Projeto “25 anos de uma definição, o carnaval como rito de inversão, de Roberto DaMatta”1: Notas sobre paradigmas, artefatos E artifícios relacionais (ANPOCS 2003)

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Projeto “25 anos de uma definição, o carnaval como rito de

inversão, de Roberto DaMatta” 1: Notas sobre paradigmas, artefatos E artifícios relacionais 2

Alberto Groisman Universidade Federal de Santa Catarina

Este paper registra, narra e reflete sobre uma investigação que procura associar abordagens teóricas, etnografia e produção de imagem em pesquisa, e tem como enfoque geral o carnaval em Florianópolis. A reflexão que proponho é ainda preliminar e foi elaborada a partir de atividades desenvolvidas por um grupo de participantes de uma oficina de pesquisa. Uma das principais motivações desta oficina foi a constatação de que em 27 de junho de 1978, Roberto DaMatta concluiu a redação dos agradecimentos da já clássica obra da antropologia brasileira Carnavais Malandros e Heróis: Para uma Sociologia do Dilema Brasileiro (DaMATTA 1978), e que a publicação completou 25 anos de existência em 2003, por esta razão o título evoca este evento. Em Carnavais, Malandros e Heróis, DaMatta faz uma reflexão sobre processos e instrumentos de mediação das relações sociais no Brasil e discute três “ritos nacionais”, a parada militar, a procissão e o carnaval, associando seu sentido simbólico a três temáticas respectivas: o reforço, a neutralização e à inversão. Debruçando-se sobre tensões, motivações, representações e outros elementos acerca destes ritos, DaMatta constroe parâmetros analíticos que se tornaram voz ativa nos debates sobre o fenômeno do carnaval no Brasil. Estes parâmetros problematizam forma e conteúdo do ponto de vista de sua característica central, segundo DaMatta, de espelharem e dramatizaram aspectos da cultura brasileira, constituindo-se em elementos fundamentais na elaboração, na percepção e na fruição social e cultural das identidades no Brasil. Na oficina de pesquisa que realizamos os participantes resolveram colocar em prática uma investigação, de um lado epistemológica, sobre os desdobramentos teóricos e analíticos, e de outro, empírica, da contemporaneidade da definição do carnaval brasileiro como “rito de inversão”, consagrada na obra pelo autor. Relatar alguns desdobramentos desta iniciativa é um dos objetivos do que vou fazer aqui.

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Participantes em 2003: Ana Cristina R Guimarães, Joana de Conti Dorea, José Bonifácio Brasil S. Filho, Regiane Vidal, Bruno Miranda (alunos do curso de Ciências Sociais-UFSC), Eduardo Lyra (fotógrafo colaborador); Colaboraram com o projeto: Flavio Amaral (aluno do curso de EconomiaUFSC), Benedito José Correa (aluno do curso de Ciências Sociais-UFSC). 2 Versão preliminar, sujeita a modificações.

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Este movimento começa de fato no segundo semestre de 2001, por ocasião da greve de professores das universidades federais. Na disciplina de Antropologia Visual, ministrada conjuntamente por mim e pela professora Carmen Rial, foi proposta uma atividade de greve que foi chamada pelos participantes “Passe a Câmara” e que consistiu na colocação em prática de uma experiência de coleta de imagens na qual os participantes compartilharam duas câmaras fotográficas, tendo direito de tomar três imagens inspiradas na observação e vivência da greve que acontecia. A atividade trouxe à tona riquíssimas experiências. E os participantes registraram suas experiências em relatos descrevendo como fotografaram, planos e frustrações, relações estabelecidas com protagonistas da greve e das fotos, imagens produzidas e pensadas, materializadas entre aspas no filme ou não. Estas experiências e seus relatos colocaram em destaque não só a percepção que os participantes tinham da greve como também problematizaram a performance fotográfica de cada um, incluindo sua auto-imagem, além ter um grande mérito de reunir num trabalho coletivo pessoas interessadas no uso da fotografia em pesquisa social. Mais tarde, quando do encerramento da greve, propusemos ao grupo uma outra coleta de imagens, já que era época e o semestre entrava fevereiro a fora, agora tendo como tema o carnaval de Florianópolis. Não usamos a técnica do “Passe a Câmara”, mas certamente a experiência foi fundamental para o desdobramento deste outro exercício e da reflexão que ora estou trazendo aqui, pois o material produzido e apresentado, mostrou-se de uma riqueza que transcendeu os limites de um exercício de aprendizado acadêmico, demostrando não só que o carnaval de Florianópolis é um espaço interessantíssimo onde se pode escrutinar a idéia básica de Roberto DaMatta de que o carnaval é um rito que dramatiza valores da sociedade brasileira em forma de inversão. Mas também que a fotografia pode ser um interessante artefato de produção e provocação de relações e evidências. Esta visão já havia é verdade sido abordada em seu artigo “Carnaval como rito de passagem”, publicado na coletânea Ensaios de Antropologia Estrutural (DaMATTA 1973), onde o autor também trata do tema do social enquanto drama, mas é com Carnavais, Maladros e Heróis, que o autor organiza sua visão sobre o que chamou de “dilema brasileiro”, na qual a reflexão sobre o carnaval é fundamental (DaMATTA 1978). Assim os trabalhos exploratórios dos alunos apontaram para o surgimento na cena carnavalesca, entre outros tantos, de elementos inexistentes quando DaMatta sistematizou seu pensamento. Exemplo bastante expressivo registrado pelos alunos foi o desfile público e competitivo de drag e beauty queens. O evento é considerado “oficial” do carnaval de Florianópolis (tem apoio oficial dos órgãos de turismo) e ocorre numa passarela especialmente montada para isto, ocupando quase inteiramente, um lugar que em passado recente era baluarte

