, em 1918, na reforma saída na véspera da morte de Sidónio Pais, essa frase estava, mas também nas instruções relativas à reorganização do ano seguinte. Contudo, se se procurar e ler com atenção já vamos encontrar este texto na reforma de 1895 que refundou o ensino liceal no nosso país.
Tudo isso sugere uma continuidade ideológica que passa por cima da divisória de regime, embora com o evoluir da situação vá deslizando no sentido da concretização dos objetivos dos novos poderes.
Em 1936 na mesma parte das observações, depois de recopiar as primeiras linhas continua-se a partir de "segundo as classes [os anos] que ele vai frequentando":

Procurando-se fazer sentir, na medida em que permitam as leituras fragmentárias, a evolução da nossa arte literária, na expressão e nas ideias, e o valor dos autores e das suas obras, a partir dos primeiros rebates da consciência integral da nação, no século XV.

A recuperação de alguns princípios é feita no preâmbulo deste decreto de 1936 na justificação encontrada para a existência de "observações," algo que até aí não fora sentido como necessário. A subtileza deste texto mostra a capacidade do regime de estender a sua base de apoio até onde for possível, na tentativa de hegemonizar o conjunto da sociedade, ao afirmar a imprescindibilidade, "mais do que nunca," das instruções pois que "o espírito novo de que é impregnada toda a reforma, atribuindo ao ensino, dentro dos limites dos programas, a elasticidade de uma escola ativa," assim o exigia.
Na reforma de 1936, vários programas sofreram remodelações mais ou menos profundas, incluindo o das disciplinas de ciências onde a mais importante é a criação de um programa especial para os chamados "Trabalhos práticos," por assim dizer, uma disciplina dentro da disciplina, com vinte temas distribuídos pelos três anos do novo 2º ciclo.
A legislação impôs a obrigatoriedade de uma sessão semanal desses "trabalhos práticos," isto é, uma em cada quatro aulas, o que conjuntamente com as suas características especiais, indo ao encontro das sempre presentes reivindicações dos professores de ciências, lhes deu um relevo especial.
Depois de 1936 há um "novo" saber a considerar, dado que foram retiradas da categoria das disciplinas "normais" o Canto Coral, a Ginástica e os Trabalhos Manuais. Deixou de haver aulas, organizadas nos moldes habituais com turmas mais ou menos homogéneas na idade e nas aprendizagens para passar a haver sessões que misturavam alunos de diferentes idades e avanço de conhecimentos. Subjacente a estas alterações coloca-se a concretização dos objetivos da reforma, nomeadamente o primeiro deles, que integra o ensino liceal "na missão educativa da Família e do Estado" virada "para o desenvolvimento harmónico da personalidade moral, intelectual e física dos Portugueses" com a "finalidade específica de dotá-los de uma cultura geral útil para a vida."
Essa parte do currículo foi entregue à Mocidade Portuguesa (MP), organização que o regime criou para o controlo ideológico das massas juvenis e que devia contribuir significativamente para que os objetivos culturais do regime fossem atingidos. Esses objetivos foram esclarecidos em documento posterior que incitava "ao rigoroso cumprimento" da reforma, a que não teria sido possível, no primeiro ano de vigência, "dar perfeita execução."
A chamada "cultura geral útil" merecia uma explicação de bastante pormenor. Não estavam em causa, apenas, as "utilidades materiais." A preocupação era claramente de outra ordem. De facto, o que os governantes entendiam é que "o fim do ensino, como no artigo [1.º] se diz expressamente, é desenvolver harmonicamente a personalidade moral, intelectual e física, e é útil tudo o que conduza a esse desenvolvimento."
Foi no sentido de proporcionar esse "tudo" que foram criadas as sessões e entregue a sua direção à Mocidade Portuguesa e que passou a haver duas direções no interior das escolas mesmo que assumidas pela mesma pessoa. Em consequência da nova situação criada, surgiram algumas questões face aos métodos de organização e inculcação da MP, decalcados de organização militar, difíceis de aceitar pelos responsáveis pedagógicos sem, contudo, haver contestação dos objetivos definidos. O que estaria em causa, como assinala Barroso (1995, pp. 606-616), seriam os métodos utilizados e não os fins.
