Propriedade Intelectual e a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial

May 23, 2017 | Autor: Carla Belas | Categoria: Patrimonio Cultural, Propriedade Intelectual
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BELAS, Carla A. . Propriedade intelectual e salvaguarda do patrimônio imaterial. In: Cáscia Frade, Lia Calabre, Maria Amélia Curvello, Rafael Nacif e Ricardo Gomes Lima. (Org.). Políticas Públicas de Cultura do Estado do Rio de Janeiro: 2009. 1ed. Rio de Janeiro: UERJ, DECULT, 2012, p. 17-29. A Propriedade Intelectual e a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Carla Arouca Belas1 A relação entre cultura e mercado é um assunto bastante controverso, principalmente no que diz respeito a comercialização de bens culturais de populações tradicionais. Se por um lado, a alternativa do uso do sistema de propriedade intelectual para a proteção do conhecimento tradicional frente ao interesse de mercado é vista com ressalvas por pesquisadores e ambientalistas; de outro lado, a construção de um sistema sui generis de proteção e repartição de benefícios, torna-se cada vez mais difícil de se concretizar. O presente texto tem por objetivo discutir as interfaces, conflitos e potencialidades entre o sistema de propriedade intelectual e a política nacional de salvaguarda do patrimônio imaterial, apontando a posição dúbia dos instrumentos de proteção da propriedade intelectual que tanto servem a apropriação quanto a garantia de direitos de comunidades e grupos portadores de conhecimentos e práticas culturais ancestrais.

A proteção do patrimônio imaterial A discussão sobre a necessidade de valorização e proteção do patrimônio imaterial das nações teve iniciou no final década de 70, quando um grupo de países liderados pela Bolívia, protestou junto a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a fim de que o conceito de patrimônio cultural abrangesse mais do que o patrimônio arquitetônico e o natural, como definido pela Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972). As reivindicações desse grupo deram inicio a uma série de estudos e debates que culminaram nos documentos: Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultural Tradicional e Popular (1989), Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003) e 1

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenv., Agric. e Soc. (CPDA/UFRRJ), onde desenvolve projeto relacionado ao uso das indicações geográficas para valorizar comercialmente produções artesanais de populações tradicionais. Sobre a temática da relação entre propriedade intelectual e populações tradicionais organizou dois livros em coautoria. Coordenou o Núcleo de Propriedade Intelectual da Universidade de Brasília e do Museu Paraense Emilio Goeldi no Pará. Na área de patrimônio imaterial atuou na realização de inventários e planos de salvaguarda como consultora do IPHAN e colaboradora da equipe de pesquisa do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular - CNFCP-RJ.

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Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005). Estabelecendo, dessa forma, as diretrizes para a salvaguarda do patrimônio imaterial dos países (Minc, 2006). No Brasil a política de valorização e salvaguarda das expressões da cultura popular foi implementada a partir do Decreto no. 3551 de agosto de 2000 como regulamentação dos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988. Foi criado o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial e instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, ambos sob a responsabilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Diferentemente da política de valorização do patrimônio edificado, ou seja, material, especialmente voltada à preservação para as gerações futuras, a salvaguarda do patrimônio imaterial surge com a promessa de não apenas de resguardar a transmissão dos saberes, como também de apoiar a inclusão política e econômica dos detentores desse patrimônio. Constituindo-se, assim, numa alternativa de desenvolvimento econômico para grupos portadores de bens culturais tradicionais até então alijados dos processos de desenvolvimento econômico nacional. Observamos, no entanto, que a promoção dos saberes e das produções culturais de populações tradicionais no âmbito nacional e global não têm sido acompanhada de regras claras ou parâmetros para assessorar relações comerciais entre essas populações e o setor produtivo. A fim de promover estudos e discutir as prováveis interfaces e as perspectivas de proteção do sistema de propriedade intelectual em relação ao uso comercial de conhecimentos e produções culturais de populações tradicionais, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) criou em 2000 o “Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore” 2. A Propriedade Intelectual é uma expressão genérica que visa garantir a inventores ou responsáveis por qualquer produção do intelecto - seja nos domínios industriais, científicos, literários e/ou artísticos - o direito de auferir recompensa pela própria criação. De acordo com a definição OMPI constituem propriedade intelectual as invenções, obras literárias e artísticas, símbolos, nomes, imagens, desenhos e modelos utilizados pelo comércio. O atual Sistema de Propriedade Intelectual é dividido em duas grandes áreas: Propriedade Industrial, referente a patentes, marcas, desenho industrial, indicações geográficas e proteção de cultivares, e Direito Autoral, referente a obras literárias e artísticas, programas de computador e domínios na Internet. O Conhecimento Tradicional e o Patrimônio Imaterial são