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do chamado “carnaval de rua”, área localizada em frente ao Bar Roma, no centro da cidade, que era local de referência para vários segumentos sociais no carnaval, e onde hoje, talvez sintomaticamente funciona uma farmácia. Outro fenômeno paradigmático e inquietante, registrado recorrentemente nos trabalhos, foi a presença generalizada de famílias/indivíduos catadores de latas de alumínio, recipientes de cerveja e refrigerantes que são descartadas por foliões, mas que tem alto valor no mercado, sendo compradas pela chamada indústria da reciclagem, atividade que se constitue em parte significativa da renda familiar destas pessoas.

Roberto DaMatta e o Carnaval Brasileiro: Sobre Inversões, Espetacularidade, Cena e Personagem A oficina de pesquisa original então tinha como motivação associar um objetivo epistemológico, de levantar os desdobramentos teórico-empíricos da operacionalização de uma definição classificatória que se tornou clássica na antropologia brasileira. Segundo, converter teoria em inquietação, para depois torná-la inspiração para uma prática investigativa etnográfica com fotografia. Primeiro abirmos uma reflexão teórica sobre as propostas analíticas de Roberto DaMatta. DaMatta em seus trabalhos principais sobre o assunto, analisa o Carnaval brasileiro com base em duas vertentes principais. Uma primeira, na qual utiliza o conceito de communitas, desenvolvido por Victor W. Turner (TURNER 1974), para abordar o Carnaval como metáfora de uma cultura projetada, numa ênfase no que ele chama de “aspectos comunitários” da ordem social. Neste sentido, o autor afirma que a ordem social na cultura brasileira é alicerçada muito levianamente em regras universais de convivência e controle social, mas sim e consistentemente na promoção e desdobramentos cotidianos das relações pessoais. Para DaMatta, esta característica do devir de cada dia no contexto brasileiro produz uma tensão tal que a motivação para a transgressão e para a ambiguidade passam a ser os valores centrais da atitude da pessoa. Este aspecto na visão do autor sugere uma atitude de certa forma utópica, de que para tudo que precisamos resolver existe um jeito, e que este jeito consiste em transgredir as regras formais e legais da sociedade. Esta transgressão na visão de DaMatta representando um aspecto central da estrutura da cultura brasileira, como motivada por uma utopia implícita que ele chamou de “grande communitas”, na qual “raças, credos, classes e ideologias” comungariam pacificamente ao som do samba e da miscigenação racial” (DaMATTA 1973:123). Por outro lado, um aspecto fundamental para nossas indagações é que a abordagem de DaMatta evoca basicamente uma perceção imagética motivada pela noção de “inversão”,

