Prometeu entre dois mitos: tragédia e psicanálise

October 7, 2017 | Autor: Patricia Horvat | Categoria: Psychoanalysis, Ancient Greek Tragedy and its Reception, Prometheus Bound
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Prometeu entre dois mitos: tragédia e psicanálise Author(s:

Quinet, Antonio; Horvat, Patricia

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

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7-Dec-2014 14:20:54

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PROMETEU ENTRE DOIS MITOS: TRAGEDIA E PSICANALISE'

Antonio Quinet Patricia Horvat

...

Resumo: Apresentamos III1 W leitura da tragedia Prom eteu A correntado, tracando pa ralelos com 0 mitofreudiano de Totem e Tabu . Busca mos ana logias entre o comportamento de Zeus narrado na tragedi a e 0 do pai primevofreudiano em relacdo a seus descendentes, demonstran do qlle, em certa medida, e p ossivel ap ontar; 110 mito cunhado p or Freud, lima estrutura narrativa que se aproxima de passagens da tragedia. Encontramos elementos passiveis de comparaciio presentes tanto em Prometeu Acorrentado, em sua relacao com Zeus, quanto na relacao dos fi lhos com 0 pa i da horda pr imitiva: a submissdo atirania , a castra cao simbo lica e a instituicdo da Lei. Palavras-chuve: Tragedia ; Psica nalise; Prometeu A correntado; Lei; mito.

' " 0 efeito tragico, diz-se, apoia-se na oposicdo entre a vontade onipotente dos deuses e a va resistencia que a ela opoem os ho-

• Recebido em 02/05/2013 e aceito em 14/06/2013 . • * Psicanalista, psiquiatra, dramaturgo e doutor em Filosofia pela Universite- Paris VIII - Vincennes. Eo Analista Membro da Escola (Ame) de Psicana lise dos F6runs do Campo Lacaniano , professor adjunto do Programa de Pos-qradu acao em Psicanalise, Sauce e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida e colaborador do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Eo fundador e diretor da Cia Incons ciente em Cena . *** Art ista plastica, mestre em Filosofia e em Psicanalise, Doutoranda do Programa

de Pos-qraduacao em Psicanalise, Saude e Sociedade da Universidade Veiga de Alme ida, sob a orientacao do Prof. Dr. Antonio Quine!. Eo pesquisadora do Nucleo de Representacoes e de Imagens da Antiguidade da Universi dade Federal Fluminense (Nereida/UFF) e do Nuc leo de Estudos e Referencias sobre a Antiguidad e e 0 Medievo (Nero/UN IRIO).

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mens ameacados pela desg raca ; os esp ectadores, profunda mente comov idos, aprenderiio , com 0 drama, a submeter-se a vontade dos deuses e a comp reender a sua p ropria impot encia. (FREUD, AE , IV 1991, p.270)

Sigmund Freud revela, em suas obras, uma tipica erudicao antiquario-filologica, marca dos scholars de seu tempo, cujas raizes se encontram no Romantismo alemao, Em seus textos encontramos , geralmente de forma especulativa e nao sistematica , referencias a autores e a obras da Antiguidade como Herodoto , Flavio Josefo, Homero, Hesiodo, Horacio, Ovidio, Sofocles, Epicuro, Esqui lo e Esopo. Do mesmo modo, deuses, herois e diversas personagens gregas, egipcias e romanas pululam em diferentes citacoes e situacoes: Hercules , Jupiter, Juno, Osiris, Nefertiti, Narciso, Zeus, Cleopatra, Clitemnestra, Hermes, Prometeu , por exemplo, sao nomes que compoem uma lista de tamanho consideravel, Desse modo, e notavel 0 interesse pelo mundo antigo e suas representacoes no pensamento de Freud, e a presenya da Antiguidade - como era concebida e construida entao - em seus textos. Sabemos que uma tragedia grega em particu lar fomeceu 0 mite que, reinterpretado por Freud, se tomou 0 num en tutelar da psicanalise e sua pedra fundamental , Oedipous Turannos, 0 Edipo-Rei; de Sofocles que, para Aristoteles, representava 0 modelo perfeito do drama tragico (Poet. XI. 2 passim). A reinterpretacao drastica da lenda de Edipo tomou-o um paradigma da experiencia humana para a teoria e pratica psicanaliticas, e Simon Goldhill, sobre este tema, e esclarecedor: POI' que entiio Edipo desemp enhou tal papel para Freud? Duas respostas imediatamente surgem. Primeiro, 0 nome "Edipo" resumia convenientemente as emocoes amb ivalentes e violentas do desejo entre filhos e pais que Freud considerou a crise emocional no desenvo lvime nto inicial de qua lquer crianca. Em segundo lugar; ele recon heceu na tragedia grega 0 tip o de conversa, explorato ria e poderosa, que demanda va a psicandlise. Freudfoi exp licito sobre sua divida. A acdo em Edipo -Rei, ele escreve, descreve "utn processo que pode ser comparado ao traba lho da psicanalise " . A dolorosa e obstinada busca de Edipo pOI's i mesmo, que passa p elo questionamento do passado ate 0 motnento em que foi conce bido, lembra a

