“Proibidão, democracia e religião: limpeza da situação aural”

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Proibidão, democracia e religião: limpeza da situação aural Carlos Palombini * O objetivo desta mesa-redonda é “fomentar nas comunidades e naqueles que lidam com a educação não formal [...] um novo olhar e uma nova compreensão sobre o Funk como expressão legítima de uma coletividade, de um tempo e majoritariamente de um grupo étnico”. No que diz respeito ao subgênero proibidão, já escrevi sobre sua legitimidade na perspectiva da Lei. O delito de “apologia de crime ou criminoso” tipifica-se no Art. 287 do Código Penal de 1940, criado pelo decreto-lei 2.848/1940, de 7 de dezembro, sob o Estado Novo (1937–1945), e promulgado em 1º de janeiro de 1942. Ele consiste em “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime” e acarreta pena de “detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses, ou multa”. O Art. 287 molda-se nos artigos 3031 e 4142 do Código Penal italiano, o Codice Rocco, do nome do ministro de Justiça, Alfredo Rocco, que o assina com o rei, Vittorio Emanuele III, e o primeiro ministro, Benito Mussolini. Entretanto, a Constituição Federal de 1988 consagrou um conjunto de normas, as chamadas cláusulas pétreas,3 que têm incidência imediata, não admitem emenda e vedam qualquer lei que as contrarie. Listadas sob o § 4° do Art. 60, elas incluem “os direitos e garantias individuais” do Inc. IV, definidos no Art. 5° do Capítulo I, “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, do Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.4 Tais direitos são inalienáveis, imprescritíveis, irrenunciáveis e universais, limitados apenas pela hipótese de colisão mútua. E o Inc. IV do Art. 5° determina: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. A esse respeito o jurista Nilo Batista se exprime: “o crime de apologia é claramente inconstitucional”.5 E o procurador da República, Alexandre Assunção e Silva, se explica:                                                                                                                 Apresentação em mesa sobre Funk Carioca promovida pelo Programa Escola Aberta, da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, no Centro de Formação e Experimentação Digital, 22 de agosto de 2015. *

1

Revogado pelo Art. 18 da Lei 205/1999, de 25 de junho.

2

Modificado pelo decreto-lei 144/2005, de 1° de agosto, sancionado pela lei 155/2005, na mesma data.

3 Cf. Maria Helena Diniz, “Cláusula Pétrea”, Dicionário jurídico, São Paulo, Saraiva, vol. 1, 691, 2008 (3ª ed., rev.).

Cf. Oscar Joseph de Plácido e Silva, “Direitos Fundamentais”, Vocabulário jurídico, Rio de Janeiro, Forense, 482, 2009 (28ª ed., rev.). 4

Nilo Batista e Patrick Granja, “Nilo Batista fala sobre as UPPs e a presença do exército no Complexo do Alemão”, Rio de Janeiro, A Nova Democracia e Agência de Notícias das Favelas, 16 nov. 2011. Disponível em http://youtu.be/xYjACv3LQXc. 5

O delito de apologia ao crime é típico de regimes autoritários, não possui nenhuma eficácia comprovada em evitar a prática de infrações penais, e, por ser uma violação não fundamentada ao direito de liberdade de manifestação do pensamento, é completamente inconstitucional.6

Para Assunção e Silva, “a tipificação como delito da defesa, elogio ou exaltação de um crime constitui uma forma de impedir uma ampla crítica às leis penais e sua reforma”.7 Por último, o proibidão é música,8 e igualmente inalienável, imprescritível, irrenunciável e universal é o § IX do Art. 5°, que determina: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Uma vez que os problemas decorrentes da Guerra às Drogas, cujos beneficiários são os grandes capitais financeiros, constituem questão de vida ou morte para milhões de jovens, a prática do proibidão deve ser considerada um ato político, quando mais não seja ao tomar partido, nos planos da narrativa e da narração, pelos mandamentos da facção em detrimento da Lei. Por isso mesmo, sustentar a legitimidade do proibidão é defender o próprio Estado no que ele possa ter de “democrático” e “de direito”. Dito isto, fixo-me no chamado “novo olhar”. Não se trata exatamente de um “ouvido novo”, mas de uma revolução interna, problema de Filosofia e de Religião, no sentido humanista do termo, pois o que se busca é uma religação (humana) pela escuta. Se a Eucaristia pressupõe a Confissão, o banquete sagrado dos ouvidos pressupõe limpeza da situação aural. Ora, transformar a percepção é atributo da arte. O funk seria capaz de transformar a escuta? Qualquer objeto o pode fazer, desde que nos observemos a observálo. Para o escritor Francis Ponge bastaram uma porta, um cigarro, um seixo.9 Entre os objetos sonoros, o Funk tem por defeito o caráter óbvio de sua escolha, porquanto nenhum outro gênero musical catalisa brumas tão densas de ideologia — da extrema direita a uma esquerda também extrema, mas destituída de radicalidade. O corpus do proibidão enuncia reiteradamente um código de conduta. Nesse código, “pureza” é passaporte e virtude capital. De modo análogo, o sacramento central do Ouvido requer pureza de intenção. O Verdadeiro clássico do vazio perfeito ilustra essa virtude em fábula. Crianças que viviam à beira mar amavam as gaivotas. Todas as manhãs iam brincar com elas, e as gaivotas chegavam, às centenas e mais. Seu pai lhes disse: “Soube que as gaivotas brincam com vocês. Peguem algumas para que eu possa me divertir com elas.” No dia seguinte, quando foram à praia, as gaivotas executaram sua pantomima, mas não desceram.