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www.wipo.int/globalissues/igc/documents/index-fr.html

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tratados na OMPI como temas afins, cuja regulamentação, como mencionado, vem sendo discutida no âmbito do Comitê Intergovernamental. Os conhecimentos tradicionais são definidos por Diegues (2004) como um “conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, transmitidos oralmente de geração em geração”. Para Diegues (2004) os grupos portadores de conhecimento tradicional no Brasil podem apresentar imensa diversidade de modos de vida, condições de existência e organizações sociais, tendo como questões principais a autoidentificação ou identificação por especialistas de que se tratam de grupos culturais distintos do modelo dominante de sociedade e que mantêm uma forte relação de troca e dependência com o meio ambiente e os recursos naturais dos locais onde vivem. As incompatibilidades conceituais e as dificuldades práticas da utilização dos direitos de propriedade intelectual (DPI) para proteger conhecimentos tradicionais (CT) têm sido ressaltadas por diversos autores (Shiva, 2001; Santilli, 2004; German-Castelli & Wilkinson 200; Lima at al, 2003; Cunha & Almeida, 2002). De um modo geral, especialmente em relação à propriedade industrial, alega-se que a maioria dos instrumentos de proteção desse sistema não serve aos conhecimentos tradicionais porque: a) foram formulados com o intuito de garantir direitos individuais e não coletivos; b) a exigência de titularidade presente em praticamente todos os mecanismos de proteção - marcas, patentes e desenho industrial - não pode ser aplicada a saberes que em sua maioria possuem origem difusa; c) não atende ao requisito da novidade, uma vez que se tratam de conhecimentos ancestrais; d) a determinação de um período de validade da proteção é incompatível com o caráter imprescritível de conhecimentos ancestrais; e) a privatização do conhecimento, presente no conceito de propriedade, vai de encontro ao sistema de valores e ao próprio modo de produção e reprodução do conhecimento de grande parte das comunidades tradicionais, que têm como base o compartilhamento do saber, informações e experiências. Em quase 10 anos de discussão, pesquisadores, agentes públicos e os representantes das próprias comunidades tradicionais têm concluído pela inadequação do sistema de propriedade intelectual para a proteção do conhecimento e produções de populações tradicionais, optando pela defesa da criação de um sistema diferenciado de proteção. Esse sistema sui generis teria como base: o reconhecimento dos direitos das comunidades sobre suas próprias terras, cultura e conhecimentos; a valorização e o reconhecimento do saber tradicional enquanto ciência; a obrigação do consentimento prévio para acessar tais conhecimentos; a inversão do ônus da prova

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em favor das comunidades tradicionais em ações judiciais de anulação de patentes de processos e produtos resultantes da utilização de seus conhecimentos; a garantia do livre intercâmbio de informações entre várias comunidades; o assessoramento jurídico às comunidades na formulação de contratos; o registro sistemático desses conhecimentos por meio de inventários, banco de dados e/ou de índices; e, em alguns casos, a restituição de bens espirituais, culturais e intelectuais retirados sem prévio consentimento e com a violação das leis, tradições e costumes desses povos (Santilli, 2004; Lima et al, 2003). As imensas dificuldades legais de formulação e operacionalização de um regime global diferenciado de proteção e repartição de benefícios para o uso de conhecimentos e produções de populações tradicionais têm, no entanto, inviabilizado na prática a criação e o funcionamento desse sistema sui generis. Por outro lado, o crescente fortalecimento das estruturas para a proteção das indicações geográficas (IGs) e marcas coletivas nos países em desenvolvimento retoma a discussão de que, senão todo o sistema de propriedade intelectual, ao menos alguns instrumentos de proteção podem vir a se constituir em opções viáveis a curto prazo para a proteção de produções artísticas, agrícolas, extrativas e artesanais historicamente produzidas grupos tradicionais.