As provas-exemplo e os pontos-modelo
Interessante notar que depois da publicação dos programas de 1930 foram introduzidos os chamados pontos-exemplo que deveriam orientar os responsáveis liceais para a elaboração dos exames finais e que de algum modo davam uma interpretação suplementar à execução dos programas.
Em circular enviada aos reitores dos liceus a razão invocada para o aparecimento de tais modelos era a introdução de um novo regime de "exames que, em determinados aspetos," diferia "fundamentalmente do sistema empregado" até essa data e, portanto, era necessário "atenuar as hesitações – inerentes a uma primeira aplicação" adotando algumas "normas de caráter geral" para garantir a "unidade de vistas e a melhor interpretação da lei."
Basicamente o novo modelo incluía provas escritas em que uma classificação inferior a 8 (escala de 0 a 20) em duas disciplinas conduzia à perda de ano, o que até aí não acontecia. Com estas características, o sistema de avaliação permitia enfrentar alguns dos problemas constatados pelos professores:

O decreto que estabeleceu o sistema de exames com provas escritas eliminatórias veio satisfazer as reclamações da classe do professorado liceal. Era tempo e mais que tempo, de acabar com a orgia das "passagens" quási em massa, que levava aos Cursos Superiores uma grande percentagem de incompetentes. (Tavares, 1934, p. 36)

Da leitura das provas-exemplo iniciais fica-se com a ideia de que não eram muito extensas e de que também não seriam de resolução muito complexa. Aliás, na própria circular se refere que "muito propositadamente se organizaram estes pontos, com vista a uma exigência de preparação bastante inferior àquela que o ensino secundário admite." Para que não restassem dúvidas sobre os objetivos conclui a circular que "não se trata de dificultar a prova escrita, antes de a tornar acessível aos alunos, reduzindo, quanto possível, o caráter aleatório dos exames."
Depois desta primeira experiência as provas-exemplo foram rapidamente substituídas, até porque surgiram novos programas do ensino secundário. A partir daí à medida que os programas se sucediam, esses guias também se renovavam.
Os pontos-modelo que em 1934 vieram substituir as anteriores provas-exemplo são precedidos por uma elaborada introdução a justificar a sua função. No texto reconhecem-se as dificuldades criadas ao tentar elaborar testes de avaliação de capacidades e conhecimentos nas condições prevalecentes e, por isso, a opção é por tentar "o que é realizável." E o que se pensava exequível era a sua confeção em termos tais que os examinandos tivessem oportunidade de mostrar até que ponto iam as suas capacidades. Para isso os pontos modelo não visariam "apenas a exercícios de memória," mas fariam "apelo à inteligência" e através de "verdadeiras questões de facto" procurariam minimizar "o fator sorte na prestação das provas."
No tempo do ministro Carneiro Pacheco que dispensou quaisquer comentários na sua publicação dos pontos-modelo, releve-se o exame-tipo de história onde as questões apareciam distribuídas por seis grupos, sendo último constituído exclusivamente por temas portugueses. Entre as questões incluíam-se os habituais temas sobre as civilizações da antiguidade oriental e clássica, a idade média com o islamismo e as cruzadas, a idade moderna com a novidade da referência à independência dos Estados Unidos e sua influência sobre a Revolução Francesa, à revolução industrial e ainda ao antiparlamentarismo, a nível internacional. Esta última questão parece ser uma espécie de introdução à alínea do sexto grupo que marca definitivamente a ideologização corporativa do ensino da história: "que representou e a que foi devida a Revolução de 28 de maio?"
De acordo com Martins (1943, p. 2448), sobrevieram, posteriormente, algumas alterações aos últimos pontos modelo aqui considerados, sendo publicados novos pontos modelo em 11 de fevereiro de 1938, embora o seu conteúdo não se afaste muito dos anteriormente publicados.
