PROJETO CERCO DE SABERES: EDUCAÇÃO POPULAR EM BUSCA DE JUSTIÇA AMBIENTAL NO SUL DA PENÍNSULA DA JUATINGA, MUNICÍPIO DE PARATY-RJ

June 29, 2017 | Autor: V. Souza | Categoria: Justica Ambiental, Populações Tradicionais, Educação popular
Share Embed


Descrição do Produto

PROJETO CERCO DE SABERES: EDUCAÇÃO POPULAR EM BUSCA DE JUSTIÇA AMBIENTAL NO SUL DA PENÍNSULA DA JUATINGA, MUNICÍPIO DE PARATY-RJ1 SOUZA, Vanessa Marcondes de Doutoranda do Programa de Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social da UFRJ [email protected] MONGE, Ricardo “Papu” Martins Doutorando do Programa de Geografia da UFF [email protected] YAMASAKI, Alice Akemi Doutora em Educação/professora de pedagogia da UFF [email protected] SOUZA, Renata de Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ [email protected] PARANAGUÁ, Maria Graduada em cinema pela UFF [email protected]

RESUMO As comunidades caiçaras de Martim de Sá, Saco das Anchovas e Cairuçu das Pedras são as mais isoladas do centro urbano de Paraty e enfrentam diversos conflitos que ameaçam a sua permanência em seus territórios tradicionais. Embora possuam uma diversidade de conhecimentos locais, nunca tiveram acesso à educação formal, sendo a falta de escola um dos principais problemas apontados por esses grupos, destacando-se a dificuldade de tirar documentos, pressão do conselho tutelar, perda dos benefícios concedidos pelo programa bolsa família e migração compulsória para outras regiões. O Projeto de extensão “Cerco de Saberes” tem como objetivo alfabetizar esse grupo através da metodologia da educação popular e da valorização da cultura caiçara. Foram feitas reuniões nessas comunidades para identificar os problemas e as necessidades para a construção de uma escola caiçara e a primeira etapa da alfabetização aconteceu entre junho a agosto de 2014 com a educação de crianças e jovens. Diversas atividades foram desenvolvidas tendo como inspiração as práticas e saberes tradicionais. Ao final deste processo identificou-se desafios e conquistas na implementação e desenvolvimento da escola. A escola possibilitou o resgate de conhecimentos tradicionais, a troca de saberes, a aproximação entre gerações e acredita-se que contribuiu para a valorização dos saberes locais, através de uma educação, que levou em consideração a cultura e os conflitos existentes na região. Espera-se motivar os adultos a buscarem por esta troca de conhecimentos, possibilitada pela escola caiçara, para poderem continuar lutando pela justiça ambiental. Palavras-chave: Caiçara, Educação, Conflitos.

ABSTRACT The caiçara communities from Martim de Sá, Saco das Anchovas e Cairuçu das Pedras are the most isolated communities from the urban center of Paraty. They face several conflicts that threaten their permanence in their traditional territories. Although they have a diversity of local knowledge, they have never had access to formal education. The lack of school is precisely one of the main problems 1

Artigo apresentado no IV Seminário de Justiça Ambiental, Igualdade Racial e Educação, realizado no dia 19 de agosto de 2014, na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-FFP).

1

identified by the group, highlighting the difficulty to apply for legal document, pressure from the child protection agency, loss of benefits provided by the federal program Bolsa Família and compulsory migration to other regions. The extension Project “Cerco de Saberes” aim to literacy this group through the methodology of popular education and the appreciation of the caiçara culture. Meetings in these communities were made to identify the problems and needs for the construction of a caiçara school. The first stage of literacy happened between June and August 2014 with the education of children and youth. Several activities were developed taking as inspiration the practices and traditional knowledge. At the end of this process were identified challenges and achievements in the implementation and development of the school. The school allowed the rescue of traditional knowledge, knowledge exchange and the approach between generations. It is believed that the school contributed to the appreciation of local knowledge, by providing an education, which took into consideration the culture and conflicts in the region. It is expected to motivate adults to seek for this knowledge exchange, enabled by the Caiçara School in order to continue fighting for environmental justice. Keywords: Caiçara, Education, Conflicts.