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Freud 0 trabalho da analise. As repetidas imagens de "solucionar charadas ", "rastrear pegadas ", "cacar a verdade ", por meio das quais a busca de Edipo Ii descrita, foi tambem, obviamente, 11111 atrativo. (GOLDHILL, 2007 , p.2 61) Podemos dizer que Freud viu na tragedia de Sofocles e em seu efeito sobre 0 leitor/espectador a expressao do desejo que ele encontrou no inconsciente - no seu proprio e no de seus pacientes. Para ele, 0 gozo (GeI nuss) do espectador consiste em ver, no palco , esses desej os realizados. 0 metodo psicanalitico foi prop osto com o uma investigacao da verdade que o sujeito, tal como a personagem Edipo , consc ientemente reluta em ver. No sso interesse se volta, aqui, para outra tragedia, Prometheus Desmotes, 0 Prometeu Acorrentado, buscando apontar aspectos da relacao de subordinacao das per sonagens, e da figura do prot agonista, 0 tita Prometeu , em sua revolta con tra a figura de central de poder, Zeus , assim como sua tentativa de destitui-Io de sua posicao de soberania. Partimos do pressuposto de que a psicanalise se desenvolveu em estreita relacao com a interpretacao da trag edi a. Esta nao apenas fom eceu metafor as com as quai s Sigmund Freud expr essou suas idei as e con clu soes, deri vadas de seus estudos ede sua pra tic a analitica, ma s fundamento u verdadeiros modelos teoricos, que sao bem-sucedidos ate nosso s dias na abo rdagem teorica e na clinica psicanalitica. Assim como a tragedia poe em cena os mitos da Ant iguidade grega, Freud criou um mito que constitui um elemento fundador da teoria psicanalitica, que articul a os ambito s individu al e coletivo de todo sujeito hum ano : o mito do assass inato do Pai, fundador da Lei e da civilizacao, A luz desse mito e de outros conceitos psicanaliticos, observaremos a trag edia P ro meteu Acorrentado, atribuida a Esquilo."

Prometeu e

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Prometeu Acorrentado

o tita Prometeu tem um importante papel em narrativas que dao sent ido a vida hum ana no mundo. Na Teogonia de Hesiodo (ca. 750 - 650 a.Cc), por exemplo, ha quase cern versos destinados ao conflito entre Prom eteu e Zeus (vv. 521-616): 0 astuto Prometeu, no banquete de Mecone, tenta enganar ao Olimpic o destinando a melh or parte do animal sacrificado aos seres hum anos, seguindo-se a retaliacao de Zeu s; 0 roubo do fogo por Pro-

