Propagando um desabafo

June 3, 2017 | Autor: Def Yuri | Categoria: Hip-Hop/Rap, Artigos, Viva Favela
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Propagando um desabafo Autor: Def Yuri | 05/12/2001 | Seção: Def Yuri

Caros leitores, a cada dia a vida apronta uma peça. Em todo esses anos dedicados ao Hip Hop, sempre me deparei com situações que me transferiam uma responsabilidade enorme e nunca amarelei. Sempre questionei, denunciei, reivindiquei, sempre botei a cara até mesmo quando os meus iguais tremiam. Fui crucificado, atacado, boicotado, mal interpretado, caluniado, alvo dos atos mais bestiais. Mesmo assim, não tinha essa de amarelar, eu fazia (e faço!) isso por acreditar que o Hip Hop não é brincadeira - é o foco da resistência, dos insurretos, é a energia vital para a recuperação dessa "nação de vencidos" cuja parcela majoritária agoniza, sem ter a quem recorrer. Ajoelhar não adianta mais. Dos céus só vem chuva (quando vem!) ou bala perdida, digo, bala achada. A mordaça se mostra eficiente e com isso, o fim se aproxima - é a ditadura do silêncio. A justiça é para todos, a vida também, o Hip Hop não é do povo? Quem faz parte do povo? Todos fazem parte. Para minha surpresa recebi um correio eletrônico de uma pessoa angustiada com as suas condições de trabalho e os tormentos que atingem a sua vida diariamente. "Quem seria essa pessoa?", me perguntei. Lendo o que estava escrito, observei que era um jovem e que, apesar das agruras, demonstrava ter uma ponta de esperança, ainda acreditava no futuro. Haverá o futuro? De repente, a ficha caiu. Quem me escrevia era um policial e, no seu texto, fui colocado como a única possibilidade de externar a sua indignação e os seus anseios. Quantos se encontram nessa situação? Amordaçados, acuados. Essa atitude ultrapassou a barreira dos preconceitos que nos separam, que separam a sociedade. Talvez fosse mais fácil ele me chamar de bandido ou sei lá o quê. Porém, ele se mostrou conhecedor da minha correria, da minha cultura. Essa pessoa que me escreveu foi muito corajosa e, obviamente, preservarei sua identidade por uma questão de ética e para evitar possíveis retaliações. E se elas vierem, foda-se! Devemos nos livrar das mordaças, amarras e tudo que nos mantém na inércia. O hip hop tem a responsabilidade de agir e sugerir mudanças. Faço a minha parte, e continuarei fazendo. E você que me escreveu saiba que o seu desabafo chegará onde você jamais imaginou, onde só as vertentes do hip hop chegam: é como diz o refrão de uma letra de rap: "Trema, sistema, trema". A seguir, leiam na íntegra a mensagem que me foi enviada: "Caro DEF Yuri: Há tempos venho acompanhando este importante veículo que é o hip-hop, uma cultura que mescla música, entretenimento, informação e denúncia. Seu trabalho frente ao cenário do Hip-Hop realmente impressiona, sua abnegação é notória. Mas o que motivou-me escrever-lhe foi - neste momento - a denúncia, a possibilidade de socorrer-me à sua coluna para desabafar-me, veiculando a voz de um profissional desiludido com seu ofício, que um dia imaginou exercê-lo com orgulho, dignidade e acreditando de fato estar contribuindo com a sociedade. Contudo, ao longo de alguns anos, e somando a experiência adquirida pela "escola da vida", vi meus anseios caírem por terra. Redigí então um desabafo, aqui corporificado, e espero que você possa fazer com que ele ganhe eco na sua importante coluna, que - como disse - venho acompanhando com apreço. Acredito na afinidade do Movimento Hip-Hop e Informação, no sentido de haver concretamente ligação entre a música, a denúncia, a informação, mas também a diversão, tudo isso caminhando junto em prol do povo. Isto é o rap! Isto é o Hip Hop! Por favor mantenha o meu anonimato. Forte abraço! UM DESABAFO! A sociedade sequer imagina o que realmente há por trás do binômio segurança pública e violência urbana. É claro que todos dirão que estão envolvidos fatores como desigualdade social, recessão, falta de perspectivas para os jovens, no que tange ao emprego, lazer e demais anseios (atualmente quase 2.000.000 de jovens entre 17 e 22 anos não têm ocupação (estudo ou emprego) definida, e ainda residem em "áreas de risco"). Entretanto, aqui refiro-me à máquina burocrática que age por meio do órgãos encarregados de exercer a importante missão constitucional da segurança pública. Ninguém está preocupado com a questão da

