Propriedade e o Problema da Pobreza em Hegel

July 18, 2017 | Autor: Ítalo Alves | Categoria: Poverty, Property, G.W.F. Hegel
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PROPRIEDADE E O PROBLEMA DA POBREZA EM HEGEL



(resumo expandido) Ítalo da Silva Alves† Thadeu Weber (orientador)‡

INTRODUÇÃO A propriedade, no desenvolvimento da Filosofia do Direito de Hegel, é a única forma que um indivíduo tem de manifestar sua subjetividade. A própria constituição da pessoa do direito se dá através da apropriação e do posterior reconhecimento

da

legitimidade

dessa

apropriação,

configurando

a

propriedade. Na sociedade civil, espaço por excelência da busca pelos interesses individuais, forças como a do mercado, através do trabalho e da troca, acabam por criar extremos: de um lado, muita riqueza; de outro, a falta de propriedade: a pobreza. Sendo a propriedade condição necessária para a concretização de um indivíduo como pessoa do direito, como fica a situação dos pobres? São excluídos da própria sociedade que gerou a desigualdade de que são fruto? Meu objetivo neste trabalho é desmonstrar o problema ético da pobreza, que surge na sociedade civil, e apontar caminhos para uma possível solução do problema a partir das categorias do sistema hegeliano. 1 PERSONALIDADE E PROPRIEDADE NO DIREITO ABSTRATO A Filosofia do Direito de Hegel tem como princípio orientador a ideia da liberdade. Nela, Hegel desenvolve um conceito de liberdade diferente do conceito negativo tradicional de origem liberal: de liberdade natural em oposição às instituições, em oposição ao Estado. O objetivo é superar o formalismo da razão kantiana e das teorias jusnaturalistas do direito, buscando uma fundamentação do político e do jurídico que considere o desenvolvimento próprio de um povo em um determinado momento histórico. A Filosofia do Direito é dividida em três “momentos” do desenvolvimento dessa ideia da liberdade: o direito abstrato, a moralidade e a eticidade. O direito abstrato é o primeiro, o nível de menor “determinação” da liberdade. É abstrato porque abstrai das condições sociais em que o direito se dá, ou das  † ‡

Apresentado na XXII Mostra Unisinos de Iniciação Científica, em 27 de maio de 2015. Graduando em Direito pela PUCRS. . Doutor em Filosofia pela UFRGS. .

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“determinações contingentes” do conceito do direito. O ponto de partida, neste nível, é o conceito de “pessoa do direito”, compreendida como a relação do sujeito consigo mesmo. É uma relação abstrata, pois é interna ao sujeito, não tem nenhuma determinação exterior. A partir de uma abstração conceitual de toda determinação contingente do conceito, podemos identificar um elemento comum a todas as pessoas, abstraindo de raça, cor, credo, gênero, nacionalidade etc. Mas o conceito de pessoa do direito ainda não é a totalidade do direito abstrato. A verdadeira constituição da pessoa, Hegel assim entende, se dá de forma relacional, necessariamente situada. Para evitar cair num solipsismo ao derivar o conceito de pessoa da relação dela consigo mesma, Hegel introduz o “imperativo do direito” (Rechtsgebot): “Sê pessoa e respeita os outros como pessoas” (PhR, §36).1 Na forma de mandamento, o imperativo ordena que, para que eu tenha a minha personalidade reconhecida, devo reconhecer a personalidade do outro. Devo reconhecer no outro uma vontade livre, da mesma forma que o outro a reconhece em mim. Para que reconheçamos um no outro vontades livres, essas vontades não podem mais se relacionar apenas consigo mesmas de forma interna, mas devem se exteriorizar. Esta exteriorização, Hegel entende, se dá através do instituto da posse. Não posso demonstrar minha vontade se ela for apenas interna a mim; também não posso destiná-la a outra vontade livre, pois dessa forma ela deixaria de ser livre. Minha vontade pode apenas ter como objeto uma coisa, a qual será “marcada com meu nome”. Isso é a posse. A posse, portanto, constitui uma relação minha com a coisa. Isto é, uma relação entre um sujeito e um objeto. Dessa forma, ela ainda não é cogente, não afeta ou obriga outras pessoas. A posse é particular, ainda não tendo atingido sua universalidade. Para que isso ocorra, e ela possa vincular outras vontades, deve ser reconhecida por essas vontades como legítima. Os outros devem reconhecer como válida a relação que eu estabeleço com a coisa—devem ver a coisa como extensão de mim mesmo (cf. PhR, §51). O reconhecimento pelos outros da minha posse configura a transformação do conceito de posse para o de propriedade. A relação de propriedade, portanto, não é mais entre uma vontade (uma pessoa) e uma coisa, mas entre pessoas. Ter propriedade significa ter a própria vontade reconhecida pelos outros em sua manifestação numa coisa externa. É importante que fique claro o papel da propriedade na manifestação da subjetividade de uma pessoa. A única forma de manifestar minha vontade, 1

Usarei a sigla “PhR” para me referir a HEGEL, G.W.F. Hegel’s Philosophy of Right, 1967.