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meteu e a entrega deste elemento divino a humanidade, e a "punicao" que sobreveio na forma de uma nova criatura, a mulher, e a prisao do "ladrao" numa col una, etemamente torturado por uma aguia a devorar seu figado. A suprema inteligencia de Zeus e ai destacada, e a mensagem e clara e reforcada pela titanomachia dos versos seguintes (vv. 617-720): nao e possivel evitar seu poder. Nos Erga (Os Trabalhos e os Dias) , novamente Prometeu ocupa grande parte do poema, e e desenvolvida a figura de Pandora ("todos os dons") , a explicar a miseria da condicao humana. Os esforcos de Prometeu em beneficio da humanidade resultam, invariavelmente, em sofrimentos para ele e para suas criaturas. No seculo V a.C., Prometeu ressurge para nos em plena cena literaria 3 e dram:itica: em Platao (Prot. 320-323), por exemplo, que reafirma 0 Tita como urn mito de criacao da humanidade; na comedia siciliana Pyrrha (fr. 114-22), de Epicanno, e no Prometheus Pyrkaeus, de Esquilo (472 a.C) , obras que dramatizavam 0 banquete de Mecone, dentre outros exemplos que anteciparam a tragedia Prometeu Acorrentado, dedicada ao deus honrado no festival ateniense da Promethia (GRIFFITH, 1983, p.2-5). Nessas diferentes versoes, a figura do Tita assoma polissemica, ora eticamente dubia, ora urn modelo de dignidade contra a opressao de Zeus, mas sempre grandiloquente. E a versao dramatica da tragedia Prometeu Acorrentado, potencializando os efeitos pateticos do conflito entre Prometeu e Zeus, dominou a cena teatral e literaria nos seculos futuros, com base na dicotomia entre 0 "protetor da humanidade" e 0 "tirano opressivo" , " A sinopse da tragedia apresenta 0 tita Prometeu como protetor dos seres humanos, a quem concedeu 0 fogo roubado de Zeus e ensinou as artes. Zeus, como punicao, ordena Cratos, Bias e Hefestos a acorrenta-lo na Citia (ao norte do Mar Negro), regiao escarpada e selvagem, perto do mar e fora dos limites do espaco humano. Prometeu esta preso rocha e ali permaneceo Como nao deixa a cena, toda a acao tern de vir a ele, e a peca consiste em dialogos entre 0 Tita e seus visitantes. A peca, portanto, se desenvolve a partir dos dialogos Cratos/Hefestos, Oceanos/Prometeu, Prometeu/lo, Hermes/Prometeu e Prometeu/Coro das Oceanides, As marcacoes temporais da peca sao vagas, por exemplo, 0 roubo do fogo por Prometeu aparece como tendo ocorrido muito antes do nascimento de 10, enquanto 0 universo diegetico da peca situa-se em urn tempo nao muito distante da vit6ria de Zeus sobre Chronos, na mais remota origem da humanidade, 0 que e uma contradicao temporal, posta que 10 vive num tempo mitico em que seres

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humanos ja constituiram cidades e reinos , mas a coerencia cronologica nao e uma exigencia do mito, tampouco do inconsciente, tal como aparece nos sonhos e em suas associacoes.

o conteudo espiritual de uma cultura tern no mito sua expressao mais espontiinea e 0 que perm ite a compreensao e a atua lizacao dos seus significados e 0 estudo das matrizes da imaginacao, que atuam como motivacao, proposito e modelo para as acoes, As alegorias miticas e as peripecias dramaticas transportam tambern determinadas representacoes inconscientes, como no caso do Edipo. 5Nesse sentido , a interpretacao das categorias instituidoras dos valores eticos, reiteradas nos mitos gregos e postas em cena pelas tragedias, se prestaria a interpretacao do mundo contemporiineo. A encenacao da tragedia e, por urn lado, 0 lugar especular em que se estabelece 0 olhar vigilante da polis. A cena que se oferece a visao tern a funyao de ver 0 publico e fazer crer que ve cada espectador individualizado, lancando sobre ele as suas expectativas. Por outro lado, 0 espectador reconhece sua propria imagem, reconhece sua incongruencia em relacao a vontade da cidade e sua impotencia em relacao ao dever-ser, e se reconhece no conflito do her6i dividido entre tal vontade e suas pr6prias determinacoes, o espectador e seduzido pela cena, ve 0 que ele mesmo aparentemente nao sabia e passa a assumir, pela identificacao com as personagens e com a reayao do publico, urn determinado pape l, inserindo-se num universo comum de significacoes. A tragedia the envia uma mensagem mora l de nao ceder a sua hy bris e nao cometer qualquer hamartia, e, assim , adaptar-se as leis da p olis. Por outro lado, a tragedia the possibilita, pela catarse, urn tratamento de suas pulsoes, conflitos e desej os, j a que se identifica, pelo terror ou pela compaixao, com 0 destino do protagonista. Para pensarmos os eventos simbolicos da tragedia, no sentido que ora nos propomos, e necessario considerarmos a importancia fundamental que a psicanalise confere a ideia de Pai, ponto de partida para a instituicao da ideia de Lei. A representacao do Pai como Lei e, na psicanalise, urn conceito universal com validade sensivel, mais do que l6gica , significando a obstaculizacao e, ao mesmo tempo, a instit uicao do desejo singular. i Zeus, que em outras tragedias superstites representa a j ustica e a sabedoria, e, em Prometeu Acorrentado, apresentado como um poder novo, recem -instaurado, com a supremacia do poder tiranico, e doravante simbolizara a figura paterna. Os mitos de Prometeu e de 10, sua interloc utora no terceiro episodio, podem ser considerados fundantes por funcionarem no momenta

