Proibindo o proibido: problemas do paternalismo regulatório e a RDC nº 14/2012 Anvisa

August 10, 2017 | Autor: Andre Bogossian | Categoria: Regulation, Regulatory Law, Paternalism, Paternalismo, Direito regulatório
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Proibindo o proibido: problemas do paternalismo regulatório e a RDC nº 14/2012 Anvisa

Andre Martins Bogossian Graduado pela UFRJ; Mestrando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ; Visiting Research Fellow na Brown University (EUA); Advogado

Alexandre De Luca Graduado pela UERJ; Mestrando pela UFRJ

1 Introdução: o caso em estudo. 2 Um confuso caso de paternalismo jurídico na atividade regulatória. 3 Proibindo o proibido: a desproporcionalidade da medida. 4 Alguns problemas do paternalismo coercitivo. 4.1 Problemas epistêmicos. 4.2 Problemas inerentes ao Direito. 5 Conclusões. Referências.

1 INTRODUÇÃO: O CASO EM ESTUDO A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) editou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 14/2012,1 que, dentre outras matérias, trata dos limites máximos de alcatrão, nicotina e monóxido de carbono nos cigarros (art. 4º) e da restrição do uso de certos aditivos nos produtos fumígenos derivados do tabaco (art. 6º), vedando a importação e a comercialização no País de produto fumígeno derivado do tabaco que contenha qualquer um dos seguintes aditivos: I – substâncias sintéticas e naturais, em qualquer forma de apresentação (substâncias puras, extratos, óleos, absolutos, bálsamos, dentre outras), com propriedades flavorizantes ou aromatizantes que possam conferir, intensificar, modificar ou realçar sabor ou aroma do produto, incluindo os aditivos identificados como agentes aromatizantes ou flavorizantes: a) [pelo Joint FAO/WHO Expert Committee on Food Additives – JECFA] (Comitê Conjunto da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) / Organização Mundial da Saúde (OMS) de Especialistas em Aditivos Alimentares); ............................................................................. 1. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 14, de 15 de março de 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2014.

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II – coadjuvantes de tecnologia (ou auxiliares de processo) para aromatizantes e flavorizantes; III – aditivos com propriedades nutricionais, [...]; ........................................................................... IV – aditivos associados com alegadas propriedades estimulantes ou revigorantes, incluindo taurina, guaraná, cafeína e glucuronolactona; V – pigmentos (ou corantes); VI – frutas, vegetais ou qualquer produto originado do processamento de frutas e vegetais, exceto carvão ativado e amido; VII – adoçantes, edulcorantes, mel, melado ou qualquer outra substância que possa conferir aroma ou sabor doce, diferente de açúcares; VIII – temperos, ervas e especiarias ou qualquer substância que possa conferir aroma ou sabor de temperos, ervas e especiarias; IX – ameliorantes; e X – amônia e todos os seus compostos e derivados.

Não há nada na própria resolução que estabeleça a justificativa, a função, ou o propósito de tais normas, sequer uma “Exposição de Motivos”, mas sabe-se que a resolução foi editada com o objetivo principal de redução da iniciação de novos fuman-

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tes, como indicou o então Diretor da Anvisa Agenor Álvares, “já que esses aditivos têm como objetivo principal tornar os produtos derivados do tabaco mais atrativos para crianças e adolescentes”,2 e como se percebe pelo discurso de entidades antitabagistas. De acordo com a representante da Aliança de Controle do Tabagismo Paula Johns, o cravo e o mentol são os principais aditivos utilizados nos produtos derivados do tabaco para conquistar novos fumantes. “A maioria dos jovens, cerca de 60%, experimentam cigarros com sabor. O cravo e o mentol são os principais aditivos consumidos pelos jovens”.3

4.874 foi duramente criticada pelas entidades antitabagistas6 e por muitas vozes na comunidade jurídica.7

Frise-se que a justificativa (veladamente) declarada da norma é a proteção de jovens e menores, que, segundo mostram os estudos que informaram a edição da norma, são vulneráveis à estratégia da indústria tabagista de artificialmente inserir sabores atrativos para o consumo humano.

2 UM CONFUSO CASO DE PATERNALISMO JURÍ DICO NA ATIVIDADE REGULATÓRIA

A resolução foi atacada judicialmente pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) na ADIn. nº 4.874,4 ajuizada contra dispositivos da Lei nº 9.782/1999,5 que criou a Anvisa, e, por arrastamento, contra a RDC nº 14/2012, fundamentando-se em pareceres do ex-Ministro do STF Sepúlveda Pertence e do atual Ministro (na época, advogado) Luis Roberto Barroso. Em setembro de 2013, a Min. Rosa Weber deferiu liminar para suspender a eficácia de diversos dispositivos da resolução, acatando a argumentação da CNI de que a proibição representa “perigo imediato do fechamento de fábricas e da demissão em massa de trabalhadores” e de perturbação da ordem econômica decorrente da “existência de tratamento judicial díspar da questão nos processos que correm perante as instâncias ordinárias”, em prejuízo do princípio da livre concorrência. A decisão na ADIn. nº 2. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2014. 3. Idem. 4. STF – ADIn. nº 4.874 – Rel. Min. Rosa Weber – Decisão Monocrática – j. em 13.9.2013 – DJ de 17.9.2013. 5. Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999.

O estudo aqui desenvolvido não se propõe a analisar todos os argumentos da dogmática jurídica a favor e contra a norma contida no art. 6º da RDC nº 14/2012, já bastante discutidos, mas analisá-la como um exemplo (ainda que bastante confuso) de paternalismo jurídico na seara regulatória. Os argumentos levantados não possuem escopo limitado à resolução da Anvisa, mas, como se pretende demonstrar, são igualmente válidos e aplicáveis a outros casos de regulação paternalista.

