Proteção social e (sub)cidadania: alguns apontamentos teóricos sobre desigualdade e reconhecimento

June 1, 2017 | Autor: J. Andrade Costa | Categoria: Teoría Crítica, Cidadania, Assistência Social, Reconhecimento
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Pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, sob orientação do Professor Dr. Luis Guilherme Galeão da Silva.
No prefácio à segunda edição da publicação dessa pesquisa, a autora e o autor argumentam que o termo "beneficiário/a" deveria ser abandonado e substituído por "bolsista" como uma alternativa para romper com a lógica da dádiva que marca o principal programa de transferência condicionada de renda brasileiro.
Entre os nomes dos intelectuais e áreas de atuação que atuaram no Instituto, destacam-se: Friedrich Pollock, em economia; Franz Neumann e Otto Kirchheimer, em ciência política e direito; o próprio Horkheimer e Hebert Marcuse, em filosofia; Walter Benjamin, Leo Löwenthal e Theodor Adorno, na crítica da cultura; e Erich Fromm em psicologia e psicanálise.
Souza (2012) acompanha Luc Boltanski e Chiapello na interpretação de que a justificação e legitimação simbólica e moral do capitalismo depende basicamente da assimilação "antropofágica" de seus inimigos e das formas de vida "expressivas". Desse modo, o capitalismo contemporâneo, neoliberal, retira sua força não somente da reformulação econômica do modelo fordista para o financeiro, mas também da dominação simbólica peculiar do "trabalho flexível".
Dos três padrões de reconhecimento, Honneth apresenta potenciais evolutivos para as esferas do direito e da solidariedade, porém, com relação à dimensão do amor ele não mostra possibilidades de desenvolvimento no sentido de novas formas de vida. Este fato parece supor que a categoria das relações íntimas que caracterizam o reconhecimento na esfera afetiva pode ser tomada como uma condição ontológica do desenvolvimento da personalidade. Se for este o caso, estaria a esfera privada das relações eróticas imune às transformações históricas?
Rosenfield e Saavedra (2013) apresentam um breve panorama das principais críticas e contrapontos da teoria de Axel Honneth com relação ao contexto brasileiro.
O "programa" de pesquisa de Souza a que me refiro corresponde aos estudos realizados junto ao Centro de Estudos sobre Desigualdade (CEPEDES) da Universidade Federal de Juiz de Fora, que resultou na publicação de obras como "A invisibilidade da desigualdade brasileira" (Souza, 2006), "A ralé brasileira" (Souza, 2009) e "Os batalhadores brasileiros" (Souza, 2012b). Além do período em que Souza foi professor na UFJF, também são de fundamental importância seus estudos teóricos anteriores, quando lecionava na Universidade de Brasília, tais como "A modernização seletiva" (Souza, 2000) e "A construção social da subcidadania" (2012a).
Nos trabalhos de Jessé Souza, a perspectiva da teoria do reconhecimento social adotada é fundamentalmente a do filósofo canadense Charles Taylor, sendo que os trabalhos de Honneth e Fraser são abordados apenas de forma complementar. Para um panorama do "percurso do reconhecimento" na tradição das ciências sociais, ver Ricoeur (2006) e a respeito do debate contemporâneo sobre a "sociologia política do reconhecimento", ver Mattos (2006).
A sociologia disposicionalista parte da ideia de "disposições" para se referir a capacidades de tendências para a ação individual em contextos específicos. Em Bourdieu, a categoria do habitus compreende um conjunto dessas disposições para a ação adquirido como aprendizado espontâneo e inconsciente (no sentido de pré-reflexivo) que é incorporado (literalmente "no corpo") por cada um de nós desde a infância. Além de Bourdieu, Souza aborda a "teoria das disposições" de Bernard Lahire em seu estudo sobre as características da nova classe trabalhadora brasileira, que ele denomina de "batalhadores" (Souza, 2012b).
Essa diferenciação visa avançar em relação o contextualismo da obra de Bourdieu, que desenvolveu a noção de habitus a partir da análise do sistema escolar francês dentro de um Estado de Bem-Estar Social que sociedades periféricas como o Brasil nunca experienciaram. No entanto, Souza não acredita que essas categorias distintas de habitus sejam aplicáveis somente às sociedades periféricas. A diferença fundamental é apenas de grau de generalização.
Jessé Souza utiliza o termo "ralé" para designar toda uma "classe de desclassificados sociais", isto é, aquelas pessoas que foram historicamente abandonadas à própria sorte pela sociedade e privadas da possibilidade de incorporar os pressupostos psicossociais e morais básicos necessários para serem reconhecidas como "cidadãs".
A ideia de "articulação" (ou "inarticulação") é entendida aqui no sentido conferido por Charles Taylor (2007), isto é, como a capacidade humana de através de avaliar suas ações em relação ao pano de fundo moral compartilhado pela sociedade. Um consenso "inarticulado", portanto, não atinge criticamente a fonte da moralidade, transformando uma norma moral contingente em parâmetro para ação cega e irrefletida.



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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA




José Fernando Andrade Costa





"Proteção social e (sub)cidadania: alguns apontamentos teóricos sobre desigualdade e reconhecimento"





Trabalho final da disciplina: "Novos modelos de Teoria Crítica: política, direito e democracia"

Docente: Rurion Soares Melo



Julho de 2015

Título: "Proteção social e (sub)cidadania: alguns apontamentos teóricos sobre desigualdade e reconhecimento"

Autor: José Fernando Andrade Costa
Número USP: 8857171


Resumo: Este trabalho tem por objetivo realizar alguns apontamentos teóricos sobre a desigualdade social no Brasil contemporâneo e as demandas por reconhecimento recíproco, tomando por objeto o direito à proteção social de Assistência Social no horizonte da cidadania. Aborda-se a política de Assistência Social como uma das formas de enfrentamento da "questão social" no horizonte da cidadania. Ademais, busca-se apresentar as contribuições da teoria crítica de Axel Honneth em possível complementariedade com os estudos de Jessé Souza sobre a desigualdade social brasileira. Por fim, considera-se relevante para a pesquisa psicossocial no campo das políticas de assistência social adotar a perspectiva da teoria do reconhecimento atrelada à crítica da produção da subcidadania nas sociedades periféricas, como a brasileira.

Palavras-chave: Proteção Social. Assistência Social. Subcidadania. Reconhecimento. Teoria Crítica.


Introdução
O presente trabalho tem por objetivo realizar alguns apontamentos teóricos sobre a desigualdade social no Brasil contemporâneo e as demandas por reconhecimento recíproco, tomando por objeto o direito à proteção social de Assistência Social no horizonte da cidadania. Pretendo com esse exercício aportar elementos para o desenvolvimento da análise da pesquisa de mestrado em andamento intitulada "Proteção social e cidadania: uma análise de serviços socioassistenciais em um bairro da cidade de São Paulo", que tem por objetivo geral analisar os significados atribuídos pelos participantes (trabalhadores e usuários) aos serviços da assistência social em um determinado território paulistano e, de modo específico, conhecer o paradigma de assistência priorizado na prática cotidiana neste contexto (refletindo sobre a tensão entre assistencialismo tradicional e a concepção de direito de cidadania). Para tanto, partirei das bases teóricas da tradição de pensamento social conhecida como Teoria Crítica da Sociedade – especialmente em sua expressão contemporânea ligada à perspectiva das demandas por reconhecimento social –, bem como me valerei das pesquisas recentes coordenadas pelo sociólogo Jessé Souza, a respeito da especificidade da desigualdade social brasileira, principalmente com relação à construção social da subcidadania.