1- Contextualização A região da Península da Juatinga, no município de Paraty/RJ, abriga diversos núcleos de ocupação de populações que se autodenominam como caiçaras. Os caiçaras são reconhecidos como povos e comunidades tradicionais, pelo Decreto n°6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). Suas origens se associam aos intervalos dos grandes ciclos econômicos do período colonial e seu modo de vida, devido ao isolamento geográfico, esteve diretamente vinculado ao ecossistema local, cujo aproveitamento intensivo e quase exclusivo dos recursos naturais, criou uma íntima relação entre o homem e seu habitat e um vasto saber tradicional do mundo natural transmitido oralmente de geração a geração (DIEGUES e ARRUDA,2001). A reinvindicação de “ser caiçara”, atualmente, é usada pelo próprio habitante do litoral, numa atitude de reconstrução e de fortalecimento de sua identidade cultural (VIANNA, 2008). “Ser caiçara” para eles está relacionado com o fato de ser “nascido e criado” no “lugar”, as atividades que realizam, o modo de falar, a alimentação e ainda à descendência indígena e a conservação da natureza (MONGE, 2012). As comunidades de Martim de Sá, Saco das Anchovas e Cairuçu das Pedras, contempladas nesta pesquisa, são as mais isoladas do centro urbano mais próximo, a cidade de Paraty, já que o acesso só se faz por via marítima e/ou trilhas, não havendo o acesso por estradas (Figura 1). Os moradores estão nesses lugares há pelo menos seis gerações, havendo quatro delas vivas, e mantêm uma relação de duplo pertencimento com o lugar, estando a reprodução cultural, social e econômica deste grupo intimamente ligada ao lugar (TUAN, 1983; MONGE, 2012). 2

Figura 1. Destaque da porção sul da Península da Juatinga e outros pontos de referência: 1- Cidade de Paraty; 2 - Saco do Mamanguá; 3 - Pouso da Cajaíba; 4 - Ponta da Juatinga; 5 - Martim de Sá; 6 - Sono (Imagem TM/LANDSAT).

Consorciam diversas atividades e estratégias, com práticas com características de baixo impacto ambiental e possuem uma vasta gama de conhecimentos associados às atividades que realizam intimamente ligados à biodiversidade da área, tanto da floresta como do mar (MONGE, 2012). Dentre os conhecimentos sobre a floresta, é possível identificar saberes sobre o uso de ervas medicinais, cascas de árvores úteis para a impermeabilização das redes de pesca e o manejo de cipós para o artesanato. Possuem também conhecimentos relacionados à tradição da roça, que em um passado não distante era a principal atividade de subsistência (Ibid.). Sobre o mar, possuem diversos saberes sobre vários tipos de pesca; a confecção da canoa feita de um tronco só, típica da região; comportamento dos peixes e dos pesqueiros mais adequados para cada tipo de pesca; e a confecção do cerco flutuante, uma arte de pesca de baixo impacto ambiental, na qual toda a família participa, incluindo mulheres e crianças (MONGE, 2008). Embora este grupo possua uma diversidade de conhecimentos locais, resultante de uma histórica ocupação do território com os saberes decorrentes do convívio entre indígenas e europeus, entre as comunidades e seus ambientes naturais, as várias gerações nunca tiveram acesso à educação formal, sendo, desta forma, a maioria desses caiçaras, pouco familiarizada com a escrita e a leitura. Os caiçaras dessa região sul da península da Juatinga 3

enfrentam uma série de dificuldades e conflitos (especulação imobiliária; grilagem de terras; processos judiciais para a retirada dos caiçaras; turismo desordenado; afetações ambientais2 e leis ambientais; falta de serviços básicos como postos de saúde, coleta de lixo, energia elétrica, saneamento básico e escolas, etc.) que ameaçam a sua permanência em seus lugares e a reprodução dos seus modos de vida tradicional, sua cultura.

1.1 - Problemática da ausência de escolas A falta da escola é apontada como um dos principais problemas por esse grupo (MONGE, 2013), que acredita que no mundo de hoje é necessário ter acesso à educação formal para poder, inclusive, continuar lutando pela permanecia no território tradicional, hoje, também, unidades de conservação. O território, neste trabalho, é compreendido na mesma concepção de Haesbart (2004), tendo uma dimensão funcional e material (recurso) e uma dimensão simbólica (pertencimento/identidade). A identidade e a territorialidade deste grupo englobam tanto o mar como a mata, estando relacionados às atividades econômicas que realizam (território funcional) e às práticas religiosas, de lazer, entre outras que representam o território simbólico (MONGE, 2012). Desta forma, perder o território é desaparecer, uma vez que o território, neste caso, não significa somente ter, mas também o ser. Diversos são os problemas enfrentados no cotidiano dos caiçaras decorrentes da falta da escola. A capitania dos portos exige algum grau de escolarização para a realização do curso teórico para a obtenção da habilitação de Pescador Profissional (POP) e exige o 6° ano para a obtenção da habilitação de Marinheiro Auxiliar de Convés (MAC) para poder trabalhar na sua própria embarcação com o turismo, atividade que também desenvolvem consorciada à pesca. Desta forma, conforme explicam Loureiro e Franco (2014), o conhecimento torna-se um mecanismo de opressão de uma classe. E neste caso, o saber prático e tradicional da cultura caiçara torna-se secundário, pois se prioriza conhecimentos outros da cultura hegemônica, legitimados pela existência de um certificado de escolarização.