Contudo, algumas inovações são introduzidas, nomeadamente duas relativamente às provas escritas, a de que "a classificação baseia-se nas cotações (de 0 a 190 pontos), colocados, [sic] na guarda marginal do ponto, à esquerda de cada pergunta ou problema" e a de que "a apresentação da prova é cotada desde -10 até +10 pontos exceto em Geografia e Ciências Físico-Naturais do 1.º ciclo, e em História do 2.º ciclo," embora um aluno não pudesse ser aprovado ou reprovado pela influência desta classificação particular. Adicionalmente seriam fornecidos "modelos de trabalhos práticos de Ciências Físico-Químicas do 2.º ciclo, a fim de os júris elaborarem os pontos de harmonia com as possibilidades laboratoriais e de gabinetes dos respetivos liceus" (p. 2449).
Sobre as provas de exame proclamava a circular enviada aos reitores a propósito das respetivas épocas de 1939 que embora, "elaborados em harmonia com os pontos-modelo, podem variar a forma e o número das perguntas, que nunca sairão dos limites do programa. Este texto foi retomado nos dois anos seguintes, sendo a última circular que refere a existência de modelos a que preparava os exames de 1941.
De notar que, a partir de 1942, o ponto-modelo deixou, por assim dizer, de ser exemplo, apesar de traduzir "uma orientação geral a seguir," mas "não um paradigma que seja forçoso adotar em todos os pormenores" como determinava o Ministro em fevereiro desse ano. Para que não houvesse dúvidas, acrescentava os seguintes dizeres:

Pode, portanto, deixar de seguir-se [o ponto modelo] quanto às cotações e quanto ao número de questões a propor, à sua ordenação e ao processo da sua formulação. Pode a Comissão organizar os pontos com extensão menor do que a prevista no ponto-modelo: pode e a experiência mostra que em alguns casos deve. (p. 2450)

A partir do ano letivo de 1944-45 o regime de exames retomou o modelo mais tradicional de uma prova escrita e uma prova oral e complementarmente, no caso das disciplinas com aulas de Trabalhos práticos, uma prova prática. É também afirmado claramente que não haverá pontos-modelo nem informação sobre cotações nas provas.
Finalmente a reforma de 1947 que marca uma viragem em relação algumas das práticas anteriores declara que "não serão publicados pontos-exemplos" que faz o corte definitivo com a prática que já vinha sendo abandonada.
Os exames
Das muitas provas de exame analisadas nas disciplinas de ciências, de português e de história, vamos considerar apenas a leitura de um punhado delas dos finais dos anos 1930 considerando que são suficientemente elucidativas.
Assim, uma das provas de exame de português de 1937 segue-se de muito perto a estrutura do modelo com um texto de caráter histórico – retirado da Crónica de El-rei D João I de Fernão Lopes – com potencialidades suficientes de interpretações patrióticas e nacionalistas. Noutra prova de exame desse ano, o texto de Eça de Queiroz, escolhido a dedo no conto A Aia, permitia pôr em realce uma das qualidades mais incensadas pelo regime, a abnegação e o sacrifício dos interesses pessoais em favor das entidades superiores, neste caso representadas pelo príncipe, símbolo do estado.
Convém recordar que numa medida algo insólita o ministro tinha decidido acabar com a prova oral exceto nas disciplinas de línguas. E como "uma só prova escrita numa disciplina é insuficiente para avaliação dos conhecimentos do estudante, então fazem-se duas em vez de uma" (Carvalho, 2001, p. 776), com a escolha da melhor para efeitos de classificação.
Num dos exames de história de 1937 a "cópia" parece "melhor" que o modelo original. Assim, mesmo na parte não dedicada especialmente à história do país, é introduzida uma pergunta sobre a Inquisição e a sua ramificação no extremo ocidental europeu. O examinando deveria ser capaz de dizer de modo satisfatório o "que era a Inquisição," "quando e com que fim foi fundada" "quando e como foi introduzida em Portugal." Mais à frente teria ainda oportunidade de falar da Inquisição especificamente portuguesa já que se lhe pedia para falar sobre as "medidas tomadas em Portugal para defesa da fé católica perante o judaísmo e a Reforma Religiosa." Nas outras questões procura-se pôr em evidência, por um lado, "os reis da primeira dinastia que mais se dedicaram ao fomento do País" sendo-lhe pedido para nomear "algumas medidas importantes desses reis" e, por outro, o "caráter metódico e científico dos descobrimentos marítimos dos portugueses." A coroar, na última alínea interrogava-se o examinando sobre "a situação atual de Portugal perante o mundo", numa peculiar interpretação do sentido da história, que devia ser apresentada como coroando a finalidade da "Revolução Nacional de 28 de maio."