Questão social e Política de Assistência Social
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, a discussão em torno do sistema de Social brasileiro – que compreende as proteções básicas de Previdência, Saúde e Assistência Social – necessariamente coloca em questão a perspectiva dos direitos de cidadania e, mais especificamente, a proteção social. Enquanto Previdência e Saúde englobam no sistema protetivo a maior parte dos segmentos sociais, o caso da Assistência Social é emblemático por sua atenção prioritária aos grupos mais "vulneráveis" da sociedade, seja exclusivamente por flagrante insuficiência de renda, seja por vulnerabilidades de outra natureza associada à pobreza (idosos, crianças, deficientes etc).
Enquanto "direito do cidadão e dever do Estado", a Assistência Social é a política responsável por prover os "mínimos sociais" necessários para o atendimento às necessidades básicas, garantindo as seguranças sociais de sobrevivência (rendimento), de acolhida (alimentação e vestuário, por exemplo) e de convivência (comunitária, intergeracional, multicultural etc.). A Assistência Social é portanto uma política que tem em seu cerne o enfrentamento da questão social.
Mas, que "questão" é essa?
A "questão social" não se resume à identificação dos assustadores índices de pobreza e miséria em que se encontra aproximadamente um terço da população brasileira. Segundo Robert Castel (2003), a "questão social" pode ser caracterizada por uma inquietação quanto à capacidade de uma sociedade para manter-se coesa. Tal inquietação surge do reconhecimento de grupos cuja existência abala a coesão do conjunto, revelando ao mesmo tempo a face sombria do desenvolvimento econômico e social. Seguindo o pensamento de Castel, Vera Telles (2013) afirma que a questão social
é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos diretos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramadas nas relações de poder e dominação (Telles, 2013, p. 115).

A questão da desigualdade é colocada pela autora como a chave para a compreensão da esquizofrenia da sociedade brasileira, que por um lado promete modernidade e faz de si mesma uma imagem de "sociedade organizada" e por outro se vê fraturada pelo seu retrato negativo feito de anomia, violência e atraso. Uma característica marcante da maneira como a sociedade brasileira trata a questão do pauperismo é o que a autora chama de "naturalização da pobreza", pois esta é transformada em dado bruto da natureza ao mesmo tempo em que há o esvaziamento da função crítica das noções de igualdade e justiça enquanto valores da regulação social. Torna-se uma marca registrada da sociedade brasileira o que Roberto Schwarcz chama de "desfaçatez de classe", pois as classes sociais privilegiadas podem conviver com os segmentos marginalizados sem se responsabilizarem. Pelo contrário, o pobre é quem representa a pecha de incapaz ou responsável por seu próprio infortúnio. A individualização do pauperismo, equacionado como "sina" torna as relações sociais "naturalmente" excludentes e a "questão social" passa a ser traduzida em termos de comiseração:
a questão social parece, assim, deixar de ser propriamente 'questão' – questão política, questão nacional, questão pública – que diz respeito aos direitos como princípios reguladores da economia e da sociedade, para fixar como problema a ser administrado tecnicamente ou então como problema humanitário que interpela a consciência moral de cada um (Telles, citada por Kowarick, 2009, p.99).

No entanto, a figuração da pobreza como dado natural ou paisagem é demolida – ou ao menos questionada – quando questionada no espaço público enquanto produto de processos de privação de direitos. Neste sentido, a contradição entre garantia e privação de direitos de cidadania representa um ponto relevante para o entendimento das figurações contemporâneas da "questão social". Em uma sociedade que não logrou enraizar a dimensão da igualdade e do respeito social a todos os seus membros, "a incivilidade cotidiana opera como uma espécie de curto-circuito entre a igualdade prometida pela lei e os códigos que ordenam a experiência que os indivíduos fazem da sociedade" (Telles, 2013, p.79). Para a autora, aos pobres foi reservado o espaço da assistência social não para elevar suas condições de vida, mas tão-somente para minorar a desgraça e ajudar a sobreviver na precariedade. Por esse motivo, sua cidadania é como que invertida:
[A assistência social] É o lugar no qual a pobreza vira "carência", a justiça se transforma em caridade e os direitos, em ajuda a que o indivíduo tem acesso não por sua condição de cidadania, mas pela prova de que dela está excluído. É o que Aldaíza Sposati chama de "mérito da necessidade", que define a natureza perversa de uma relação com o Estado que cria a figura do necessitado, que faz da pobreza um estigma pela evidência do fracasso do indivíduo em lidar com os azares da vida e que transforma uma ajuda numa espécie de celebração pública de sua inferioridade, já que o seu acesso depende do indivíduo provar que seus filhos estão subnutridos, que ele próprio é um incapacitado para a vida em sociedade e que a desgraça é grande o suficiente para merecer a ajuda estatal. Se na esfera dos direitos sociais a questão da igualdade e da justiça é ocultada pela hierarquização na distribuição dos benefícios sociais, aqui é a própria noção de responsabilidade pública que se dissolve, como se fossem naturais os azares do destino que jogam homens, mulheres e crianças para fora da sociedade (Telles, 2013, p.26).