No ordenamento jurídico brasileiro, os direitos de personalidade – entre eles o direito à vida e à integridade psicofísica – “são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária” (art. 11 do Código Civil).8 O legislador brasileiro, ao editar tal norma, obviamente levou em consideração a importância da proteção de tais interesses de ordem existencial da pessoa.9 Há uma esfera de proteção tão rígida que nem mesmo o indivíduo titular poderia adentrar para limitar o seu exercício de tais direitos. Em outras palavras, são direitos cujo exercício não é mera faculdade do titular, mas praticamente uma imposição estatal (MORAES in VIEIRA, 2008, p. 372).10 Trata-se, por óbvio, de manifestação de um paternalismo jurídico (ainda que considerado em sentido amplo), presente não somente no Direito 6. Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2014. 7. Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2014. 8. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 9. Os direitos de personalidade representam, no ordenamento jurídico brasileiro, a esfera de proteção essencial da pessoa, expressão da cláusula geral de proteção da dignidade humana, inscrita no art. 1º, inc. III, da CF/1988. 10. Até mesmo a doutrina civilista questiona a redação do citado artigo. Na prática, se verifica desde uma aplicação formalista da justificativa (a proteção da pessoa humana) até um particularismo; de todo modo, parece que o texto da regra é rotineiramente desconsiderado como razão para agir e decidir, o que é retratado pela orientação contida no Enunciado nº 4 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil.

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Privado, mas também (e principalmente) em diversas áreas do Direito Público (BREYER; VERMEULE; SUNSTEIN,1998, p. 11).11 A pretensão estatal de regulação das situações e ações individuais para promoção de seu próprio bem-estar é tanta que chegou-se ao apelido de “Estado-babá” (HARSANYI, 2011), ironicamente constatando que, em tais situações, o Estado pretende tomar conta dos indivíduos tal qual uma babá cuida de uma criança. Na verdade, a alcunha é perti nente, pois a lógica de privação da autonomia, como será visto, é a mesma: assim como as crianças, o Estado considera que, em muitos casos, os indivíduos são incapazes de estabelecer racionalmente interesses e fins “legítimos”12 e as condutas que melhor os promovam. Se é impossível remontar as origens do paternalismo, existente em alguma medida em todas as épocas, não é incorreto afirmar que a voracidade do Estado-babá vem aumentando com o passar dos tempos, inclusive refinando suas técnicas e fundando-se em estudos13 que parecem indicar, de uma forma ou outra, que, de fato, indivíduos possuem inúmeros problemas no processo de tomada de decisão, sendo afetados por diversos vieses cognitivos (cognitive biases). Em bom português: para o Estado, os indivíduos, por vezes, não sabem o que é melhor para eles mesmos, ou, se sabem, não sabem ou não conseguem fazer o necessário para consegui-lo. Daí decorrem medidas das mais variadas, desde as proibições à comercialização de cigarros aromatizados no Brasil, objeto do presente estudo, de refrigerantes com aproximadamente 500 ml em Nova York14 até a lei municipal de Chapecó/SC que 11. Para Stephen Breyer, Justice da Suprema Corte norte-americana, Adrian Vermeule, professor de Direito Constitucional e Administrativo de Harvard e Cass Sunstein, também professor de Harvard e ex-Assessor do Presidente Barack Obama no Office of Information and Regulatory Affairs, órgão responsável pela coordenação da regulação estatal nos EUA, o Direito Administrativo e Regulatório possuem, em muitos casos, justificações paternalistas. 12. Legitimidade aqui tratada em um sentido qualitativo, de correção, não na concepção weberiana.

proíbe a exposição de sal de cozinha nas mesas de bares, restaurantes e similares.15 Existem, portanto, variadas modalidades de paternalismo: do mais brando (também chamado de libertário) ao mais extremo, coercitivo, a depender do grau de interferência na conduta individual e da existência, ou não, de uma sanção pela não adesão, pelo indivíduo, à conduta esperada. O paternalismo coercitivo pode ainda assumir formas variadas, dependendo ainda do grau de punição pelo descumprimento da conduta, abrangendo desde sanções administrativas (como a perda de pontos na habilitação para dirigir pela não utilização de cinto de segurança) até a utilização do aparato criminal, como advogado mais recentemente por Sarah Conly (2013, p. 32-33) na obra Against autonomy: justifying coercive paternalism. A RDC nº 14/2012 representa, portanto, um caso de paternalismo coercitivo, ainda que não seja dos mais radicais. Apresentar uma definição de paternalismo é tarefa ingrata, mas, para os fins do presente estudo, o paternalismo jurídico representa, em linhas gerais, a intervenção no comportamento de uma pessoa a fim de evitar que ela cause prejuízo a si própria (GARZÓN VALDÉS, 1988, p. 155).16 Para Victoria Camps (1988, p. 195), é paternalista a ação de imiscuir-se na liberdade de outra pessoa com a intenção de defender seu bem. 17 Gerald Dworkin (1972, p. 65), por sua vez, compreende paternalismo como a interferência coercitiva na liberdade de ação de uma pessoa, justificada por razões que se referem exclusivamente ao bem-estar, felicidade, necessidades, interesses ou valores da pessoa coagida. Joel Feinberg (1971, p. 105-124) afirma que “o princípio do paternalismo jurídico justifica a coerção estatal para proteger indivíduos de danos auto-inflingidos”. H. L. A. Hart (1963, p. 31) em Law, liberty and morality trata o paternalismo como uma política de proteção das pessoas contra si mesmas. É possível, portanto, perceber que tradicionalmente se depreende o conceito da questão invocada por Stuart Mill (2006) em seu clássico Ensaio sobre

13. O campo da psicologia social é extenso em obras do gênero, entre as mais famosas os autores destacam as de Dan Ariely (Previsivelmente irracional, entre outras) e Daniel Kahneman (Rápido e devagar: duas formas de pensar).

15. Lei Municipal nº 6.417, de 10 de junho de 2013.

14. § 81.53 do New York City Health Code, tal qual emendado em setembro de 2012 pelo Departamento Municipal de Saúde.

17. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2014.

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16. Disponível em: . Acesso em: 8 jun. 2014.

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a liberdade. Contudo, como nota Fotion (1979, p. 194), o problema de Mill se volta apenas ao que será também aqui chamado de paternalismo coercitivo. De fato, Mill estava preocupado com a tirania da maioria sobre o indivíduo, de tal modo que seu famoso princípio do dano18 assim assevera: Que o único propósito para o qual o poder possa ser legalmente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, seja evitar dano a outros. Seu próprio benefício seja físico ou moral, não é uma garantia suficiente. Ele não pode legalmente ser compelido a fazer ou reprimir-se porque será melhor que assim o faça, porque isto o fará mais feliz, porque, na opinião dos outros, fazer tal coisa seria sábio, ou mesmo correto. Estas são boas razões para argumentar com ele, ou persuadi-lo ou insistir com ele, mas não para obrigá-lo, ou fazer-lhe algum mal caso ele o faça de outra forma. Para justificar a conduta da qual se deseja detê-lo, deve-se prever que mal será causado a outra pessoa (MILL, 2006, p. 27-28).