Em 1939 não houve alteração sensível na estrutura dos exames de português. Um texto com conotações históricas, as Décadas ("dos feitos que os Portugueses fizeram na conquista e descobrimento dos mares e terras do Oriente") de João de Barros no primeiro, Epanáfora Trágica de Francisco Manuel de Melo no segundo.
A permeabilidade ideológica é aqui mais discreta, mas não deixa de estar presente. "Em que reside a grande beleza das narrativas de viagens dos nossos clássicos" questão colocada perante o texto de Francisco Manuel de Melo e a referência ao extrato do texto de João de Barros, "esta admirável composição pinta-nos o embarcar de Vasco da Gama e dos marinheiros da frota, e sobretudo as condições morais em que se fez a largada, com um senso perfeito do real" evidenciam o entusiasmo com feitos de que se pretende ser herdeiro. Laudativos quanto baste para o avivar do orgulho nacionalista e das suas pretendidas raízes num passado que se deveria glorificar, estas passagens conformam-se à ideologia do regime que pugna pelo "intuito moral" do ensino e que decide em sua defesa pôr "de parte, em absoluto (…) todos os textos que contenham matéria que possa desenvolver nos alunos tendências prejudiciais."
Nas Ciências Naturais, nos exames de 1937, a linha de atuação dos autores das provas de exame era estritamente definida. Perguntas relativas a definições de objetos ou conceitos preponderavam. Até o pequeno número de palavras utilizadas em cada questão, cerca de sete, dá uma ideia da limitação que lhes era própria.
Assim, no segundo exame, as palavras iniciais das questões foram, "que [é]" em dezasseis delas, e "qual é" ou "quais são" em outras dez de um total de quarenta e duas. De algum modo se pode dizer que essa monotonia aconteceu sem surpresa.
No entanto, as ciências constituíam uma área onde, aparentemente, poderia ser "diferente" e haver alguns "desvios," talvez inspirados no tal "espírito novo de que é impregnada toda a reforma, atribuindo ao ensino, dentro dos limites dos programas, a elasticidade de uma escola ativa," consoante ao que ditava o decreto governamental.
No ano seguinte, a estrutura dos exames de ciências já diferia um pouco da dos anos anteriores. Pretendia-se então que os alunos estabelecessem relações entre objetos diferentes. Por exemplo, no primeiro exame, encontra-se, a abrir a prova, uma questão em que se pede para comparar "a cavalinha com o polítrico" informando "que diferença nota" e "a que grupo pertence cada uma daquelas plantas," assim como se pede ao examinando que "cite o conjunto de carateres que lhe permitem distinguir esses dois grupos.
De resto, a forma como a maioria das questões é abordada difere do processo anterior em que se perguntava diretamente "o que é?" Agora faz-se uma pequena introdução e só depois vem a pergunta, o que não significa, no entanto, que o apelo à memorização tenha diminuído de importância. Repare-se nesta questão em que se começa pela afirmação de que "a areia é uma rocha que pode transformar-se noutra" e logo se questiona para que se "diga o nome desta rocha" complementando-se noutra alínea com a indagação de "como se chama o fenómeno traduzido por esta transformação."
Relativamente aos pontos de 1939, estão publicadas cópias de diferentes provas, que mantém no essencial a estrutura assumida no ano transato. Um início com perguntas de botânica que introduz um item de comparação como o que foi citado anteriormente e um conjunto de perguntas procurando averiguar os conhecimentos de conceitos e fenómenos e, também, de alguma interpretação. "Do que observou nas raízes da papoila que concluiu, relativamente à adaptação desta planta ao meio em que vive?" Esta pergunta exemplifica o último aspeto.