Este traço marcante das práticas assistenciais que "celebram a inferioridade" do pobre na arena pública vem sendo sistematicamente questionado nas últimas décadas, no âmbito da construção da política de Assistência Social enquanto direito de cidadania. A Constituição Federal de 1988 representa sem dúvidas o maior avanço na garantia formal de direitos na história do país, pois resultou de um intenso debate público sobre a democratização após duas décadas de ditadura civil-militar e intensa repressão política. Do ponto de vista da institucionalidade, o desenvolvimento da proteção social de assistência social pós-1988, pode ser esquematicamente dividido em dois grandes "ciclos", que correspondem às transformações ocorridas entre o final da década de 1980 e o começo dos anos 2000 (primeiro ciclo) e ao significativo processo de expansão dessa política a partir do início do século XXI (segundo ciclo).
De acordo com Vaitsman, Andrade e Farias (2009), o conjunto de reformas na proteção e assistência social brasileira ao longo dos anos 1990 foi marcado pela negação da agenda universalista em determinadas áreas sociais, a focalização de programas e o constrangimento ao financiamento social. Neste contexto, a prestação de serviços assistenciais era realizada principalmente por entidades filantrópicas mantidas por transferências governamentais ou por isenções fiscais, atuando em um contexto de baixa regulação e coordenação estatal. A pesar da fragmentação das ações de proteção social, foi nesse período que surgiram espaços de ampla discussão sobre o papel do Estado no enfrentamento da pobreza, tais como a Campanha da Fome, no correr de 1993 e 1994, e a primeira Conferência Nacional de Assistência Social, em 1995, com a participação de vários setores e organizações da sociedade. A partir de 1995, começam a surgir os primeiros programas de transferência condicionada de renda e a se ampliar o leque de direitos assistenciais, ainda que excessivamente focalizados e com baixa abrangência.
A partir dos anos 2000, a assistência social brasileira entra em um novo ciclo de mudanças significativas do ponto de vista do financiamento e gestão pública. De acordo com Vaitsman et al (2009) a publicação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) representam um marco para a efetivação da assistência social enquanto política de estado, pois definem a responsabilidade de financiamento e gestão em cada esfera de governo e define o papel do setor privado com complementar e submetido às normativas da política. Segundo esses autores, com a expansão progressiva da assistência social, os efeitos redistributivos mais evidentes são os associados ao crescimento dos programas de transferência de renda, ao aumento da capacidade institucional do estado na gestão dos direitos assistenciais, e ao significado simbólico dos mecanismos de provisão fora dos padrões de assistencialismo.
Se, por um lado, o desenvolvimento progressivo do financiamento e dos mecanismos de gestão pública do aparato estatal de assistência representa um novo patamar da proteção social no Brasil, por outro lado as marcas do assistencialismo, do favor e do clientelismo não desapareceram como num passe de mágica. Euzébios Filho (2011) mostra que a percepção de mulheres pobres sobre a recepção de transferência condicionada de renda permanece ligada à benemerência de políticos "bem-intencionados" – notoriamente na figura de Lula da Silva – e não como fruto de uma política de cidadania. Resultados semelhantes foram apresentados na pesquisa de Rego e Pinzani (2014), realizada com bolsistas do programa Bolsa Família em regiões precárias do Brasil. No entanto, o autor e a autora ressaltam que a experiência regular de pertencimento ao programa produziu algumas mudanças significativas na vida das mulheres entrevistadas:
A experiência do Bolsa Família, que fornece rendimento regular para a grande maioria das mulheres, é muito nova para a maior parte delas. Impactou-lhes a vida; contudo, continuam pobres e carentes de inúmeros direitos. Demora certo tempo para que revelem as alterações mais complexas, em especial as referentes a decisões de ordem moral, como separações conjugais ou o desejo de fazê-las. Um dos temas que as deixam falar com mais desenvoltura se liga à vivência, às vezes pela primeira vez, de mais liberdade pessoal, como ainda ao ganho de um sentimento precioso: a aquisição de mais respeitabilidade na vida local (Rego & Pinzani, 2014, p.25).

O caminho aberto pela presença da proteção social no cotidiano de famílias pobres em todo o Brasil coloca à reflexão crítica o desafio de equacionar a relação entre cidadania e civismo e sua não realização como responsável por boa parte das dificuldades para o enraizamento da democracia nas práticas sociais e a generalização de uma consciência de direitos (Telles, 2013). Faz-se necessário adotar uma perspectiva teórica suficientemente ampla e profunda para decifrar o enigma das condições societárias que viabilizam ou dificultam a realização da cidadania plena. Neste sentido, o debate contemporâneo em torno da categoria reconhecimento parece indicar um caminho promissor.

Direitos, reconhecimento e cidadania
A lógica dos direitos pode ser pensada a partir da relação entre cidadania e civilidade. Segundo Patrick Pharo (citado por Telles, 2000), a civilidade diz respeito às regras que articulam indivíduos em situações concretas de interação. Neste sentido, o exercício e atribuição recíproca de direitos passa a existir na forma de um "civismo ordinário" – que não se confunde com a norma legal, mas traduz, nas dimensões práticas da vida social, as expectativas dos sujeitos de encontrar no outro o reconhecimento da validade e legitimidade de seus atos, opiniões e razões. "São portanto regras de convivência, codificadas ou não, informais ou mais ou menos formalizadas, construídas nas dimensões intersubjetivas da vida social e que só existem na medida do seu mútuo reconhecimento" (Telles, 2013, p.62). Assim, de acordo com Pharo, essas regras definem critérios de legitimidade e, mesmo que não sujeitas ao código formal da lei, as relações sociais se realizam como relações de direitos. Isto estabelece um vínculo civil entre os indivíduos, pois os espaços civis (como trabalho, família, cidade, instituições públicas etc.) dizem respeito à realização de práticas legítimas. Desse modo, a questão proposta por Pharo permite pensar os direitos como forma de sociabilidade, ou mais precisamente, como elementos que estruturam a dimensão reflexiva da sociabilidade.
Nas dimensões mais rotineiras da vida cotidiana, esse reconhecimento do outro no seu direito a ser, a dizer, a fazer, se traduz nas regras de polidez, modo prático e rotineiro de atribuição recíproca de identidades e direitos, a partir do reconhecimento comum, compartilhado, de um mesmo espaço normativo de pertencimento. O que é próprio do exercício prático dos "direitos ordinários" é que eles definem as regras de uma reciprocidade regida pelo "ideal de equidade": direito a ser tratado de modo equitativo, direito a receber aquilo que lhe é devido segundo uma medida construída e reconhecida de forma comum (Telles, 2013, p.63).

Ainda que a perspectiva de Pharo não configure uma teoria do reconhecimento propriamente dita, podemos notar que para o autor o reconhecimento mútuo é um elemento central para a discussão da efetivação dos direitos de cidadania. A importância do reconhecimento intersubjetivo na auto-realização e construção da justiça social é tema de um intenso debate nas ciências sociais contemporâneas de matrizes teóricas críticas. Para Mendonça (2007), o conceito de reconhecimento mostra-se um instrumento heurístico bastante promissor para a discussão de temas como multiculturalismo, experiências de desrespeito social, as lutas voltadas para a construção de cidadania, os possíveis efeitos e contradições de políticas públicas entre outros. Segundo o estudo de Paul Ricoeur (2006) o tema do reconhecimento aparece na história da filosofia em um longo percurso que remete dos clássicos gregos aos contemporâneos. Mas é principalmente com autores contemporâneos como Charles Taylor (2000) e Axel Honneth (2003) que o reconhecimento passa a ser desenvolvido em termos de uma teoria da sociedade. No caso deste último autor a teoria do reconhecimento adquire um caráter de atualização sistemática da tradição de pensamento social conhecida como Teoria Crítica da Sociedade. Vejamos a seguir em traços bem gerais o desenvolvimento desta perspectiva.

