Projeto \"Narrativas e imagens do Cerrado\" (Doutorado / PPGAS / USP)

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Narrativas e imagens do Cerrado / André Sicchieri Bailão 1) Resumo: Este projeto pretende traçar as origens, os processos e as transformações do Cerrado, tomando-o como uma categoria analítica do pensamento social brasileiro, das ciências naturais e de projetos de identidade nacional. Partimos da hipótese de que houve constante transformação de categorias, com a naturalização do "sertão", categoria social antiga, transformado em "cerrado". O sertão, contraposição negativa do litoral e da civilização durante o período colonial e independente, tornou-se sinônimo de “terra selvagem” nas missões naturalistas do século XIX e o Cerrado, originalmente um adjetivo popular transformado em metonímia de uma vasta região, adquiriu muitas de suas características negativas a partir do final desse século. A ideia de uma “terra vazia” a ser ocupada pelo Estado culminou no projeto nacional com a construção de Brasília, entretanto, as categorias se transformaram novamente quando, após a fundação da nova capital, se fez presente também a ideia de Cerrado como um bioma passível de ser preservado em parques nacionais. O objetivo é, pois, pensar em uma “paisagem imaginada” de diferentes maneiras por cientistas, artistas e agentes estatais, com foco em trajetórias, narrativas e imagens de missões naturalistas e em como elas foram afetadas pelas paisagens e também as afetaram. A partir de relatos de viagens, estudos, mapas, fotografias, desenhos, pinturas, analisaremos quatro missões científicas entre 1820 e 1948 e a construção de Brasília (1956-60), com foco na intensa produção de imaginações sobre o Cerrado. Palavras-chave: cerrado; antropologia da ciência; paisagem; natureza e sociedade; ciência e pensamento social. 2) Introdução e tema: Atualmente denominamos as paisagens do interior do Brasil como "o Cerrado", um domínio natural comparado a savanas - e caracterizamos sua vegetação como escassa, a partir de imagens de árvores retorcidas e distribuídas entre arbustos e gramíneas, em uma região em que chuvas abundantes e grandes queimadas se intercalam ao longo do ano (cf. IBGE, s.d.). Apesar de serem compreendidos por uma certa cultura cientificista como objetos e fenômenos que "sempre existiram”, revelados por descobertas, fatos naturais também têm história e autoria e são estabilizados por práticas, discursos e circulação de objetos, segundo os estudos sociais da 1

ciência (SHAPIN & SCHAFFER, 1985; LATOUR, 2000). Como veremos, o Cerrado é bastante recente como termo na classificação científica e nacional das paisagens – e a história do surgimento e das transformações deste conceito e de suas classificações é o tema deste projeto. Segundo o historiador Ricardo Ribeiro (2005:47-49), a palavra aparece em meados do século XVIII como caracterização abrangente de um tipo de vegetação dos “matos” e “campos” tipos comuns nas descrições de cronistas e viajantes sobre a paisagem do interior da colônia (em oposição às "matas”), formas respectivamente mais ou menos densas da vegetação local. Após três séculos de conhecimentos acumulados a respeito do território da colônia (cf. RIBEIRO, 2005; DEAN, 1996), missões científicas rumo ao Brasil tiveram início após a reforma acadêmica pombalina em Portugal no século XVIII (PÁDUA, 2004). As expedições inspiradas em projetos naturalistas, como os de Lineu e Humboldt, aumentaram em número no século XIX, estimuladas pela chegada da Corte portuguesa no Brasil, a abertura dos portos em 1815 e a vinda da comitiva da Princesa Leopoldina em 1818 (FAUSTO & HOLANDA, 1997; SCHWARCZ, 2011:239–242). Nesse contexto destacam-se, entre outras, as viagens de Auguste de SaintHilaire (1779-1853) da França, Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) e Johann Baptist von Spix (1781-1826) da Baviera. As paisagens foram classificadas e sistematizadas por esses cientistas naturais a partir de tipos fisionômicos - caracterizações de regiões segundo critérios de clima e vegetação e que aproximavam regiões distantes entre si, mas semelhantes segundo a tipologia1 (STEPAN, 2001). Os naturalistas percorriam o mundo ordenando e colecionando o que encontravam (PRATT, 2008: cap. 2) - inclusive climas (cf. BAILÃO, 2014) e homens (cf. SCHWARCZ, 1993).

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Projeto desenvolvido por Humboldt, que ligou a complexidade de distribuição da vegetação a determinações topográficas e climáticas, a partir de sua experiência na América do Sul (STEPAN, 2001).

