Proposta de Pesquisa: Luta por Reconhecimento e Formação de Normatividade na Esfera Pública

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Proposta de Pesquisa Dissertação de Mestrado PPG-Filosofia, PUCRS

Luta por Reconhecimento e Formação de Normatividade na Esfera Pública1

Ítalo S. Alves

Resumo:

Habermas apresenta uma concepção problemática de esfera pública. A proposta deste projeto é pensar uma concepção alternativa do conceito, pautada sobretudo pela ideia de dissenso e luta por reconhecimento. O objetivo central é explicar como discursos normativos de interesse geral interagem entre si no espaço público e alcançam estatuto normativo.

Palavras-chave:

esfera pública; normatividade; dissenso; reconhecimento

1 A filosofia política nunca pôde se furtar a pensar a esfera pública – seja como processo ou como instituição, de forma descritiva ou normativa, orientada pelo consenso ou pelo dissenso. A convivência imperativa dos seres humanos entre si culminou, já na antiguidade, na necessidade de articulação de um espaço próprio para a discussão pública de normas orientadoras do comportamento da comunidade ético-política. É a esse espaço, compreendido de maneira preliminar e abstrata como de mediação entre a “sociedade civil” e o “Estado”, que pretendo me ater neste trabalho. Habermas, em 1962, ofereceu, com a publicação de Transformação Estrutural da Esfera Pública, um estudo que se tornaria paradigmático para a teoria crítica. Na obra, Habermas faz uma reconstrução histórica e conceitual da estrutura e funcionamento da esfera pública em seu modo burguês, compreendendo-a como espaço em que “pessoas privadas se juntam como público” para discutir as “regras gerais de governança” sobre as relações de trabalho e troca que têm lugar na sociedade civil (Habermas 1989). Restringindo seu objeto de estudo ao modelo historicamente situado da esfera pública liberal, o autor identifica como seu momento de declínio o final do século XIX e século XX. Democracias de massa dos estados do bem-estar social do século XX teriam feito com que a esfera pública, até então espaço de debate racional, se transformasse num campo de competição 1

Este texto é uma versão extremamente concisa e preliminar do meu projeto de dissertação de Mestrado. Está escrito em forma de proposições e teses que pretendo desenvolver oportunamente. A definição de muitos conceitos é pressuposta, o que pode dificultar a leitura para quem não é familiar com a área. Publico-o para que possa ser lido e criticado por quem quer que se interesse pelo tema. Sou grato pelos comentários, críticas e sugestões que surgirem a respeito da possibilidade de investigação, da pertinência do projeto, de sua organização e estrutura. Agradeço ao Prof. Thadeu Weber, ao João Engelmann e ao Guido Alt pelos primeiros comentários a uma versão anterior desta apresentação, que já busquei incorporar ao texto.