2

A região é, desde 1983, afetada ambientalmente pela Área de Proteção Ambiental (APA) de Cairuçu e, desde 1992, pela Reserva Ecológica Estadual da Juatinga (REJ) que, embora tenha sido criada com objetivo de conservar a biodiversidade e proteger as comunidades caiçaras da especulação imobiliária, cada vez mais crescente, trouxe também fiscalizações, restrições e dúvidas diante de leis, muitas vezes, descontextualizadas e de visão preservacionista. Atualmente, a REJ passa por um processo de recategorização para se adequar a uma das categorias das Unidades de Conservação previstas na Lei 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).

4

Identifica-se que o Estado, quase sempre, se ausenta na garantia de oferta de serviços sociais que efetivem os direitos básicos, como a educação (apesar de diversas tentativas de diálogo com a prefeitura pelos moradores, inclusive com entrega de abaixo-assinados). O dia-a-dia dos caiçaras na relação com o Estado indica que este se mantem presente de forma autoritária e burocrática na medida em que cobra e exige certos documentos essenciais para a realização de atividades tradicionais, como a pesca. Além disso, o Estado autoritário também se faz presente através do conselho tutelar, que os pressiona para matricularem as crianças e os jovens nas comunidades vizinhas onde há escola. Na medida em que essa matrícula não é efetivada dada a distância e os perigos do trajeto dentro da mata pelas crianças, o Estado retirou um dos auxílios financeiros do governo federal. Nesse caso, a autoridade do Estado se fez presente de forma a precarizar mais ainda a sobrevivência das famílias caiçara, que, através do programa Bolsa Família3, complementam suas rendas principalmente em épocas em que a pesca é impossibilitada pelas condições adversas do mar. Desta forma, complementos de renda, como o Bolsa Família, são essenciais para a subsistência de todos. Em comunidades vizinhas, onde o acesso é mais fácil desde o centro urbano de Paraty – como Sono, Ponta Negra, Ponta da Juatinga, Pouso da Cajaíba, Calhaus e Saco do Mamanguá –, existe uma escola multisseriada, que, até pouco tempo, contemplava somente até o 5º ano. Atualmente, em algumas regiões da zona costeira, graças à pressão de lideranças caiçaras junto à justiça, já é possível terminar o ensino fundamental através do Ensino de Jovens e Adultos (EJA) do Projeto Azul Marinho, que é uma parceria entre a prefeitura de Paraty e a Fundação Roberto Marinho, cuja metodologia é a do Telecurso4. Apesar dessas outras localidades terem escolas, os moradores de Martim de Sá, Saco das Anchovas e Cairuçu das Pedras identificam que a ida diária para estas localidades é algo inviável, devido às trilhas distantes5, difíceis e, algumas vezes, perigosas e às condições adversas do tempo e do mar, que nem sempre permitem o deslocamento por via marítima.

3

O Programa Bolsa Família, criado em 2004, é um programa do governo federal destinado às ações de transferência de renda a unidades familiares que se encontram em situação de pobreza e extrema pobreza. A concessão dos benefícios depende do cumprimento de condicionalidades, entre elas à frequência escolar de 85% em estabelecimento de ensino regular (BRASIL, 2004). 4 Entre 2011 e 2012, as comunidades contempladas pelo Projeto Azul Marinho foram Ponta Negra, Sono, Pouso da Cajaíba, Calhaus, Saco Claro e Ponta da Juatinga. Atualmente, na península da Juatinga, o projeto está funcionando nas comunidades de Ponta Negra, Sono, Pouso da Cajaíba e Saco do Mamanguá. Também está presente em outras localidades de Paraty, como em Laranjeiras, Trindade, Ilha do Araújo e em escolas regulares de ensino fundamental como a E.M. Professor Pequenina Calixto e E.M. Cilencina Rubem. 5 A comunidade mais próxima de Martim de Sá, o Pouso da Cajaíba, fica em torno de 2 horas de caminhada.