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Os viajantes descreviam as paisagens na forma de texto, em crônicas de viagem e relatos científicos, e imagens, usando mapas, desenhos próprios ou obras de pintores e gravuristas que participavam das expedições – como Johann Moritz Rugendas e Thomas Ender. Além disso, coligiam informações e coletavam espécimes naturais, enviados para museus e jardins botânicos europeus, onde eram estudados e exibidos (PRATT, 2008; REINALDO, 2014; SEVCENKO, 1996; STEPAN, 2001; VANZOLINI, 1996). Para as burocracias coloniais e nacionais, que se aliavam a esses viajantes estrangeiros – autorizando ou financiando as viagens - o interesse estava na produção de mapas mais detalhados de seus territórios e recomendações para melhor exploração dos recursos naturais (RIBEIRO, 2005:360–369). Os estrangeiros não iniciaram o conhecimento sobre as paisagens locais e se aproveitavam das definições dadas pelos nativos com relação ao mundo em que viviam, incorporando expressões e caracterizações ao vocabulário naturalista: Saint-Hilaire ([1830] 1975:308) aproveitou-se dos conhecimentos ditos populares sobre os sertões, mantendo os termos “matos” e “campos” para tipificar a vegetação de Minas Gerais e Goiás, e as palavras locais, “caatingas”, “capões”, “capoeira”2 para se referir à sua diversidade. Martius fez uso de denominações como “tabuleiro cerrado” e “campo cerrado” para o tipo de vegetação do Planalto Central, definindo-o como mais denso que os campos e mais aberto que os matos. As expedições naturalistas e suas narrativas e imagens são fundamentais para compreendermos a produção de classificações, estudos e objetos científicos sobre a paisagem brasileira. Martius produziu, com financiamento de várias Coroas, inclusive a brasileira, a grandiosa obra Flora Brasiliensis (1906), que continha análises de espécimes coletados no Brasil

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Em Cunha (1997), “Caatinga ‘tipo de vegetação característica dos sertões do Nordeste do Brasil’(…)” (p. 130); “Capão ‘pequeno bosque insulado num descampado’” (p. 150); “Capoeira ‘terreno onde já houve roça e que foi reconquistado pelo mato’ (…)” (p. 151). Todas de origem tupi – já “mato” e “campo” têm origem latina.

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e desenhos científicos por ele e colegas. Especificamente a respeito das paisagens do Brasil, no primeiro volume da Flora (MARTIUS, 1996) foram apresentados os seguintes materiais: o primeiro mapa fitogeográfico do Brasil, inaugurando por aqui a forma de imaginar e visualizar o território como uma unidade geográfica, dividido em poucas regiões naturais; cinquenta e nove estampas fisionômicas, cuja intenção era apresentar aos leitores imagens das diferentes regiões na forma combinações pictóricas de elementos paisagísticos (REINALDO, 2014:118). Houve, portanto, a participação ativa dos artistas na imaginação das paisagens, com seleção de tipos ideais de plantas, animais, topografia e condições atmosféricas na composição das imagens (DIENER & COSTA, 2013; BELUZZO, 1996). As classificações em reinos fisionômicos influenciaram as caracterizações nacionalistas dos territórios (HIRSCH, 1995:11) e ressoavam o ideário romântico nacionalista que padronizava pátrias e paisagens (SCHWARCZ, 2014). Por exemplo, na Flora, mapa e estampas dos diferentes domínios naturais seguiam um certo padrão de divisão política: o chamado “reino natural brasileiro” foi subdividido em cinco regiões: a Regio montano-campestris, província dos campos de gramíneas e arbustos dos planaltos, mais a Amazônia, as florestas litorâneas, os campos do sul e a província quente e seca do nordeste – divisões atualizadas pelo conceito de “bioma” a partir de meados do século XX (cf. KLEIN, 2002). As classificações populares da vegetação, composta de um mosaico de tipos locais, passaram a conviver com a divisão científica da nação em poucas regiões e que operam por meio de reduções e generalizações. Se a obra de Martius foi central para a formação das narrativas, descrições e mapas do território nacional, o primeiro estudo específico do domínio que hoje denominamos Cerrado foi produzido por Eugen Warming (1841-1924), botânico membro da expedição dinamarquesa a Lagoa Santa chefiada por Peter Lund nos anos 1860 (RIBEIRO, 2005: 49). Em campo, Warming 4

fotografou, fez desenhos e coletou vários espécimes, enviados para o jardim botânico de Copenhague (KLEIN, 2002). Após retornar à Europa, escreveu diversos trabalhos sobre flora brasileira e ecologia e foi colaborador da Flora. Em seu livro Lagoa Santa, de 18923, fez o primeiro estudo sobre a “vegetação dos campos brasileiros” (Brasiliens camposvegetationen), a partir de suas experiências, notas e coleções obtidas em campo. O livro é considerado pelo botânico R. J. Goodland (1975) um paradigma dos estudos ecológicos, detalhando características do clima, do solo e da geomorfologia, descrevendo e interpretando a série de plantas que o próprio Warming havia ajudado a coletar, oferecendo explicações às adaptações da vegetação à seca e às queimadas. O cientista havia sido profundamente afetado por sua experiência em campo; a seca e as queimadas típicas do Cerrado, que testemunhou, foram essenciais para seus escritos sobre ecologia. Segundo Goodland, apesar de ter sido esquecido pela história, Warming foi um dos fundadores da Ecologia, com seu livro sobre “comunidades de plantas”, Plantesamfund, de 1895. Sua obra não se limitava às classificações, nomeações e descrições de espécies, mas fornecia uma explicação de como plantas respondiam fisiologicamente aos problemas impostos pelo clima e pelos solos formando comunidades adaptadas ao seu ambiente4. Warming destacou o uso da expressão popular “cerrado” para classificar um tipo de vegetação dos campos centrais (RIBEIRO, 2005: 49) - mas é importante notar que o subtítulo da obra original, “contribuição para a geographia phytobiologica” foi alterado para “a vegetação dos Cerrados brasileiros” na edição ampliada pelo biólogo da Universidade de São Paulo, M. G. Ferri, em 1973 (WARMING, FERRI, 1973). Se no século XIX tratava-se de uma adjetivação de 3

Traduzido para o português em 1908 pelo cientista sueco radicado no Brasil, Albert Löfgren (ou Alberto Loefgren), que veio em 1874 com uma expedição científica também destinada a estudar os sertões do Planalto Central, chefiada pelo naturalista sueco Hjalmar Monsen. 4 Em consonância à teoria da evolução de Darwin e Wallace e um passo além de Humboldt.