Na passagem à zoologia a maioria das perguntas segue o modelo mais antigo, mas presta-se também a pequenas variações, como quando se afirma que "a dentição do coelho e a do morcego são diferentes" para se perguntar "em que diferem" e, depois, que relação a dissemelhança encontrada teria "com o modo de alimentação dos referidos animais." A acabar o exame as questões de mineralogia não se afastam daquilo que já foi considerado para o ano de 1938.
Nas ciências físico químicas, no exame de 1937, a parte de física continha exercícios envolvendo cálculos, em que um dos fatores mais importantes seria o conhecimento das fórmulas a utilizar em cada caso; também vários itens de resposta curta ou descritiva, onde continua a predominar o apelo à memória como, por exemplo, quando se pede ao examinando que "descreva a experiência de Oersted."
Na química, apareciam, igualmente, exercícios de aplicação. Neste caso, não eram fornecidas as equações químicas relativas aos processos sobre os quais se pretendiam efetuar os cálculos e esse seria o maior obstáculo a um bom desempenho. As restantes questões vão da escrita de fórmulas de determinadas substâncias à descrição de experiências laboratoriais, passando pela obrigação de ser capaz de dar algumas definições de tipo variado, mantendo, portanto, características similares às da prova de física.
No ano seguinte os exercícios são em tudo semelhantes e as perguntas também, parecendo haver, contudo, um ainda maior apelo à memorização das matérias. "Dos compostos que estudou, indique um que enegreça o papel de filtro molhado num soluto de acetato de chumbo," questão retirada da química e "em que consiste e em que propriedades da corrente elétrica se fundamenta a galvanoplastia," pertencente à física, ilustram o que se disse.
Não diferindo muito na estrutura, os exames de 1939 introduzem, contudo, uma novidade que é a de questionarem sobre as realizações práticas que os examinandos teriam tido oportunidade de efetuar ou, pelo menos, de assistir. De facto, as aulas apropriadamente chamadas de Trabalhos Práticos, constituiam uma "disciplina" anexa às ciências que tinha sido introduzida no programa de 1936 e que aparece refletida pela primeira vez nos exames de 1939.
É assim que na física são descritas experiências e apresentados os resultados respetivos para que os examinandos pudessem providenciar as conclusões adequadas e que na química são narradas outras experiências sendo pedido aos alunos para fazerem a respetiva interpretação qualitativa. Esta inovação traz consigo uma maior exigência no nível da compreensão das matérias, o que não acontece com o restante dos questionários que continuam a privilegiar o apelo direto à memória.
As várias críticas feitas às provas dos exames liceais de 1939 mereceram uma reação oficial da Direção Geral do Ensino Liceal (DGEL) através de duas circulares. Na primeira começa-se por se desvalorizar as censuras, afirmando-se que "os exames liceais de 1939 foram – como os anteriores – alvo de severas críticas" para logo depois revelar que tinha sido ordenado um inquérito pelo ministério tendo como objetivo "indagar as causas prováveis dos resultados anómalos notados em alguns liceus."
Do inquérito resultou um relatório incluindo causas verificadas e propostas de soluções para as anormalidades. Entre os problemas detetados registam-se, como principais a "falta de seleção nos alunos internos" e a "benevolência excessiva dos professores durante o ano, na exigência de estudos e conhecimentos dos alunos."
Uma segunda circular da DGEL, um mês depois da anterior que fazia o balanço das lições a tirar da realização dos exames do ano anterior, concretizava que nos anos sem exame apenas deveriam passar os que tivessem "mostrado estar em condições de acompanhar com regularidade os estudos mais complicados do ano seguinte, não se usando na avaliação nem de rigores desaconselhados nem de transigências antieducativas," acrescentando relativamente aos anos com exame que apenas deveriam ter acesso a estes "os alunos que apresentam probabilidades sérias de satisfazer ao que neles legitimamente se requere".
Assim, na véspera dos exames desse ano de 1940 os responsáveis acharam por bem colocar a tónica sobre os aspetos da seleção mostrando que, mesmo que mitigada pela referência aos excessos de inflexibilidade, a seleção continuava, e nunca deixaria de ser, um objetivo primordial do ensino liceal.