Ponto crucial na definição que aqui se pretende oferecer é, na esteira da lição de Mill, a justificação da norma se referir exclusivamente a considerações a respeito do indivíduo cuja conduta se pretende tutelar. Assim, não estão abarcadas pelo conceito proposto normas que possam dizer respeito à defesa de um interesse de terceiros ou da coletividade como um todo. É o que diferencia uma norma que proíbe fumar em ambientes públicos fechados (que aqui não é considerada paternalista, pois visa impedir que terceiros sejam expostos à nociva fumaça dos produtos fumígenos), ou uma norma que limita a velocidade de caminhões em uma via a sessenta quilômetros por hora (preocupada com a segurança de terceiros e não só dos condutores de caminhões), de uma norma que proíbe a comercialização de determinado tipo de bebida de consumo individual, por considerá-la prejudicial à saúde de seu consumidor, e, portanto, aqui tida como paternalista. Também não faz parte do conceito aqui oferecido a questão posta por Manuel Atienza (1988, p. 203),19 da não aceitação da norma ou conduta paternalista pelo indivíduo suposto beneficiário. Não importa se o 18. Hayek (1985, p.1) abre sua obra mais extensa (Law, legislation and liberty), considerando a formulação de Mill um “axioma da tradição liberal”. 19. Disponível em: . Acesso em: 5 ago. 2014.

indivíduo aceita ou não a norma, se ele concorda ou não que precisa ser tutelado pelo Estado, basta que a norma ou conduta estatal restrinjam as possibilidades de ação do indivíduo tutelado. Por exemplo, as muito comuns normas de trânsito que impõem o uso do cinto de segurança ou que obrigam os motociclistas a usar capacete, por mais elogiáveis e por mais alto grau de aceitação social que possuam, são normas paternalistas, pois limitam a possibilidade de escolha tendo como justificativa exclusivamente seu próprio benefício. Igualmente não abrangidas no conceito ora proposto aquelas intervenções em pessoas consideradas incapazes pela lei (arts. 3º a 5º do Código Civil de 2002), ou o que Victoria Camps chama de “paternalismo justo” (1988, p. 198):20 coação e intervenção não devem ser confundidas com debilidade e incompetência, com incapacidade física ou psíquica (1988, p. 196). Por mais que o sentido comum (ou o atribuído por Fotion) ao termo pareça aplicável em tais casos, aqui não se fará referência a essas situações em que a lei geral e abstrata comanda um dever de proteção – da família e do Estado – a pessoas sobre as quais recai uma explícita presunção21 legal de que não possuem a capacidade cognitiva ou o amadurecimento necessário para praticar atos da vida civil.22 Os conceitos e debates aqui levados a cabo, portanto, referem-se apenas a indivíduos dotados de plena capacidade segundo seu ordenamento jurídico. 20. Em tradução livre: “A relação entre competência e paternalismo nos permitirá distinguir o paternalismo justo do injusto, de acordo com os seguintes critérios: 1. Não há propriamente paternalismo, porque se trata de um paternalismo justificado, quando existe um dever de proteção ao outro. [...] 2. Há paternalismo, no sentido pejorativo, comum, não justificável, quando, por baixo da aparência de que se está protegendo a um indivíduo ou grupo, de fato se está perseguindo o próprio bem, defendendo o próprio interesse. Por trás do nome de bem comum, se quer impor uma certa ideologia. Em tal caso, a relação de competência e incompetência desaparece porque não existe. O paternalista se está atribuindo um saber, um poder e uma capacidade que não possui em absoluto. E, por isso mesmo, atribui ao outro uma incompetência igualmente desprovida de fundamento. Penso em casos como a ‘proteção’ ao filho maior de idade, a imposição por parte do médico e do capelão de suas convicções sobre, por exemplo, a eutanásia, a proibição oficial do jogo por parte do Estado a fim de ‘proteger’ os pobres”. 21. Ao contrário da presunção implícita que há nas regras paternalistas, no sentido aqui adotado. 22. A escolha pelo legislador de um critério objetivo temporal (a idade) é também bastante questionável, de modo que não faltam críticas quanto aos critérios estabelecidos. É tormentosa a questão da outorga de capacidade ao chamado “jovem adulto” para tomar decisões a respeito de questões vinculadas a sua autonomia existencial (Cf. A discussão a respeito da possibilidade de objeção de consciência para transfusão de sangue em jovens adultos testemunhas de Jeová: LEITE, 2011, p. 74).

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E é aqui que se percebe que a medida em análise representa um caso confuso de paternalismo no sentido ora utilizado. A RDC nº 14/2012, ao afirmar que possui como objetivo e justificativa a redução do número de iniciantes no tabagismo – principalmente entre crianças e jovens – é parcialmente paternalista (no que tange à proteção da saúde de pessoas maiores de idade) e parcialmente não paternalista, ao tratar da proteção da saúde de menores, que seriam atraídos às práticas tabagistas por meio dos cigarros artificialmente flavorizados. Neste segundo ponto, entretanto, a medida não é livre de crítica, estando eivada de irremediável vício de inconstitucionalidade, como se pretende demonstrar a seguir. Nas próximas seções, este estudo pretende levantar argumentos que são contrários à adoção de medidas paternalistas coercitivas na regulação e aplicáveis em sua generalidade, ao mesmo tempo em que direciona especificamente críticas à resolução estudada no caso apresentado. 3 PROIBINDO O PROIBIDO: A DESPROPORCIONA LIDADE DA MEDIDA Como o chamado paternalismo possui diferentes modalidades que operam por meio dos mais variados instrumentos, é possível perceber que não há uma resposta fixa que encampe todas as diversas manifestações do fenômeno. Deve-se, portanto, fazer uma análise de custo-benefício23 da medida, avaliando se a intervenção, ainda que branda, se legitima. Recorde-se que são raras as vezes que a intervenção estatal na liberdade individual busca proporcionar mais liberdade; na grande maioria dos casos, há outros bens e interesses colocados em jogo, implicando o paternalismo em uma substituição do valor preferido pelo indivíduo pelo valor priorizado pelo Estado. Para institucionalizar juridicamente tais análises de custo-benefício, o Direito recorre ao princípio da proporcionalidade. Seu uso implica uma análise da adequação da medida restritiva adotada, de sua necessidade e, por fim, de um sopesamento entre os direitos envolvidos, o que, por sua vez, implica um exame 23. Mesmo reconhecendo que argumentos utilitaristas não estão muito em voga na atual academia, tomada por doutrinas com nomes prefixados, conteúdo raso e que pregam a obediência cega a um “politicamente correto”, que, como bem alertou Mill, não está longe de ser tirânico. Ademais, o Direito Regulatório é talvez a área que mais lide com análises do tipo custo-benefício, principalmente no que diz respeito aos impactos regulatórios. Análises desse tipo invocam necessariamente argumentos utilitaristas. Vide a brilhante exposição de Rafael Véras de Freitas (2014, p. 657).