Teoria Crítica, do que se trata?
A expressão "Teoria Crítica", tal como é conhecida hoje, surgiu pela primeira vez em um artigo de Max Horkheimer intitulado "Teoria Tradicional e Teoria Crítica", publicado em 1937 na revista do Instituto para Pesquisa Social ligado à Universidade de Frankfurt.
Para Horkheimer, o modelo de "teoria tradicional" manifesta uma crescente tendência à formação de um sistema de sinais puramente matemáticos associados à particularização das ciências de modo a desvincular teoria e prática a tal ponto que ambas sejam vistas como processos independentes do todo social e do movimento da história. Em contraposição a esse modelo o autor apresenta a "teoria crítica" como teoria dialética da sociedade, na qual a contradição entre teoria e prática é consciente para o cientista e o horizonte de sua ação dirige-se para a emancipação humana. Para além da crítica à teoria tradicional, Horkheimer visava afirmar o campo de investigação de fundamentação marxista que fora por ele designado como "materialismo interdisciplinar". A "Teoria Crítica", portanto, designava simultaneamente o campo teórico e o grupo de intelectuais reunidos em torno do projeto de investigação que se desenvolvia no interior do Instituto de Pesquisa Social.
Nobre (2011) afirma que o critério de demarcação fundamental do campo da Teoria Crítica nos anos 1930 era o desenvolvimento do trabalho teórico a partir da obra de Marx. Disso decorre que a teoria crítica, em sentido amplo, corresponde a um campo que já existia antes de Horkheimer, isto é, ao marxismo como um todo. Porém, dada sua especificidade, o projeto de Horkheimer pode ser entendido como Teoria Crítica em sentido restrito. No sentido restrito, a Teoria Crítica corresponde ao campo intelectual criado ao redor de Horkheimer e do Instituto de Pesquisa Social e permanece até hoje designando um tipo específico de crítica social ligada a essa tradição.
Mas qual é a especificidade da Teoria Crítica? Ela se caracteriza pelo fato de renunciar a modelos ideais de sociedade e seus princípios básicos são: a orientação para a emancipação e o comportamento crítico. O primeiro princípio, a orientação para emancipação, significa que a análise crítica não se limita a descrever como as coisas funcionam, mas sim analisar o funcionamento concreto delas à luz de uma emancipação ao mesmo tempo concretamente possível e bloqueada pelas relações sociais vigentes. Não se trata de utopia, pois a crítica efetuada é interna à sociedade, revelando sua incoerência por não cumprir aquilo que ela mesma promete (como por exemplo: a liberdade, a felicidade, a autorrealização etc. para toda a sociedade). O segundo princípio corresponde ao comportamento crítico relativo ao conhecimento produzido sob condições sociais capitalistas e à própria realidade social que esse conhecimento pretende apreender, de modo a mostrar como precisamente a realização de certos ideais e valores traz consigo consequências negativas para os indivíduos (como é o caso da alienação do trabalho) (Nobre, 2011, p.26; Rego & Pinzani, 2014, p.33).
De acordo com Rego e Pinzani (2014), é possível distinguir três perspectivas de Teoria Crítica, em sentido amplo: a primeira é uma perspectiva meramente funcional, ou seja, o alvo da crítica é o mau funcionamento do sistema para poder "otimizá-lo" por meio de ajustes; a segunda é uma perspectiva moral que aponta para o fato de a sociedade (ou o sistema) contradizer uma norma estabelecida por ela mesma, como por exemplo o ideal de justiça; a terceira é uma perspectiva ética segundo a qual as formas de vida de uma determinada sociedade denunciam que esta não garante uma vida boa segundo seus próprios critérios de vida boa. Um exemplo é a crítica pela qual o capitalismo produz alienação, em vez de tornar os indivíduos autônomos. Enquanto as duas primeiras perspectivas aceitam a possibilidade de realização da crítica dentro do sistema capitalista, a terceira posição "não se ilude sobre a possibilidade de o capitalismo produzir uma vida boa" (Rego & Pinzani, 2014, p.34). Na tradição da Teoria Crítica em sentido restrito, seus representantes mais notáveis assumem normalmente a segunda ou a terceira posição. Enquanto Adorno e Horkheimer evidentemente fazem a crítica da sociedade numa perspectiva ética, Honneth e, em parte, Habermas, se situam prioritariamente no ponto de vista moral, uma vez que tenderam a apostar no alargamento da esfera pública e no progresso moral da sociedade atual como possibilidade de construção de relações mais justas. Se pensarmos na posição de um teórico como Jessé Souza, considerando-o um representante da Teoria Crítica em sentido amplo, veremos que sua perspectiva crítica, assim como a de Honneth, encontra-se no âmbito moral de justificação do "novo espírito do capitalismo" contemporâneo.
O "outro" do capitalismo não está apenas fora dele, mas também pode ser gestado no seu próprio interior ao se problematizarem seus próprios dispositivos de justiça em seus próprios princípios de equidade e bem comum. (...) Não nos interessa uma condenação global do novo tipo de capitalismo vigente entre nós, nem também nos interessa "comprar" ingenuamente o discurso dos vencedores sobre si mesmos. Nosso objetivo é perceber as ambiguidades constitutivas dessa nova fase do capitalismo mundial e brasileiro e tentar compreender o potencial de "chance" de mudança possível nesse contexto específico. É assim que compreendemos o dever da sociologia e da ciência crítica no mundo moderno (Souza, 2012b, p.31).

Para Jessé Souza, a perspectiva crítica desafia os poderes instituídos dentro e fora do mundo acadêmico, por conta disso ela nunca é dominante. Em outros termos, a ciência crítica caracteriza-se precisamente por opor-se às "ciências da ordem", desvelando as bases de toda injustiça e violência muda ou explícita. Desse modo, a crítica subverte o modo "natural" de ver as coisas. Seu exercício busca desvelar os mecanismos de poder que sustentam as posições estabelecidas na hierarquia social e abre novas perspectivas de conhecimento e para a ação. Neste sentido é possível lembrar a perspectiva da psicóloga venezuelana Maritza Montero (2004), para quem a crítica nos liberta de modos e formas estabelecidas de conhecer o mundo como se fossem os únicos possíveis, ampliando nosso conhecimento. Para essa autora, "la crítica es una condición de la libertad" (Montero, 2004, p.21).
Após esta consideração inicial acerca da teoria crítica de modo geral, cabe apresentar brevemente o histórico da Teoria Crítica da sociedade da Escola de Frankfurt, especialmente em seu modelo atual mais promissor: a teoria crítica do reconhecimento de Axel Honneth.