Considerações finais
A ditadura instalada na sequência do golpe militar de 28 de maio produziu vária legislação sobre o ensino liceal, nomeadamente Estatutos e Programas, mas não se preocupou, formalmente, com os objetivos. Foi só em 1932 que com novo Estatuto se objetivou que "o ensino secundário tem por fim ministrar os elementos duma cultura geral, que simultaneamente sirva de preparação para a vida social e de habilitação para estudos superiores" .
A questão da seletividade no ensino liceal era alvo de algum consenso que beneficiava o regime. Era necessário fazer algo que desmotivasse a entrada de estudantes com poucas condições de modo a que só os "bons" alunos pudessem frequentar o liceu. Nessas circunstâncias se, mesmo com as providências tomadas, ao longo do curso se verificasse a presença de "incapazes" então deveriam ser eliminados impiedosamente.
É assim que em 1935, a equipa ministerial, preocupada com vários aspetos relativos ao ensino liceal, em particular os que se prendem com a sua qualidade que, "a despeito da progressiva violência das seleções que no seu seio se operam," era sucessivamente mais baixa, admite que tal facto era devido ao excesso de alunos.
A situação que se colocava, na perspetiva das autoridades, punha em risco a reprodução das elites, o que "há de melhor e se valoriza numa sociedade" esse escol "que detém poder e influência." Assim para acabar com essa situação e dar resposta às queixas que os vários agentes do ensino apresentavam sobre a questão da qualidade da "matéria-prima", passou a ser obrigatório o exame de admissão aos liceus, para verificar "certos conhecimentos fundamentais" dos candidatos e para averiguar se "estão aptos para reagir congruentemente à ação educativa" que se pretende realizar nos liceus.
A avaliação relaciona-se intimamente com os objetivos do ensino. Sendo um deles a formação de uma elite, uma elevada seleção, antes e durante o tempo liceal, torna-se um importante contributo do ponto de vista quantitativo para o fim desejado.
Uma avaliação realizada por exames em que se pretende que sejam decalcadas as palavras do manual (manual condicionado pelo regime mesmo quando não era de existência oficial o livro único) era também um dos modos de fazer cumprir os objetivos do regime, a criação de indivíduos obedientes, conformados e respeitadores das autoridades dando consequência aos ditames presentes em frases como, por exemplo, "na família, o chefe é o pai; na escola, o chefe é o mestre; no Estado, o chefe é o Governo," afixadas nas "escolas primárias, liceus, bibliotecas, estabelecimentos de ensino artístico e de ensino particular."
A análise dos exames mostra uma continuidade geral desde a aparente neutralidade das ciências naturais ao claríssimo pendor ideológico da história, assumido oficialmente desde 1932. Neste caso os extremos tocam-se, a aparente assepsia das ciências naturais e a visível marca dos valores na história, pois a ausência de espírito crítico, em ambas, era exigida para que as respostas fossem corretas, num caso, e assim consideradas no outro.
As ciências físico químicas e o português enquanto situações intermédias são também muito diferentes entre si. A relação, que se pretendeu íntima, do português com a história de Portugal, proporcionava, nos aspetos que podem marcar a legitimidade dos valores defendidos como se de uma herança histórica se tratasse, que fossem consideradas ilícitas interpretações diferentes do fluir histórico, tendendo no limite para uma postura teleológica sobre o regime vigente.
As ciências sempre foram das disciplinas com maior percentagem de classificações negativas e a extensão dos seus programas era um bom motivo de elasticidade da dificuldade apresentada pelas respetivas provas de exame. Esta característica proporcionou que as físico-químicas pudessem ter uma utilização muito conveniente consoante era solução marginalizar mais ou menos alunos do curso liceal.