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comparativo entre os graus de restrição e realização dos interesses e valores em jogo. A proporcionalidade é, portanto, dividida em três etapas – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito –, nos seguintes termos: uma medida estatal paternalista é adequada se for apta a fomentar os objetivos perseguidos; ela é necessária se a realização do objetivo perseguido não puder ser promovida, com a mesma eficiência, por meio de outro ato que limite em menor medida o direito fundamental atingido; ela é, por fim, proporcional em sentido estrito se o grau de realização do direito a ser fomentado justificar o grau de restrição aos direitos, bens e interesses atingidos, quais sejam a autonomia individual, a liberdade, o pluralismo.24 Cabe, todavia, atentar para as diferenças entre as modalidades de paternalismo. Na modalidade paternalista branda, entretanto, será preciso verificar o grau de intervenção – de indução do comportamento desejado – e o grau de restrição da liberdade individual. Sua vantagem perante a modalidade coercitiva é a possibilidade existente somente na forma branda de o indivíduo desviar da conduta esperada sem desviar da norma. Ao optar por induzir escolhas em vez de forçá-las, o paternalista libertário preserva a possibilidade de o indivíduo tomar uma decisão que seja contrária à esperada pelo Estado, mas que ainda assim respeite a norma vigente. Ao reduzir o fator “custo”, permitindo o desvio de conduta sem desvio da norma, as medidas brandas tendem a ser avaliadas favoravelmente nos subprincípios de necessidade e de proporcionalidade em sentido estrito. Situação oposta ocorre com a espécie coercitiva, que tende a violar frontalmente os citados dispositivos constitucionais em seu núcleo, falhando sempre em qualquer análise séria dos subprincípios da necessidade e da proporcionalidade em sentido (pela existência de meio menos oneroso, qual seja o paternalismo brando, e pela consequente desvantajosidade em termos de restrição que não justifica tamanha onerosidade), quando não da adequação, e, portanto, devendo ser rechaçado a qualquer tempo e hipótese. No caso da RDC nº 14/2012, cuja justificativa e objetivo era o de inibir a iniciação em hábitos tabagistas por crianças e adolescentes por meio da 24. Para um estudo mais detalhado a respeito do postulado da proporcionalidade, cf. ÁVILA, 2009, p. 161-173.

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proibição da comercialização de aditivos flavorizantes em produtos derivados do tabaco, é flagrante o descumprimento aos três subprincípios.

violação ao subprincípio da necessidade, em havendo – como há – medidas que não sejam igualmente sobreinclusivas.26

Em primeiro lugar – e de modo mais gritante – há a violação à adequação. Ora, a comercialização de produtos derivados do tabaco a menores de idade já é legalmente vedada em nosso ordenamento, de modo que a norma em comento é inócua, inefetiva e absolutamente desnecessária (no sentido literal do termo). Ao proibir a comercialização de tais produtos, a norma forçará o acesso apenas por meio do contrabando – que, frise-se, já existe – de tais substâncias.25 Fará ser ilegal que jovens e adolescentes adquiram cigarros aromatizados, que dependerão do mercado paralelo. A violação à adequação ocorre no fato de que atualmente menores já não podem ter acesso legal a estes produtos. Juridicamente, a conduta que justifica a norma em análise já é uma conduta vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, de modo que não se pode considerar adequada a proteger um bem jurídico uma norma que apenas repete, se sobrepõe a uma vedação já existente. Tomada em sua justificativa, é um grito no vazio, uma futilidade legislativa, pois proíbe o que já é proibido.

Por fim, a avaliação da proporcionalidade em sentido estrito. Considerando que a norma muito pouco (para não falar em nada) acrescenta à proteção jurídica do bem que justificaria sua implementação (a saúde de jovens e adolescentes, que costumam se iniciar em práticas tabagistas por meio de tais produtos), por se tratar de uma proibição já existente no ordenamento jurídico brasileiro, e que ela é bastante onerosa aos bens jurídicos que tende a mitigar (como a autonomia das pessoas que estão fora do escopo da sua justificativa), não há outra avaliação que não seja pelo não atendimento da demanda por proporcionalidade em sentido estrito e, em geral, do próprio princípio aplicativo da proporcionalidade, corolário do devido processo legal (art. 5º, inc. LIV, da CF/1988).27

Em segundo lugar, há a violação à necessidade, pois existe medida menos gravosa, a saber, efetivar a fiscalização da comercialização de produtos derivados de tabaco a menores. A medida contida na RDC nº 14/2012 infelizmente repete uma lógica constante no lidar do Poder Público brasileiro com questões complexas: em vez de priorizar uma solução holística, porém mais custosa, os agentes públicos tendem (quase) invariavelmente a adotar soluções simplistas, imediatistas e que não dão conta da real causa do problema. Se jovens e crianças estão tendo acesso ilegal a produtos derivados de tabaco, a medida correta é fiscalizar e punir as ilegalidades, não banir completamente o uso de produtos, afetando pessoas que sequer relação têm com a justificativa da norma. A sobreinclusão da regra contida no art. 6º da RDC nº 14/2012 é patente e gera uma inevitável 25. O argumento independe do fato de que a proibição de uma substância ou produto tende a aumentar a movimentação ilegal de tal produto. O simples fato de que a vedação força o acesso a tais produtos por meio do mercado paralelo já é suficiente para o que se pretende demonstrar.