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um tipo específico de vegetação local, em meados do século XX ele se tornou um nome próprio, definidor da totalidade da paisagem do Brasil central. O que pode, à primeira vista, parecer uma pequena alteração em nomes científicos e populares, é também um indício da transformação das paisagens. Nomes se alteram com o tempo, palavras são criadas, esquecidas ou resgatadas e têm seus significados modificados, mas é relevante analisar como uma transformação classificatória entre grupos especializados, cientistas, burocratas, pode ter sido acompanhada de alternâncias mais amplas nas formas como essas paisagens foram imaginadas, narradas, descritas e ocupadas. O período pós-guerra coincide com a ocupação do Cerrado pelo Estado nacional e estudos especializados por cientistas: são do período a fundação de Brasília, a expansão das redes urbanas e da agropecuária moderna rumo ao interior, a realização de congressos científicos sobre o Cerrado. Considerando que a paisagem do Brasil central foi historicamente imaginada como termo no interior de um sistema e em relação a outras paisagens, podemos encontrar indícios de que estamos vendo mais do que apenas uma mudança de nomes. Na mesma medida em que até o século XIX os campos e matos eram caracterizados em relação às matas (RIBEIRO, 2005), o Cerrado passou a ser imaginado e definido em oposição à floresta - contrapondo-se valores negativos e positivos. O mosaico de vegetação existente deu lugar a frequentes definições simplificadoras em termos de "escassez" e "penúria": por exemplo, no relatório da expedição de Cruls para a demarcação da área da nova capital na região do Planalto Central ([1892] 1947: 237). Mesmo assim, Cruls defendia a transferência da capital para a região por diversos motivos, sendo um deles seu clima salubre, oposto ao do Rio de Janeiro, assolado por epidemias (LIMA, 2013:326-357) - o que denota uma certa ambiguidade em sua caracterização.

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Ambiguidades e definições negativas também estiveram presentes durante a retomada do debate da mudança de capital para o Planalto Central nos anos 1940. Nas expedições demarcatórias do governo Dutra, o general Djalma Polli Coelho defendia a área demarcada por Cruls, contra argumentos contrários que afirmavam que a região seria "(...) estéril porque (...) formada de "cerradões", em chapadas areníticas, onde nada se poderá plantar ou criar e onde faltam por completo as águas potáveis (...)" (COELHO, 1948:9-10 apud: LIMA, 2013:340). Apesar de o clima salubre e a abundância de água potável terem sido apontados como positivos, o relatório técnico não valorizou a vegetação em oposição aos críticos, mas destacou que o território deveria passar por "um vasto plano contínuo de florestamento e reflorestamento" (BRASIL, 1948: 28) para proteger fontes d’água, gerar madeira, além da criação de pastagens e lavouras. Em outras palavras, para os engenheiros estadistas do litoral, o Cerrado deveria abrigar o centro político do país após sua transformação em cidades, pastos e florestas. Para compreendermos o valor positivo dado às florestas, pastos e cidades, em relação ao valor negativo dado aos campos e ao Cerrado, é preciso nos deter na virada do século XIX para o XX, quando visões coloniais da natureza foram ressignificadas em torno da ideia da pátria formada por uma natureza tropical monumental, com o papel ativo da representação imagética do território (SCHWARCZ, 2014:400). Do Império à República, ganhando força nos anos 19305, um movimento em defesa de florestas entre funcionários públicos e cientistas ganhou força6 - em

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O Estado Novo foi um período em que mitos foram criados e traduzidos no sentido de resolver tensões oitocentistas entre o litoral e o sertão. Além disso, os projetos de expansão territorial para o interior do país ganham ímpeto e o IBGE foi criado como instituição para pensar o território em nome das políticas estatais (VITTE, 2011). 6 Mesmo minoritário, o movimento conservacionista do período obteve vitórias: a criação de um código florestal, dos primeiros parques nacionais em áreas de florestas remanescentes, montanhas e quedas d’água (BARRETO FILHO, 2001; DEAN, 1996). Ver Dean (1996) e Pádua (2004) para a história do surgimento do movimento conservacionista entre o final do século XIX e o início do XX.