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de fixacao de urn substrato cultural que implica a instauracao da ordem estatal da polis, portanto, a associacao das ideias de Pai, Lei e Ordem, em oposicao a Mae, Impulso e Caos, construindo urn antagonismo que cria instancias linguisticas a dialetizar. A construcao de valores eticos a partir da oposicao binaria se estabelece e e consoli dada pelos rituais de passagem a que sao submetidos os cidadaos da polis desde a puberdade . Prometeu,pro methis, tern 0 poder de ver adiante, de ver 0 futuro, esta, no universo cenico dessa tragedia, colocado fora do convivio de todos, isolado do mundo dos deuses e dos mortais , mas exposto a visitacao e a visao de todos , que, segundo ele, se comprazem de seu sofrimento . No entanto , parece ser 0 mundo 0 que gira em tome do protagonista que, como urn ima titanico , atrai a passagem de visitantes, todos interessados naquele que desafiou 0 grande Zeus , detentor do poder, recem-vitorioso da Guerra de Titas que Ihe garantiu 0 dominic sobre os deuses e sobre 0 mundo, comportando-se como 0 jovem tirano denunciado por Prometeu. 0 tita detem 0 conhecimento que fara, no futuro e a partir da pacificacao da violencia de Zeus, com que 0 grande deus se consolide no poder e se tome 0 que sera na religiao grega: 0 principio da sabedoria, a representacao do Grande Outro, da Lei como ambito da verdade. Zeus, representado na peca, entao, como tirano, esta constantemente atento a Prometeu, a tal po~to que, no final da tragedia, envia seu filho e fiel escudeiro Hermes para descobrir 0 segredo do seu futuro, que s6 Prometeu sabia e que Ihe garantiria govemar etemamente .

Prometeu recusa -se a revelar seu segredo a todos os visitantes , resistin do a bajulacao de urn (Oceano) e as ameacas de outro (Hermes) . Contudo, revela-o, sem maiores detalhes, a 10, personagem que compartilha, com 0 protagonista, a condicao de vitima do poder de Zeus, 0 grande Outro que legisla . Eis 0 segredo: 0 grande deus sera destronado pelo mais poderoso de seus filhos do mesmo modo que Chronos, seu pai, destronara Uranos , de quem era filho, num verdadeiro cicio de parricidios simb61icos (posto que os deuses sao imortais) que caracterizava a luta pelo poder e pela hegemonia na "origem dos tempos". Procederemos a exposicao de dialogos selecionados da peca e a sua comparacao com algumas consideracoes extraidas do mito freudiano descrito em Totem e Tabu, alem de breves remetimentos a outros trabalhos do criador da psicanalise, cujos ternas se aproximam da ternatica aqui pontuada. Pretend emos fazer uma abordagem nao exaustiva, pois a tragedia e polissemica, permitindo outras e distintas abordagens.

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Prometeu Acorrentado entre dois mitos Uma passagem de Psicologia das Massas e Analise do Eu pennite uma via de acesso a interpret acao do universo diegetico da tragedia: Dissemos que seria possiv el especificar 0 ponto do desenvolvimento mental da humanidade em que a passagem da p sicolog ia de grup o para a psi cologi a individualfo i alcancada tamb em pelos tnemb ros do grupo. Para essefim, de vemos retornar p or um mom ento ao mito cientifico do p ai da hordaprim eva. Elefo i posteriorment e exa ltado como criador do tnundo, e com justica, porque pro duzira todos os fi lhos que comp useram 0 primeiro grupo. Era 0 ideal de cada um deles, ao mesmo tempo temido e hom-ado , 0 que conduziu mais tarde it ideia do tabu. Esses num erosos individuos acabaram por se agrupat; mata ram-no e despedacaram-no. Ning uem do grupo de vitoriosos p odi a tomar 0 se u lugat ; ou, se algum 0 f ez, retomaratn-se os combates, ate comp reenderem que deviam todos renunciar it heran ca do pai. Formaram entdo a comunidade totemi ca de irmiios, todo s com direito s iguais e unidos p elas proibicoes totem icas que se destinavam a preservar e a exp iar a lembranca do assassinato. No entanto, a insatisfaciio com 0 que fora conseguido ainda permanecia e torn ou-se fo nte de no vos desf ech os. As p essoas que estavam unidas nesse grupo de irmdos gradualmente chegaram a uma revivescencia do antigo estado de coisas, em novo nive!. 0 macho tornou-se mais uma vez 0 ch ef e de uma f am ilia e destruiu as prerrogativas da gin ecocra cia que se estabelece ra durante 0 p eriodo em que ndo havia pai. Em compensacdo, ele, nessa ocasido, pode ter reconhecido as divindades materna s, cujos sacerdotes eram castrados para a proteciio da mde, seg undo 0 exe mp lo que fo ra fo rnecido p elo pai da horda primeva. Contudo, a nova fam ilia era apena s uma som bra da antiga; havia um grande num ero de p ais e cada um deles era limitado p elos direitos dos outros. (FREUD, AE XVIII , 1991, p.128)