Axel Honneth e a atualidade da Teoria Crítica da sociedade
A especificidade da Teoria Crítica da sociedade, desde os escritos de Horkheimer, consiste na assunção da crítica da sociedade como parte intelectual do processo histórico de emancipação e, neste sentido, a teoria deve ter em conta tanto sua origem em uma experiência pré-científica como sua aplicação em uma futura práxis. Por outro lado, a teoria crítica é intrinsicamente ligada a uma determinação quase-sociológica para a emancipação, pois depende do grau de conscientização e interesse dos sujeitos históricos para poder levar a cabo seu propósito (Honneth, 2007a). Nestes termos, o diagnóstico crítico da sociedade realizado pelos principais expoentes da "primeira geração" da Escola de Frankfurt, entre as décadas de 1930 e 1960, conduziu paulatinamente a um impasse em relação à impossibilidade da efetivação empírica da teoria crítica, pois em um contexto histórico marcado pelo horror do fascismo, do "mundo totalmente administrado" e da indústria cultural, os estudos de Horkheimer e Adorno rapidamente se converteram em negativismo com relação às possibilidades de transcendência intramundana da dominação, exceto pela aposta na arte como único recurso possível.
Honneth (1999) aponta que a fraqueza teórica da teoria crítica reside não em seus pressupostos pré-científicos, mas na adoção, pela primeira geração, de bases excessivamente funcionalistas para o diagnóstico das patologias sociais. Isso significa que, desde o princípio, Horkheimer e Adorno conceitualizaram tanto o processo de formação das necessidades individuais como o processo do exercício da dominação de acordo com o modelo dos atos instrumentais de dominação, de modo que, em retrospecto, eles puderam ver o processo civilizatório como um todo dominado pela mesma racionalidade instrumental que sublinha o ato primevo de dominação sobre a natureza. Uma alternativa a essa fraqueza é identificada por Honneth ainda na primeira geração da Escola, não nos estudos de seus membros principais, ou "círculo interno", mas justamente nos trabalho de intelectuais cuja contribuição pode ser considerada "externa" dada sua posição tangencial ao núcleo duro do círculo interno. Autores como Benjamin, Neumann, Kirchheimer e Fromm lograram ir além do sistema de referência funcionalista original do instituto ao apresentarem pesquisas críticas sobre temas como a cultura, o direito a ciência política e a psicanálise.
Mas a atualização da teoria crítica que permite falar em uma "segunda geração" veio com a crítica de Habermas ao conceito de "racionalidade instrumental" presente em Adorno e Horkheimer, na qual procura mostrar que a razão instrumental não é hegemônica, pois a ela pode-se contrapor um tipo de racionalidade "comunicativa" voltada para o entendimento mútuo.
A guinada linguística operada por Habermas permitiu a sustentação do princípio de uma crítica fundamentada na práxis pré-científica inscrita na realidade das relações sociais contemporâneas. Habermas opera uma distinção teórica entre "sistemas funcionais" e "mundo da vida" para distinguir formas de ação distintas, em que ao âmbito do sistema corresponde a ação-instrumental, pautada pela eficácia, enquanto ao âmbito do mundo da vida corresponde a ação-comunicativa, que visa o entendimento mútuo. Do ponto de vista metodológico e epistemológico, o projeto de Habermas avança com a inclusão da perspectiva do participante e da contribuição teórica do pragmatismo de G. H. Mead.
O diagnóstico das patologias do presente elaborado por Habermas diz respeito ao processo de colonização do mundo da vida pela ação-instrumental, em que "mecanismos sistêmicos suprimem formas de integração social, mesmo nas áreas em que a coordenação depende do consenso não pode ser substituída, ou seja, onde a reprodução simbólica do mundo da vida está em questão" (Habermas, citado por Mendonça, 2007, p.178).
No entanto, na visão de Honneth, o projeto de Habermas limitou-se apenas a alargar o conceito de racionalidade e de ação social, acrescentando à dimensão sistêmica uma outra que lhe fosse oposta, produzindo uma concepção de sociedade dividia entre dois polos como se nada houvesse a mediar entre eles. Este aspecto é o que Honneth critica como "déficit sociológico" da teoria crítica como um todo, pois de Adorno e Horkheimer a Habermas, a sociedade é concebida em sua divisão entre estruturas econômicas determinantes e imperativas, de um lado, e a socialização do indivíduo, de outro, sem tomar em conta a ação social como necessário mediador (Nobre, 2003).
Honneth propõe-se então a renovar essa tradição teórica sem abandonar o propósito original de prover as pautas da crítica de um suporte objetivo na práxis pré-científica. Para tanto, Honneth (2003) opta por partir dos conflitos e suas configurações sociais e institucionais para decifrar sua lógica na dinâmica societária. A ideia fundamental para este projeto o autor retira da intuição original de Hegel, em seus escritos de Iena, ao perceber a luta por reconhecimento intersubjetivo como o motor dos conflitos sociais. Para o autor, as lutas coletivas por reconhecimento adquirem o estatuto de força moral que se configuram como motor das mudanças sociais e conduzem o processo histórico de evolução moral, ou seja, "são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa coletiva de estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação normativamente gerida das sociedades" (Honneth, 2003, p.156).
Neste sentido, Honneth afirma que é por meio do reconhecimento intersubjetivo que os sujeitos podem garantir a plena realização de suas capacidades e uma auto-regulação marcada pela integridade. Do legado habermasiano, Honneth considera a condição normativa prévia de toda ação comunicativa na aquisição de reconhecimento social: os sujeitos se encontram uns aos outros no horizonte da expectativa recíproca de receber reconhecimento como pessoas morais e por seu desempenho social. Os sujeitos morais, portanto, são forjados em suas interações, sendo que eles só conseguirão formar uma auto-relação positiva caso se vejam reconhecidos por seus parceiros de interação. Isto significa que a experiência de injustiça social ocorre quando os sujeitos não recebem, ao contrário de suas expectativas, um reconhecimento que consideram merecido, experimentando assim um sentimento de desrespeito social (Honneth, 2007a).
Em sua construção sistemática de uma teoria do reconhecimento, Honneth estabelece uma ponte entre a ideia original de Hegel e a psicologia social de G. H. Mead, de modo a traduzir a teoria hegeliana da intersubjetividade em uma linguagem pós-metafísica. Para o jovem Hegel, a formação do indivíduo se dá a partir de embates intersubjetivos que ocorrem nos âmbitos da família, do direito e da eticidade. Já para o pragmatista Mead, a formação do self é produto da interação com o outro durante o processo de socialização primária. Em Mead, reconhecimento social aparece a partir das categorias de relações primárias (guiadas pelo amor), jurídicas (pautadas por leis) e a esfera do trabalho (na qual os indivíduos poderiam mostrar-se valiosos para a coletividade). A partir dos insights desses dois autores, Honneth refina as categorias de relações de reconhecimento social, extraindo delas três princípios integradores: as ligações emotivas fortes, a adjudicação de direitos e a orientação por valores. A esses princípios correspondem três padrões de reconhecimento e três formas de desrespeito (Honneth, 2003).
A primeira forma de reconhecimento corresponde às relações amorosas, abrangendo todas as relações primárias que consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas, como as relações eróticas entre dois parceiros, as relações de amizade ou as relações entre pais e filhos. As relações de amor são as mais fundamentais para a estruturação da personalidade, a partir das relações mãe-filho na primeira infância. Segundo Honneth, "o amor representa a primeira etapa do reconhecimento recíproco, porque em sua efetivação os sujeitos se confirmam mutuamente na natureza concreta de suas carências, reconhecendo-se assim como seres carentes: na experiência recíproca da dedicação amorosa, dois sujeitos se sabem unidos no fato de serem dependentes, em seu estado carencial, do respectivo outro" (Honneth, 2003, p.160). Carências e afetos para serem "confirmados" dependem de serem satisfeitos ou correspondidos. Por isso, o reconhecimento possui o caráter de assentimento e encorajamento afetivo, ou seja, essa relação de reconhecimento está ligada à existência corporal de "outros concretos" que demonstrem reciprocamente sentimentos de estima. É o que Hegel chamou de "ser-si-mesmo em um outro" (Honneth, 2003, p.160).
Para os fins de uma fenomenologia da relação de reconhecimento do tipo do amor, Honneth vale-se da teoria psicanalítica das relações de objeto de modo a ilustrar o processo específico pelo qual o sucesso das ligações afetivas depende da capacidade, adquirida na primeira socialização, do indivíduo equilibrar sua dependência simbiótica inicial do outro e o impulso para a autoafirmação de si. Seguindo os estudos de Donald Winnicott, Honneth mostra como o processo de interação entre mãe e bebê ainda no estado de "fusão simbiótica" pode ser identificado como um momento de "intersubjetividade primária". O processo de diferenciação entre mãe e bebê decorre dos conflitos que vão surgindo nesta etapa primária de dependência e preparam o caminho para autonomia de ambos. Se este processo for acompanhado de condições "suficientemente boas" de diferenciação, em que o bebê possa reagir à mãe com impulsos destrutivos e ainda assim receber dela a ternura que o afirma como ser independente, então o indivíduo poderá formar em si o sentimento de "autoconfiança" que corresponde ao tipo de coragem que Winnicott denominou "capacidade de estar só".
Essa primeira relação de reconhecimento – o amor – precede e prepara o caminho para todas as outras formas de reconhecimento recíproco: "aquela camada fundamental de uma segurança emotiva não apenas na experiência, mas também na manifestação das próprias carências e sentimentos, propiciada pela experiência intersubjetiva do amor, constitui o pressuposto psíquico do desenvolvimento de todas as outras atitudes de autorrespeito" (Honneth, 2003, p.177).
A forma de desrespeito correspondente a essa esfera do reconhecimento são os maus-tratos e violação da integridade física. Estas formas de violência representam um tipo de desrespeito que fere duradouramente a autoconfiança dos sujeitos, de modo que estes perdem a confiança em si e no mundo.
O segundo padrão de reconhecimento diz respeito às relações de direito que, por sua vez, pautam-se pelos princípios morais universalistas que o sistema jurídico garante a toda a sociedade. O tipo de reconhecimento inscrito na relação jurídica distingue-se daquele do amor, pois responde a uma evolução histórica. Contudo, Honneth afirma que o amor e o direito são duas etapas do mesmo padrão de socialização.
Ele mostra como tanto Hegel como Mead já haviam percebido que só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos como portadores de direitos quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais obrigações temos que observar em face dos outros: "apenas da perspectiva normativa de um 'outro generalizado', que já nos ensina a reconhecer os outros membros da coletividade como portadores de direitos, nós podemos nos entender também como pessoa de direito, no sentido de que podemos estar seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões" (Honneth, 2003, p.179).
A estrutura do direito moderno se define por uma forma de legitimação na qual os sujeitos estão dispostos a obedecer na medida em que são capazes de se reportarem ao assentimento livre de todos os indivíduos incluídos na mesma ordem jurídica. Desse modo, é preciso supor a capacidade de decidir racionalmente, com autonomia, sobre questões morais: "toda comunidade jurídica moderna, unicamente porque sua legitimidade se torna dependente da ideia de um acordo racional entre indivíduos em pé de igualdade, está fundada na assunção da imputabilidade moral de todos os seus membros" (Honneth, 2003, p.188). Assim, o reconhecimento jurídico, como relação de reconhecimento recíproco entre os membros de uma mesma comunidade moral e política, possibilita a cada sujeito desenvolver uma relação de "autorrespeito" consigo. Quando os sujeitos são proibidos de reclamarem direitos, seja na dimensão cognitiva da adjudicação formal dos direitos, ou na dimensão relacional do reconhecimento de sua dignidade, ocorre não somente uma limitação da autonomia da pessoa, mas também o sentimento de não possuir o status de um parceiro de interação com igual valor, moralmente em pé de igualdade. Nesse sentido, "para o indivíduo, a denegação de pretensões jurídicas socialmente vigentes significa ser lesado na expectativa intersubjetiva de ser reconhecido como sujeito capaz de formar juízo moral" (Honneth, 2003, p.216).
A terceira forma de reconhecimento recíproco, a solidariedade, ou "estima social", também já estava presente tanto em Hegel como em Mead. Ela refere-se ao nível de um horizonte de valores intersubjetivamente partilhado por uma determinada comunidade moral. A estima social é determinada por concepções de objetivos éticos que predominam numa sociedade. Quanto mais essas concepções se abrem a diversos valores e quanto mais a ordenação hierárquica cede a uma concorrência horizontal, tanto mais a estima social assumirá um traço individualizante e criará relações simétricas.
A autocompreensão cultural de uma sociedade predetermina os critérios pelos quais se orienta a estima social das pessoas, já que suas capacidades e realizações são julgadas intersubjetivamente, conforme a medida em que cooperam na implementação de valores culturalmente definidos; neste sentido, essa forma de reconhecimento recíproco está ligada também à pressuposição de um contexto de vida social cujos membros constituem uma comunidade de valores mediante a orientação por concepções de objetivos comuns. (Honneth, 2003, p.200).

