PROJETO DIVERSIDADE ÉTNICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: O OLHAR, O COMER E O BRINCAR Professora Ma. Bárbara Giese Daniele Policarpi de Souza Kerollainy Rosa Schütz Maria Luiza Galle Lopedote Nayara Lopes Pensar em educação escolar e diversidade implica analisar um pouco a relação entre ambas na nossa história. Para um começo de conversa, vale dar uma olhada em uma imagem produzida no final do século 19, do pintor John Gast. Famosa por representar a crença de alguns estadunidenses como sendo os escolhidos para ocupar e civilizar o continente americano, esta pintura pode ser especialmente interessante para refletirmos acerca da educação.
Manifest Destiny: “American Progress” print, 1873. Photograph. Britannica Online for Kids. Web. 5 Oct. 2015. .
Podemos começar a discussão pelo título da imagem que significa, traduzido, “Progresso Americano”. O primeiro termo, a ideia de “progresso” é aqui entendida como desenvolvimento Texto produzido como relatório anual do projeto de extensão homônimo coordenado pela Profa. Ma. Bárbara Giese, vinculado ao N úcleo de Estudos AfroBrasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina NEAB/UDESC, no qual atuaram como bolsistas voluntárias as acadêmicas Daniele Policarpi de Souza, Kerollainy Rosa Schütz e Nayara Lopes, e a professora de história de ensino fundamental Maria Luiza Galle Lopedote. Não publicado. Dezembro/2015. (Para maiores informações, contatar por email:
[email protected] . O projeto seguirá no ano de 2016.)
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industrial. No século 19 o ideal iluminista que acredita haver uma só forma de chegar à verdade absoluta, através da razão impõese com a concepção de “modernidade”, ligada ao progresso/desenvolvimento industrial e à racionalidade. Os europeus e seus descendentes eram os detentores da razão e os escolhidos para levar a modernidade e a civilização ao mundo. O termo “americano” traz a ideia de que “americanos” são apenas aqueles que são descendentes de europeus e transformaram os Estados Unidos da América apenas eles foram guiados pelo “progresso” europeu, e é seu dever estender a civilização a todo o continente1. Observando atentamente a pintura, vemos uma mulher branca e loira flutuando ao centro, dividindo a imagem entre uma parte iluminada e outra sombria. A mulher e as personagens – pessoas, animais, veículos, dirigemse à parte esquerda da imagem, pouco iluminada. Dentre essas personagens que caminham com segurança levando luz à sombra, vemos colonizadores brancos com seus artefatos e tecnologia, uns arando o solo de um terreno já desmatado e cercado; vemos carros de boi, carroças e locomotivas a todo vapor rumo ao oeste; vemos grandes embarcações e uma imponente ponte pênsil ao fundo. Nessa parte “iluminada” da imagem, estão presentes elementos do ideal de progresso como desenvolvimento industrial. Enquanto com segurança caminham, há personagens em fuga, que olham para trás ao mesmo tempo em que são impelidos a correr para fora da imagem: indígenas e animais “selvagens”. Aqui estão presentes os “nãocivilizados”, a quem deve ser imposta a “modernidade”. A mulher branca e loira que guia o caminho tem em seus braços um livro que leva em inglês o título de Livro Escolar. Para além das ideias de progresso e de modernidade já discutidas, a presença central do manual escolar no quadro permite a análise de alguns pressupostos da nossa educação escolar. Qual o papel da escola e da escolarização nesse processo de dominação da colonização europeia sobre os demais seres humanos dos continentes ocupados mundo a fora? Quais são os seus elementos na nossa estrutura escolar dos dias de hoje? Nesta forma de entender a escolarização, existe espaço para pensar a diversidade?
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Você já reparou, por exemplo, como o termo “americano” se refere apenas aos habitantes de um país do continente América, os Estados Unidos, e dentre seus habitantes apenas àqueles brancos? Para todos os nãobrancos há termos como latinoamericanos, afroamericanos, sinoamericanos etc.
