PROJETO PÉROLA: PROCESSO DE CRIAÇÃO DE TODOS E CADA UM

May 22, 2017 | Autor: Regina Barbosa | Categoria: Fashion design, Sustainability
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Descrição do Produto

PROJETO PÉROLA: PROCESSO DE CRIAÇÃO DE TODOS E CADA UM

PROFA. ME. REGINA BARBOSA[1]

Universidade Anhembi Morumbi – [email protected]



Resumo

O texto a seguir apresenta as discussões em torno da produção autoral e
coletiva em Design de Moda, a partir do processo vivenciado pelo Projeto
Pérola para realizar a edição de 2015 denominada Pérola:Pétala. Toma-se o
diálogo como proposição para gerar processos de criação autoral coletiva,
entendendo que, nesse exercício contínuo privilegia-se o projeto de todos a
partir da construção dos processos individuais.

Palavras-chave: Design de Moda; Processos de Criação; Diálogo; Autoria
Coletiva



Introdução

Com o presente artigo deseja-se observar processo de criação em Design de
Moda em que se desenvolve discurso autoral, porém realizado em grupo. A fim
de ilustrar o que se entende por autoria coletiva, toma-se o Projeto
Pérola, desenvolvido na Universidade Anhembi Morumbi por um grupo de
voluntários formado por professores, alunos e ex-alunos dos Bacharelados em
Design e Negócios de Moda e que envolve também voluntários dos cursos de
Cosmética, Música e Dança.

O Projeto Pérola compreende o desenvolvimento de looks a ser desfilados
pelas pacientes do Hospital Pérola Byington[2], em tratamento ou remissão
de câncer, a ser apresentados no Desfile da Primavera e integra o
calendário de ações do Outubro Rosa, mês de conscientização e combate ao
câncer de mama. A parceria entre Universidade e Hospital acontece desde
2011, mas desde 2012, a Universidade abriga o evento, primeiro no campus
Centro e desde 2013 no campus Morumbi, onde estão a maior parte dos cursos
da Escola de Artes, Arquitetura, Design e Moda. Assim, a cada ano, foi-se
construindo o evento, as linguagens a ser trabalhadas, a identidade visual
de cada coleção apresentada e o programa de trabalho dos grupos
responsáveis por criação, beleza, cenografia, logística e comunicação,
cujos processos e projetos são discutidos conjuntamente.

Assim, entende-se que o grupo é autor do projeto em todos os seus aspectos,
dos mais evidentes aos mais sutis. Para fins de articulação deste artigo, o
enfoque será sobre o realizado pela equipe responsável por criar e
confeccionar os looks desfilados no ano de 2015.





Design de Moda como Área de Diálogo

A Moda é entendida popularmente como o espaço do efêmero, da sazonalidade,
do culto ao consumo. Porém pode-se partir da lógica do Design de Moda, para
produzir crítica ao próprio meio. Apropriando-se da linguagem da profissão,
pode-se propor a materialização não só de discurso, mas das realidades que
se constroem dinamicamente, num tempo-presente.

Se as realidades se constroem dinamicamente, também a imagem deve propor
uma reflexão dinâmica a respeito dos modos e os meios de fazer Design.
Propõe-se partir da imagem do trabalho de Maurício Ianês, exposto na
Bienal de Arte de São Paulo em 2008 e denominado Área de Diálogo (figura
1.)



Figura 1: Área de Diálogo – (Maurício Ianês, 2008 – Bienal de Arte de São
Paulo)

https://www.flickr.com/photos/artexplorer/3097435181



No que tange à linguagem e é reproduzido nesta obra, o diálogo é um
exercício equilibrado, entre iguais (ou indivíduos que se compreendem como
iguais em algum momento, numa relação em que as hierarquias se dissolvem) e
que se abrem às propostas, vivências e experiências dos outros.

Tendo em vista que o Design é, fundamentalmente uma prática
interdisciplinar e que, de acordo com Coelho (2008, p.188) "possui vários
papéis e funções, e se constitui como um leque de atividades que exigem
interação, interlocução e parceria com vários sujeitos e suas visões de
mundo", toma-se o diálogo como exercício de contaminar e deixar-se permear
por contaminações e que transforma, gerando algo novo, a partir do
desenvolvimento de relações orgânicas entre informações, que potencializam
os desvios, insurgências, sensações, abrindo espaço para que experimentos
se manifestem.