Como refere Ó (2003), houve um debate social vivíssimo, consideradas as circunstâncias da época, "em torno da questão dos resultados dos exames liceais" na "primeira metade dos anos quarenta, altura em que o número de reprovações atinge níveis até então desconhecidos." Estas altas taxas de insucesso serviam, assegura-nos, "pesem embora as promessas de uma seleção objetiva, fundamentalmente para conter a crescente procura social desse nível de ensino, mantendo a sua população relativamente estável" (p. 116). É neste contexto que disciplinas como a física e a química, ou a matemática, tradicionalmente "difíceis" assumem um papel de relevo.
Na sua análise dos resultados dos exames liceais de 1939, assinalou o responsável pela respetiva Direção-geral, que "ciências físico-naturais e matemática marcaram, como é natural, as cotas mais elevadas" de reprovações (Mota, 1940, p. 75). Esta "naturalização" tornava, obviamente, mais fácil a utilização destas disciplinas para alcançar os objetivos castradores pretendidos pelo regime.
Bibliografia
Carvalho, R. (2001). História do ensino em Portugal. 3 ed. Lisboa: F. C. Gulbenkian.
Martins. J. (1943). O atual sistema de exames: Breve notícia histórica. Liceus de Portugal, Lisboa, 30, 2436-2463.
Mota, A. A. R. (1940). Exames liceais em 1939. Liceus de Portugal, Lisboa, 2, 74-77.
Ó, J. R. do (2003). Ataíde Ramos de Oliveira, Álvaro de. In A. Nóvoa (Ed.), Dicionário de educadores portugueses (pp. 116-117). Porto: ASA.
Sampaio, Á. (1939). Prosa alheia: Os exames liceais. Labor, Aveiro, 102, 53-58.
Tavares, J. (1934). Exames. Labor, Aveiro, 57, 36-38.





Estatuto da instrução secundária, Decreto nº (Dec.) 12425 de 2/10/1926.
Programas dos cursos da instrução secundária, Dec. 12594 de 2/11/1926.
Programas do ensino secundário (Relatório), Dec. 18885 de 27/9/1930.
Dec. 19605 de 15/4/1931.
Dec. 21103 de 7/4/1932 (art. º 3. º).
Idem, art. º 4. º.
Novos programas do ensino secundário, Dec. 25414 de 28/5/1935.
Programas do ensino secundário, Dec. 5002 de 27/11/1918.
Instruções para os programas das disciplinas do ensino secundário, Dec. 6316 de 30/12/1919.
Programas das Diversas Disciplinas do Ensino Secundário, de 14/9/1895.
Programas das Disciplinas do Ensino Liceal (Observações ao programa de Português; 6.º ano), Dec. 27085 de 14/10/1936.
Programas das Disciplinas do Ensino Liceal (Preâmbulo), Dec. 27085 de 14/10/1936.
Reforma do Ensino Liceal (artigo 1.º), Dec. 27084 de 14/10/1936.
Sobre o cumprimento da reforma do ensino liceal, circular n.º 309 de 22/9/1937.
Pontos-modelo de 6/1/1934.
Circular aos Reitores dos liceus de 9/6/1930.
Pontos-modelo de 6/1/1934.
Pontos-modelo de 18/3/1937.
Circular nº 481 de 15/5/1939.
Circular n.º 700 de 2/6/1941.
Dec. 34053 de 21/10/1944.
Dec. 34646 de 4/6/1945.
Estatuto do ensino liceal. Dec. 36408 de 17/9/1947.
Os textos aqui revistos estão publicados em diversos números da revista Labor.
Programas das Disciplinas do Ensino Liceal, Dec. 27085.
Idem.
Circular n.º 576 de 14/5/1940 da DGEL. Itálico nosso.
Circular n.º 587 de 12/6/1940 da DGEL.
Estatuto do Ensino Secundário, Dec. 20741.
Regulação das provas de admissão aos liceus, Dec. 25461 de 5/6/1935.
Dicionário Priberam da língua portuguesa: http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx
Regulação das provas de admissão aos liceus, Dec. 25461 de 5/6/1935.
Obrigatoriedade de afixar diversos pensamentos…, Dec. 22040 de 20/12/1932.
Esclarecimento sobre a exatidão nas doutrinas…, Dec. 21103 de 7/4/1932.
Itálico nosso.


9




Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.