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entende

Hegel,

é

através

da

posse,

que,

quando

reconhecida

intersubjetivamente, se tornará propriedade. A partir desse conceito, podemos dizer que a propriedade é constitutiva da personalidade. Ou, dito de outra forma, a personalidade só surge quando há propriedade. Por ser o meio de manifestação da vontade individual, a propriedade é eminentemente privada. A ideia de propriedade comum, portanto, colocaria essa manifestação de vontade em risco, e minaria o surgimento da personalidade. Hegel não entende o conceito de propriedade, como já pode ter ficado claro, como um conceito econômico, ou pelo menos puramente econômico, mas como um conceito ético. A propriedade é condição da personalidade. Aí está seu elemento normativo. Ter propriedade é constitutivo de um dever-ser. Para que a pessoa se constitua como tal, e tenha sua liberdade concretizada neste nível, é necessário que seja proprietária. É contingente quanto cada um possui, pois depende de vários fatores como a distribuição natural dos bens e a diligência individual, mas é necessário que todos possuam (cf. PhR, § 49). 2 SOCIEDADE CIVIL E POBREZA O movimento do Espírito Objetivo, isto é, da Filosofia do Direito, explicita a insuficiência do direito abstrato para dar conta da concretização do conceito do direito, o princípio da liberdade. Naquele nível, tínhamos um conceito muito precário e formal de justiça, haja vista sua abstração de todo o tecido social em que se encontrava. A única exigência era de que as pessoas se reconhecessem mutuamente como tais através da manifestação de suas vontades. Para que a liberdade seja efetivada, porém, é necessário que o conceito passe por níveis superiores de concretização. Num primeiro momento, a moralidade, esfera em que há a universalização da relação que até então se dava de maneira puramente particular. E, por fim, o conceito deve ser considerado no plano das instituições sociais, a família, a sociedade civil e o Estado, esfera que Hegel chama de eticidade. A eticidade é composta conceitualmente por essas três instituições: a família, a sociedade civil e o Estado. A família é o primeiro momento, de “substancialidade imediata do Espírito” (PhR, §158). Trata-se de um núcleo forte de reconhecimentos recíprocos; a instituição responsável pela formação (Bildung) da “segunda natureza”, de transformar o natural em social, ético. O segundo momento é a sociedade civil, que nos interessa em específico no tema deste trabalho. É neste momento em que o direito abstrato será “aplicado” e ganhará efetividade (cf. PhR, §209).

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A família não dispunha dos meios suficientes para que o indivíduo pudesse se realizar como tal, atingindo seus fins particulares. Este será o papel da sociedade civil, nível de dependência mútua que advém das relações particularizadas de trabalho e troca. Enquanto o critério de justiça do direito abstrato era que todos fossem proprietários, tão-somente, na sociedade civil, baseada nas relações interpessoais e na busca dos interesses particulares, se faz necessário que cada um tenha “o suficiente para sua subsistência” (PhR, §49). Sendo o reconhecimento, na sociedade civil, ainda ligado à propriedade e ao trabalho, surge o problema: como fica a situação daqueles que, por força dos institutos da própria sociedade civil, acabam desprovidos de propriedade? Qual é o status ético do pobre? Aquele que não tem propriedade acaba não sendo reconhecido na sua personalidade. É, portanto, excluído da sociedade civil a partir do movimento desta. A ideia de que neste nível o indivíduo poderia atingir livremente seus desígnios individuais acaba por se tornar um engodo. “Desprovidos de recursos e do reconhecimento que deles decorre, os pobres não possuem existência determinada ou status na sociedade civil” (WILLIAMS, 1997, p. 247). Surge o que Hegel chama de “populacho” (PhR, §240, Addition), a porção da população que é abandonada pela sociedade civil à contingência. A atomização característica dos indivíduos da sociedade civil cria essa incongruência—a instituição dedicada a fornecer os meios para a consecução dos fins individuais acaba por subverter a si mesma, criando extremos de riqueza e pobreza. Retorna-se a um nível da relação de dominação, semelhante àquela da dialética do senhor e do escravo, explicitada na Fenomenologia do Espírito.2 Como resolver a situação? Apesar da origem econômica da situação, o problema principal é de ordem ética, entende Hegel. O indivíduo, sem propriedade, acaba não sendo reconhecido como pessoa, portanto não atingindo suas potencialidades. Uma possível abordagem do problema, portanto, deve passar pela questão do reconhecimento. Se o reconhecimento não advém espontaneamente da sociedade civil, como criá-lo? Hegel entende que é necessária uma mediação institucional que supere a desintegração atomística da sociedade civil. Williams (1997, p. 252ss.) aposta no papel da corporação para este fim. Por “corporação” (Korporation) Hegel entende a entidade responsável pela representação, organização e “posicionamento” dos indivíduos dentro da