4 ALGUNS PROBLEMAS DO PATERNALISMO COERCITIVO Uma vez demonstrada a inconstitucionalidade da RDC nº 14/2012, cumpre desenvolver a partir desse ponto algumas considerações sobre o paternalismo jurídico coercitivo e seus problemas. De uma maneira geral, o liberalismo, substrato político do Estado Constitucional moderno, enxerga o paternalismo com sérias reservas. O germe de sua oposição é a ideia de que ninguém pode arrogar para si a autoridade política, afirmando ter um acesso privilegiado a um universo moral que é negado às demais pessoas. Para o liberalismo, nenhuma razão dada por uma autoridade pode ser legítima se essa razão se funda no argumento de que uma concepção do bem é melhor do que a das demais pessoas ou que essa autoridade é intrinsecamente superior aos outros cidadãos (ACKERMAN, 1980, p. 12-13). Nesse diapasão, não são poucos os argumentos de cunho político levantados em favor da rejeição do paternalismo político e jurídico. 26. Este aspecto de sobreinclusão da norma será estudado com mais detalhes adiante, no ponto 4.2. 27. STF – ADIn. (MC) nº 1.158-8 – Rel. Min. Celso de Mello – Pleno – j. em 19.12.1994 – DJ de 26.5.1995.

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Em primeiro lugar, na medida em que cada pessoa tem uma opinião a respeito do que seja a vida boa, não se pode afirmar com certeza qual dessas concepções é realmente superior a todas as outras. Essa afirmação ganha particular relevância no contexto de sociedades extremamente plurais e complexas como a brasileira. É preciso, portanto, ser cético com relação a afirmações categóricas sobre a natureza da boa vida. Em um mundo em que tantos clamam saber a receita para a vida boa, é preciso ter cuidado na imposição de qualquer uma dessas receitas (ACKERMAN, 1980, p. 12). Ainda que se recuse esse argumento cético, argumenta-se também que o único modo de se aprender algo verdadeiro sobre o bem é por meio de experiências pessoais e livres da intervenção de algum tutor pronto para agir sempre que acredita que se está incorrendo em erro. Sem um espaço de autonomia dentro do qual o indivíduo possa viver sua vida, com todos os erros e acertos inerentes à experiência humana, ele jamais poderá compreender de fato a natureza e o valor dessa boa vida. A livre experimentação assume, então, um papel pedagógico para o indivíduo (ACKERMAN, 1980, p. 12). O defensor do paternalismo pode se desvencilhar dos dois primeiros argumentos, mas irá se deparar ainda com as dificuldades impostas por uma concepção de bem que dê um lugar central à deliberação autônoma e negue a possibilidade de se obrigar alguém a ser bom. A vida boa é uma vida em que o indivíduo possui autonomia para determinar seu próprio comportamento individual. Dessa maneira, ainda que se acredite que o bem pode ser identificado com clareza e sem necessidade de experiências pessoais, impô-lo às demais pessoas iria diretamente contra essa própria concepção de bem. Por fim, uma vez rejeitados todos os argumentos acima elencados, há de se perquirir ainda se esse bem será imposto na prática pelas pessoas corretas. Conferir tal poder a uma pessoa ou a um grupo de indivíduos, sempre passíveis de corrupção, é um risco real e grande demais para ser simplesmente desconsiderado. O ceticismo quanto ao exercício do poder é, portanto, o desafio definitivo posto pelo liberalismo ao paternalismo (ACKERMAN, 1980, p. 12).

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Cada uma dessas objeções foi levantada ao longo de séculos de tradição liberal, por autores que vão de Stuart Mill a Friederich Hayek (2010) em O caminho da servidão, e pode ser bem sintetizada na célebre frase de G. K. Chesterton: O homem livre é dono de si mesmo. Ele pode causar danos a si comendo ou bebendo; ele pode arruinar sua vida com o jogo. Se ele o faz, certamente é um tolo, e é possivelmente uma alma perdida; mas se ele não pode fazê-lo, ele é tanto um homem livre quanto o é um cão.28

Para além desses argumentos iniciais, também serão explorados aqui alguns argumentos distintos não respondidos por Conly e que dizem respeito à incapacidade do paternalismo coercitivo em apontar e resolver as supostas falhas no raciocínio individual. Procurar-se-á também demonstrar que as soluções do paternalismo trazem outros problemas intrínsecos (alguns epistêmicos e outros referentes ao próprio instrumental linguístico utilizado pelo Direito) que são usualmente desconsiderados no debate. Ainda, considerações de ordem jurídico-constitucional serão trazidas para demonstrar que determinadas condutas paternalistas não possuem abrigo sob a ordem constitucional brasileira vigente. 4.1 Problemas epistêmicos Uma primeira esfera de críticas ao paternalismo diz respeito a dificuldades epistêmicas, que envolvem questões referentes aos agentes públicos que criam as normas e moldam os cenários paternalistas e a uma possível posição informativa prevalente do indivíduo em relação ao agente público criador da norma. Se os estudos identificam carências informacionais e cognitivas nos indivíduos que tomam decisões como algo intrínseco ao raciocínio humano, não seria o caso de investigar se tais carências afetam também agentes públicos enclausurados em seus escritórios? Na esteira de Edward Glaeser, verifica-se que as falhas na cognição humana devem tornar o debate aberto também aos erros de agentes públicos, não só de 28. Tradução livre. No original: “The free man owns himself. He can damage himself with either eating or drinking; he can ruin himself with gambling. If he does he is certainly a damn fool, and he might possibly be a damned soul; but if he may not, he is not a free man any more than a dog”. Entrevista em 11.6.1935. Disponível em: . Acesso em: 3 maio. 2014.