                                                                                                                6

Alexandre Assunção e Silva, Liberdade de expressão e crimes de opinião, São Paulo, Atlas, 2012, 87.

7

Assunção e Silva, op. cit., 90.

Cf. Carlos Palombini, “Musicologia e Direito na Faixa de Gaza”, in Carlos Bruce Batista (org.), Tamborzão: olhares sobre a criminalização do funk, Rio de Janeiro, Revan, 133–170, 2013. 8

9

2

Cf. Francis Ponge, Œuvres complètes, Paris, Gallimard, 1999/2002 (2 vol.).

 

Por isso se diz: “O discurso perfeito é sem palavras, o ato perfeito é não agir. O que todos os sábios sabem é pouco profundo.”10

O espírito de intelectual católico — no sentido etimológico do termo — com o qual escrevo estas linhas tem dupla motivação. Rendo tributo à religiosidade do proibidão ao mesmo tempo que ironizo o espírito do tempo. Seria desejável e possível que eu expusesse um método científico de iluminação: as teorias da escuta reduzida e das quatro funções da escuta apresentadas por Pierre Schaeffer em seu Tratado dos objetos musicais,11 por exemplo. Avesso ao tempo e a seu espírito, prefiro mostrá-las na versão existencial oferecida pelo autor em suas Reflexões.12 O excerto exibe, em três parágrafos, três facetas de uma biografia em sua trajetória de escuta: dos movimentos de juventude católica na França de Vichy ao aprendiz de feiticeiro de Georges Gurdjieff na Paris liberada, e deste ao pesquisador musical do pós-maio de 1968. Uma criança comunga. Ela se recolhe, faz silêncio, espera alguma coisa surgir de si ou de seu Visitante, coisa nem comum nem excessiva que aumente o sentimento recíproco da presença de mim para Ele e d’Ele para mim. Despojada de palavras, a adoração, antes de ser intenção, geralmente é atenção, mobilização da consciência. Um homem se concentra (como emissários de outras civilizações ensinaram). Sem visitante externo, sem sacramento, sem signo sensível, é ainda um chamado por forças latentes, e pela presença também — daí a parada possível (esperemos), mas improvável, da agitação costumeira, do ruído de fundo da mente e suas infindáveis associações. Não falemos das receitas incertas, dos comentários ociosos, dos mal-entendidos prováveis... Por fim, um ouvinte escuta um som (e não um discurso sonoro de dormir em pé nem uma música para sonhar, dançar, chorar ou sorrir). Colocamos à disposição de sua escuta determinado fragmento de som que se repete, ao qual ele se dedica como se fixasse uma luz, uma maçaneta ou a linha do horizonte. Ele não recebe nem Deus nem o fluxo de seu corpo, mas um sinal do mundo exterior cuja imagem sonora se forma em sua consciência. Para considerá-lo, é necessário também prestar atenção e fazer silêncio, e paradoxalmente, para assimilá-lo, é necessário ainda despojar-se de tudo o que até então se sabe dele, descartar os sentidos, os índices e qualquer sugestão relativa ao sinal. Se o reescutarmos agora ou em algumas horas, alguns dias, tanto mais aprenderemos, não apenas sobre o objeto que consideramos, mas também sobre as faculdades do sujeito que somos, nos observando observar. Em que consiste exatamente o ensinamento? Faço pesquisa musical? Decifro-me a mim mesmo? Vou contar vantagem, dizer-me psicólogo, musicólogo, semiólogo? Diante da experiência íntima, do verdadeiro proveito, míseras especialidades...13

Agradeço a atenção.

                                                                                                                Lie-tseu, “Les mouettes”, Le Vrai Classique du vide parfait, Livro II, Capítulo XI, in René Étiemble, Liou Kia-Hway e Benedykt Grynpas (org.), Philosophes taoïstes, Paris, Gallimard, 1980, 402. 10

11

Pierre Schaeffer, Traité des objets musicaux: essai interdisciplines, Paris, Seuil, 1966.

12

Vide nota infra.

Pierre Schaeffer, Réflexions de Pierre Schaeffer, in Sophie Brunet (org.), Pierre Schaeffer par Sophie Brunet suivi de Réflexions de Pierre Schaeffer, Paris, Richard-Massé, 1969, 211–212. 13

 

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