5

Em busca desse direito negado, muitas crianças se veem obrigadas a sair dos núcleos familiares para frequentar a escola em outras localidades, ficando aos cuidados de outros parentes ou, então, a família se desloca por inteiro para outras regiões ou para a periferia de Paraty. Esta migração compulsória afasta os caiçaras de seus lugares identitários, de suas práticas tradicionais e de seus saberes, comprometendo, assim, a reprodução da cultura caiçara. Desta forma, se anteriormente a expulsão das populações tradicionais caiçaras de seu território se dava de forma direta, impositiva e até violenta, hoje o processo é mais sutil, através da negação de direitos e de políticas públicas escolhidas para a região. Entendendo a educação como ato de libertação, partindo das ideias de Freire (2014), acredita-se que essas comunidades caiçaras, que se encontram oprimidas pela cultura e modelo econômico hegemônico, precisam de uma educação que os fortaleçam para lutar, diante dos diversos conflitos que enfrentam, pela permanência em seus territórios, libertando-os dessa relação oprimido-opressor. A educação, então, torna-se uma prática essencial na busca por justiça ambiental, que segundo, Acselrad et al. (2009, p.25) é o “tratamento justo e o envolvimento pleno dos grupos sociais, independentemente de sua origem ou renda, nas decisões sobre o acesso, a ocupação e o uso dos recursos ambientais em seus territórios”. Desta forma, a educação comprometida com a emergência dos grupos oprimidos pode contribuir para a intervenção na realidade, qualificando a luta pela permanência no território tradicional e a participação destes nas tomadas de decisões.

2 - O Projeto Cerco de Saberes Diante da problemática apresentada, o Projeto de extensão universitário da Universidade Federal Fluminense (UFF) “Cerco de Saberes: construindo a Escola da Praia de Martim de Sá” foi criado com o objetivo de alfabetizar e promover o letramento dessas comunidades através da metodologia da educação popular, cuja finalidade principal do processo educativo é o de estar a serviço dos interesses e das necessidades das classes populares oprimidas (PALUDO, 2001). O projeto também tem como objetivo o fortalecimento das comunidades tradicionais através da valorização das práticas, dos saberes locais e da voz dos caiçaras. Considerando que a pesca com o Cerco Flutuante é uma das principais atividades da região, contemplando diversos saberes sobre o mar e a floresta e tendo significativo papel

6

na construção da identidade caiçara, nomeou-se o Projeto de extensão em questão de “Cerco de Saberes”. As atividades educativas foram pensadas e desenvolvidas a partir da investigação do “universo temático” (FREIRE, 2014), a qual se baseia na investigação do pensamentolinguagem dos caiçaras, dos níveis de sua percepção a respeito da realidade em que vivem, das suas visões de mundo, entre outros. Foram feitas diversas visitas e reuniões nessas comunidades para identificar não apenas o universo temático, mas também os problemas e as necessidades para a construção de uma escola caiçara. Essa etapa deu origem a um trabalho de conclusão de curso intitulado “Pensando a escola na comunidade caiçara de Martim de Sá, península da Juatinga, município de Paraty/RJ” (MONGE, 2013). Foi possível identificar a “leitura de mundo” da realidade caiçara (a roça, o pescar, o caçar, uso e conserto de motor de barco, construção e uso de canoa, confecção de artesanato), a qual, segundo Freire (2014), sempre precede a “leitura da palavra”. Além disso, diante também da realidade conflituosa em que estes caiçaras vivem para a permanência no seu lugar, conhecimentos sobre as questões socioambientais e as questões fundiárias da região também foram considerados como essenciais para a construção do currículo caiçara. O conteúdo curricular a ser trabalhado não foi imposto ao grupo oprimido, porque as escolhas temáticas partiram também deles e das suas necessidades de conhecimentos, possibilitando maior conscientização e transformação das estruturas opressoras (LOUREIRO e FRANCO, 2014). Apesar dos adultos demonstrarem ter o interesse de aprender a ler e a escrever, consideraram, como essencial e urgente, num primeiro momento, a alfabetização de crianças e jovens. Desta forma, a primeira etapa do processo educacional na comunidade de Martim de Sá para a alfabetização de sete crianças entre as idades de 4 e 17 anos, teve início em meados de junho de 2014 e contou com uma equipe multidisciplinar de biólogos, pedagogos, historiadores e cineastas, além de estudantes de graduação de diversas áreas, que se revezaram para a permanência em campo até o início de agosto, totalizando 48 dias de intensas atividades educativas ou 260h. A casa de farinha da comunidade foi disponibilizada pelo grupo caiçara e adaptada para receber a escola. O processo educacional diário foi pensado em tempo integral, em que se combinasse momentos em sala de aula focados na leitura e escrita sobre o que se sabe e o que se vive, buscando sempre trabalhar as “palavras-mundo” (FREIRE, 2014), e

7

momentos de práticas de campo e atividades externas na roça, praia, rio, floresta, etc. (Figura 2).