O uso do sistema de Propriedade Intelectual para a Proteção do Patrimônio Imaterial Embora seja mais comum relacionarmos a propriedade intelectual a apropriações indevidas dos conhecimentos de populações tradicionais, pesquisas realizadas no âmbito do Comitê Intergovernamental da OMPI mostraram que alguns instrumentos clássicos sistema de propriedade intelectual como direitos autorais, marcas coletivas e indicações geográficas podem ser adaptados a proteção de bens culturais de grupos tradicionais. A legislação relacionada aos direitos autorais abre espaço para a proteção de musicas, grafismos e outras produções culturais de povos tradicionais principalmente a partir da revisão da Convenção de Berna em 1967, quando foi reconhecida a proteção internacional do direito de autor para obras não publicadas. Além deste, a adoção do tratado da OMPI sobre interpretações, execuções e os fonogramas (WPPT) em 1996, representou um novo passo na direção da proteção das expressões de folclore. Trata-se, neste caso, de uma proteção indireta, chamada de Direitos Conexos, destinada não as expressões culturais tradicionais em si, mas às adaptações e

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interpretações, que não raramente se baseiam em lendas, canções populares, danças e outras expressões artísticas de âmbito tradicional. Os direitos autorais, incluindo os Direitos Conexos, são divididos em: direitos patrimoniais, que garante ao autor os benefícios monetários em função da comercialização da sua obra; e direitos morais, relacionados ao reconhecimento público da identidade do autor e da manutenção da integridade da sua obra. No exercício de seus direitos morais o autor tem o direito de ter seu nome sempre associado as suas produções toda vez que as mesmas forem expostas ou divulgadas ao público, executadas nos meios de comunicação ou por intérpretes, podendo se opor a modificações ou a adaptações que julgue inadequadas. No que concerne aos direitos patrimoniais, o autor tem o direito de cobrar pela reprodução, tradução, adaptação ou inclusão que caracterize a utilização comercial da sua criação por terceiros, ou pode optar por conceder uma autorização gratuita quando for de seu interesse. Em geral autorizações gratuitas costumam ser concedidas quando a solicitação de uso se destina a fins não lucrativos, como uma obra de cunho didático por exemplo. Em resumo, o autor pode dispor dos direitos patrimoniais como bem entender, inclusive transferi-lo a terceiros por meio de venda ou doação. O direito moral, contudo, é intransferível e imprescritível, acompanha o autor por toda a sua vida e após a sua morte, quando é administrado por herdeiros. A validade da proteção do direito patrimonial varia de acordo com a legislação dos países. No Brasil, de acordo com a Lei de Direitos Autorais (LDA n. 9610/98), a validade é de 70 anos após a morte do autor. Com o falecimento do autor os seus herdeiros, obedecendo à ordem sucessória prevista no Código Civil, terão o direito de receber as retribuições referentes ao uso comercial da sua obra por um período de 70 anos. Terminado esse prazo a obra entra em domínio público e pode ser utilizada livremente por qualquer interessado, resguardando-se apenas os direitos morais. Dizemos que uma obra encontra-se em domínio público quando não é necessário realizar qualquer retribuição pelo seu uso. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, entram em domínio público as obras de autores falecidos que não tenham deixado sucessores e as de autor desconhecido. No que se refere a autores desconhecidos, vale ressaltar a ressalva contida no art.45, inciso II, da LDA de que os conhecimentos étnicos e tradicionais não podem ser considerados domínio público, ainda que não

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seja possível identificar claramente a autoria. Dessa forma, a LDA protege as expressões tradicionais, mesmo não prevendo a possibilidade de registro coletivo. As indicações geográficas e as marcas coletivas constituem os únicos mecanismos de proteção do sistema de propriedade industrial que ao invés de direitos individuais garantem direitos coletivos. Nesse sentido, apresentam possibilidade de proteger produções de populações tradicionais garantindo-lhes exclusividade de uso do nome de modo a enfrentarem a concorrência desigual de produtos industriais similares que tentam se aproveitar da fama dos produtos artesanais tradicionais. No Canadá, por exemplo, marcas de certificação, são utilizadas por grupos indígenas para identificar uma vasta gama de produtos e serviços, das artes e artesanato tradicionais a produtos alimentares, vestimentas, serviços turísticos e empresas dirigidas por indígenas. Essas marcas trazem símbolos e nomes tradicionais e servem para garantir a autenticidade e a qualidade de um produto. Quando esses produtos ou serviços além de se diferenciarem pela qualidade se tornam conhecidos a partir do seu local de origem, dizemos que se trata de uma indicação geográfica (IG). As IGs estão divididas em duas categorias de proteção: Indicação de Procedência e Denominação de Origem. As denominações de origem apresentam atribuições mais específicas que as indicações de procedência no sentido de que não apenas reconhecem a reputação que associa um determinado produto a um território, como também atribuem as características desse produto a fatores físicos climáticos e/ou agronômicos e culturais tradicionais. Dessa forma, o contexto de produção é visto como parte indissociável do produto, que constitui um atributo das identidades culturais dos diversos atores que integram o território. Embora originado no século XIX, o uso das IGs ficou praticamente restrito aos países europeus até ser incluído no ADPIC/TRIPS no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). O crescimento da adoção das IGs pelos países em desenvolvimento, contudo, tem sido motivada não apenas pela justificativa da “qualidade superior” de produtos agrícolas, como nos mostra a experiência dos países europeus, mas, sobretudo, por atributos ambientais e sociais referente ao patrimônio ambiental e cultural desses países. Nesse sentido, é cada vez mais comum em países como o Brasil, a Índia, Marrocos e África do Sul, a associação das IGs a produtos extrativistas