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Sinos e relógios de fábrica, organização de alumnos (seres sem luz), em carteiras enfileiradas, olhos dirigidos ao quadro negro e ao professor, (aquele que professa algo, que fala à frente); crianças e jovens silenciados, rígidos, uniformizados, individualizados. Saberes valorados e selecionados por europeus e descendentes, visando incutir nos estudantes formas de pensar, agir e ser que não lhes eram próprias. Ao mesmo tempo, uma educação escolar que prepara para o trabalho – mas não qualquer trabalho, prepara para o trabalho na fábrica, o trabalho moderno (FARIA FILHO et al., 2015). A ambivalência da instituição escolar como aquela que traz luz aos sujeitos, mas não toda a luz, pode ser entendida como uma das permanências de concepções do século 19 nos dias de hoje. A estruturação do ensino público brasileiro pouco difere da descrição anteriormente feita. A seleção dos conteúdos é, muitas vezes, ditada pelos livros didáticos, respeitando apenas tangencialmente os parâmetros curriculares e a legislação que impõe hoje um trabalho com a diversidade e a valorização das diversas matrizes culturais brasileiras. Como introduzir a diversidade se os parâmetros da modernidade ainda não foram rompidos? Como tratar dessas histórias e culturas no âmbito escolar? Ampliando a discussão sobre a implicação da obrigatoriedade do ensino sobre essas temáticas, como incluir a diversidade e a diferença no espectro da educação escolar? Uma primeira saída, que já vem sendo de alguma maneira adotada, é a inclusão dessas novas temáticas em alguns livros didáticos e programas escolares. Mas é preciso mais. Fazse necessário haver uma transformação da própria noção de ensino e aprendizagem, da estrutura da escola, das relações entre professores e alumnos. Propomos aqui estratégias para começar essa revolução... Que tal partir da desconstrução do olhar – do meu, do seu, do nosso – sobre o outro, sobre o território, sobre o mundo, para então passar a perceber também a nossa própria alimentação como fonte de aprendizagem e diversidade, e depois valorizar o brincar e brincar, brincar até cansar? Vamos lá?! Nesse artigo, em tom de conversa e com muita motivação, vamos priorizar a discussão sobre nossos pontos de vista sobre a educação e as potencialidades de se trabalhar a diversidade para a transformação da escola e de toda a comunidade escolar. Os eixos são: o olhar, o comer, o
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brincar. Queremos instigar você, leitor/a, a novas práticas pedagógicas que abram caminhos para a diversidade. Ao final das discussões, contaremos brevemente estratégias que utilizamos para tratar desses assuntos com os grupos de formação de professores dos municípios de Vidal Ramos e São José, no Estado de Santa Catarina, durante os três encontros que tivemos com cada um durante o ano de 2015. 1. O olhar Como você observa o mundo a sua volta? Como professor/a? Como aluna/o? Como desbravador/a? Como criança? Como adulta/o? Como mulher? Como homem? Será que olhar o mundo a partir de uma só lente a nossa não limita as possibilidades de sentimentos e percepções? A partir dos diversos modos de olhar construímos “nosso” próprio universo, que repercutirá no modo como nos relacionamos com as outras pessoas. Sempre que olhamos para alguém ou encaramos uma situação, já estamos criando um cenário a partir de nossas próprias interpretações: é um ato natural, mas sobre o qual devemos tomar consciência! Para começarmos a pensar no assunto, vale ler o que a artista brasileira Fayga Ostower escreveu: “O ser humano é por natureza um ser criativo. No ato de perceber, ele tenta interpretar e, nesse interpretar , já começa a criar. Não existe um momento de compreensão que não seja ao mesmo tempo criação” (1988, p. 167). É por isso que treinar nosso olhar para que não estejamos à parte de outras realidades faz toda a diferença.... Principalmente quando estamos falando de educação escolar e das relações que professoras/es e alunas/os mantém entre si! Admitir que existem diferentes olhares e realidades é fundamental para instituir relações empáticas no espaço escolar. E mais! Ampliar nosso olhar e perspectiva sobre o mundo vai para além de transformar nossas relações cotidianas… Tratase também de uma transformação do olhar para que nos voltemos para o outro, percebamos e valoremos a diversidade e a diferença. Entre o final do século 20 e início do século 21 foram elaboradas leis e diretrizes que trouxeram ao debate a necessidade de se educar pensando nas diversidades culturais. Foram formulados em 1996 os