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entre interesses em conflito, em que organizações profissionalizadas passassem a interagir entre si somente, de forma a excluir o público do debate e constrangendo-o a formas formulares de participação política. 2 Por se limitar à análise de um modelo historicamente delimitado de esfera pública, críticos de Habermas apontam em sua abordagem uma concepção demasiadamente fixa e idealista do conceito, e põem em questão principalmente seu postulado sobre a possibilidade de igual participação pública nas deliberações coletivas sobre assuntos de interesse geral e a pertinência da busca pelo consenso como produto da deliberação pública (Calhoun 1992). Adicionalmente, parte-se do pressuposto de que uma filosofia descritiva da esfera pública contemporânea necessita dar conta de fenômenos de transformação da estrutura econômica e social das sociedades que tiveram lugar principalmente a partir do pós-guerra, em meados do século XX. O fim das grandes narrativas (Lyotard 1984; Fraser 2003) ou master signifiers (Zizek 2009) radicalizou o projeto moderno de justificação imanente, não-metafísica, da normatividade política e contribuiu para o solapamento de pretensões de ereção de perspectivas particulares à condição de verdade – política, filosófica artística etc. O declínio identificado por Habermas no modelo liberal de esfera pública burguesa pode ser identificado ao próprio declínio do público (Sennett 1992; Bauman 2001): A transformação trazida pela forma neoliberal do modo de produção capitalista aos modos de relação social e às concepções tradicionais de público e privado, sobretudo com a progressiva instalação de uma lógica privatista de governança no interior da instituição até então identificada com o público – o Estado –, teriam como consequência a universalização do privado como perspectiva de apreensão do mundo (Augé 2009), o que transformaria radicalmente a concepção moderna de público, coisa pública, espaço público, e traria a demanda por uma nova conceituação da esfera pública, inclusive a análise de sua própria possibilidade. 3 A ideia de deliberação tendente ao consenso, portanto, nos aparece como conceito ultrapassado, que não daria mais conta de pensar a formação pública da normatividade política em sociedades neoliberais complexas. A hipótese que se levanta neste projeto é de que a lógica de produção e interação de discursos normativos (i.e., discursos sobre a normatividade) pode ser mais bem compreendida por uma teoria que tome o dissenso como conceito central. O desenvolvimento dessa hipótese parte do seguinte material conceitual. 3.1. Nancy Fraser, em comento da conclusão de Habermas sobre o declínio do modelo liberal de esfera pública, oferece uma análise que pretende dar conta de articular formas alternativas do conceito, propondo uma noção de esferas públicas em disputa (Fraser 1990). No lugar da idealização conceitual de um modelo historicamente delimitado de esfera pública, propõe-se um conceito em que o conflito e o dissenso sejam seus elementos essenciais/constitutivos. Isto é, o próprio conceito de esfera pública, segundo essa visão, deve ser estudado enquanto submetido ao processo de interação de discursos normativos de interesse

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geral2 que tem lugar no espaço público. Em suma: o conceito de esfera pública se origina na esfera pública e só pode ser bem compreendido se considerada essa sua característica constitutiva. 3.2 O problema que se põe, ao adotarmos como conceito central o de esferas públicas em conflito, é o de como justificar que a lógica da esfera pública, como espaço de formação de normatividades, possua uma estrutura necessariamente conflituosa e que seu próprio conceito seja definido nesse conflito. Nesse sentido, dada a impossibilidade de estabelecer-se um critério a priori de adequação da efetividade política a um modelo ideal de esfera pública, levanta-se a hipótese de que esses discursos normativos de interesse geral sobre a esfera pública interagem entre si segundo uma lógica que pode ser explicada por uma teoria do reconhecimento. A proposta é adotar uma ontologia social relacional, de matriz hegeliana, para analisar a interação dos discursos normativos de interesse geral no ambiente de esferas públicas em conflito. Resumidamente, uma teoria do reconhecimento aplicada à esfera pública serviria para compreender que tal espaço, ao contrário da forma proposta por Habermas, não é marcado apenas por pretensões discursivas de validade, mas, sobretudo, por expectativas e demandas por reconhecimento. Como espaço de relações abstratas de reconhecimento recíproco, a sociedade civil é o espaço próprio da formação ou criação das normatividades, e deve seu caráter normativo à sua composição inter-recognitiva (Williams 1997; Alves 2015). No nível da efetividade política, essa composição inter-recognitiva se dá através da relação de grupos situados em suas reivindicações de normalização, ou “demandas por reconhecimento” (Honneth 2003; Fraser 2003), inclusive sobre a própria natureza dessa relação (i.e., sobre o que é a esfera pública). Resumidamente: discursos particulares buscariam alçar-se à condição de hegemônicos através da negação de discursos opostos; dos quais, vale dizer, seriam dependentes, à medida que almejam seu reconhecimento e de certa forma dele dependem. 4 Enquanto o ponto anterior busca responder à pergunta sobre a possibilidade mesma de uma teoria inter-recognitiva da esfera pública, o presente ponto inquire: Como se justifica que discursos particulares, em interação “dissensual” com outros discursos particulares, possam gozar de estatuto normativo? Em suma, se confirmada a hipótese do ponto 3, de que não existe conceituação possível de esfera pública anterior à luta por reconhecimento, a investigação tratará de explicitar a lógica por trás desse processo dialético, estudando duas propostas: 4.1 Normatividade pragmática: Estatutos normativos (normative statuses) seriam criados por atitudes normativas (Brandom 2014). Segundo esta tese, o que conferiria estatuto normativo a um discurso seria, em suma, o reconhecimento público de sua