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conflito direto com elites político-econômicas majoritariamente favoráveis à destruição das matas em prol da expansão agrícola (cf. DEAN, 1996: 238-75). O conservacionismo, ou ambientalismo, foi uma série de movimentos complexos e com múltiplas origens: o romantismo, as ciências naturais, o utilitarismo econômico. Muitos pensaram o ambiente por meio de ideias e linguagens modernizantes e utilitárias, buscando o progresso nas relações do homem com a natureza, vista como fonte de recursos. Outros o fizeram segundo ideias nacionalistas e românticas, encarando as paisagens pitorescas como monumentos de valor estético ou espiritual (PÁDUA, 2004; THOMAS 2010 [1983]; WILLIAMS 2011 [1973]). É importante notar como esses grupos olhavam para a diversidade florestal e sua abundância positivamente, ao mesmo tempo em que campos foram retratados como vazios, piores, menos belos – úteis apenas com sua transformação em outra paisagem. Podemos relacionar essas oposições entre falta e abundância a formas mais antigas de pensar o território brasileiro: a dualidade entre sertão/interior e litoral/civilização, e as transformações do “sertão” de categoria social em categoria natural. Sertão é um termo bastante polissêmico na história do pensamento social brasileiro, cuja origem remonta a Portugal - por lá, o termo designava os domínios longínquos e pouco conhecidos das colônias (AMADO, 1995). Para Amado, o sertão foi incorporado ao vocabulário e ao pensamento da sociedade colonial, tornando-se uma das categorias sociais e culturais mais duradouras de nossa história. O interior pouco povoado de colonizadores foi pensado e vivido como desconhecido e selvagem, contrário do litoral, onde estavam o Estado e a Igreja, e de onde partiam as classificações negativas. Ambas as categorias foram construídas, portanto, como em um jogo de espelhos, opostas, mas complementares. Sertão era um termo variável e referencial, a partir do local e da posição social de quem fala, e ubíquo, pois podia se localizar em qualquer parte. 8

Segundo a socióloga Nísia Trindade Lima (2013), o sertão foi incorporado e transformado, durante o período republicano e por membros da elite política e intelectual, que deram maior ênfase aos contrastes em suas visões dualistas de nação. Segundo sua análise, o antagonismo espacial foi modificado pelos discursos de temporalidade típicos do século XIX, justapondo épocas histórias, uma tradicional (sertão) e outra modernizante (litoral) dentro do espaço simbólico da nação7. Porém, dessa complexa história dos sertões, nos interessa nos atentarmos à história da naturalização dos termos: a maneira como um espaço de fronteiras simbólicas passou a ser imaginado também como um “espaço físico claramente delimitado” (LIMA, 2013:104), naturalizado, classificado e compreendido por cientistas e pelo Estado nacional em expedições rumo ao interior do Brasil entre 1892 e 19488. Datam do período expressões que naturalizavam características negativas do sertão. O meio ambiente foi definido por esses cientistas como hostil, desfavorável, feroz e a paisagem e seus habitantes caracterizados em termos da esterilidade do solo, das doenças tropicais, das queimadas frequentes e da escassez. Narrativas que tratavam a região como espaço vazio ou selvagem justificavam práticas científicas e políticas de conhecimento e incorporação do ambiente e dos homens, vinculadas aos projetos civilizatórios nacionais (LIMA, 2013:169–190). Aí estavam ideias e práticas que também mostraram-se presentes durante a construção de Brasília entre 1956 e 1961, durante o governo de Juscelino Kubitschek.

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Isso teve como marco Os Sertões de Euclides da Cunha. Lima conhece e retrata as ambivalências presentes na obra dos autores da época em suas caracterizações do sertão como, não apenas estagnado, mas autêntico e verdadeiramente nacional, em oposição ao litoral, repleto de estrangeirismos. Esse modo de pensar em diferentes temporalidades era comum na época - Tocqueville, Marx, Tönnies, Simmel também pensaram ordens sociais distintas no tempo, historicamente sucessivas em sociedades. Mas, segundo Lima, aqui as ordens sociais de historicidades distintas conviveram em parcelas distintas do território para o pensamento social republicano. 8 Enviadas, por exemplo, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Inspetoria de Obras contra as Secas, companhias de ferrovias e telégrafos, Comissão Geológica e Geográfica de São Paulo, Instituto Oswaldo Cruz e as missões demarcatórias da nova capital de 1892 e 1948 (cf. LIMA, 2003).

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A construção de Brasília reatualizou antigos projetos de se relacionar com a paisagem do interior do Brasil - de desbravamento e dominação da vegetação para abrir caminho à civilização –, ao mesmo tempo em que criou novos. Se Brasília foi palco da transformação do Cerrado pela tecnologia, com sua destruição registrada nas fotos de Marcel Gautherot e Thomas Farkas (cf. ESPADA, 2010; GAUTHEROT, 2001), também foi palco de sua valorização. Após a inauguração, criaram-se em 1961 parques nacionais vinculados à capital e suas instituições científicas: os Parques Nacionais de Brasília e da Chapada dos Veadeiros (cf. DRUMMOND et al., 2010), os primeiros do Cerrado, cabe lembrar9. Ambos foram projetados como formas de proteger resquícios de uma paisagem visto como intactos e selvagens por grupos urbanos, portanto, ameaçados pelo avanço civilizatório10. Outro efeito da fundação da nova capital foi a circulação de imagens dessa vegetação por circuitos mais amplos - e essas imagens produziram descrições da paisagem, tanto quanto os textos científicos. Por exemplo, a complexidade da vegetação local, suas matas fechadas e ciliares e a abundância no período chuvoso são silenciadas em fotografias habituais do Cerrado, que insistem nas árvores solitárias, secas e retorcidas, que se tornaram símbolo de uma paisagem imaginada como sinônimo de solidão e de vazio11. Longe de meros reflexos de mentalidades