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tornando-se assim um estímulo institgante para pensar as possibilidades de uma abordagem etno-visual do carnaval. Nesta abordagem, os elementos de análise assumem uma configuração contextual, que é sintetizada por uma espécie de composição cenográfica, já que propondo inversões, o Carnaval exige de seus protagonistas a elaboração/construção prévia de suas existências na festa. Como uma espécie de “rito de ocupação da rua”, o carnaval no Brasil foi se tornando gradativamente um período do ano no qual se constróem novas abordagens para, e sôbre, a territorialidade urbana. Neste sentido, o formato de “desfile”, é ressignificado talvez a cada ano, para atrair a atenção da população, ampliando os espaços da “brincadeira”. Num primeiro momento, permitindo a “passagem” de diferentes abordagens - de temas circunstanciais ou estruturais - que se converteram em blocos, ranchos, escolas, enfim coletivos diferenciados e idiossincráticos que expressavam em geral de forma crítica e caricatural posições bem humoradas sobre assuntos tratados de forma séria e grave no cotidiano. Neste sentido, a jocosidade é também um aspecto central da iconoexposição de corpos e valores. Com a expansão do interesse, e a emergência de uma idéia de auto-financiamento do divertimento, surgem os “grandes desfiles carnavalescos”, e sua localização oficializada nas maiores avenidas da metrópole. Associada a esta localização criam-se necessidades de infraestrutura e estas necessidades implicam em tornar o evento da exibição em espetáculo, cena e cenário de um divertimento talvez mais “platônico” do que até então se havia vivido. Surgem assim os “carnavais”, carnaval de rua, carnaval de clube, carnaval de avenida. O folião nesta concepção se torna platéia e passa a interagir na espetacularidade exigida também como receptor e consumidor daqueles corpos e idéias. Assim a espetacularidade parece influenciar a própria fruição do divertimento, e o ato de se fantasiar, que talvez no passado tivesse um caráter mais específicamente poético ou emblemático, torna-se mais performático e espetacular. Esta espetacularidade associada com o aspecto lúdico do carnaval fascinou por exemplo Victor W. Turner. Turner considerou o carnaval no Brasil uma evidência da capacidade da cultura brasileira em sintetizar. Seu argumento era que a liturgia do carnaval brasileiro permitia que formas e concepções simbólicas até antagônicas pudessem compartilhar um mesmo ambiente simbólico, sem produzir conflitos, que em outras culturas seriam aniquiladores das relações sociais.

Olhares e Imagens: Artefatos Relacionais e Evidências Relativas Abro aqui um espaço aqui para refletir sobre o ato de fotografar. Eu diria uma quasefenomenologia.

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Eu confesso que acho importante render homenagens aos clássicos. Assim gostaria de ressaltar que um dos marcos fundacionais para o desenvolvimento das uma abordagem fotoantropológica foi o trabalho de John Collier Jr (1973). Collier Jr estabeleceu um significativo número de princípios e premissas para a produção de imagem para fins de estudo etnológico. Neste sentido, uma das observações mais relevantes do autor foi que a imagem dá forma aos conceitos da realidade, permitindo de um lado a armazenagem cênica e a partilha de elementos para análise e reflexão. Esta partilha então é quase transtemporal, ou seja que possamos ter acesso à informação imagética tanto no seu sentido sequencializado quanto na sua contemporaneidade. Mas um outro aspecto fundamental da contribuição de Collier Jr é sua sensibilidade ao compreender que as imagens que produziu e que são produzidas pelos etnógrafos são digamos fundadoras ou perpetuadoras de relações. Neste sentido, a produção da imagem fotográfica implica em tantas situações de troca, negociação e reciprocidade de bens materiais e simbólicos - e que nestas situações uma das mercadorias em transação são os “olhares” dos protagonistas - que é possível pensar a fotografia como um bem simbólico de uma comunidade, e, neste sentido, um “artefato social e relacional”, que implícita ou explicitamente, consciente ou inconscientemente, representa uma ou muitas relações sociais e mesmo cósmicas-cosmológicas. Penso que podemos tentar decompor o clique fotográfico. A meu ver há elementos que permitem pensar as relações decorrentes da intenção de fotografar: há, a mídia, uma fonte onde, ou pela qual, se faz um registro, ou seja o conjunto aparato/máquina-filme; há o tomador (sujeito que aciona o dispositivo disparador. Este dispositivo imprime numa fonte o recorte da imagem feita por um aparato de registro), a tomada (o recorte propriamente dito da imagem, fundamentalmente a escolha de elementos e o enquadramento); e existe o tomado (ou o conjunto de elementos incluídos deliberada ou aleatoriamente no recorte da imagem). Por outro lado existem os “olhares” dos tomadores e de suas relações trajetoriais com a tomada e o tomado, resultado de desdobramentos particulares de suas vidas, interações de todos os níveis desde as mais até as menos conscientes. Neste sentido, podemos afirmar que existem olhares preconcebidos, sistematizados por modelos pré-existentes de percepção visual e cultural, definidos ou não, pela categoria social do tomador a partir dos clichês que a categorização social impõe, e que também existem olhares que buscam ao nível da metalinguagem da produção da imagem, questionar pre-concepções. O que a experiência de clicar “cenas” “etnográficas” nos mostra é que as imagens fotográficas obtidas nestas situações podem ser divididas em maior número de categorias do que somente na consagrada de “fotos etnográficas”. O fato de uma imagem fotográfica ser