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Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que trazem nos Temas Transversais problemáticas pertinentes para o ensino, tratando da valorização de aspectos sociais, econômicos e culturais que cada região tem. Posteriormente, na primeira década dos anos 2000, entraram em vigor as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornaram obrigatório o ensino de culturas e histórias indígenas, africanas e afrobrasileiras. Fruto de largas lutas e reivindicações sociais, finalmente nessa passagem para o século 21 passou a ser contemplada no espaço escolar a diversidade étnica e racial: agora vozes e olhares da maioria da população brasileira passaram a fazer parte dos “Livros Escolares” e de práticas pedagógicas. Um importante rompimento com uma característica essencial da educação escolar do século 19 a valoração apenas de trajetórias, culturas e modos de ver o mundo europeus que implicam o repensar práticas e perspectivas do olhar no âmbito escolar. Frente a essas novas e tão importantes demandas, o quê fazer? Por onde começar? Pensamos que uma importante estratégia a ser adotada na escola é a desnaturalização do olhar. Mas, como assim? Olhar não é uma ação natural, algo que a maioria dos seres humanos já nasce sabendo fazêlo? Sim e não. O modo como observamos o mundo ao nosso redor é comumente permeado apenas por nossas próprias subjetividades pela cultura a qual pertencemos, por papéis e identificações que assumimos na sociedade, por nossa classe, gênero, etnia, raça etc. São estes olhares que determinam a forma de nos relacionarmos com o meio. Acontece que esses “olhares” e as relações que deles acarretam nada tem de individuais… O que pensamos, a forma como agimos, como nos expressamos são ações dadas a partir de linguagens e práticas culturais de nosso grupo e sociedade. Ora, não é verdade que, quando viajamos, percebemos que algumas expressões que são para nós tão comuns, são sequer entendidas em outra cidade? Todas as nossas ações e perspectivas são reflexos da realidade “construída” ao nosso entorno e, ao mesmo tempo, refletem na realidade que “construímos”. É por isso que muito embora compreendamos o “mundo” apenas de maneira individual, o “mundo” é uma elaboração coletiva. É aí que entra a novidade: desnaturalizar o olhar significa entender que existem diversos olhares frente ao mundo! O que tomamos como “real” não é constituído apenas individualmente,
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mas decorre de símbolos e significados que encontramos no meio em que estamos inseridos. Mas, afinal, o que isso tem a ver com o ensino escolar? O/a professor/a deve estar consciente de que a aprendizagem só pode se dar a partir dessas perspectivas particulares, de cada criança e adolescente, em relação com a sua perspectiva enquanto professor/a. Ao dialogar com as experiências de seus alunos e alunas, com seus cotidianos e os elementos que os compõem, o/a educador/a deve buscar uma aproximação e ampliação de perspectivas de todos os envolvidos na situação de aprendizagem. Assim, pode se constituir uma relação com menos preconceitos e estereótipos, onde novas possibilidades se abrem e a realidade começa a ter diversas cores, a ser mais colorida! É importante que tanto o/a educador/a quanto a/o aluna/o entendam que seu olhar é apenas mais uma maneira de ver o mundo, e que, além disso, sua percepção sobre as coisas não é algo evidente ou inconstestável, mas uma construção. Para tomarmos como exemplo, vamos ler um pouquinho sobre a perspectiva que o personagem indígena Kabá Darebu tem sobre o mundo: Nossos pais nos ensinam a fazer silêncio para ouvir os sons da natureza; nos ensinam a olhar, conversar e ouvir o que o rio tem para nos contar; nos ensinam a olhar os voos dos pássaros para ouvir notícias do céu; nos ensinam a contemplar a noite, a lua, as estrelas (...) (MUNDURUKU, 2002, s/p).