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De forma semelhante, na Amazônia, o momento mais intenso de criação de reservas naturais – os anos 1970 e 80 – coincide com a expansão das redes político-econômicas e os projetos estatais de integração nacional e desenvolvimento (cf. BARRETO FILHO, 2001). 10 Segundo Schama (1996), a ideia de paisagens intactas, que deu origem aos parques nacionais, pode ser confrontada por um exame cauteloso da história: Yellowstone, o paradigmático parque norte-americano, foi demarcado em áreas até então ocupadas por indígenas e mineradores - expulsos pelo Estado para proteger a natureza, transformada em "intocada". Saint-Hilaire (1937,1975) já observava a transformação da paisagem pela economia pecuária e mineradora e a chapada dos Veadeiros foi demarcada em área de mineração e quilombolas. 11 Imagens usuais sobre o Cerrado reatualizam essa linguagem, enquadrando árvores solitárias rodeadas de matos secos e arbustos baixos – nos inspiramos em Gombrich (2007), que analisou o processo de criação de imagens do fog londrino por artistas no século XIX, reproduzidas a ponto de significar o ato de “estar em Londres”.

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prontas, as imagens criam e agenciam conhecimento (GOMBRICH, 2007; SCHWARCZ, 2014) como os mapas, descrições científicas e relatos de viagens. 3) Justificativa e problemática: A história de como uma paisagem é compreendida, visualizada e imaginada é complexa e repleta de transformações e, portanto, só podemos descrevê-la considerando sua polissemia e sua materialidade múltipla e transformativa. Para traçarmos a história de como o Cerrado foi imaginado como uma paisagem nacional por cientistas, artistas e instituições estatais, devemos estar atentos a essas questões, nos guiando por uma série de autores. O conceito de paisagem carrega uma antiga associação com a produção de imagens de natureza e, desde o século XVI, pinturas e fotografias paisagísticas na arte ocidental enquadram elementos escolhidos para compor a imagem, esquecendo outros, a partir de formas de se engajar com elementos humanos e não-humanos (BRIZUELA, 2012; ALPERS, 1999) - como, por exemplo, formas de observar, investigar e descrever o mundo, vinculadas a saberes modernos, técnicas cartográficas e expedições de campo, observações detalhadas de plantas, animais, topografia e clima. Simon Schama (1996) parte de uma provocação à historiografia ambiental, obcecada com narrativas da "crise ambiental", e formula um conceito de paisagem que não diz respeito apenas à sua destruição e dominação, mas que envolve construções, valorizações e memórias, explorando diferentes formas pelas quais a paisagem foi pensada em momentos e lugares do Ocidente. Keith Thomas ([1983] 2010) e Raymond Williams ([1973] 2011) descreveram as transformações que ocorreram nas artes, nas ciências e no pensamento social ao longo do período moderno na Inglaterra, em que novos gostos e sensibilidades foram produzidos em relação a animais, plantas e o campo, em um período em que uma ordem urbana e industrial surgia como concorrente à ordem rural. O que cabe notar nessas análises, ao menos se nos limitarmos aos interesses deste 11

projeto, é que as novas sensibilidades surgiram entre membros das elites artísticas, econômicas e intelectuais, distantes de agricultores e de pessoas que viviam próximas às matas12. As viagens e as apreciações das vistas, dos elementos e dos movimentos do mundo são antigas, mas a paisagem de que falamos aqui surge justamente na era industrial, como objeto de consumo para classes médias urbanas: refúgio contra a vida da cidade; lugar de expedições e de proteção de uma natureza imaginada como pura. Justamente no período intenso de transformação das paisagens, surge "o gosto pela natureza intacta, pela terra inculta" (WILLIAMS, 2011:214). Houve importantes transformações nessa "tradição da paisagem" a partir do século XIX: a exploração do mundo pela ciência natural, as profundas alterações do território pela revolução industrial e o surgimento do nacionalismo e das sensibilidades românticas – momento de que tratamos anteriormente. Nada disso foi possível sem investimentos estatais por parte dos impérios coloniais e das novas nações, sendo impossível a separação de ciência natural, arte e proteção ambiental da formação dos Estados nacionais. O período foi palco para atividades imaginativas nacionalistas sobre territórios, homens e história - nações, estas, que não surgiram naturalmente de um passado mítico, mas eram imaginadas ativamente pelas gerações do século XIX e XX, segundo Benedict Anderson (2008 [1983]). O uso do termo "imaginado", para definir como comunidades pensavam a si mesmas como nações, não se refere a uma noção de "imaginária" ou "falsa", mas, sim, às atividades de construir ativamente um senso de identidade, por meio de práticas – não apenas imagens mentais e discursos -, como, por exemplo, a formação de redes burocráticas, científicas, linguísticas e a transformação de instituições antigas politicamente carregadas, como os mapas, os censos e os 12

O mito da natureza selvagem (wilderness) não foi criação de camponeses, pastores, mineiros (THOMAS, op. cit., p. 259), indígenas ou quilombolas, no caso brasileiro. Ver Pratt (2008) para uma importante discussão do papel, ausência e silêncio das vozes de mulheres, negros, mestiços, indígenas em torno da literatura de viagem e das missões científicas no período em que analisamos aqui.