Figura 2. Atividade de leitura e contação de história em baixo do pé de amendoeira, na praia de Martim de Sá.

As atividades educativas aconteciam durante todo o dia até o final da tarde/início da noite, com um intervalo na hora do almoço. As atividades começavam bem cedo pela manhã com um café da manhã coletivo na escola, onde procurava-se trabalhar diversos valores, como o cuidado com o ambiente físico da escola e com os bens comuns; organização e divisão de tarefas no cuidado com a sala de aula e com a escola; o compartilhamento dos alimentos; respeito ao próximo, etc., além de higiene pessoal (lavar as mãos, escovar os dentes, lavar a louça, etc.). A proposta da Escola da Praia de Martim de Sá, nome escolhido pelos moradores a partir de sugestão das crianças, foi realizar uma educação crítica, dialógica e horizontal (FREIRE, 2014), incentivando a reflexão acerca dos conhecimentos estudados, a construção e expressão de diferentes opiniões, a cooperação, o constante diálogo entre educadores e educandos, entre outras práticas democráticas. A educação libertadora adotada pela escola em questão rompe com os valores e regras “bancários” tão condenados por Freire (2014), rejeitando práticas educativas que objetivam a alienação e inibem a criação e o pensamento crítico. Apoiando-se, então, nos saberes e práticas locais, foi confeccionado um alfabeto caiçara com palavras significativas da cultura local, na qual na letra Z do alfabeto, por 8

exemplo, tem-se a representação do zangareio, que é um anzol-isca utilizado especificamente para a pesca de lula. Este alfabeto foi colorido pelas crianças e pendurado em um varal dentro da escola, para que pudesse estar sempre visível. Foram produzidos textos coletivos com os educandos a partir de vivências em campo sobre a roça, as práticas de pesca, as aves da região, entre outros temas relacionadas à vida local. Nesta fase inicial do letramento, as crianças caiçaras eram as criadoras do texto e os educadores assumiam papel de escribas. Mais ao final do processo, as próprias crianças passaram a escrever seus textos. Também foram feitas atividades lúdicas de pintura de miniaturas de barcos e canoas caiçaras, feitas artesanalmente da árvore caxeta, por um mestre da comunidade do Mamanguá, também localizada na península da Juatinga, e de leitura e canto de músicas sobre a cultura caiçara de um artista de Paraty. Destaque-se também a introdução de atividades de contação de história e de iniciação ao teatro, na qual as crianças dramatizaram uma das histórias criadas coletivamente. Foi apresentada e debatida a problemática da luta dos caiçaras pela terra na região, pois, segundo Loureiro e Franco (2014, p.166), “a conscientização do oprimido da situação que o oprime implica uma ação rumo à transformação da realidade com o objetivo de superar a situação opressora”. Para isso, utilizou-se um poema feito por uma criança da comunidade da Praia do Sono sobre o tema em questão, sendo enriquecida com uma roda de conversa com o Seu Maneco, liderança comunitária de Martim de Sá. Nesta roda de conversa, o mesmo narrou sua história de vida e luta; em seguida foi apresentada uma sessão de cinema com documentários da região sobre o assunto e um vídeo produzido pelo “Fórum de Comunidades Tradicionais - Angra, Paraty e Ubatuba”. O vídeo mostra diversas práticas tradicionais caiçaras, indígenas e quilombolas, lançado para a campanha chamada “Preservar é Resistir”, pela garantia de permanência dos povos nos territórios tradicionais. Também, tendo a preocupação de resgatar conhecimentos que vêm sendo perdidos ou esquecidos e aproximar as gerações, o Projeto intermediou uma oficina de artesanato caiçara com o mestre Seu Francino, da comunidade do Cairuçu das Pedras, para a produção de cestos a partir do cipó timbupeba. Uma vez que, em alguns momentos, foi possível contar com a participação de cinco ou mais educadores em campo, o trabalho educativo pode ser realizado de forma a atender as necessidades e as particularidades de cada criança, respeitando o tempo, a idade, a maturidade e o desenvolvimento de cada um, potencializando, assim, o processo de aprendizagem.