e

artesanais

de

populações

locais

como

alternativa

de

proteção

da

sociobiodiversidade e de repartição de benefícios com as populações tradicionais pelo uso comercial de saberes e práticas ancestrais (Sylvander & Allaire, 2006).

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A Índia é um dos países que até o momento mais tem apostado nessa estratégia. Embora a política de incentivo as IGs na Índia seja bastante recente, ocorrendo o primeiro registro referente ao chá Darjeeling em 2003, de acordo com dados do Instituto de Propriedade Intelectual da Índia até agosto deste ano já foram solicitados 185 registros de IG dos quais 113 se referem especificamente a produções artesanais, principalmente produções têxteis como variados tipos de saris3. A força da Índia no registro de produtos artesanais, chás e produções agrícolas tem levado as autoridades deste país a uma verdadeira campanha junto a Organização Mundial do Comércio (OMC) para que uma diversidade maior de produtos receba a mesma proteção especial conferida a vinhos e a outras bebidas alcoólicas amplamente protegidas nos países desenvolvidos (James, 2009). A experiência brasileira no que diz respeito ao registro de indicações geográficas ainda é bastante incipiente e voltada, principalmente, a produtos agropecuários e bebidas: os vinhos do Vale de Vinhedos (RS), o Café do Cerrado (MG), a Carne do Pampa (RS), a Cachaça de Paraty (RJ), Uvas e Mangas do Vale de São Francisco e Couro acabado do Vale dos Sinos (RS). Contudo, várias instituições têm se mobilizado no sentido de favorecer a obtenção de IGs para produtos associados a biodiversidade e ao patrimônio imaterial. Nesse sentido, constituiu um exemplo os editais do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) para o financiamento de grupos de produtores interessados em consolidar IGs concedidas ou viabilizar estudos para registros com base em novos produtos e serviços. Grande parte dos projetos financiados pela instituição no momento se referem a bens culturais ou ambientais de grupos tradicionais como: a Renda Renascença do Cariri-PA; a Renda Irlandesa de Divina Pastora -SE; a Dança do Tambor de Crioula - MA; o Artesanto de Miriti de Abaetetuba – PA; as Panelas de Barro de Goiabeiras – ES; o Capim Dourado do Jalapão – TO; o Guaraná de Maués – AM; e o “Mel Portal do Pantanal” – MS.

Os limites da propriedade intelectual para a proteção de bens culturais Ainda que o uso do sistema de propriedade intelectual seja viável, em alguns casos, para a proteção de produções de grupos tradicionais, é preciso observar que não se trata de um uso amplo, indiscriminado e irrestrito. Depende, sobretudo, da associação com programas

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Dados sobre as solicitações de registro de IGs na Índia encontram-se disponíveis na página: http://ipindia.nic.in/girindia/

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governamentais mais amplos a fim de que proporcione geração de renda sem ameaçar o equilíbrio ecológico e cultural dos grupos envolvidos. Em relação as IGs, por exemplo, o IPHAN tem se preocupado em garantir a compatibilidade desse instrumento com as ações de salvaguarda do patrimônio imaterial. Nesse sentido, discute a inadequação da solicitação de IGs no que diz respeito a bens culturais amplamente disseminados pelo território nacional e/ou cuja salvaguarda não dependa ou não se beneficie de relações de mercado, como no que diz respeito ao Tambor de Crioula. Registrado como patrimônio cultural do Brasil, o Tambor de Crioula encontra maior expressão no Maranhão, mas também é tocado em outros locais do país como celebração ritual ou atividade lúdica. Embora alguns grupos de tambor de crioula tenham como prática a venda de apresentações, o sentido principal dessa manifestação não se dá no âmbito comercial. Dessa forma, não faz sentido torná-la exclusiva de um grupo ou localidades específicas nem sujeitá-la a regras de qualidade e demandas do mercado. Por princípio, o nome tambor de crioula pertence a todos os brincantes dessa expressão, e deve servir tanto aqueles que se apresentam nos palcos quanto aqueles que por devoção ou por diversão realizam rodas nos terreiros, nas ruas ou no quintal de suas casas. Outra questão importante se refere a garantia de que os detentores de bens culturais sejam devidamente informados sobre os trâmites, os direitos e os deveres que envolvem a solicitação e a posterior obtenção de uma IG, fornecendo a anuência prévia para o início do processo. Nesse sentido, deve-se garantir que os processos de solicitação de IGs envolvendo bens culturais registrados ou em processo de registro levem em consideração os inventários de referências culturais realizados pelo IPHAN, especialmente no que refere a identificação dos atores locais no sentido de garantir a ampla representatividade dos mesmos na elaboração de especificações e negociações das regras de gestão das IGs4. Em relação aos direitos autorais há questões semelhantes, pois embora a legislação proteja todos os intérpretes e autores, na prática há problemas no que diz respeito a adequação do direito coletivo e, até mesmo, ao repasse de direitos para os artistas da cultura popular. Em função da impossibilidade do registro de autoria por uma coletividade, o Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual (INBRAPI) tem realizado o registro de obras autorais em nome de autores indígenas individuais que se comprometem em reverter parte dos direitos autorais obtidos com a comercialização de suas obras para o benefício da sua etnia. Pois, embora 4