Cecília Salles parte "do conceito de criação como rede em processo" (2014,
p. 19) para propor os processos de criação como dinâmicos, inacabados e
relacionais, ou seja:

Essa visão do processo de criação nos coloca em pleno campo
relacional, sem vocação para o isolamento de seus componentes,
exigindo, portanto, permanente atenção a contextualizações e ativação
das relações que o mantém como sistema complexo." (SALLES, 2014, p. 22)

Assim, já se aponta para o diálogo como prática construtiva e propositiva
em que o designer obtém "informações abstratas, muitas vezes ineficazes
para promover a ação, e torná-las reais e adequadas, para desencadear novos
comportamentos" (Fletcher e Grose, 2011, p. 158), que, muitas vezes não
cabem nos moldes das relações tradicionais de ensino-aprendizagem.

É do desencadeamento de novas proposições comportamentais que se repensa as
questões de autoria, afinal, parte-se desse lugar da criação como rede
complexa em permanente construção. O autor é visto como "distinguível, mas
não separável dos outros, pois sua identidade é constituída pelas relações
com os outros; não é só um possível membro de uma comunidade, mas a pessoa
como sujeito tem a própria forma de uma comunidade" (Salles, 2014, p. 151).


Ora, se essas relações são possíveis, também é possível repensar a
hierarquia num grupo criativo, e considerar o projeto coletivo como
possível, em que o autor é grupo, não como um amálgama, mas como uma
reunião de sujeitos que, no diálogo, se colocam num plano comum. Para que
isso possa acontecer, intui-se que a proposta deva ser maior que os
indivíduos, bem como o desejo de cada um dos sujeitos de vivenciar a
experiência da produção conjunta e assim, trocar e dialogar.

Pérola:Pétala como exercício de diálogo

Tome-se por princípio que a atividade do designer de Moda compreende mais
do que projetar "roupa", e mesmo projetar roupa é muito mais complexo do
que a construção de um artefato que cumpre uma função objetiva e imediata –
cobrir o corpo. É responsabilidade do designer de Moda não apenas a solução
do problema "vestir", mas também oferecer ao usuário um mediador entre si e
o mundo, aquilo que Hundertwasser denominará segunda pele (RESTANY, 2008).
Essa segunda pele invariavelmente produz discursos, possibilitando
aproximações ou afastamentos com o meio. A nós interessa a produção de
segundas peles que, oriundas de diálogo e reflexão, produzem crítica sobre
a própria indústria da Moda, em seus aspectos mais atrozes, como a
sazonalidade, a produção maciça de itens de vestuário descartável e a
promoção de padrões de beleza inatingíveis.

Assim, parte-se de uma história contada em primeira pessoa, do singular e
do plural, pois é minha e se mistura com a de Priscila, Paulo, Jade,
Eloize, Faride, Carmelina, Nawira, Miriam, Maria... Coube-me tecer esse
texto para recontá-la.

Fazemos todos parte de um grupo de gente que trabalha com linhas. Deixamos
nossas linhas se misturarem umas às outras, num emaranhamento à primeira
vista desordenado, mas, que como a vida, é apenas dinâmica demais. Talvez
porque uma linha não é pouca coisa: a mesma palavra define um elemento de
linguagem visual que dá sentido e direção, contorna e conforma, dá limite.
A linha do bordado desenha na superfície do tecido, feito de linha – que aí
se chama fio. A linha da escrita desenha palavras que bordam histórias na
superfície da folha. A linha-fio do tecido faz superfície e ainda tem a
linha do tricô e do crochê, criando malha. Daí ser tão fácil perder a linha
e, na tentativa de desembaraçar, encontrar outra ponta de linha para
amarrar.