9

3 - Desafios e conquistas do processo educacional Ao longo do processo educacional, foi possível identificar diversos desafios para a realização e implementação da Escola da Praia de Martim de Sá. A grande distância do centro urbano de Paraty e o difícil acesso a essas comunidades faz com que o deslocamento seja demorado e de logística cara, trazendo a necessidade de que o educador resida nas comunidades e adapte-se ao isolamento e aos costumes locais, uma vez que o tempo, o clima e a geografia do local nem sempre permitem que o deslocamento até outras regiões aconteça. No inverno, por exemplo, época de grandes frentes-frias, os ventos fortes e as grandes ondulações no mar impedem a entrada e saída de embarcações nessas comunidades, que estão voltadas para o mar aberto. Além disso, a comunicação e o acesso à energia elétrica são limitados, pois não há sinal de celular ou internet e cada casa possui somente uma placa solar, o que garante o funcionamento de algumas lâmpadas e/ou TV em dias de sol, mas restringe esta possibilidade após dias seguidos de chuva. O ponto mais próximo para o uso do celular se dá após 1h de trilha. Apesar deste aparente isolamento, a procura, cada vez maior, pelo turismo ligado a natureza, traz pessoas de diversos lugares do mundo para conhecer esses locais bem conservados e de grande beleza cênica, como Martim de Sá. Embora o turismo também seja uma fonte de renda para todos os moradores dessa região (MONGE, 2012), traz novas necessidades mercadológicas e mudanças na rotina da população, fazendo, também, com que os mais jovens se afastassem das práticas tradicionais, valorizando mais o que é externo à comunidade. Além da cooptação dos mais jovens pela cultura hegemônica (urbano, industrial e capitalista), a falta de reconhecimento por parte da sociedade de que esses grupos são também detentores de conhecimentos traz problemas práticos para a vida dos caiçaras, como no caso da obtenção da carteira de pesca, e também influencia diretamente o desenvolvimento pessoal e coletivo da comunidade, onde foi possível identificar uma baixa autoestima dos indivíduos, principalmente da juventude, que não reconhece suas práticas tradicionais como ricas em saberes, nem se sente capaz de adquirir novos. Desta forma, a educação comprometida com o fortalecimento das comunidades caiçaras tem o desafio de resgatar o valor das práticas e saberes tradicionais. Por isso, acredita-se ser necessário a formação de pessoas locais para que estes se tornem professores, garantindo a permanência do educador no local e uma educação tendo como base os valores e o conhecimento da cultura caiçara.

10

Também deparou-se com crianças e jovens que crescem sem rotina, de forma muito livre, subindo em árvores e remando canoas em mar aberto, e isso trouxe a necessidade de muita criatividade por parte dos educadores para que estivessem sempre se inovando e criando atividades que despertassem a atenção e o interesse dos educandos. E apesar de se identificar, nas conversas e entrevistas, que os pais desejassem que a escola fosse diferenciada e se adequasse à realidade local (MONGE, 2013), deparou-se, em alguns momentos, com visões conservadoras de educação por parte de alguns moradores, o que é explicado por Saviani (2008, p.40): “Os pais das crianças pobres6 têm uma consciência muito clara de que a aprendizagem implica a aquisição de conteúdos mais ricos, têm uma consciência muito clara de que a aquisição desses conteúdos não se dá sem esforço, não se dá de modo espontâneo; consequentemente, têm uma consciência muito clara de que para se aprender é preciso disciplina e, em função disso, eles exigem mesmo dos professores a disciplina. É comum a gente encontrar esta reação nos pais das crianças das classes trabalhadoras: se o meu filho não quer aprender, vocês têm que fazer com que ele queira. E o papel do professor é o de garantir que o conhecimento seja adquirido, às vezes mesmo contra a vontade imediata da criança, que espontaneamente não tem condições de enveredar para a realização dos esforços necessários à aquisição dos conteúdos mais ricos e sem os quais ela não terá vez, não terá chance de participar da sociedade” (SAVIANI,

2008, p.40). Desta forma, foi preciso mediar estas interações para que a troca de conhecimento se desse de forma dialógica, respeitando também esse modo de vida livre dos educandos, aproveitando da melhor forma possível esse tempo pré-determinado de 7 semanas para esta primeira fase de alfabetização. Ainda há a preocupação de se garantir a continuidade do processo educacional para essas comunidades, bem como a certificação dos educandos e a autonomia pedagógica dos educadores para que o processo educacional continue se realizando de forma dialógica. O Projeto Cerco de Saberes teve o apoio de diversas pessoas que contribuíram com materiais escolares e doações em dinheiro, através de uma pequena campanha de mobilização nas redes sociais. Isso permitiu a autonomia pedagógica do Projeto. Contudo, acredita-se que a educação nessas comunidades deve ser pública, gratuita, de qualidade e contextualizada a realidade local, direito esse respaldado por diversas legislações: Constituição Federal de 1988, Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional – LDB (BRASIL, 1996), Convenção