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agentes privados, argumentando que haveria boas razões para crer que a tomada de decisões na esfera pública é possivelmente mais falha que na esfera privada (GLAESER, 2014, p. 2). Glaeser apresenta modelos econômicos em que demonstra sua hipótese, envolvendo os custos e incentivos em tomar decisões acertadas tanto para agentes públicos centralizados quanto para os indivíduos (GLAESER, 2014, p. 10-15). Para o autor, professor de economia de Harvard, a falta de incentivos na atividade política para tomar a melhor decisão que atenda a todos os indivíduos, bem como o número reduzido de tomadores de decisão públicos sugerem que a decisão centralizada governamental é propensa a ser falha (GLAESER, 2014, p. 2). Assim, apesar de reconhecer que há casos bem sucedidos de paternalismo, não se pode esquecer que, vez após vez, sob a carta branca das medidas paternalistas, governantes têm abusado de sua posição decisória e atendido a interesses próprios ou de terceiros (GLAESER, 2014). Muitas vezes, medidas paternalistas em carne e osso escondem uma alma – um propósito – que pode surpreender (negativamente). É o caso das normas que, além da justificativa oficial de cunho paternalista, escondem razões que vão fundo no submundo da atividade legiferante. Tome-se como exemplo o caso dos cigarros eletrônicos: eles simulam o ato de fumar pela vaporização de substâncias flavorizantes, podendo possuir ou não nicotina. Por não possuírem as inúmeras substâncias maléficas à saúde humana que os cigarros tradicionais possuem, os cigarros eletrônicos vêm cada vez mais sendo utilizados como substitutos dos produtos tradicionais pelos dependentes químicos da nicotina, além de evitar que terceiros sejam prejudicados pela fumaça exalada, por eliminarem simplesmente vapor d’água. Assim, podem ser pensados tanto como produto derivado do tabaco ou como mecanismo de auxílio no combate à dependência de nicotina. Essa indefinição quanto a sua classificação é visível em diversos órgãos reguladores sanitários nacionais e internacionais. Se tidos como produtos fumígenos, concorrem com os produtos tradicionais da indústria tabagista; se tidos como uma modalidade de tratamento de reposição de nicotina, concorreriam

em um mercado dominado por produtos das grandes indústrias farmacêuticas, como os adesivos e chicletes de nicotina.29 Considerando a justificativa (eminentemente paternalista) das normas que pretendem restringir a comercialização de tais produtos, é de se espantar que, como o Washington Examiner30 indicou, sejam as grandes empresas da indústria farmacêutica – e não as grandes empresas de tabaco – os maiores lobistas pressionando governos (especialmente o governo federal norte-americano) em busca de mais intensa regulamentação. Não coincidentemente, foi nomeado para dirigir a área do FDA31 relacionada a produtos de tabaco um dos mais respeitados lobistas da chamada Big Pharma, Mitch Zeller, que já foi consultor de empresas como a Glaxo Smith Kline.32 Em resumo: por trás de uma regulação com aparência puramente paternalista, reside a proteção de interesses corporativos de um determinado setor da indústria, que busca dizimar a concorrência de produtos que rapidamente vêm ganhando mercado. Uma bela demonstração de corporativismo.33 Ademais, é possível perceber, como mesmo Sunstein e Thaler (2003, p. 178) reconhecem, que muitas vezes o planejador centralizado não poderá fazer uma correta avaliação do que melhor promoverá o bem-estar, por possuir pouca informação a respeito das preferências e consequências dos cenários regulatórios. Aqui se retoma o tradicional argumento levantado por Hayek, para quem é o agente individual quem possui conhecimento necessário para a melhor tomada de decisão, pois o planejador central não possui os conhecimentos específicos que estão 29. A terapia de substituição da nicotina “é considerada um método seguro no tratamento da dependência de nicotina, o mais popular e o menos dispendioso. Quando comparada com placebo, é mais efetiva, influenciando também a frequência das recaídas. Esse tratamento pode ser aplicado por quatro formas de apresentação do produto com nicotina: a goma de mascar, o sistema transdérmico, o spray nasal e o vaporizador oral” (MARQUES et al, 2001, p. 207). 30. . Acesso em: 5 out. 2014. 31. U S Food and Drug Administration, agência reguladora sanitária federal norte-americana é um dos mais importantes órgãos do setor no mundo. 32. Informação contida na matéria do Washington Examiner indicada supra. 33. No inglês, crony capitalism.

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disponíveis somente aos indivíduos dispersos (HAYEK, 2010, p. 91-92)34 (VON MISES, 2012).35 Nesse sentido, mesmo que autores como Sarah Conly se recusem a admiti-lo, a defesa de qualquer forma de paternalismo implica em algum tipo de imposição de valores, com a substituição dos valores dos indivíduos pelos valores do planejador central. Tal fato fica mais evidente quando se percebe – como já exposto – que a maioria das intervenções paternalistas não pretende resguardar ou ampliar a liberdade do indivíduo, mas tutelar algum bem, interesse ou valor que é considerado relevante (como a saúde, a educação etc.). Ao contrário, a função da legislação, como indica Hayek (1985, p. 3), deveria ser a de manter a neutralidade quanto aos fins, limitando-se a oferecer os meios que permitam que os indivíduos busquem por si os seus objetivos. Na esteira da lição de Feinberg (1986, p. 12), a lei não deve se preocupar com a sabedoria ou a prudência de uma escolha individual, mas se a escolha é verdadeiramente do indivíduo. De fato, muitas vezes o indivíduo se mostra confuso e indeciso, podendo ser acrítico, e isso pode até mesmo levar à sua infelicidade. O que se quer argumentar é que, se muitas vezes o próprio indivíduo (que tem acesso a todas as informações de caráter subjetivo) não consegue definir o que é melhor para si, não será um burocrata encastelado em uma repartição pública – que apenas possui informações gerais, nunca específicas – que saberá o que é melhor para todo e cada um dos administrados. Seria mais simples e viável pensar em meios de auxiliar os indivíduos informando-os, permitindo que tomem decisões livres e fundamentadas, ainda que com o auxílio do Estado. 34. “Só os indivíduos poderão conhecer plenamente as circunstâncias relativas a cada caso e a elas adaptar suas ações. Para que o indivíduo possa empregar com eficácia seus conhecimentos na elaboração de planos, deve estar em condições de prever as ações do estado que podem afetar esses planos. Mas, para que tais ações sejam previsíveis, devem ser determinadas por normas estabelecidas independentemente de circunstâncias concretas que não podem ser previstas nem levadas em conta de antemão – e os efeitos específicos dessas ações serão imprevisíveis. Por outro lado, se o estado dirigisse as ações individuais visando a atingir objetivos específicos, teria de agir com base em todas as circunstâncias do momento, e portanto suas ações seriam imprevisíveis. Daí o conhecido fato de que, quanto mais o estado ‘planeja’, mais difícil se torna para o indivíduo traçar seus próprios planos.” 35. O argumento é análogo ao que Ludwig von Mises levantou contra a formação de preços no socialismo: um agente central não tem como ter acesso a todas as preferências individuais, o que só pode ser obtido no livre mercado. Aqui, não se trata de preferências individuais a respeito de produtos e serviços, mas valores e fins, concepções de bem.