Para Honneth, nas sociedades modernas a solidariedade está ligada ao pressuposto de relações sociais de estima simétrica entre sujeitos individualizados (e autônomos). Neste sentido, estimar-se simetricamente "significa considerar-se reciprocamente à luz de valores que fazem as capacidades e as propriedades do respectivo outro aparecer como significativas para a práxis comum" (Honneth, 2003, p.210). Vale ressaltar que "simétrico" aqui não significa estimar-se mutuamente exatamente na mesma medida, pois o horizonte social de valores permanece sempre aberto: desse modo, todo sujeito recebe a chance de sentir-se valioso para a sociedade em suas próprias realizações e capacidades.
A autorrelação prática decorrente desse modo de reconhecimento social para o indivíduo corresponde à "autoestima" (em paralelo à autoconfiança e ao autorrespeito), enquanto o desrespeito nessa esfera está ligado à experiência de rebaixamento social, no sentido de degradação valorativa que se expressa por meio da "ofensa" ou "degradação". Este tipo de desrespeito incide sobre o sentimento de desvalorização social de determinadas formas de vida e de auto-realização que poderiam adquirir um significado positivo no interior de uma coletividade.
(...) por isso, para o indivíduo, vai de par com a experiência de uma tal desvalorização social, de maneira típica, uma perda da autoestima pessoal, ou seja, uma perda de possibilidade de se entender a si próprio como um ser estimado por suas propriedades e capacidades características. Portanto, o que aqui é subtraído da pessoa pelo desrespeito em termos de reconhecimento é o assentimento social a uma forma de autorrealização que ela encontrou arduamente com o encorajamento baseado em solidariedades de grupos. Contudo, um sujeito só pode referir essas espécies de degradação cultural a si mesmo, como pessoa individual, na medida em que os padrões institucionalmente ancorados de estima social se individualizam historicamente, isto é, na medida em que se referem de forma valorativa às capacidades individuais, em vez de propriedades coletivas... (Honneth, 2003, p.218).