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museus. Eles foram transformados pela gramática da condição nacional, tornando-se fontes importantes para as maneiras de se imaginar a natureza dos nacionais, a geografia do território e a legitimidade do passado (ANDERSON, 2008:227). As descrições de paisagens foram centrais, portanto, à constituição das imaginações nacionais, por meio de narrativas e imagens que circularam por circuitos científicos, artísticos e estatais. O intuito deste projeto, então, é compreender o Cerrado como uma "paisagem imaginada" nacionalmente – e em relação a outras paisagens. Como nos lembra Sahlins ([1981] 2008), para outros contextos e tempos, as histórias das categorias são repletas de ambiguidades, conflitos, invenções e recuperações. Este projeto justifica-se na maneira em que, ao tratar de um processo histórico em que constituíram-se identidades muito pautadas em noções sobre o território e o ambiente, exploraremos diferentes narrativas e imagens que produziram e classificaram o Cerrado, imaginando-o a partir de conotações negativas antigas designadas aos sertões - terra vazia ou hostil -, conotações negativas novas - "falta" em oposição à “abundância” das florestas13 - e conotações positivas novas, com a criação dos parques nacionais. Se as relações entre natureza e sociedade podem ser exploradas como processos variáveis e múltiplos, isso traz a antropologia diretamente ao debate (cf. DESCOLA & PÁLSSON, 1996) e cabe pensarmos como é possível tratar de paisagens imaginadas em um estudo antropológico a partir de documentos do passado. Por exemplo, Eric Hirsch (1995) afirmou que a paisagem era pouco problematizada para a antropologia, mantida como caixa-preta nas análises: era tratada ora como enquadramento, situando o leitor no mundo visitado pelo antropólogo num "espaço", pano de fundo natural, objetivo e neutro; ora como um "lugar", local de representações nativas, 13

Oposições que permaneceram vivas ao longo do século XX e do início do XXI. Há inúmeras campanhas ambientalistas contra o desmatamento das florestas tropicais, enquanto o Cerrado ainda permanece ausente da lista de biomas declarados "patrimônios nacionais" pela Constituição Federal de 1988 - sendo um dos menos protegidos e destruído em um ritmo muito veloz (DEAN, op. cit.: 380).

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esquemas simbólicos e cognitivos de ordenamento dos arredores. Hirsch afirma que, para um conceito de paisagem ser eficaz, a análise deve dar conta das tensões e relações entre as dimensões cotidianas (a vida como vivemos) e as dimensões potenciais (a vida como queremos viver), de onde, para ele, emergem as paisagens. Paisagem não seria nem "espaço", uma natureza neutra e externa, nem "lugar", que nega os engajamentos cotidianos, priorizando apenas as dimensões simbólicas. Processos e engajamentos fundam a definição de paisagem de Tim Ingold (2000; 2011), que se dedicou extensivamente a questionar as mesmas divisões - entre "pano de fundo neutro" e "ordenamento simbólico" -, tecendo suas interpretações a partir de uma atenção dedicada à materialidade e à temporalidade. Em sua crítica à definição de paisagem como terra, ambiente ou espaço14 - e especificamente em relação ao conceito de espaço - ele se opõe à imagem neutra criada pelas representações científicas, que pressupõem um observador onisciente e transcendente, localizado hipoteticamente acima do mundo – algo a que Ingold dá o nome de "a ilusão cartográfica" (2000:219-42). Para ele, apesar de cientistas se engajarem com o mundo em suas práticas de campo, como em qualquer outra prática de conhecimento, nada disso aparece no produto final: o mapa científico. Em sua tentativa de produzir uma representação precisa e abrangente da realidade, cientistas criariam um mundo congelado e silencioso. Seria impossível falarmos de paisagem sem tratarmos da materialidade dos envolvimentos no e com o mundo – elementos vivos e inorgânicos, que, em suas trajetórias e relações, compõem o lugar. A paisagem ingoldiana é, assim, o mundo para aqueles que o habitam, conforme eles o habitam, e, como o ato de habitar não é estático, mas composto por 14

Terra, por se tratar de um conceito quantitativo e homogêneo, oposto à heterogeneidade qualitativa das paisagens perguntamos "quanto há" sobre terra, mas "como são" sobre paisagens. Ambiente, por ser fruto da separação ocidental entre o mundo de fora, da realidade dada, revelado pela ciência natural, e o mundo de dentro, da cultura e da cognição, revelado pelas ciências humanas (INGOLD, 2000: 190-2).

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movimentos, ritmos e ciclos, a paisagem não seria forma, mas um processo inacabável formado pelos desdobramentos no tempo do campo das relações entre os elementos que a compõem. Apesar da potência dessa formulação, ela impõe uma fronteira, mantendo a paisagem limitada a seus habitantes. Creio ser possível levarmos a sério e nos inspirarmos por ela, mas avançarmos para além de uma caracterização da ciência ocidental como produtora de falseamentos da realidade. Será importante permanecermos atentos a duas dimensões, ao tratarmos de ciências: suas práticas e seus efeitos. Em relação às primeiras, segundo as propostas da antropologia da ciência e da tecnologia (cf. MONTEIRO, 2012), ao consideramos as trajetórias e experiências dos cientistas e artistas nas paisagens que percorreram, mesmo que temporariamente, devemos estar atentos a como essas imaginações, conhecimentos, textos e imagens foram construídos com as paisagens, tendo sido afetados por elas e pelos diversos elementos que as compõem, ao mesmo tempo em que os afetaram. Edward Huijbens e o antropólogo Gísli Pálsson (2009), em uma análise sobre a produção de conhecimento sobre terras alagadas islandesas, mostram como, ao mesmo tempo em que a produção de mapas emergiu das práticas e trajetórias dos cientistas em campo, as paisagens foram transformadas, conforme cientistas e funcionários do Estado as percorreram e as modificaram15 - o que nos leva à questão dos efeitos. As missões e seus produtos posteriores, ao circularem pelas instituições científicas e estatais, produziram efeitos práticos sobre as paisagens e não apenas representações: estradas, cidades, pastos e parques foram construídos onde a paisagem foi percorrida e pensada pelas ciências e pelo Estado. Há, portanto, potencialidade, materialidade e temporalidade tanto no ato de habitar, conforme desenvolvido por Ingold, como