Kabá é personagem de uma obra escrita pelo pensador indígena Daniel Munduruku. Ele é um menino indígena que conta sobre seu povo, seu conhecimento e sabedoria, e como se transmite e desenvolve o conhecimento, como se aprende. A sua visão particular nos conta que, para muitos povos indígenas, aprender, viver e conhecer não são coisas dissociadas do cotidiano e da realidade. Ao contrário, caminham o tempo todo lado a lado. Este olhar é bem diferente de um/a menino/a que mora na periferia de Florianópolis, por exemplo. Ele ainda escuta o som do pássaro, mas não o entende como mensageiro do ceú. São modos distintos de enxergar ou atribuir sentidos a um mesmo animal. Se uma turma de ensino fundamental fosse estudar o modo como as crianças indígenas Munduruku aprendem, seria importante entender, antes de tudo, que o olhar da própria comunidade em relação ao meio
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ambiente se dá de forma diferenciada. Aprender com os pássaros não é um costume “exótico” ou “estranho”, é somente outra forma de perceber o mundo a sua volta. É importante que o/a educador/a conheça de onde vem seus estudantes, o que eles vêem no caminho para a escola, como é o seu cotidiano fora da escola, que perspectivas têm sobre o mundo. Ao enxergar a diversidade e, assim, se aproximar da complexidade da sociedade brasileira, o/a professor/a conseguirá trocar “a lente dos seus óculos”, tomar consciência de outras perspectivas e ampliar o seu olhar. Ao mesmo tempo, deve buscar essa mesma desnaturalização do olhar dos estudantes, ampliando as noções de mundo de suas/seus alunos para a diversidade. 2. O comer Quem não gosta de batata frita? Ou você gosta de batata doce assada? Ou dos dois? Você sabia, por exemplo, que existem mais de quatro mil espécies de batatas e que elas são classificadas como tubérculos? E que ela é um dos alimentos que mais se consomem na América do Norte e do Sul? Mas, e a batata inglesa? Aquela amarelinha, que normalmente utilizamos para ensopados, para fritar, colocamos na sopa ou ainda no feijão quando ele está salgado demais, será que ela realmente vem da Inglaterra? Antes que você tenha fome e abandone a nossa discussão, vamos falar de comida e do comer. Eles têm mais a ver com a diversidade étnica do que podemos imaginar! Esperamos que essa viagem pelos alimentos, receitas e histórias alimentem a sua criatividade para repensar a sala de aula… Para começar, vamos ler o que o professor de História do Brasil da Universidade Federal do Paraná UFPR, Carlos Roberto Antunes dos Santos, coloca sobre o assunto: O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. (...) Neste sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come. (SANTOS, 2005, p. 1213)
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Nossas receitas são compostas de diferentes ingredientes e temperos, que apresentam as mais variadas cores, sabores, formas e tamanhos. Nossos pratos, além de terem muitos ingredientes, são diversificados em nutrientes. Muitos dos ingredientes que utilizamos no preparo de nossas refeições apresentam vitaminas, sais minerais, carboidratos e proteínas necessários ao nosso corpo. O comer nutre o corpo! E mais, se olharmos por uma outra lente, nossos alimentos são, além de tudo, ricos em histórias, memórias, culturas enfim. Por quê não saboreálas também? Vamos a exemplos que podem ajudar a ampliar o nosso olhar acerca da nossa alimentação. Você já comeu farofa de banana? Ela é basicamente a junção de farinha de mandioca com a banana. A mandioca, castelinha, aipim ou a macaxeira é um importante ingrediente da alimentação dos povos indígenas do Brasil, cultivada e utilizada para diferentes finalidades e em várias receitas. Ela era um ingrediente essencial na alimentação e (e ainda é!) utilizada basicamente de duas formas: a primeira como beiju, feita com a fécula da mandioca, que acompanhava carnes, frutas e leguminosos. A segunda como bebida, o caium, oferecido aos indígenas que iriam caçar ou guerrear acreditavase que ela poderia conceder força, garra e valentia. Hoje em dia a mandioca ainda é consumida de vários modos, seja