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Um paternalista argumentaria aqui que as decisões governamentais são baseadas em inúmeros e extensos estudos que conseguiriam representar com satisfatória fidelidade o estado de determinada questão na sociedade, apresentada em seus estratos mais detalhados pelos critérios mais variados. Ainda que se conceda à regulação inquestionável qualidade em sua formulação, mesmo assim ela apenas poderá se referir a grupos (maiores ou menores, majoritários ou minoritários), mas nunca a indivíduos, quer por uma impossibilidade física de ter acesso a todas as preferências e necessidades dos indivíduos (até porque, como visto, muitas vezes nem os próprios sujeitos sabem ao certo o que querem), quer por uma impossibilidade lógica, ao perceber que qualquer pretensão de individualização esbarra no próprio caráter geral e abstrato da lei. Assim, a única saída para o paternalista é admitir que sempre haverá uma substituição aos valores do indivíduo – sejam eles valores compartilhados em um grupo minoritário, em toda a sociedade, ou simplesmente adotados e impostos pelo Estado. Enfim, o que se pretendeu demonstrar aqui foi a incapacidade também do Estado em promover melhores decisões para o indivíduo. O papel primordial do Estado, se deseja que os indivíduos tomem melhores decisões, seria o de informar, não de decidir por eles. 4.2 Problemas inerentes ao Direito O material operativo primário que forma o Direito são as regras (prescritivas), espécie normativa que impõe deveres e obrigações a seus destinatários. É principalmente (para não dizer exclusivamente) por meio das regras que o paternalismo se verifica no mundo do Direito. Compreendendo como funcionam as regras e quais os problemas inerentes à sua utilização, será possível verificar mais um relevante argumento contra a utilização de posturas e normas paternalistas. As regras fazem uso de generalizações, que se apoiam em categorias. Um mesmo objeto ou fenômeno pode ser descrito pela conjugação de diversas categorias, que se sobrepõem para individualizar o objeto perante o mundo (SCHAUER, 1991, p. 19). Generalizações são, assim, escolhas de categorias, possuindo, portanto, caráter seletivo e, consequentemente, supressivo das demais categorias. Dentre as possíveis generalizações, a escolhida em determinado discurso irá necessariamente suprimir diferentes cate-

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gorias que seriam explicitadas em outras generalizações, de modo que tal escolha é sempre contextual. As generalizações são probabilísticas e não universais – o que quer dizer que não há uma garantia de verificação, em todos os casos possíveis, da generalização em relação aos motivos que levaram tal generalização a ser escolhida (pelo legislador). Em outras palavras: quando se fala que uma regra é uma generalização, não se está apenas dizendo que ela vale para todos os integrantes de um tipo, mas também que ela não é necessariamente verdadeira para todos os casos de aplicação (STRUCHINER in COSTA, 2010, p. 109). As generalizações – e, como será visto, as regras – são, assim, sempre atual ou potencialmente sobreinclusivas ou subinclusivas em face de suas justificações subjacentes (STRUCHINER, 2005, p. 148-150).36 As regras prescritivas, as mais importantes para o Direito – pois possuem o intento de exercer pressão no mundo, prescrevendo condutas humanas –, podem ser decompostas em uma parte antecedente (o predicado fático), que determina as condições que devem ser aferidas para que a regra seja acionada, e o consequente, acionado quando o predicado fático é verificado. O predicado fático é, portanto, uma afirmação descritiva genérica que, quando verificada, aciona o consequente. Tais componentes nem sempre estão expressos no mesmo texto legal, podendo até ocorrer que um deles não esteja expresso, mas seja implicitamente reconhecido no ordenamento jurídico, mas qualquer regra prescritiva pode ser reconduzida a esta forma “Se x, então y” (SCHAUER, 1991, p. 23). Pode-se perceber, portanto, que o predicado fático representa, na verdade, uma generalização, e não um comando particular, destinado a um objeto ou fenômeno específico (e não é de outro lugar que surge o tão clamado caráter “geral e abstrato das leis”). As regras prescritivas são criadas, deste modo, por generalizações desenvolvidas a partir da observação de um ou mais casos particulares, tomados como paradigmáticos, e estabelecidas como medida adequada a alcançar determinada meta ou evitar um mal que se pretende erradicar, a chamada justificação da regra (SCHAUER, 1991, p. 26). No paternalismo jurídico – e esse aspecto é fundamental para a definição de paternalismo ora adotada –, a justificação da regra 36. Tese de Doutorado disponível em: .

necessariamente envolve considerações que exclusivamente dizem respeito ao indivíduo – seu bem-estar, segurança etc. As regras são desenvolvidas, assim, a partir do processo de generalização do particular, por meio de uma abstração das propriedades consideradas relevantes para efetividade dos seus objetivos, ou seja, para a sua justificação. A justificação é fundamental tanto para o processo criativo quanto para o processo e aplicação da regra, pois, por um lado, será a justificação escolhida pelo legislador que definirá as categorias e propriedades que serão abstraídas neste processo criativo de generalização, enquanto, por outro, servirá, na aplicação da regra, para orientar a conduta do intérprete visando sempre à maximização da justificação. Ainda, a relação entre a generalização e a justificação da regra é meramente probabilística, não podendo se afirmar um nexo de causalidade suficiente entre os termos. O que se quer afirmar aqui é que, por mais perfeita que seja a generalização, não é possível atestar que, em todos os casos de aplicação da regra, esta será justificada, seja por existirem casos não abarcados pela generalização feita que demandariam tal justificação, seja pela existência de casos que estão dentro do escopo da generalização, mas que não se conectam à sua justificação, os chamados fenômenos da sub e sobreinclusão (SCHAUER, 1991, p. 31). Por serem as generalizações feitas na criação das regras apenas assunções probabilísticas aos propósitos que pretendem alcançar, tais regras são atual ou potencialmente sobreinclusivas ou subinclusivas. Isso porque, como visto, elas incorporam mais ou menos casos do que deveriam de acordo com suas justificativas, gerando, assim, resultados subótimos em certas ocasiões. É o que se vê no caso em estudo: a citada medida que vedou aditivos de sabor em cigarros comercializados no Brasil sob a justificativa de redução da iniciação de novos fumantes em idade jovem (partindo da premissa adotada pela Anvisa de que esses aditivos têm como objetivo principal tornar os produtos derivados do tabaco mais atrativos para crianças e adolescentes) é, ao mesmo tempo, sub e sobreinclusiva. Subinclusiva pois deixa de enfrentar outras formas de iniciação no tabagismo – nesse aspecto, como visto, a medida é até inútil e inconstitu-