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Por “discursos normativos de interesse geral” me refiro a discursos particulares (de grupos, normalmente) que dizem respeito a assuntos que se propõem como portadores de interesse amplo dentro de uma comunidade éticopolítica. Prefiro não delimitar de antemão a análise ao conteúdo “político” desses discursos, visto que o conceito de político pode ser diferente para cada um desses discursos particulares. Por exemplo, cristãos conservadores poderiam dizer que o político deve ser pautado por concepções éticas previamente definidas; feministas poderiam entender que o espaço do privado, ou doméstico, também deve ser politizado, e assim por diante.

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normatividade – a normatividade, portanto, seria necessariamente social e intersubjetiva (e de certa forma autorreferente). 4.2. Autoposição dos pressupostos: A esfera pública se organizaria segundo uma lógica de posição de seus próprios pressupostos, de forma retroativa/retrospectiva (Zizek 2009; Redding 1996). Trata-se de um argumento hegeliano de justificação, que busca explicar a forma pela qual reivindicações de normalização se transformam na norma e constituem retroativamente seu conceito. Os dois últimos pontos (4.1 e 4.2) ainda estão organizados de forma proposicional e sem maior justificação ou desenvolvimento. O interesse é valer-se das pesquisas empreendidas pelos leitores anglo-saxões de Hegel ao se debruçarem sobre a questão da justificação da normatividade. Penso sobretudo em Brandom, McDowell (Pittsburgh) e Pippin (Chicago).

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Referências Citadas

Alves, Ítalo S. 2015. “Direito Como Reconhecimento Em Hegel.” Monografia de Graduação, Porto Alegre: PUCRS. Augé, Marc. 2009. Non-Places: An Introduction to Supermodernity. Translated by John Howe. 2 edition. London ; New York: Verso. Bauman, Zygmunt. 2001. The Individualized Society. 1 edition. Cambridge, UK ; Malden, MA: Polity. Brandom, Robert. 2014. “A Hegelian Model of Legal Concept Determination: The Normative Fine Structure of the Judge’s Chain Novel.” In Pragmatism, Law, and Language, by Graham Hubbs and Douglas Lind. New York: Routledge. Calhoun, Craig J. 1992. Habermas and the Public Sphere. MIT Press. Fraser, Nancy. 1990. “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy.” Social Text, no. 25/26 (January): 56–80. doi:10.2307/466240. ———. 2003. Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange. New York: Verso. Habermas, Jürgen. 1989. The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Bourgeois Society. Translated by Thomas Burger. 1 edition. Cambridge, Mass.: The MIT Press. Honneth, Axel. 2003. Luta por conhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Translated by Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34. Lyotard, Jean-Francois. 1984. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge. Translated by Geoff Bennington and Brian Massumi. 1st edition. Minneapolis: University Of Minnesota Press. Redding, Paul. 1996. Hegel’s Hermeneutics. Ithaca: Cornell University Press. Sennett, Richard. 1992. The Fall of Public Man. Reissue edition. New York ; London: W. W. Norton & Company. Williams, Robert R. 1997. Hegel’s Ethics of Recognition. London: University of California Press. Zizek, Slavoj. 2009. The Parallax View. Reprint edition. The MIT Press.

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