frita, cozida, no escondidinho de carne seca, em forma de tapioca ou no bolo mané pelado. Mas se a mandioca veio dos povos indígenas, de onde veio a banana da farofa? O hábito de comer banana como fruta teria chegado ao Brasil junto com os africanos. Não se sabe com exatidão qual a sua origem, já que haviam inúmeras trocas comerciais entre o sudoeste asiático e o continente africano e ao longo do Mediterrâneo. As populações de africanos escravizados e afrodescendentes no Brasil foram importantíssimas para o uso da banana como fruta e sua adaptação em receitas, juntando assim na farofa de banana o mundo indígena com hábitos africanos. Vamos para mais um exemplo... O nosso famoso “pão de cada dia”! O hábito de comer pão é europeu, mas, ao chegarem no Brasil, os europeus não encontram os ingredientes que estavam habituados a utilizar para fazêlo. Então, para substituir o trigo que não se adaptou de imediato ao Brasil, vieram o milho, a mandioca e até o cará. Estes pães, muitas vezes, eram
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combinados com receitas preparadas pelos africanos escravizados, que por sua vez também adaptaram aqui suas próprias receitas tradicionais. Se olharmos atentamente para nossas refeições diárias, podemos perceber a diversidade que há em nossa alimentação! Os alimentos carregam em si histórias de tantos lugares... Do lugar de onde vieram aqueles que os preparam, do que foi feito a partir das possibilidades de ingredientes em cada localidade, do ambiente próprio do preparo desses alimentos. Os lugares onde são preparadas as refeições, quando observados mais atentamente, também nos revelam aspectos e particularidades do comer que se modificaram ao longo do tempo e através das relações sociais. Para Santos, a própria cozinha é um microcosmo ou uma imagem da sociedade, e nela estão presentes “investimentos afetivos, simbólicos, estéticos e econômicos. Em seu interior, [...] a distribuição das atividades [...] traduzem uma relação de mundo, um espaço rico em relações sociais” (2005, p.21). E mais, há tantos modos de cozinhar e cozinhas diferentes, no tempo e no espaço, que conhecêlas pode ser também um passo para desnaturalizar o nosso olhar e abrilo para a diversidade. A nossa alimentação é resultado das relações sociais estabelecidas nas diversas épocas históricas e inclui contribuições de muitos povos e heranças étnicas. Ingredientes indígenas foram ressignificados através de hábitos culinários africanos e europeus. E “vicesversas” infinitos. Pensamos que partir da alimentação pode ser um certeiro passo para a abertura do olhar para a diversidade no âmbito escolar. Por que não pesquisar a origem dos alimentos? Que histórias estão por trás de receitas? Como são os momentos de sociabilidades que se dão a partir do alimento? Que gosto, textura, cor tem essas comidas e culturas? Pensar o comer, algo tão fortuito e cotidiano, pode nos aproximar de uma aprendizagem mais criativa, interativa, reflexiva e mesmo saborosa! A diversidade vem não só para colorir “nosso” mundo, mas também para tornálo mais saboroso! Por isso propomos: vamos para cozinha!? 3. O brincar Pensamos ser a valoração do brincar no espaço escolar também um caminho para as transformações que almejamos na nossa educação escolar a abertura para a diversidade. Isso
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porque o brincar tem a rara característica de ser universal, independente de etnia, classe, nacionalidade, grupo social: todas as crianças do mundo brincam! O brincar e as brincadeiras podem ser encontrados nas pequenas e pequenos dos mais diversos lugares e tempos! Mas... o que será o brincar para as crianças? Se todas as crianças brincam, o fazem da mesma maneira? O que a brincadeira pode ter a ver com educação de maneira geral e com o ambiente escolar em particular? Refletindo um pouco sobre o ato de brincar, um primeiro aspecto que gostaríamos de destacar é o de que é através da brincadeira que as crianças se apropriam dos mundos que as entornam o natural, o social, o cultural, o religioso etc., do mundo adulto enfim. E o fazem não de qualquer