Utiliza-se a palavra “pobre” nesta passagem do texto, pois se reproduz fielmente o parágrafo escrito por Saviani, no livro Escola e Democracia, ao se referir as camadas com menores condições econômicas na sociedade. Entretanto acredita-se que as populações tradicionais caiçaras, principalmente dessa região estudada, são ricas em diversos saberes, práticas, relações socioambientais e cultura. 6

11

169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2002), PNPCT, Política de Educação do Campo e Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA (BRASIL, 2010), que considera como populações do campo também os caiçaras. Por esta razão, nos preocupa o fechamento de convênios entre a prefeitura de Paraty e as fundações privadas7 para o oferecimento e a gestão da educação no município, uma vez que, conforme afirmam Lamosa e Loureiro (2014), o fechamento de acordos, pelas secretarias de educação, com associações empresariais, retira a possibilidade de existência da autonomia e do caráter público da escola, passando o ensino a ser mediado por interesses privados e ideologias diversas. Desta forma, conforme defende Freitas (2012, p. 386), “a bandeira da escola pública tem que ser atualizada: não basta mais a sua defesa, agora termos que defender a escola pública com gestão pública”. Diante disso, a luta pelo acesso à educação pública para os povos e comunidades tradicionais caiçaras, perpassa também pela compreensão de que ela deve ser oferecida e gerida pelo poder público, garantindo a possibilidade de superação da ideologia hegemônica dominante. Apesar dos desafios apresentados, identificam-se também diversas conquistas neste processo de preparo e desenvolvimento da escola. Além do papel social de troca de conhecimentos, a Escola da Praia de Martim de Sá teve também um papel conciliatório dentro da comunidade. Desavenças e conflitos foram deixados de lado e ações de cooperação foram sendo desenvolvidas em prol de um bem maior coletivo. Sentimentos de solidariedade, união e esperança também foram identificados entre moradores locais e pessoas de outras regiões, que acreditam que o oferecimento da educação formal em Martim de Sá, pode permitir o retorno daqueles que tiveram que migrar para outras regiões em busca desse direito negado. Além disso, o processo educacional possibilitou o resgate de conhecimentos tradicionais que vêm se perdendo, como o artesanato caiçara, e a aproximação entre as gerações e entre as comunidades, bem como a possibilidade de divulgação da problemática, que mobilizou diversas pessoas preocupadas e interessadas em colaborar das mais diversas formas na construção da escola caiçara, como o “Fórum de Comunidades Tradicionais – Angra, Paraty e Ubatuba” e os guardas-parque da REJ. O processo também possibilitou a troca de saberes e experiências entre educadores, através de um trabalho interdisciplinar, e entre educadores e educandos e entre a escola e a comunidade, possibilitando o encontro

7

Além do convênio com a Fundação Roberto Marinho para o oferecimento da educação nas escolas da região costeira e de duas escolas regulares do município, a secretaria de educação de Paraty também fechou um convênio com a Fundação Itaú Social para a realização da revisão do plano municipal de educação.

12

entre os conhecimentos tradicionais passados de geração a geração através da oralidade e os conhecimentos científicos historicamente produzidos e acumulados. Desta forma, identifica-se o desenvolvimento individual e coletivo dos envolvidos nesse processo educacional, o incentivo à criatividade, inovação e superação para a criação de um currículo caiçara que levou em consideração o modo de vida local.