segurança pública. Na realidade, dela todos se lembram ou quando são vítimas - são roubados, furtados, agredidos, assassinados, estuprados ou violentados, pessoalmente ou seus familiares -, ou quando almejam disputar cargos públicos e/ou comissionados (gratificações etc.). Ninguém mais quer saber de segurança pública, do ponto de vista de quem a exerce, só atentam para a vitimologia. A própria sociedade vira as costas para esta problemática, ao discriminar o policial, não cobrando do poder público as ações necessárias para o bom desempenho da atividade policial, seja administrativa (polícia de prevenção, a cargo da PMERJ), seja investigativa e cartorial (polícia judiciária, a cargo da PCERJ), e por não valorizar o serviço policial, fazendo com que o policial tema trabalhar e sinta-se pouco à vontade para o exercício de sua função. Muitos policiais que eu conheço associam o cidadão àquele que indistintamente contacta os órgãos de defesa da sociedade (Corregedoria-Geral, Ouvidoria-Geral, Disque- Denúncia etc.) para reclamar dele quando -em tese - está errado. Digo em tese porque não há neste caso o princípio constitucional da presunção de inocência de culpabilidade. Quer dizer que se a vizinha aqui não vai com a minha cara, basta ela ligar para qualquer destes órgãos ou para o meu Comando, que estarei prejudicado. Isto é inconstitucional. (Bem, o que se dirá então da minha liberdade de expressão. Temo por ela!). Contudo, o cidadão raramente lembra-se do policial quando ele está presente, atuante, salvando vidas, socorrendo a quem precisar. Não cobram melhores salários e condições de trabalho para o profissional. Só cobram ações, só se mobilizam para reclamar dele. É claro que há maus profissionais. Isso é da natureza do homem, e se torna freqüente na PMERJ devido a promiscuidade entre polícia e bandido, pela natureza da função, que exige uma aproximação muito grande. É tentador para o policial lidar com gente que tem dinheiro, que pode oferecer-lhe algo que o serviço dele não lhe proporcionará. (Nota: não estou aprovando estas atitudes, sequer corroborando. Condeno-as veementemente). "Lá vem o verme me revistar!". "Puta que pariu, puliça filha da puta!". "Tem mais é que morrer!". "Safado! Só quer dinheiro!" E por aí vai. Muitas das vezes o cidadão é que está errado. Porta drogas, armas, objetos de procedência e licitude duvidosas (fruto de furto/roubo, contrabando/descaminho), irregularidade de documentação, ou mesmo ausência de documentos de porte obrigatório (vide CTB, legislação de trânsito), ou simplesmente está em fundada suspeita, justificando uma abordagem pessoal ou a bens particulares por parte do policial militar (vide Código de Processo Penal, art. 244 e segs.). Aviso logo: só tem mão de macaco. Só visam grana, pois esta área é muito fértil. Do Governador, passando pelo Secretário de Segurança Pública, pelo Comandante-Geral da PMERJ e pelo Chefe de Polícia Civil, e ainda pelos Comandantes dos Comandos de Policiamento da PMERJ (Capital, Baixada, Interior, e das Unidades Operacionais Especiais), todos só visam grana, algumas exceções se fazem presentes, mas no meio de tanto toletão, nada podem fazer. A carreira policial, mormente a do PM (principalmente esta), é uma das mais difíceis e estressantes que existe. Não tem dia nem hora para o trabalho: sábado, domingo, feriado (nacional, religioso, político), Natal, Ano Novo, Carnaval etc. Manifestação, greve, leilão na Bolsa de Valores, jogos em quadras e estádios, problemas no trânsito, eleições, mega-operações, solenidades. Tudo é com o PM. Ele segura tudo. E sendo atividade essencial, e ele sendo militar, existe algo chamado necessidade de serviço. Nisto ele se fode. Trabalha 24h, deveria descansar 48h (acho pouco), mas ou na primeira folga ou na segunda, "abraça" um extra (em qualquer uma das situações acima expostas). O mesmo ocorre com os profissionais que têm outras escalas de serviço. Isto revolta e desestimula. E tem mais: se você for bom, aí é contigo mesmo; mandam te chamar em casa, ligando para a casa do policial, ou mesmo enviando uma viatura da OPM (Organização Policial Militar) da área de policiamento de onde ele reside (é o chamado plano de chamada). Isto já aconteceu comigo diversas vezes. Não têm respeito com o seu descanso, sua folga, e às vezes com suas férias (há casos em que o PM não consegue gozá-las, tendo-se passado até mais de dois períodos aquisitivos, e você não tem hora extra ou qualquer outro benefício, simplesmente porque o serviço policial não é relação de emprego (celetista - CLT). Certa vez fiquei quase 20h em pé, sem encostar em nada, sem sentar, sem relaxar instante algum. O único momento em que eu relaxei um pouco foi quando sentei-me no capot do microônibus por 18 minutos para comer uma merda de uma quentinha (ou seria "friinha"?), que aliás não consegui comer a dita refeição devido ao meu paladar "requintado" (acho que até um mendigo reclamaria dela), bebendo um copo d'água. Neste dia, acordei bem cedo e cheguei no meu trabalho de modo a ficar "em condições de" às 05:30h. Cheguei em casa às 22:40h. Tem tanta coisa para ser dita sobre a PMERJ e sobre Segurança Pública que escreveria umas 40 laudas no mínimo sobre a temática. Para terminar, vou contar-lhe duas histórias: A primeira é sobre um policial de certa OPM (Organização Policial Militar) que reagiu a um roubo, vindo a matar um dos meliantes que tentavam levar sua moto (o outro fugiu ferido). O fato ocorreu no início do ano. Até hoje ele está sem sua pistola (Glock G25, .380 ACP). A arma está retida para perícia. E ele desarmado, tendo cautela ao deslocar-se, pois um dos marginais não morreu, e a vítima está devidamente qualificada nos autos do processo. A segunda história é sobre outro papa mike, que ao reagir ao roubo contra sua pessoa - os bandidos também queriam a motocicleta -, desferiu