maneira, mas de um modo específico da infância, com uma transposição desses mundos para o universo infantil. Como assim? Por exemplo: quem nunca viu crianças brincarem dos próprios papéis sociais e práticas que percebem a sua volta, como brincar de ser “mamãe” ou “papai”, brincar de cozinhar e limpar, brincar de caçar e construir coisas, casas, carrinhos…? Através da brincadeira e do brinquedo, as crianças demonstram que estão (e como estão) percebendo a realidade a sua volta, interpretandoa, compreendendoa e criandoa a partir do seu olhar particular infantil. O brincar é um momento em que a criança conhece e reconhece o espaço, a si e aos outros. É também nesse período da vida, na infância, que os seres humanos pequeninos começam a desenvolver algo que será primordial para toda a sua vida: a imaginação. A riqueza do advento da imaginação é tamanha, que, se fomentada, dela podem se desenvolver importantes habilidades, como a autonomia e a criatividade, tão essenciais para a vida adulta posterior. E sobre esses e tantos outros aspectos, concordam pensadores sobre educação de dois lugares e tempos muito distintos. Para um deles, russo que viveu até meados do século 20, Vygostsky: “A criação de uma situação imaginária não é algo fortuito na vida da criança, pelo contrário, é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às restrições situacionais” (1998, p. 130). Ou seja, no brincar, a criança percebe o “real”, mas dele se desprende e imagina novas funções para certos objetos, inventa e personifica personagens, cria e recria a realidade.
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Outro pensador importante sobre o brincar é o indígena brasileiro Daniel Munduruku, nosso contemporâneo, que na sua concepção de educação traz que todos os ambientes devem ser considerados espaços e momentos educacionais. Por ser fundamental para a formação do ser humano, a educação deve se dar em todos os momentos, uma vez que a criança deve aprender a conviver com as pessoas e com o ambiente de uma forma integrada, sentindose parte dele (Munduruku, 2012). Em uma comunidade indígena, traz Munduruku como exemplo, não há necessidade de um “material didático” específico: há uma enorme riqueza de materiais já dados pela natureza, pelos familiares, pela comunidade etc. e a criança deve aprender (e aprende) a partir daquilo que vê, experimenta e explora com seus sentidos e ações suas brincadeiras. Pensadores de momentos e lugares tão distintos parecem concordar com o fato do brincar ser fundamental e, principalmente, fundante da criança e do ser humano: é a partir das brincadeiras que ela vai se desenvolver, se educar e aprender a estar no mundo. Isso se dá porque, conforme um argumento de Vygostsky, é na brincadeira que a criança começa a exercitar o viver sob certas regras e não viver apenas a partir de suas próprias vontades e desejos (1998, 9. 131). Ora, não é verdade que quando vemos crianças brincando, podemos perceber que estão agindo sob certos combinados, que desempenham certos papeis que acordaram entre si? Estão aí as primeiras regras dos jogos, por elas mesmas inventadas! Por outro lado, são conhecidos por nós, também, os momentos de desentendimentos e frustrações que tem lugar nessas situações infantis. E justamente aí reside um outro elemento essencial do brincar: não só aprendem regras e abdicar de desejos, como também são exercitadas no mundo do brinquedo todas as emoções humanas! Tristeza, alegria, medo, repulsa, raiva… As emoções regem a nossa vida, e conhecêlas é um aprendizado essencial. A brincadeira é um brincar também de experimentar as mais diversas emoções, a elas se confrontar e com elas aprender a lidar. Daí coloca Munduruku que a “criança que não brinca não cresce equilibrada. Naquele momento ela tá educando o corpo dela, ela tá educando a sua mente, treinando a sua capacidade de educação [...] [e desenvolvendo] a sua afetividade” (2012). Agora, cabe pensarmos um pouquinho sobre quais tipos de brincadeiras estamos falando ou melhor, de quais não estamos falando. Quem nunca presenciou uma situação como essa: a