4 - Considerações finais Diante da situação e problemática apresentada, defende-se que o oferecimento de uma educação diferenciada nessas comunidades não é só um direito social, respaldado por diversas legislações, mas também é uma questão de justiça ambiental, uma vez que pode garantir a permanência das populações tradicionais caiçara em seu território e permitir o retorno daqueles que saíram de seus lugares em busca do direito negado do acesso à escola pública. Para o desenvolvimento de uma educação diferenciada não há fórmulas, modelos ou padronizações. O processo de construção de um currículo caiçara precisa ser desenvolvido e recriado de forma dialógica com as comunidades envolvidas, incorporando suas necessidades, suas especificidades, interesses, saberes e práticas e a complexidade da cultura local. Hoje são muitos os que falam pelos caiçaras e sobre os caiçaras, mas é importante também que os mesmos possam e passem a falar por si mesmos. Desta forma, o processo de leitura do mundo, através da educação popular, pode possibilitar também a autonomia do grupo, que ao aprender a ler e escrever aprende a escrever sua própria vida, “como autor e testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se” (FIORI in FREIRE, 2014, p.12). Acredita-se que o projeto Cerco de Saberes contribuiu para o fortalecimento das populações tradicionais e a valorização dos saberes tradicionais locais, através de uma educação diferenciada, que levou em consideração a cultura caiçara e os conflitos existentes na região. Espera-se também que o projeto possa continuar e que inspire e motive os adultos destas comunidades a buscarem por esta troca de conhecimentos possibilitada pela escola caiçara, uma vez que as comunidades embasadas e fortalecidas por seus saberes e novos conhecimentos adquiridos, tais como conceitos e legislações socioambientais, podem ser capazes de buscar e exigir seus direitos e desejos, bem como exercer seus deveres de forma consciente, tendo assim acesso ao conjunto de bens e serviços disponíveis na sociedade, qualificando suas lutas na busca pela justiça ambiental. 13

Referências bibliográficas ACSELRAD, H.; MELLO, C.C.A.; BEZERRA, G.N. O que é Justiça Ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 160p. BRASIL. Decreto Federal n° 89.242, de 27 de dezembro de 1983. Dispõe sobre a criação da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, no Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências. Disponível em: . _________. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível

em:

. _________. Lei n° 9.394, de 20 de novembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDB). Disponível em _________. Lei n° 9.985, de 18 de julho 2000. Instituiu o Sistema Nacional de Unidades de

Conservação

da

Natureza.

Disponível

em:

_________. Lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Cria o Programa Bolsa Família e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2004/Lei/L10.836.htm _________. Decreto nº 6.040 de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). Disponível

em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-

2010/2007/decreto/d6040.htm _________. Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA.

Disponível

em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-

2010/2010/decreto/d7352.htm DIEGUES, A.C. e ARRUDA, R.S.V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; São Paulo: USP, 2001. 176p. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 57. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. 253p. FREITAS, L.C., 2012. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério a destruição do sistema público de educação. Educação e sociedade, 33 (119): 379-404.

14

HAESBAERT, R. O Mito da Desterritorialização: do “fim dos Territórios” à Multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 400p. LAMOSA, R.; LOUREIRO, C.F.B., 2014. Agronegócio e educação ambiental: uma análise crítica. Ensaio: avaliação em políticas públicas em educação, 22 (83): 533-554. LOUREIRO, C.F.B.; FRANCO, J.B. Aspectos teóricos e metodológicos do círculo de cultura: uma possibilidade pedagógica e dialógica em Educação Ambiental. In: LOUREIRO, C.F.B.; FRANCO, J.B. (Orgs.) Educação ambiental: dialogando com Paulo Freire. São Paulo: Editora Cortez, 2014. 155-180p. MONGE, R.P.M.. Pesca com rede de cerco flutuante na Reserva Ecológica da Juatinga (REJ), Município de Paraty/RJ. Niterói, 2008, 78f. Monografia (Graduação em Ciências Biológicas) – Instituto de Biologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. _________. “Nascido e criado”: a ocupação tradicional da Família dos Remédios, uma comunidade “caiçara” – Península da Juatinga, município de Paraty/RJ. Niterói, 2012. 176f. Dissertação (Mestrado em Ciência Ambiental) – Instituto de Geociências, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. _________. Pensando a escola na comunidade caiçara de Martim de Sá, Península da Juatinga, município de Paraty/RJ. Niterói, 2013, 63 f. Monografia (Licenciatura em Ciências Biológicas) - Instituto de Biologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013. OIT, Organização Internacional do Trabalho. Convenção n° 169 sobre povos indígenas e tribais e resolução referente à ação da OIT. Aprovada pelo Brasil em 2002. Disponível em:

.

PALUDO, C. Educação popular em busca de alternativas: uma leitura desde o campo democrático e popular. Porto Alegre: Tomo editoral, 2001. 272p. RIO DE JANEIRO. Decreto Estadual n° 17.981, de outubro de 1992. Cria a Reserva Ecológica da Juatinga, no Município de Paraty, e dá outras providências. Disponível em: . SAVIANI, D. Escola e democracia. Campinas: Autores Associados, 2008. 150p. TUAN, Y. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983. 250p. VIANNA, L.P. De invisíveis a Protagonistas: populações tradicionais e unidades de conservação. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008. 340p. 15

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.