Do ponto de vista da atualização da Teoria Crítica, Honneth entende que a dinâmica dos conflitos intersubjetivos por reconhecimento contém todos os pressupostos que hoje precisam estar preenchidos para que os sujeitos possam se saber protegidos nas condições de sua auto-realização. Tal perspectiva aponta no sentido da construção de um horizonte emancipatório fundado na ideia de uma eticidade formal, para manter o princípio hegeliano de realização da razão, mas que esteja alicerçada no amor, no direito e na estima social dentro do quadro das interações sociais.
O ambicioso projeto de reconstrução de uma teoria crítica de teor normativo elaborado por Honneth, e que aqui só foi esboçado em traços muito gerais, tem sido objeto de um intenso debate nas ciências sociais contemporâneas. Por um lado, a teoria do reconhecimento lança nova luz sobre a dinâmica social dos conflitos atuais, em especial as demandas de políticas de identidade; por outro, essa teoria é submetida a questionamentos críticos com relação a alguns pontos. Vejamos alguns deles.
O primeiro e mais conhecido se refere ao debate estabelecido entre Honneth e Nancy Fraser sobre a relação entre reconhecimento e redistribuição no horizonte da justiça social. O argumento de Fraser é o de que Honneth prioriza demasiadamente seu olhar para as lutas na esfera da "cultura" em detrimento do campo "econômico", de modo que as demandas por reconhecimento pudessem ser interpretadas apenas como lutas por reconhecimento de identidades e não como reconhecimento da necessidade de condições de participação igualitária no espaço público, o que pressupõe a redistribuição básica no nível material. A proposta de Fraser é alargar o diagnóstico de Honneth incluindo as duas esferas de lutas: o reconhecimento (cultura) e a redistribuição (economia). Desse modo, a autora entende ser possível pensar em condições efetivas de participação paritária no espaço público. A posição de Honneth nesse debate será a de defender a primazia do reconhecimento como condição para as lutas em ambos os campos, cultural e econômico, sendo essa distinção mais um elemento de confusão do que de clarificação:
Os conflitos sobre distribuição, contanto que eles não estejam meramente preocupados apenas com a aplicação das regras institucionalizadas, são sempre lutas simbólicas pela legitimidade do dispositivo sociocultural que determina o valor das atividades, atributos e contribuições. Desta forma, as lutas por redistribuição, ao contrário da hipótese de Nancy Fraser, estão travadas em uma luta por reconhecimento (Honneth, 2007b, p.92).

Na esteira da polêmica sobre o ressurgimento com maior força da noção de reconhecimento no final do século XX nos países do capitalismo central para responder às demandas sociais de reconhecimento de identidades marginalizadas em detrimento da centralidade da luta de classes, Safatle (2015) aponta que
Ao insistir na centralidade da experiência moral do sentimento de "desrespeito" como motor das lutas políticas, elevando-o à condição de base motivacional para todo e qualquer conflito, Honneth inscreveu problemas de redistribuição no interior do quadro geral de demandas morais. Assim, sendo a vulnerabilidade social ligada à pauperização compreendida, principalmente, como expressão material da impossibilidade da realização de exigências morais de respeito, abrem-se as portas para ele afirmar que "a distinção entre empobrecimento econômico e degradação cultural é fenomenologicamente secundária", já que conflitos por redistribuição não poderiam ser compreendidos como independentes de toda e qualquer experiência de desrespeito social (Safatle, 2015, pp.88-89).

No entanto, diferentemente de Fraser, que alarga e congrega os campos de reconhecimento e redistribuição, Safatle enxerga o principal problema da teoria do reconhecimento na ênfase dada ao componente identitário. Para esse autor, as políticas de reconhecimento, mesmo em sentido amplo, serão somente políticas "compensatórias", na medida em que a ênfase na "identidade" perde o aspecto de "desidentidade" intrínseco à função ontológica do sujeito revolucionário que Marx identificara no proletariado. O proletário é o sujeito da revolução precisamente por sua "indeterminação social", no sentido radical de "anti-predicativo". Por isso o horizonte crítico tem que ser considerado desde uma perspectiva "anti-identitária" e "desinstitucionalizadora". O argumento do autor segue no sentido de que "desinstitucionalizar" as lutas por reconhecimento significa criar algo como "zonas de indiferença cultural" no espaço público, ou seja, "zonas no interior das quais a sociedade exercite sua indiferença em relação às diferenças culturais e suas determinações antropológicas" (Safatle, 2015, p.111), de modo que progressivamente ocorra um retraimento das legislações sobre os costumes, família etc. para dar lugar a uma maior sensibilidade jurídica contra processos de espoliação econômica. O autor sintetiza na seguinte fórmula: "forte regulação das relações econômicas e fraca regulação das relações sociais. Pode-se mesmo dizer que os problemas de redistribuição devem ser profundamente regulados no interior do ordenamento jurídico, isto para que os processos de reconhecimento possam se desenvolver em uma zona de indiferença na qual o direito se torna inoperante" (Safatle, 2015, p.111).
Enquanto a crítica de Fraser amplia o tema do reconhecimento ao passo que o contraponto de Safatle praticamente o anula, parece haver em comum entre esses autores uma tendência a priorizar a dimensão da redistribuição material como condição básica para a possibilidade de auto-realização social na esfera cultural/identitária. Esta é uma questão que se coloca à teoria de Honneth quando aplicada em sociedades periféricas como a brasileira, em que a realidade da pobreza e da marginalização torna-se como que algo "naturalizado" a tal ponto que "bloqueiam" as possibilidades de luta por reconhecimento. Isto porque a noção de "desrespeito" em Honneth – ao menos no sentido das relações jurídicas – pressupõe um tipo de evolução histórica das sociedades modernas que ocorreu de forma distinta nos países centrais e nos países do capitalismo periférico.
Por este motivo, uma perspectiva teórica que seja crítica da realidade brasileira, mas que não abandone por completo os fundamentos da teoria do reconhecimento pode ser útil para os propósitos de investigação social empírica de nossa realidade. Podemos encontrar um caminho promissor na obra de Jessé Souza.