Retomando o fio da meada, um dia Faride e Carmelina bateram à porta de
Eloize. Pediam ajuda para vestir Marias de primavera. Eloize chamou Miriam
e Adriana, Regina, Rafael, Fabiane, Fernanda. Fernanda, canhota, sabia
fazer crochê, free form, apaixonado pelo erro. Eloize, Miriam e Adriana
também sabiam fazer crochê e aprenderam a não usar receita. Regina só sabia
bordar. Aprendeu tricô. O crochê veio depois. Paulo aprendeu antes, ensinou
uma porção de gente a fazer ponto pipoca. Virou o menino que faz crochê.
Jade também sabia e veio fazer parte do grupo. Quis umas agulhas mais
grossas, bonitas, em madeira. O pai da Jade fez e todo mundo quis. Celina,
de quem não havia falado ainda, sabia fazer tudo. Costurar, bordar,
tricotar, crochetar, dar ponto invisível, um jeitinho aqui e outro ali. E
assim, com essas e outras pessoas, foi se formando a equipe de criação
daquilo que, desde 2011, denomina-se Projeto Pérola.

Desde o momento em que Eloize aceitou o convite de Carmelina e Faride, a
linha-guia do Projeto é a Resiliência, conceito tomado de empréstimo da
Física, não apenas pelo campo do Design como também pela Biologia
(especificamente pela ecologia), por exemplo, e refere-se à capacidade que
os organismos têm de se recuperar quando submetidos a alguma adversidade.

Tal conceito relaciona-se com o grupo de "modelos" atendidas – assim entre
aspas mesmo, uma vez que são as pacientes do Hospital Pérola Byington que
desfilam as peças. Os corpos são perfeitos, perfeitamente normais, nem
Giselles, nem Naomis, nem Lindas: Marias. Grandes, pequenas, gordas,
magras, com, sem ou apesar dos cabelos. Cansadas, risonhas, chorosas. Todas
carregam suas cicatrizes, linhas desenhadas à força em seus corpos. Nenhuma
delas é igual à outra, nenhuma história é igual à outra. Em comum elas têm
esse desejo que é maior que a cura: são resilientes.

Resiliência também é um conceito relacionado à sustentabilidade, conceito
norteador dos projetos dos dois bacharelados em Moda da Universidade
Anhembi Morumbi, e que foi adotado também para orientar o Projeto Pérola,
na medida em que têm-se optado pelo uso de materiais têxteis cuja
composição tenha a maior porcentagem possível de fibras naturais, e também
pelo resgate de saberes e fazeres manuais, tais como o tricô e o crochê,
retomando práticas quase esquecidas, em que se aprende trocando, não apenas
conhecimento, mas sobretudo, afeto.

Afeto, aqui, é a justa palavra, pois abarca não apenas a emoção, mas tange
também à percepção de que cada participante afeta e se deixa afetar pela
causa, pelos colegas, pelas pacientes. Desenvolver projetos, para este
grupo, é uma prática complexa, completa e compartilhada.

Na edição de 2015, intitulada Pérola:Pétala, os 22 vestidos desfilados
foram confeccionados por designers voluntários, com círculos de crochê. A
forma escolhida faz menção aos ciclos, aos movimentos desenhados pelas
agulhas, às mandalas, às rodas de conversa, ao próprio feminino e ao
aprendizado dos fazeres manuais. A cor eleita para a cartela foi o rosa, em
todos os seus tons.

Trabalhou-se em fios 100% algodão, em grande parte cedidos pelo SENAI[3] de
São Paulo. Outros fios foram utilizados, com a mesma composição. Os fios
crus foram tingidos, antes ou depois da confecção das peças, com cascas de
beterraba, jabuticaba, flores e frutas in natura e uma diversidade de chás
industrializados, resultando em rosas mais ou menos intensos, dependendo do
processo, do tempo de cozimento, dos materiais empregados.

Para realizar o projeto, os designers foram divididos em pequenos grupos,
responsáveis por um número pré-determinado de peças. Percebeu-se que,
trabalhando com os mesmos materiais, mesma técnica, com os mesmos dados do
projeto e para um mesmo público-alvo, ainda assim, as interpretações são
mediadas pelo repertório do sujeito criador e isso impacta no resultado do
confeccionado. Assim, cada produto deste projeto é único e virtualmente
impossível de ser reproduzido.