Com tal modelo em mente, relembramos 0 universo mitico no qual se insere Prometeu Acorrentado : no inicio , havia Kh60s, escuridao em que os limites sao indistingui veis . Do seio de Caos surgiu Gaia , a Mae-Terra, que e 0 seu contrario, a prim eira delimitacao espacial. A Terra cria, en-

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tao , sem concurso de nenh uma outra potencia, Ouranos (Ur ano), 0 Ceu , e Pontes, a Agua (HE Sfo DO. Teog. 1). Urano "deitou-se sobre Gaia",e a cobriu de tal modo que seus filho s nao podiam nascer. Ceu e Terra eram, entao, indi stinto s, mas Gaia ressentia-se de Urano, seu filho e marido, e sofria com as dore s provocadas pelos filhos presos em seu interior. A Terra, entao, entregou um a foice de ouro ao mai s poderoso dos filhos presos, nao nascidos, e 0 ensinou a afa star Urano de seu ampl exo infinito. Esse filho era Chronos (Tempo), que ergueu 0 bravo do interior de Gaia e castrou seu pai. Ao sentir dor, Ur ano se afasta da mae-esposa, e todos os demais filhos , os Tita s, sao libertados , assim como Ceu e Terra sao sepa rados. Podemos fazer urn paralelo com 0 mito freudiano , segundo 0 qual , " (i..) o pai da horda primeva, devido a sua intolerancia sexual, compeliu todos os filhos a abstinencia, forcando-os assim a lace s inibidos em seu s objetivos, enquanto res ervava para si a liberdade de gozo sexual , permanecendo, dess e modo, sem vinculos" (FREUD, AE XVIII, 1991 , p.132 ), e consideramos que,

( oo) No tnito de Totem e tabu , 0 pa i primitive , que impedia 0 goz o de todos os seus fi lhos, pois se reservava 0 direito de po ssuir todas as mulheres, Ii morto por eles. Esses mesmos membros da hora iriio instaurar a interdicd o da endogatnia, erigindo um totem que sitnboliza 0 pai motto. E assim niio se goza da mae em memento algum . Mas esse tnito faz aparecer 0 gozo do Pai e seu poder de coaciio. (QUINET, 2004, p.l33) Diferente do mito freudiano em que os filh os se unem e matam 0 pai, no mito grego ha uma mentora do crime, Gai a, e apenas urn dos filhos, Chronos, ataca 0 pai. Se no mito do Totem e Tabu 0 pai e morto, aqui 0 pa i e castrado, mas em ambos os casos e seu poder que e destituido. Gaia, portanto, assume que 0 filho possui os atributos que a liga vam ao inarido. Ela e a mentora da castracao de Ur ano , que substitui, optando pelo phallus, poder, do filho , com a perversidade de indu zir 0 outro realizacao do pr6prio desej o. Ha uma competicao entre as forcas parentais, e a castracao operada obl iquamente pela ma e mantem urn equilibrio de forcas . Esse jogo de poderes sera resgatado em cada geracao de parricidas, casados sucessivamente com deusas cujos nomes vern seguidos do nome "Gaia", 7 a ma e primeva, que acabara por suprimir 0 falo imaginario de urn marido e da-lo a urn filho , sobre 0 qual tern ingerencia ,