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É possível a interpretação do problema da pobreza como uma situação que daria margem à reivindicação do “direito de emergência” (Notrecht), o direito de afastar a ordem jurídica e moral para salvaguardar a própria vida (cf. PhR, §127). Williams entende que a pobreza pode invocar uma espécie de “situação de emergência perene”, que estaria acima, inclusive, do direito de propriedade (WILLIAMS, 1997, p. 249).

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sociedade civil. São associações responsáveis por salvaguardar os interesses de seus componentes. Uma espécie de sindicato, ou associação de classe. Na corporação o indivíduo tem sua atividade formalmente reconhecida. Afasta-se da pura individualidade e é reconhecido por si e pelos outros como ser social. A corporação é o caminho do indivíduo para a cidadania (condição de pertença a um Estado). A forma de reconhecimento que a corporação concede ao indivíduo é a “honra”, o reconhecimento do elemento universal na particularidade do indivíduo. Através da honra, diz Williams, as corporações “amenizam e redirecionam pelo menos algumas das forças que levam à superprodução e à pobreza” (1997, p. 256). A corporação, entende Hegel, é uma espécie de “segunda família” (PhR, §252). Através dela o indivíduo recebe educação, preparo e reconhecimento. CONSIDERAÇÕES FINAIS A corporação, entretanto, é um órgão pertencente à sociedade civil. E, como tal, não tem ainda um compromisso ético com a universalidade, da forma que tem o Estado. Até que ponto, então, pode a corporação dar conta, através do reconhecimento de seus membros particulares, de um problema que é universal, e de nenhuma forma restrito a alguma classe específica? É um ponto sensível dessa justificativa e demanda maior explicação. Os próximos passos deste projeto incluem uma melhor análise do papel das corporações em amenizar o problema da pobreza que se dá na sociedade civil. Levantar-se-á a hipótese de que apenas no Estado há a reconciliação da particularidade com a universalidade. O dever para com o combate a pobreza, como problema ético, seria do Estado. Deverá ser feito também um refino conceitual quanto ao próprio conceito de propriedade, com a proposta de uma distinção entre propriedade constitutiva de personalidade, isto é, aquela que se torna parte do conceito de pessoa, e propriedade não constitutiva de personalidade, aquela totalmente negociável por outros bens de igual valor de mercado. A primeira como um fim, objetivo da vontade; a segunda como um meio de satisfação de interesses e necessidades, portanto contingente.

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REFERÊNCIAS ANDERSON, J. Hegel’s Implicit View on How to Solve the Problem of Property: The Responsible Consumer and the Return of the Ethical to Civil Society. In: WILLIAMS, R. R. (Ed.). Beyond Liberalism and Communitarianism: Studies in Hegel’s Philosophy of Right. Albany: State University of New York Press, 2001. p. 185–205. CHITTY, A. Recognition and Property in Hegel and the Early Marx. Ethical Theory and Moral Practice, v. 16, n. 4, p. 685–697, 8 fev. 2013. HEGEL, G. W. F. Hegel’s Philosophy of Right. Tradução T. M. Knox. London: Oxford University Press, 1967. MCCUMBER, J. Contradiction and Resolution in the State: Hegel’s Covert View. Clio, v. 15, n. 4, p. 379–390, jun. 1986. RADIN, M. J. Reinterpreting property. Chicago: University of Chicago Press, 1993. WILLIAMS, R. R. Hegel’s Ethics of Recognition. London: University of California Press, 1997.

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