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Assim como ocorreu com o Cerrado, os significados das terras alagadas islandesas foram fluidos, com a transformação da percepção da paisagem do interior da Islândia de um deserto inóspito, selvagem e perigoso no foco do avanço da agricultura moderna, por um lado, e de preservação ambientalista, por outro.

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no ato de imaginar. Essas questões justificam nossa análise sobre a história das expedições que imaginaram o Cerrado, a partir não apenas de suas dimensões simbólicas, mas também das dimensões materiais e temporais presentes nos processos de constituição do conhecimento. 4) Objetivos: Quando nos referimos ao Cerrado, como categoria do pensamento social brasileiro e das ciências, podemos partir de algumas questões: Quais camadas históricas se encontram por trás deste nome e de sua classificação? Quais imagens e narrativas foram produzidas a seu respeito e que se encontram relacionadas às suas atuais caracterizações e imagens? Que elementos foram silenciados nessa produção? De que forma o Cerrado foi imaginado em relação a outras paisagens, mais antigas ou diferentes, e em relação a quais elementos humanos e não-humanos? Nossa hipótese é que houve um conjunto de transformações de categorias do pensamento social brasileiro: primeiro com a naturalização do "sertão", por meio de discursos e práticas científicas, depois com sua transformação em "Cerrado". Como defendemos ao longo do texto, se o sertão era a contraposição negativa do litoral, com a formação do movimento ambientalista por cientistas e funcionários públicos, o cerrado tornou-se a contraposição negativa da floresta e da civilização urbana e pastoril na virada entre os século XIX e XX. Com sua ocupação pelo Estado nacional, após a demarcação e construção de Brasília, foi também imaginado como uma paisagem a ser preservada – um “bioma”, em oposição à “terra vazia”. Sendo assim, o objetivo deste projeto é analisar narrativas e imagens que deram origem a e se originaram de tais processos, com foco em missões naturalistas, suas trajetórias e produtos, a partir de relatos de viagens, estudos, mapas, fotografias, desenhos, pinturas, obras publicadas. Partimos de uma concepção de ciência que é construída de forma conjunta com a sociedade, a

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cultura e agentes e instituições estatais - fatos, objetos e imagens científicas sobre a natureza são coproduzidos com os imaginários sociais sobre o mundo (FRANKLIN, 1995; LATOUR, 1984). Selecionamos quatro missões e a inauguração de Brasília como ponto de partida: (1) A missão de Martius: o processo formativo da Flora Brasiliensis, devido a sua influência nas narrativas e descrições do território brasileiro, imaginado como nação durante o Império - com foco especificamente no trecho de sua viagem ao Planalto Central e no primeiro volume da Flora (mapa e estampas). (2) A missão de Warming: o processo formativo de suas obras sobre ecologia e sobre o cerrado (Lagoa Santa e Plantesamfund), a partir de sua experiência em campo, seus relatos, desenhos, fotografias. (3) As missões de demarcação de Brasília de Cruls (1892) e Coelho (1946): com especial atenção aos trechos dos relatórios, mapas, fotografias, relatos de campo que tratam da paisagem do cerrado. (4) Discursos e imagens da construção de Brasília durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961): com destaque à ocupação do Cerrado (como terra vazia) e sua preservação (como reservas naturais), momento em que funcionários, cientistas e artistas ligados às instituições nacionais se voltam a essa paisagem. Nosso olhar se centrará, nesse caso, nas imagens da construção, como de Gautherot e Farkas; documentos de discussões e processos históricos, que levaram à demarcação dos parques em 1961. A meta é, a partir da seleção destes momentos e viagens, perceber como narrativas científicas e imagens criaram e foram criadas por imaginações do território durante a formação das classificações das paisagens nacionais, suas ambiguidades, complexidades, valores, generalizações. A partir da leitura do material, a análise recairá sobre os trechos relacionados especificamente à paisagem dos campos e cerrados. A partir da discussão teórica, podemos traçar algumas perguntas sobre os relatos e imagens selecionados: como as trajetórias e as experiências dos atores pela paisagem estiveram presentes na produção dos materiais? Em que medida é 17