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tomada durante a coleta de dados que subsidiará uma etnografia não nos permite dizer que esta imagem “é etnográfica”. Por outro lado, o ato de fotografar, “tomar a imagem” de lá e torná-la algo “nosso”, de nossa autoria, privado, implica numa série de desdobramentos que me parecem fundamentais para pensar a fotografia em sua dimensão relacional. Assim, o registro deliberado de um evento dentro do contexto do carnaval acaba por dar forma não só àqueles conceitos e concepções correntes - tanto do pesquisador, resultados de uma reflexão sistematizada -, como também permite que no futuro o registro sensível da narrativa analítica possa ser escrutinado e evidenciado, por uma eventual nova cena, mas em situações nas quais o vínculo da imagem com o que ela narra só pode encontrar sua totalidade fenomenológica se for contextualizada pelo fazer e pelo re-fazer etnográfico. Então a fotografia etnograficamente produzida pode ser mais do que simplesmente incidental ou acidental, como o eram muitas das imagens produzidas para ilustrar o que os viajantes relatavam sobre os grupos que visitavam. Recomenda-se que seu sentido deva ser contínuo e processual, vinculado ao desejo de uma reflexão sobre definições já existentes, e seu enfoque comprometido em cobrir as dimensões sincrônica e diacrônica, tornando seu poder de evidência mais consistente. Mas ao que parece, incidentalidade e acidentalidade são também importantes para pensar tal evento de sentido relacional. É verdade, a imagem torna mais densamente plástica a noção transmitida pelo texto, e permite uma interlocução qualitativamente diferente. O registro proporcionado pela imagem, porém, não pode ser visto como sendo da mesma natureza, tanto no que diz respeito à forma com que é produzido, quanto no que diz respeito ao objeto e ao enfoque de sua tomada. Assim, contemporaneamente o advento da imagem tem sido abordado como resultado de uma “produção”. A imagem não é objeto, mas processo e experiência. Assim, quando se pensa em produzir imagens para sustentar argumentos analíticos, é preciso ter em mente que a imagem produzida nesta circunstância precisa ter caráter de “dado de análise”, ou “dado de pesquisa”. Neste sentido, além do caráter documental, a imagem em pesquisa não só é “evidência” de algum fenômeno ou acontecimento, mas também considerando a subjetividade narrativa associada a sua produção, evidência da própria subjetividade da observação. Quando pensamos esta subjetividade em têrmos de imagem fotográfica, procuramos compreender e trabalhar com a fotografia em têrmos de sua fruição narrativa e documental, procurando na sua produção entre aspas, otimizar seu caráter de evidência. Esta evidência não é externa ao processo de interação entre os sujeitos da pesquisa, e sim a representação estéticanarrativa academicamente formatada da interlocução entre os protagonistas da pesquisa, que ainda têm sido chamados arbitrariamente de “pesquisador” e “informante”. Na verdade, a

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produção da imagem é sempre um evento recíproco, no qual embora um tenha a prerrogativa de decidir em última instância tempo e espaço do registro, é a interação pré, simultânea e pós, entre os dois ou mais envolvidos, que vai permitir uma densidade suficiente para que se possa atestar a propriedade do registro. A tomada da foto então é um momento que somente ilusoriamente parece estar encerrado no clique mecânico. Está sim incluído num ciclo e num círculo técnico, estético, relacional e político das relações entre os envolvidos. Neste sentido, o clique, um momento arbitrário que pode encerrar talvez apenas uma espécie de desfecho cognitivo e emocional, no qual o tomador da imagem se “livra” da carga de elaboração e ansiedade produzida pela concepção, planejamento e execução do ato da produção da imagem, é também um ato sintético, denso, dialético da produção e da fruição de uma relação social. Por outro lado a produção etnográfica em sua totalidade como estamos vendo aqui não é só mercadoria para julgamento, amostra de inspiração e preparo, ou exemplo de talento de reportagem, mas objeto e motivação da reflexão sobre os negócios da existência. Neste sentido, a imagem e sua produção são artefatos relacionais, parâmetros para estabelecer e cultivar relações e relacionamentos.