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No teatro do mundo passa a reinar Chronos , 0 Tempo, casado com sua irma, a tita Rea, chamada tambem Rea-Gaia. Este, ciumento de seu poder, nao confiava nos filhos, pois, por sua propria experiencia, urn deles poderia sucede-lo no poder. Assim que tinha urn filho, engolia-o e 0 escondia na barriga. A deusa Rea, irma e mulher de Chronos, insatisfeit a com esse comportamento, planejou libertar os filhos. Quando 0 novo filho, Zeus , estava prestes a nascer, Rea se escond eu dos olhos do marido -irmao e pariu clandestinamente, entregando-o as ninfas Naiades, divindades das grutas , que se encarregaram de esconde -lo e cria-lo nas profundezas de Gaia, a avo. Mas Chronos exigiu que Rea lho entregasse. Assim , a conselho de Gaia, Rea apresento u a Chronos uma pedra enrolada em fraldas , chamando a atencao do marido para a sua fragilidade . Chronos, impulsivo, engoliu os panos e a pedra juntos - toda a geracao dos filhos de Chronos e Rea estava em seu estomago , junto com a pedra - e, conform e os pianos de Gaia, sentiu dores de estomago. Rea, entao, the ofereceu urn pharmakos, urn vornitorio. Mal Chronos 0 engoliu, vomitou a pedra e os filhos. Todos os filhos libertados se reuniram a Zeus, e teve inicio 0 que foi chamado de "Guerra dos Titas" , urn enfrentamento universal que se prolongou por tempo indeterminado. 0 teatro do mundo estava dilacerado . Zeus, seguindo os conselhos de Prometeu, soube que, para veneer, tinha de contar com a inteligencia, e nao com a forca bruta, pois Chronos era mais forte que todos. Nao seria a violencia que desempenharia 0 papel determinante nessa guerra, mas sim a inteligencia que, ate entao, fora apanagio de Gaia. A balanca, entao, comecou a pender para 0 lado de Zeus , que se estabeleceu no alto do Monte Olimpo, e, segundo Freud: "Foi talvez nessa epoca que algum individuo, na urgencia de seu anseio, tenha sido levado a libertar-se do grupo e a assumir 0 papel do pai" (FREUD , AE XVIII , 1991, p.128). Na peca, Prometeu relata que: No insta nte mes mo de chegar a indignaciio/ao coracdo dos de uses, enquanto a discordia/crescia entre e/es - uns nutrindo a ideia/ de exp ulsar Chronos de seu trono cobicado/para que Zeus 0 su cedesse no poder ./outros lutando p ara que Zeus ndo reinasse/ sobre todo s os mortais sem exceciio -laos divinos Titas.fi lhos de Urano e Gaia.r achei con veniente dar conse/hos sa bios/e p referindo a presunco sa fo rca bruta /mas fui malsucedido. Desdenhando a asttic ia/em sua estup idez, e/es imaginaram/qu e niio lhes custaria muito sofr imen-

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to/conquistar a vitoria pela violencia/]. ..} Tentei explicar/a meus irmiios Titds com fortes argumentos/mas nenhum deles se dignou sequer a olhar-me .Znaquela conjuntura, pareceu-me logo que seria melhor ter minha mite por mim .rtomando 0 partido de Zeus, qu e de bom grado.rme recebeu como aliado. So por isso/e gracas aos meus pIanos, utn negro antro/do Tartare profundo oculta para sempre/o muito antigo Chronos com seus proselitos. (vv. 199-221)

No auge dessa guerra entre as forcas divinas, Zeus lancava seus raios, titas se precipitavam sobre titas, e 0 mundo retomou a estado caotico. 0 Ceu desabou novamente sobre a Terra, e 0 mundo retomou a desordem original, quando nada tinha forma. Depois da vitoria de Zeus, baseada na astucia prometeica, ele decidiu, entao, recriar 0 mundo, refazer urn mundo organizado. Todos os deuses e deusas foram chamados a reordenar 0 mundo, e a cada urn coube uma tarefa especifica, que deveria ser realizada sem demora. Aos titas Prometeu e Epimeteu coube reorganizar 0 mundo dos seres terrenos . Zeus lhes dera urn prazo para 0 cumprimento da tarefa, e uma serie de dons e atributos para distribuirem entre os seres. Prometeu , 0 deus que conhecia 0 futuro, e Epimeteu, 0 deus que conhecia 0 passado, partiram pela extensao de Gaia, a Mae, cumprindo a sua tarefa. A cada ser foi dado urn lugar para viver, urn habitat natural. A cada urn foram concedidos dons e atributos que lhes permitissem a vida no mundo. Encerrada a tarefa, os titas retomaram ao Olimpo e se apresentaram a Zeus. 0 grande deus 1hes perguntou se haviam cumprido sua parte na montagem do mundo, e Epimeteu 1he respondeu que sim. Foi entao que Zeus lhes informou que nao haviam cumprido integralmente sua tarefa, pois a urn unico ser nao fora destinado urn lugar no mundo. Os titas esqueceram-se de urn ser pequeno, fragil e desprovido de encantos. E Zeus lhes apresentou este ser esquecido, sem lugar, 0 anthropos 8, 0 ser humano, o ser "deslocado" (sem lugar). E 1hes disse que nao havia mais tempo nem restava qualquer dom. Seria necessario, entao, eliminar 0 anthropos, pois era fragil e em nenhum lugar conseguiria sobreviver. Epimeteu, que tinha o conhecimento do passado, concordou com Zeus: realmente, aque1e ser nao poderia sobreviver em nenhum lugar do mundo. Prometeu, que tinha 0 conhecimento do futuro, ousou discordar de Zeus. Na tragedia, Prometeu relata sua versao dos acontecimentos, justificando seu "ato de castracao" do fogo sagrado de Zeus-pai:

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{ ..} depois de sentar-se no trono/ de seu p ai Chronos, Zeus distribuiu aos deuses os diferentes privileg ios e cuido u/de defin ir suas atribuicoes.Zbdas nem por um fugaz mom enta ele pensou/nos mortais eastigados p elas desventuras./O se u desejo era extinguir a raca humana/afim de erial' outra inteiramente nova./Somente eu, e mais ninguem, ousei opo r-me/a tal projeto impi edoso ; apen as eu/a defendi; livrei os homens indefesoslda extinciio total, pois consegui salvo-los de/serem esmagados no profundo Hade s. (vv. 228-236)

Sentindo-se responsavel pelo destine daquele ser deslocado, decidiu nao elimina-lo do mundo. Prometeu sabia, tambem, que nao bastava manter 0 anthropos vivo, pois, quando fosse solto no mundo, sucumbiria imediatamcntc, tamanha era a sua fragilidade e sua [alta de habilidade . 0 tita nao tinha qualquer dam natural para dar ao ser humano , tampouco restava qualquer lugar no qual instala-lo , mas havia algo que the poderia ser dado e, entao, surrupiou uma centelha do raio de Zeus, 0 fogo, e entregou ao ser humano. Nao todo 0 fogo de Zeus, mas apenas 0 suficiente para que aque le ser sem lugar pudesse sobreviver e criar urn mundo e urn habitat para si mesmo. Com esse elemento, Prometeu concedeu ao ser humano a esperanca: "livrando as seres humanos do medo da morte, dando-lhes a esperanca" (v. 248). 0 Corifeu dialoga com Prometeu: COl:: Entiio

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fo go luminoso, Prometeu ,

esta hoje nas miios desses seres efem eros ? Prom.: Com ele aprenderdo a pratiear as art es. Cor: Fora m essas as queixas que levaram Zeus... Prom .: ... a inflingir-me este tormento sem alivio! COl:: Teu infortunio ndo tera limite, entdo? Prom.: Nen hum; tudo depende dos eap riehos dele. (vv. 253 -258)

Segundo Freud, em Aquisic;ao e Controle do Fogo (1976) ,0 roubo do fogo (atributo falico) par Prometeu, pro methis, equivale a uma subtracao ou castracao simbolica, que inquieta Zeus, e urn prenuncio de uma derrocada de Zeus pela humanidade aculturada, assim como uma competicao entre Prometeu e Zeus:

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(..) em termos analit icos, diriamos que a vida instintua l - 0 id - e deus que e defraudado quando se renuncia a extincdo do fogo : na lenda, 0 desejo humano transforma-se em privilegio divino. No entanto, na lenda, a divindade ndo p ossui nada das caracteristicas do superego, ainda representa a vida soberana dos instintos. (...) E por que a lenda haveria de retratar utnfeito que era um beneficia para a civilizaciio como sendo um crime que merecia castigo? Ora, se, malgrado todasas distorcoes, transparece 0 fato de que a aquisicdo do controle dofogo pressupoe uma renuncia instintual, a lenda, p elo tnenos, niio mantem em segredo 0 ressentim ento que 0 heroi cultural niio deixaria de suscitar nos homens movidos p elos instintos. E isto esta de acordo com 0 que sabemos e esp eramos. Sabemos que a ex igencia de renunciar ao instinto, e a coerciio dessa exigencia, despertam hostilidade e agress ividade , que so se transform am em sentimento de culpa em umafase p osterior do desenvolvimento ps iquico. (FREUD, Std. XXIX, 1976, p .104-106) o