Em reunião realizada no dia 15 de junho de 2009 no Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan foram estabelecidas uma série de recomendações sobre esse tema. O documento encontra-se ainda em fase de discussão interna de deve servir de subsídio ao estabelecimento de parceria do Iphan com o INPI para tratar desse assunto.

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a interpretação de um mito transformado em livro tenha uma autoria definida, esse autor indígena se inspirou na tradição oral e no conhecimento acumulado ao longo de gerações. A preocupação com a concessão de direitos autorais e autorizações de uso de imagens entre os artistas da cultura popular têm crescido a partir da ampliação do interesse pela produção de livros, CDs, documentários e outros registros impressos ou audiovisuais sobre expressões culturais registradas como patrimônio cultural do Brasil, a exemplo do Cururu, associado à viola de cocho, do Jongo e da Capoeira. O registro dos direitos autorais, entretanto, constitui apenas o início de uma longa jornada de negociações permanentes com instituições de mercado e órgãos de arrecadação e gestão até que esses direitos se concretizem em real ganho monetário para os compositores e interpretes da cultura popular. Para que uma música da cultura popular e tradicional seja tocada na rádio, comercial de televisão, incluída num filme ou qualquer outro meio de divulgação pública é necessário que sejam pagos os direitos autorais ao Escritório de Arrecadação e Distribuição (ECAD). Para receber os seus direitos por meio do ECAD além de enfrentar toda a burocracia do registro de direitos autorais na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, os músicos não podem receber o recurso diretamente da instituição, precisam se associar a uma das associações, encarregadas de distribuir os direitos arrecadados pelo ECAD. O problema é que a prioridade dessas associações, quase exclusivamente concentradas nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, são os grandes nomes da indústria cultural que movimento mais recursos e sustentam tais instituições por meio do pagamento de taxas administrativas.

Conclusão Mais do que proteger as expressões culturais tradicionais por meio do sistema de propriedade intelectual, instituições públicas em parceria com ONGs e representantes das comunidades devem discutir como o sistema de propriedade intelectual pode atuar de forma complementar as ações de salvaguarda já existentes. Nesse sentido, ainda que seja possível utilizar algum mecanismo do sistema de propriedade intelectual (direitos autorais, marcas coletivas ou Indicações Geográficas) para a proteção de produções de populações tradicionais, a salvaguarda desses saberes associado à repartição de benefícios depende de fato de uma complexa soma de fatores envolvendo aspectos econômicos, políticos, sociais e morais. As parcerias com o setor produtivo não podem ignorar o caráter coletivo dos bens culturais de populações tradicionais. Pois, ainda que a produção artística de um povo indígena renasça da mão de um sujeito individual, este constitui o reprodutor de um acervo cultural 10

desenvolvido de forma coletiva que é mantido e recriado também de forma coletiva ao longo de gerações. Num contexto de tamanha complexidade, as ações de normatização e garantia de direitos precisam se associar as ações de proteção e salvaguarda per si, tanto no que se refere às políticas do setor ambiental quanto cultural, garantindo assim a coordenação de interesses derivados de lógicas diversas com a criação de estruturas que favoreçam a inserção comercial sem prejuízo a estabilidade da organização social e dos padrões culturais dos povos tradicionais e detentores de bens culturais.

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SYLVANDER, B. & ALLAIRE, G. Siner-GI WP3 Report : conceptual synthesis. Montpelier: SINERGI,2006. .

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