O carnaval de Florianópolis e suas visualidades Mais especificamente então no contexto deste projeto, o registro fotográfico do “fantasiar-se” no carnaval sugere um mergulho fascinante numa experiência que - usualmente mostrada somente enquanto objeto acabado – pode na verdade transcender, enquanto forma de expressão, em muito, os limites temporais e espaciais da “cena cernavalesca”, podendo ser pensada como “retrato” sequencial de um processo de construção e expressão de um “personagem” e dos conteúdos possíveis de sua leitura social. Para a realização da pesquisa, foram escolhidas, a partir de contatos pessoais preliminares, pessoas que costumam se fantasiar para o carnaval. Estas pessoas foram acompanhadas durante seus preparativos para participar do carnaval. Neste sentido, o objetivo deste recorte foi ingressar no universo da experiência individual da elaboração, justificativa e expressão fantasiada e refletir sobre o desenvolvimento da cena carnavalesca na sua “localidade”. O pesquisador ingressa no campo carnavalesco? Imerge na communitas? A experiência narrada pelos alunos indica um experiência liminar genuína, transitando nas margens. A presença do etnógrafo se revela pela leitura corporal. Os foliões notam a camera e os flashs e logo passam a considerar o clique. Como um bem a ser conquistado, comprado, o clique e seus resultados passam a fazer parte de uma sequência, um pede, clique, outro vê e diz pode tirar uma foto nossa? O grupo de fantasiados se posiciona. A situação é amplamente

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contrastante com a da greve na qual o movimento mais dominante é o esquivar-se. No carnaval o movimento dominante é o exibir. Poderíamos especular se se o sujeito é o mesmo, se quem ganha visibilidade na greve é a mesma pessoa que se torna visível no carnaval. E não há nada que possa dizer que são diferentes sujeitos. O contexto é que faz a linguagem do entrar na cena/sair da cena. O clique é um marco relacional neste sentido, porque de um lado ele estabelece o parâmetro de uma relação efêmera mas desafiante, tanto para o tomador, quanto para o protagonista que se expõe na tomada. Antes do clique, há uma cadeia de negociações, que sintetiza as rêdes relacionais envolvidas, o poder do tomador e do tomado, a configuração do contexto, quem está envolvido na cena total da tomada. Neste sentido, se pode identificar a cena da tomada e a cena total. Esta idéia de cena total pode ser bem exemplificada pelas duas fotos que mostro. Na primeira, no escuro do barracão da escola, tomador e tomado coreografam as relações estabelecidas pela expectativa mútua, quase linear de “sair bem” e de “se sair bem”. No caso do fotógrafo profissional, a expectativa é de que as relações se converteram em possibilidade de ganho e expansão. No caso do foto-etnógrafo, a expectativa é a do registro mnemônico e cenográfico, o resultado gera uma reciprocidade “mediata”, ou seja, a mediação não é informada pelo sucesso técnico-estético do clique disciplinado pela expectativa da satisfação, mas pelas potencialidades sintéticas de análise e reflexão. Não estou dizendo que se trata simplisticamente da relação entre uma “refração técnica” versus uma “refração intelectual”. O que quero dizer é que o ponto de vista é que define a relação a ser construída. Por último gostaria de me referir um pouco mais na experiência da coleta que realizamos no último carnaval. Como o trabalho analítico está em pleno andamento, minha intenção aqui foi somente levantar algumas suspeitas sucitadas na e pela coleta, e que demonstram que a noção de rito de inversão de um lado produz parâmetros relevantes para pensar o carnaval, mas de outro exige uma ampliação dos horizontes da análise das ambiguidades que sugerem as práticas mais contemporâneas dos protagonistas do rito. Ressalto que a noção de inversão passou a ser central na nossa agenda de observação e registro, buscando por em prática a prescrição de Roberto Cardoso de Oliveira de disciplinar o olhar. Entretanto, as situações de pesquisa e a interação com os protagonistas do carnaval nos obrigou em determinados momentos a relativizar tais olhares disciplinados. Neste sentido, a dispersão dos deslocamentos, e nossa disponibilidade provocaram situações inusitadas que revelaram as novas facetas do carnaval local. Um dos principais objetivos deste exercício de produção de visualidades tem sido proporcionar aos alunos uma oportunidade para entrar em contato com a idéia de que existem níveis diferentes de visibilidade dos fenômenos. De um lado, mais fixamente determinados,

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estes níveis são recortados por pré-noções sobre o próprio tema e sobre os demais atores. No caso do carnaval, há disponibilidade e exibição, acessibilidade e tolerância, alegoria e espalhafato. Neste sentido, podemos encontrar nas ruas tomadas pelo ritual uma profusão generosa de imagens e situações inusitadas que se prestam ao registro imagético e mnemônico. Em contraste com outras situações de campo, em que o clique era um penoso exercício de negociação e espera, no carnaval, os passantes se oferecem, expõem seus corpos, suas fantasias, exibem sua disponibilidade. Cabe ao pesquisador perceber esta disponibilidade e compreender o seu sentido.

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