Centremo-nos apenas num aspecto desse m ito: Zeus vencera a Guerra dos Titas, com 0 auxilio de Prometeu que , contudo, ousou desobedecer ao novo rei, protegendo os seres human os. A afronta - ou 0 medo do novo govern ante de pe rder 0 pod er - leva-o a suprimir 0 poder de Pr ometeu, atando-o a rocha. Em termos psicanaliticos, podemos extrair dai a seguinte estrutura narrativa: 0 filho castra 0 pai ao subtra ir-lhe 0 fogo como simbolo (falico) do poder e, como consequencia, teme a retaliacao da part e del e. N o mito, a ameaca de castracao tem ida pelo filho ao desejar mat ar/ca strar o pai e realizada: ao roubar 0 fogo de Zeus, Prometeu tambem e "castrado" em sua liberdade, em seu po der de ir e vir, e punido com um castigo sem fim: "Observa bem este esp etaculo pungente./Eu , col aborador, eu, amigo de Zeus,lqu e 0 ajudei a instaurar-se no poder,lestou agora aqui , diante de teus olhos,lsofrendo esta agonia a que ele me suj eita !" (vv. 304 -306 ). Ao exercer 0 poder sobre Zeus, determinando a sua ascensao e, dep ois, trapaceando-o, ou seja, ao "castrar" 0 pai , a punicao retorna sobre Prometeu como outra form a simbo lica de castracao : a privacao da liberdade. Zeus, ludibriado por Prometeu - que, se 0 auxiliou a tomar 0 poder, ousou castra-lo-, vinga-se relembrando diariamente 0 seu poder, tal como um pai retaliador, reiterando para si mesmo e para todo s que nao fora vencido e, com essa fixacao , demonstrando quao traumatico fora 0 ato de supressao

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de Prometeu sobre ele; e Prometeu, que sobrevive vaticinando a derrocada definitiva de Zeus , a meno s que haja a reconciliacao, que , por sua vez , recuperara a validade do ato de castracao de Zeus. A situacao indica uma (mica saida: a vit6ria de Prometeu, corroborando, assim, a transmissao dos ensinamentos da moral civil izat6r ia que, por sua vez, consolidara Zeus no 9 poder, mas por ato de Prometeu, que assim 0 quis desde 0 inicio. Se considerarmos com Freud que 0 mito consiste na manifestacao do conteudo latente, propomos interpretar que Prometeu tenta igualar seus poderes aos de Zeus, substituindo a forca bruta pela metis e pelo poder transformador. Prometeu, que ensina as artes e as tecn icas, e 0 instituidor ideal da civilizacao, diferente de Zeus que , na tragedia, rep resenta um rei-deus pulsional de von tade pura. Segundo Freud, 0 movimento natural seria que , guerra apos guerr a pela tom ada do poder, um lider suplantasse 0 outro e, depoi s de cada vit6ria e instauracao de uma ordem, a persistencia do espirito da horda primitiva levaria a uma nova insurreicao e a uma nova suplantacao do lider, em uma violencia sem fim por aniqui lar e superar a figura representativa do Pai no parricidio simb6 lico. Esse poder, contudo, depende, para subsistir, do reconhecimento daqueles que the sao subordinados . Em Psicologia das Massas e Analise do Ell , Freud argumenta: ... As caracteristicas ominosas e comp ulsivas das formacii es grupais, que vent luz nos feno menos de sugestdo que as acompanham, podetn assim, com justica, ser remontadas sua origem na horda primeva. 0 Ifder do grupo ainda e 0 temido pai p rimevo ; 0 grupo ainda deseja ser governado pela forca irrestrita e p ossui uma paixdo extrema p ela autoridade; na exp ress do de Le Bon, tem sede de obediencia . 0 pai pritnevo e o ideal do grupo, que dirige 0 ego no lugar do idea l do ego. (FREUD. AE XVIII, 1991, p.128)

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Apesar de 0 pai primevo tiran ico ter sido assassinado, cada individuo do grupo situa 0 lider no lugar deixado vazio e, assim , se submete aos seus decretos com uma obed iencia cega e se revolta quando impe dido na execu
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