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criança deseja fortemente um “brinquedo” visto nas mãos de um par, ou na televisão e insiste e negocia por um longo período com os pais para poder têlo também… quando, ao fim, o ganha de presente, “pronto!”, rapidamente vai embora o seu interesse e em poucas semanas o objeto está largado, junto a outros tantos, em um canto da casa? Dentre muitas discussões que poderíamos fazer sobre essa questão, nos cabe aqui principalmente uma: que tipo de brincadeira acontece a partir desses “artefatos”, industrializados, publicizados e vendidos para crianças incluindo aí também os populares games ? Tratamse de modos de brincar individualizantes, que trazem regras previamente dadas e são construídos por outrem. Excluíse do todo do “mundo do brinquedo” que pode envolver o inventar um jogo, daí necessitar de algum novo objeto que não está disponível, depois imaginálo e desenhálo, para por fim empreender sua construção com todas as dificuldades a ela inerentes apenas o “produto final”. É um brincar fragmentado, fortemente relacionado com a nossa forma de viver o mundo. É contrário a tudo isso que nos colocamos! A brincadeira é aquela na qual há uma entrega por completo, onde é possível à criança “sentir, se empoderar daquele momento que ela está vivenciando [...] colocar pra fora todo o seu ser criança” (Munduruku, 2012). Nesse sentido que coloca o documentário Tarja Branca a taxativa: “observe uma criança brincar que perceberá que é sério!” (2014). Não há seriedade maior do que o momento em que a criança está entregue, experimentando e vivendo o fluxo do mundo do brinquedo: há comprometimento, concentração máxima, foco, plenitude. Há a experiência da criança por inteiro, como um todo como corpo, como sujeito, como ser social, como parte de uma coletividade. É o brincar da criança que deveria definir, para nós adultos, o que é ser “sério” (Tarja Branca, 2014). Mas afinal, o que o brincar tem a ver com a educação escolar? Em primeiro lugar, é através do brincar que se dá o desenvolvimento da criança como ser humano pequenino até sua transformação em adulto, em termos de imaginação, conhecimento de si e suas emoções, relacionamento com o outro e com o ambiente que o entorna. Em segundo lugar, a brincadeira pode trazer para a educação escolar a primazia do afeto, das relações humanas, do convívio, combatendo a individualização e fragmentação dos sujeitos e a liquidez dos vínculos entre as pessoas. Por último, a brincadeira pode ser uma maneira de revolucionar e romper com os ideais
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iluministas de primazia da razão, de desenvolvimento industrial, do progresso, de civilização, de “modernidade”: através do brincar podemos atrair para o ambiente escolar saberes, modos de ver e fazer diversos, percebendo as crianças e jovens como de fato o são! sujeitos cheios de luz, vontades, experiências e competências! Se todas as crianças brincam, como o brincar ficou de fora do ambiente educacional tanto tempo?! Algumas sugestões para aplicar o princípio do brincar no âmbito escolar são: levar em conta as necessidades das crianças e jovens, investigar seus interesses e o que os/as motivam quanto mais velhos, mais abstratos podem ser os jogos , pensar em brincadeiras que exercitem a colaboração e não a competitividade , e, enfim, ser criativo! Olhemos a nossa volta… que imensidão de possibilidades de “materiais didáticos” temos à nossa disposição! E para aproximar ainda mais a diversidade da escola, porque não partir de pesquisas sobre origens de brincadeiras, sobre onde elas são populares, sobre como chegaram até nós? Abramos o caminho para a brincadeira, com ela para a diversidade, e vamos brincar de brincar? A aprendizagem assim vai se tornar, além de mais colorida e saborosa, muito mais divertida! 