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cional, pois a comercialização de produtos derivados de tabaco a crianças e adolescentes já é proibida pela legislação em vigor. Por outro lado, é também sobreinclusiva, pois afeta situações que não caem no escopo de sua justificativa, como os fumantes adultos ou aqueles que já se iniciaram37 na prática do tabagismo por outros meios. Nesses casos, a aplicação da regra produz uma situação indesejada, já que as suas justificativas apontam para resultados diferentes dos apontados pelos predicados fáticos ou pelas generalizações, de modo que o caráter subótimo de tais regras representa mais um argumento contrário à sua adoção. Some-se ao problema acima relatado o da vagueza. A linguagem, por ser socialmente construída, é necessariamente indeterminada, ainda que parcialmente. Por mais que exista, para a grande maioria dos termos, um núcleo duro de significado, é comumente verificada uma problemática zona cinzenta de significação (STRUCHINER in MACEDO JR.; BARBIERI, 2011, p. 137-138). Assim, a utilização de palavras nas regras está sujeita a uma vagueza de grau ou combinatória, esta última ocorrendo com conceitos multidimensionais. Alguns conceitos, cuja correta aplicação depende da verificação de uma única propriedade, podem apresentar casos fronteiriços ou nebulosos quando não se sabe qual é o grau da presença da propriedade que se faz necessário para a aplicação do conceito. Por outro lado, alguns conceitos ou predicados são multidimensionais, o que quer dizer que o seu significado depende de uma série de propriedades constitutivas diferentes e da maneira com que essas propriedades devem estar combinadas. Tais conceitos podem apresentar, além da vagueza de grau, uma vagueza combinatória (STRUCHINER in MACEDO JR.; BARBIERI, 2011, p. 137-138). A não rara utilização, em normas regulatórias, de termos essencialmente abertos, fluidos, como os chamados conceitos jurídicos indeterminados (MOREIRA NETO, 2009, p. 266), nada faz além de escancarar as portas para o problema da vagueza e todas as suas decorrências em termos de imprevisibilidade e de isonomia. Isso porque, como a determinação do escopo da regra paternalista nesses casos em que há 37. A maioria dos usuários dos chamados cigarros aromatizados é adulta e não fuma apenas tais produtos, segundo dados relatados no processo.

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conceitos essencialmente vagos reside, em última instância, na figura dos Juízes isoladamente diante dos casos concretos postos a julgamento (ou, pior ainda, dos incontáveis agentes estatais responsáveis pela aplicação diária e imediata da norma), não é difícil perceber que muitas vezes a adjudicação de tais normas está longe de ser uniforme, o que, como dito, gera cenários anti-isonômicos e de insegurança jurídica. 5 CONCLUSÕES Como afirmado previamente, não foi do escopo desse trabalho realizar uma análise detida e aprofundada de todos os aspectos jurídicos atinentes à RDC nº 14/2012. Seu foco foi traçar algumas considerações mais amplas acerca do paternalismo jurídico e, mais especificamente, sua aplicação no âmbito da regulação, tarefa para qual se lançou mão da mencionada resolução como caso exemplificativo. De fato, seus dispositivos possuem caráter sui generis. Se por um lado assume a forma de um paternalismo coercitivo quando se pretende proteger a saúde de maiores de idade, por outro não possui esse caráter tão marcadamente paternalista quando se propõe a proteger a saúde de menores. Não obstante, conclui-se que, mesmo neste último caso, a norma incorre em inconstitucionalidade ao não passar no teste da proporcionalidade, corolário do devido processo legal (art. 5º, inc. LIV, da CF/1988). Ela viola, em primeiro lugar, a adequação, uma vez que, tendo em vista que a comercialização de derivados do tabaco a menores de idade já é legalmente proibida em nosso ordenamento, se mostra inócua. Em segundo lugar, viola a necessidade, pois existe medida menos gravosa à realização do fim pretendido, qual seja a fiscalização efetiva da comercialização desses produtos. Por fim, uma vez que se trata de uma proibição já existente no ordenamento jurídico, pouco acrescentando à proteção da saúde do jovem brasileiro e mostrando-se excessivamente onerosa aos bens jurídicos mitigados – a liberdade de autodeterminação dos adultos que voluntariamente optam por utilizar tais produtos –, ela se mostra incompatível com a proporcionalidade em sentido estrito. Indo além da análise da resolução, foram levantados de maneira mais geral alguns argumentos e críticas ao paternalismo coercitivo. De início, tratou-se de mostrar a inadmissibilidade desse paternalis-

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mo em uma comunidade política liberal, por meio de uma síntese dos principais argumentos liberais antipaternalistas. Em resumo, o ceticismo quanto à capacidade epistêmica dos indivíduos, o questionamento de seu valor pedagógico, a adoção de uma noção de bem calcada na autonomia do indivíduo e uma desconfiança para com o exercício do poder seriam os desafios colocados pelo liberalismo ao paternalismo. Além disso, foram evidenciados alguns problemas de natureza epistêmica relativos à incapacidade dos formuladores de políticas públicas de recolherem e terem acesso a todas as informações relevantes para a questão. Por fim, foram colocados alguns problemas inerentes à própria natureza do Direito e das normas jurídicas. Esses problemas decorreriam principalmente da textura aberta da linguagem, gerando zonas de penumbra em que a aplicação da norma dependeria de uma melhor escolha do intérprete, e do caráter sobre e subinclusivo das normas jurídicas, comum a todo tipo de generalização. Do exposto, fica patente que, em que pese a eventual boa vontade de nossos órgãos reguladores e legisladores, o paternalismo jurídico coercitivo não apenas gera tensões com um Estado Constitucional, como acaba gerando mais malefícios do que benefícios reais à população. Caberia indagar, portanto, se, ao invés de se ocupar de proibições de cigarros, aromatizados ou não, e outros produtos vistos como prejudiciais à saúde, não seria mais salutar à sociedade brasileira que suas autoridades públicas se dedicassem a banir de vez semelhante postura paternalista do ordenamento jurídico. REFERÊNCIAS ACKERMAN, Bruce. Social justice in the liberal state. New Haven: Yale University Press, 1980. ATIENZA, Manuel. Discutamos sobre paternalismo. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 5, p.203-214, 1988.

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