possível pensar que a experiência em campo e nos elementos humanos e não-humanos que influenciaram a produção de conhecimento? Em que medida as trajetórias e os produtos modificaram a paisagem e foram modificados por ela? 5) Metodologia: Partimos de análises sobre imaginações modernas de alteridades espaciais feitas por Stepan (2001), Pratt (2008), Lima (2013), Williams (2011), Thomas (2010) e Schama (1996), que discorreram sobre as invenções dos trópicos, sertões, campos e natureza selvagem a partir de olhares estrangeiros e de elites imperiais e nacionais, com foco em especial na análise dos discursos e imagens de viajantes, cientistas e artistas. Selecionaremos o material relevante a nossas perguntas a partir dos arquivos e do material publicado e nos guiaremos por um olhar antropológico para analisarmos o conhecimento científico e pictórico em sua produção, retirando do silêncio os processos construtivos das práticas: as materialidades, processos, trajetórias e engajamentos no e com mundo e seus elementos humanos e não-humanos (INGOLD 2000). Ao falarmos sobre o passado, os relatos de viagens são importantes fontes para a análise das práticas de produção de conhecimento, sendo um corpus bastante heterogêneo de narrativas, justamente por estarem repletos de ambiguidades, descontinuidades, subjetividades (cf. FRANCO, 2011; JUNQUEIRA, 2011). Será da maior relevância avaliar como, longe de serem retratos fiéis do mundo que narravam, eles permitem um acesso parcial aos processos constitutivos dos conhecimentos dos viajantes. Como a antropóloga Fernanda Peixoto (2015) se perguntou em seu livro acerca das trajetórias de cientistas sociais, podemos nos perguntar: "(...) como recuperar no objeto acabado - nos registros e materiais impressos - as linhas, os gestos e as derivas que lhe deram origem? (...) As viagens, e as produções que elas geram -

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correspondências, diários e escritos de ocasião; relatos e anotações; desenhos e fotografias mostram-se um acesso valioso para a recuperação desses processos" (p. 23). Nos apoiamos em formulações sobre imagens que não as tratam como meras ilustrações e reflexos das obras científicas em que estão inseridas. Imagens produzem conhecimento e concepções do mundo tanto quanto os textos; são formas e recorrências pictóricas e figurativas, que circulam e produzem efeitos sobre outras imagens e conhecimentos (SCHWARCZ, 2014). Analisaremos, assim, as imagens produzidas durante as missões científicas, atentando às práticas e técnicas de sua produção, às circunstâncias de sua produção, seus usos e circulação, bem como as escolhas, esquecimentos, motivações por trás de suas constituições (SCHERER, 1995). Essa leitura da produção do conhecimento, resgatando a fase constitutiva e a fase estabelecida, permite ao analista permanecer alerta para como locais específicos de produção são traduzidos em objetos, imagens e textos. Esses objetos, por sua vez, percorrem redes extensas para além de seus próprios campos, formando processos de conhecimento e prática com e sobre o mundo (FRANKLIN, 1995: 174; LATOUR, 2000). 6) Cronograma e plano de trabalho: Atividades/Ano

1o.

2o.

3o.

4o.

Leitura do referencial teórico Pesquisa e leitura das fontes escritas publicadas Pesquisa e seleção de imagens e fontes escritas em arquivos Qualificação Organização do material Análise do material Escrita da tese

- 1o ano: pesquisa e leitura inicial das fontes textuais (primeiro volume da Flora Brasiliensis de Martius; Lagoa Santa de Warming; relatórios técnicos das missões demarcatóricas de Cruls e 19

Coelho); dos relatos das viagens que lhes deram origem; das imagens (gravuras e pinturas do primeiro volume da Flora, mapas e fotografias dos relatórios técnicos). Obras originais e traduções disponíveis em São Paulo e Rio de Janeiro (Biblioteca Brasiliana, Bibliotecas da USP, Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, IHGB, Instituto Moreira Salles). - 2o ano: pesquisa em arquivos sobre Brasília, sobre a demarcação dos parques nacionais e a construção de Brasília. Obras disponíveis no Rio de Janeiro (CPDOC-FGV, Instituto Moreira Salles) e Brasília (Arquivo Público do Distrito Federal, IBGE, Ministério da Agricultura, M. do Meio Ambiente, IBAMA). Pesquisa em arquivos estrangeiros de imagens e relatos de campo das missões de E. Warming no Jardim Botânico de Copenhague, onde está localizado seu arquivo pessoal. 7) Bibliografia: Fontes: BURGI, Sergio & TITAN JR., Samuel (org.). 2010. Brasília/Marcel Gautherot. São Paulo: Instituto Moreira Salles. BRASIL, 1948. Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital. Relatório Técnico. Rio de Janeiro. 3 v. e anexo, in: . CRULS, Luis. 1947 [1892]. Relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. GAUTHEROT, Marcel et al.. 2001. O Brasil de Marcel Gautherot: fotografias. São Paulo: Instituto Moreira Salles. HOOKER, W. J. 1841. "Martius on the Botany of Brazil" in: The Journal of Botany, v. 4. London: Longman, Orme & Co., & William Pamplin, Jr.: 1-37. IBGE, s/d, "Biomas" MARTIUS, K. F. P. von. 1996. A viagem de von Martius: Flora brasiliensis, vol. I. Rio de Janeiro: Editora Index. MARTIUS, K. F. P. von; FENZL, E.; FLEISCHER, F. (org.). 1906. Flora Brasiliensis (15 vol.). Leipzig. Digitalizado e disponível em SAINT-HILAIRE, Auguste. 1937 [1848]. Viagem às nascentes do Rio S. Francisco e pela provincia de Goyaz. São Paulo: Companhia Editora Nacional. __________. 1975 [1830]. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp. SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Karl Friedrich Phillip von. 1979 [1823-1828-1831] Viagem pelo Brasil (1817-1820). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp. WARMING, Eugen; FERRI, M. G. 1973. Lagoa Santa e A vegetação de cerrados brasileiros. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp. 20

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