Contudo, ao trabalhar nestes pequenos grupos, o diálogo entre os sujeitos
possibilitou uma troca em que aprendizado e ensino acontecem numa mesma
medida e repertórios são ampliados a partir do emaranhamento das
experiências.

O que acontece, com esses repertórios não é possível de medir, porque, como
diz Kazazian (2005, p. 31) "o um e o todo interagem de maneira que não se
pode entender um conjunto de elementos (...) como sua simples soma, mas
como um todo ligado, cujo projeto ultrapassa essa soma".





Figura 2: Dona Ivone veste Pérola:Pétala (Imagem cedida por Ana Paula Page
Munaretto)

Da mesma forma, não cabe falar do vestido da Jade, da Priscila, da Eloize,
mas do Projeto, resultante do conhecimento fundamentado na experiência da
troca.

Considerações finais (por enquanto)

O Projeto Pérola é isso: uma proposta em que se vivencia coletivamente o
processo de propor soluções e discussões que vão além do produto e da
finalidade. Para isso se realizar, continuamos exercitando a criação e o
aprendizado coletivo cujos percursos permitem explorar combinações entre os
fazeres manuais - tricô, crochê e bordado – e o ensaio de modelagens
experimentais, em que se embaralham as histórias das modelos/pacientes com
as dos designers envolvidos no projeto.



Figura 3: Pérola:Pétala (Imagem disponível em
https://www.facebook.com/modaeresiliencia/photos)



Aliás, é preciso muita paciência, pois a discussão também toca a questão do
tempo, e assim, também são trabalhados memórias e afetos, e, ao buscar esse
lugar de pertencimento, a organicidade e o enredamento tornam-se mais que
possibilidade. São fatos concretos, bem como as retificações, as correções
de rumo, as diferenças de percepção e interpretação.



Figura 3: Pérola:Pétala (Imagem disponível em
https://www.facebook.com/modaeresiliencia/photos)

De toda forma, não se faz a partir dele a negativa do valor do Design de
Moda, mas percebe-se a necessidade de discutir o meio, suas práticas e o
próprio papel social do designer de Moda enquanto propositor de soluções e
discursos.

Referências Bibliográficas

COELHO, Luiz Antonio L. (org) Conceitos-Chave em Design. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio. Novas Ideias, 2008.
FLETCHER, Kate GROSE, Lynda; (Org.). Moda & Sustentabilidade, Design
Para Mudança. São Paulo: Editora Senac, 2011.
KAZAZIAN, Thierry (org). Haverá a Idade das Coisas Leves – São Paulo:
Editora Senac, 2005.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. São Paulo:
Editora Vozes, 1987
PLAZA, Julio TAVARES, Monica; Processos Criativos com os Meios
Eletrônicos: poéticas digitais – São Paulo: Hucitec, 1998.
RESTANY, Pierre. Hundertwasser: o pintor-rei das cinco peles - Editora
Taschen, 2008.
SALLES, Cecilia Almeida. Redes da Criação: construção da obra de arte.
São Paulo: Editora Horizonte, 2014.










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[1]Docente dos Bacharelados em Negócios e Design de Moda da Universidade
Anhembi Morumbi, Bacharel em Negócios da Moda com Habilitação em Design de
Moda e Mestre em Design pela Universidade Anhembi Morumbi. Doutoranda em
Design pela mesma instituição. Ministra as disciplinas ligadas às
visualidades e à expressão por meio do Desenho e demais expressões
plásticas bidimensionais além de orientar projetos interdisciplinares e
Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC). Na pós-graduação, leciona Processos
Criativos.



[2] Hospital do Sistema Único de Saúde, referência em tratamento de câncer
feminino, localizado na cidade de São Paulo, SP. Para mais:
http://www.hospitalperola.com.br/

[3] SENAI é a sigla para Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial e, de
acordo com o descrito no portal, "configura-se como sistema estruturado em
base federativa, que desenvolve ampla gama de programas de formação
profissional, buscando atender às carências da mão-de-obra industrial
brasileira, sempre em função das peculiaridades de cada região do país."

Para mais: http://www.sp.senai.br/senaisp/institucional/127/0/o-sistema-
senai#sthash.TFn4aGCT.dpuf
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