impressionantes 12 (doze) tiros nas costas do marginal que montava na moto para fugir. Porra, o policial é meio burro! Ele sabe que só tem filho da puta comandando, que ninguém "segura" nada para ninguém, e corre o risco de responder por excesso culposo da legítima defesa (excludente de antijuridicidade/ilicitude). Sorte dele que o delegado ainda assim lavrou o auto de resistência, concluindo pela investigação que houve legítima defesa (o perito ou ele devem ter ocultado algumas perfurações!). Este também está sem sua arma desde o ano passado, quando ocorreu o fato. Isto é um absurdo! Não se pode dar o tratamento dado a um cidadão que se envolve em ocorrência policial - ao empregar arma de fogo -de igual forma ao policial, visto que esta é seu instrumento de trabalho. O mesmo se diga do policial que em serviço tem de atirar em algum marginal, e resolver assumir a ocorrência. Deve se preparar, pois via de regra o homem da capa preta não gosta de PM. E o pior é que quando o HCP (o juiz) é vítima de algum ilícito penal, não muda sua concepção acerca das dificuldades que enfrentam os órgãos encarregados de fazer cumprir a lei e de exercer a segurança pública. Casos como estes são incontáveis diante do quadro da PMERJ, que hoje conta com cerca de 40.000 profissionais na ativa. Parece que é um bom número mas não o é. Tem bairros que contam com menos de 1 (um) policial para cada mil (um mil) habitantes. Sei de um estudo que dissocia a redução da criminalidade do aumento do efetivo policial, porém o mesmo estudo envolve fatores complexos demais para que se faça uma abordagem neste documento, ainda que superficial. Com efeito, o aumento do efetivo, qualificado, bem treinado, bem remunerado, com apoio logístico total, e sobretudo motivado (vamos rever a legislação aplicável à PMERJ, sobretudo aquele Regulamento Disciplinar medieval?), teremos uma polícia mais atuante e produtiva. Não será mais o braço armado do Estado, e sim a Polícia Cidadã!" Dê sua opinião sobre esse artigo: [email protected]

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