4. Algumas estratégias das oficinas do projeto, à guisa de conclusão Agora, vamos contar um pouquinho sobre as oficinas que construímos junto aos dois grupos de professores com os quais trabalhamos, dos municípios catarinenses de Vidal Ramos e São José. Foram três encontros com cada grupo, cada encontro teve uma das temáticas até aqui trabalhadas. Instigar professores/as para a desnaturalização do seu olhar sobre o mundo, foi nosso principal objetivo nas oficinas “O olhar”. Para tanto, realizamos dinâmicas e exercícios de fotografia, analisamos vídeos/fotografias/discursos sobre cada cidade, colhemos e discutimos depoimentos das/os participantes sobre como imaginam que seja a percepção da “realidade” de seus/suas alunos/as. O intuito foi o de sensibilizálos e tornar evidente que a realidade somos nós que criamos ela não existe fora de nós e ela é, sobretudo, múltipla. Já para trazer “O comer” e a diversidade nele presente para nossas oficinas, preparamos e provamos farofa de banana, pesquisamos a origem de alguns alimentos, selecionamos receitas, compartilhamos saberes e fazeres da cozinha e da comida entre nós. Também assistimos vídeos sobre a diversidade de
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cores, sabores e formas de algumas espécies de alimentos, e discutimos sobre monoculturas e o empobrecimento da nossa alimentação de maneira geral. Finalmente, nas nossas oficinas sobre “O brincar”, trouxemos documentários sobre a necessária valorização do brincar no espaço escolar, discutindo aspectos teóricos sobre o assunto; pesquisamos a origem e as variações de brincadeiras, compartilhamos nossas pesquisas e experiências infantis, além de brincarmos alguns dos jogos em grupo. O intuito foi sensibilizar as/os professoras/es sobre a importância do brincar e as possibilidades de trazêlo para a sala de aula. Propusemos, portanto, durante nossas três oficinas com cada grupo e propomos aqui para você, leitor/a educador/a a valorização no âmbito escolar de três atividades que fazem parte do ser humano em qualquer parte do mundo: o olhar, o comer, o brincar. Estas atividades são realizadas pelo sujeito inteiro. Nenhuma destas ações permitem fragmentação. Elas acionam a inteireza do ser humano: o corpo, as emoções, o intelecto, a imaginação. Por isso que, se trabalhadas na escola, podem significar o primeiro passo para a reformulação deste espaço. A instituição escolar está em crise produzindo cada vez mais excluidos, fracassados e doentes. Estamos tentando adaptar crianças do século 21 às estruturas do século 19. O multiculturalismo, a revolução comunicacional e diversas outras mudanças fundamentais de vivenciar o mundo, são negados na escola que continua a fragmentar conteúdos, a dividir tempos e a arrumar espaços de forma linear. Este artigo pretende ser um convite para a reflexão, e para colocar “na roda” que o começo é menos complicado que se pensa. Mas… tem que começar… REFERÊNCIAS E SUGESTÕES Filmes ESCOLARIZANDO o mundo (Original: Schooling the world: the white man's last burden). Direção de Carol Black. EUA/Índia: Lost People, 2010. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2015. OLHAR Indígena Daniel Munduruku fala sobre Educação Indígena. Brasil: Daniel Munduruku, 2012. Disponível em: . Acesso em: 27 out. 2015. TARJA Branca A revolução que faltava. Direção de Cacau Rhodem. Brasil: Maria Farinha Filmes, 2014.
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Textos acadêmicos FARIA FILHO, Luciano Mendes de; CHAMON, Carla Simone; INÁCIO, Marcilaine Soares. Instruir sem incluir: Desde a Independência, educação é solução para civilizar o país, desde que permaneçam todos em seu lugar. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n. 120, s/p, Setembro/2015. Disponível em: . Acesso em: 08 out. 2015. OWSTER, Fayga. A Construção do Olhar. In: NOVAES, Adauto (org). O Olhar . São Paulo: Companhia das Letras, 1988. (P. 167182). SANTOS, Carlos Alberto dos. A alimentação e seu lugar na história: os tempos da memória gustativa. Curitiba: Editora UFPR, 2005. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente – O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (P. 121137). Literatura infantojuvenil MUNDURUKU, Daniel. Kabá Derebu . São Paulo: BrinqueBook, 2002. Música infantojuvenil PALAVRA Cantada . Grupo musical formado por Paulo Tatit, Sandra Peres. São Paulo: 1994atualmente. Disponível em: http://palavracantada.com.br/radio/ . Acesso em 17 nov. 2015.