Não reconhecimento e subcidadania na sociedade brasileira
O programa de pesquisa desenvolvido nas últimas décadas sob a direção do sociólogo brasileiro Jessé Souza tem o ambicioso objetivo de desvelar os mecanismos implícitos da produção e reprodução da desigualdade social no Brasil de modo novo e mais preciso. Para tanto, Souza (2012a) propõe-se a reinterpretar o dilema do "atraso" brasileiro a partir de um novo quadro analítico, qual seja, o de uma forma peculiar de modernização seletiva que constitui um padrão especificamente periférico de modernização. Para tanto, o autor empreende uma crítica ao que denomina "sociologia da inautenticidade", isto é, ao paradigma dominante das ciências sociais no Brasil fundamentado por um "essencialismo culturalista" que tomaria as causas do "atraso" brasileiro com base em uma "síntese social construída a partir de características e particularidades supostamente pertencentes a apenas uma 'cultura' específica" (Souza, 2012a, p.15).
Jessé Souza (2009) questiona o alcance teórico dos paradigmas clássicos das ciências sociais brasileiras que, desde Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, têm se fundamentado em categorias de relações pré-modernas, como "personalismo" e "patrimonialismo", resultantes de uma espécie de "cultura senhorial" atávica que condena a sociedade brasileira ao autoritarismo (Chauí, 2000). Para o autor, quando as ciências sociais e o senso comum transformam "cultura" em "natureza", deixa-se de perceber o principal: que toda nossa orientação na vida cotidiana e toda justificação de nossas ações e comportamentos dependem de "ideias" contingentes e fortuitas, que não foram por nós formuladas, mas "que comandam nossas decisões e julgamentos tanto mais quanto menos temos consciência delas" (Souza, 2009, p.39). É necessário então explicar como e porque isso ocorre. Para tanto, Souza (2012) recorre a duas promissoras abordagens críticas contemporâneas: a teoria do reconhecimento de Charles Taylor e a sociologia "disposicionalista" de Pierre Bourdieu. Vejamos a seguir como o autor desenvolve este ponto.
Souza propõe-se a construir uma teoria da ação social alternativa para a modernidade periférica, que possa esclarecer os mecanismos opacos e pré-reflexivos da forma singular como se produz, entre nós, uma concepção de valor diferencial entre os seres humanos e como uma hierarquia valorativa peculiar logra se transformar em fundamento secreto de práticas sociais e instituições concretas. Para tanto, o autor afasta-se tanto do paradigma do "essencialismo culturalista" quanto do "economicismo", sem, no entanto, abrir mão de uma perspectiva que contemple o acesso às realidades culturais, simbólicas e políticas. Ao contrário das matrizes "subjetivistas" das ciências sociais que pretendem reduzir a complexidade social à referência às intenções individuais dos agentes, Souza vai buscar no próprio sistema social as leis e normas que explicam os comportamentos dos indivíduos que o compõem. Contudo, para não cair na tentação de explicações funcionalistas e mecanicistas que tomam as "leis" que regem a sociedade como independentes dos agentes, ele irá propor a construção de um "paradigma teórico alternativo" (Souza, 2003, p.53) com base nas reflexões de Charles Taylor a respeito da base valorativa subjacente à formação da identidade do sujeito moderno, juntamente com a perspectiva sociocultural crítica de Pierre Bourdieu acerca das formas opacas e distorcidas que a luta de classes e entre frações de classe assume na modernidade tardia.
Da obra de Taylor, interessa a Jessé Souza (2012a) sobretudo o enfoque na reconstrução do "pano de fundo moral" que orienta as ações cotidianas dos sujeitos em cada época e cultura, especialmente na modernidade ocidental. Não convém abordar aqui o complexo quadro teórico desenvolvido por Taylor em sua reconstrução das bases morais da constituição da identidade moderna, apenas é importante ressaltar que o tema do reconhecimento é central para Taylor, pois diz respeito às precondições necessárias à atribuição de respeito e autoestima individual e coletiva:
A tese é a de que a nossa identidade é em parte formada pelo reconhecimento ou pela ausência deste. Muito frequentemente, nos casos de falso reconhecimento (misrecognition) por parte dos outros, uma pessoa ou um grupo de pessoas pode sofrer um prejuízo real, uma distorção efetiva, na medida em que os outros projetem nele uma imagem desvalorizada e redutor de si mesmos. Não reconhecimento e falso reconhecimento podem infligir mal, podem ser uma forma de opressão, aprisionando alguém em uma forma de vida redutora, distorcida e falsa... Nessa perspectiva, não reconhecimento não significa apenas ausência do devido respeito. Ele pode infligir feridas graves a alguém, atingindo as suas vítimas com uma mutiladora autoimagem depreciativa. O reconhecimento devido não é apenas uma cortesia que devemos às pessoas. É uma necessidade humana vital (Taylor, citado por Souza, 2012a, p. 38).

Para Taylor, diferentemente do modelo tripartite de Honneth, existem apenas duas formas antinômicas e especificamente modernas de reconhecimento: o ideal de dignidade e o ideal de autenticidade. O primeiro, de caráter universalizante, diz respeito àquelas exigências morais de respeito à vida, à integridade, ao bem-estar que permitem a generalização da ideia de igualdade, direitos e cidadania; o segundo tem caráter particularizante tem a ver com o respeito à identidade única de um certo grupo social, normalmente minoritário (pelo menos no que se refere ao poder relativo). Este segundo tipo de demanda por reconhecimento passa a ser o foco de Taylor em suas análises das patologias e dos conflitos sociais contemporâneos.
Neste ponto Jessé Souza diverge da perspectiva tayloriana, pois entende que, embora a problemática relativa ao ideal da autenticidade também se imponha de forma importante tanto nas sociedades centrais quanto nas periféricas, nestas últimas que não nunca lograram a institucionalização de um Estado de bem-estar, o tema do reconhecimento da "dignidade" adquire centralidade.
A intenção de Souza é construir um quadro de referência conceitual que permita ir além da descrição fenomenológica das situações que espelham respeito ou a falta dele, mas que ponha a nu o ancoramento institucional que lhe confere opacidade e eficácia, permitindo que a esfera da vida cotidiana nas sociedades modernas e periféricas como o Brasil seja perpassada por distinções, hierarquias e princípios classificatórios não percebidos enquanto tais.
A localização e a explicitação desses princípios podem nos ajudar a identificar os mecanismos operantes, de forma opaca e implícita, na distinção social entre classes e grupos sociais distintos em sociedades determinadas. Elas podem nos ajudar a identificar os "operadores simbólicos" que permitem a cada um de nós, na vida cotidiana, hierarquizar e classificar as pessoas como mais ou menos, como dignas de nosso apreço ou de nosso desprezo. Podem também nos esclarecer de que modo disfarçado e intransparente instituições aparentemente neutras implicam, na verdade, imposição subliminar de critérios particularistas e contingentes com seus beneficiários e vítimas muito concretas (Souza, 2012a, p.41-42).

Neste ponto, a contribuição da sociologia crítica de Pierre Bourdieu é decisiva para, em complementariedade com a perspectiva tayloriana, desenvolver a análise dos processos opacos de "naturalização da desigualdade" em sociedades periféricas que não lograram efetivar o fundamento profundo do reconhecimento social da "dignidade" que permite a eficácia social da regra jurídica da igualdade e, portanto, a noção moderna de cidadania (Souza, 2012a).
Taylor (assim como Honneth e Bourdieu) formulou sua teoria sob o ponto de vista do intelectual norte-americano que vivenciou o sucesso relativo do Estado de bem-estar e a aparente pacificação dos conflitos de classe mais virulentos. Por isso, Souza entende que falta a Taylor uma teoria contemporânea da luta de classes que lhe permita ir além de um conceito de reconhecimento que assume, pelo menos tendencialmente, como realidade efetiva a ideologia da igualdade prevalecente nas sociedades centrais. Bourdieu oferece essa possibilidade com sua análise dos mecanismos mascaradores das relações de dominação operantes em todas as dimensões sociais.
Com Bourdieu é possível desvelar e revelar as formas opacas e distorcidas que a luta de classes e entre frações de classe assume na modernidade tardia, seja nos países centrais onde os conflitos são menos flagrantes ou nas periféricas onde se mostram de forma mais explícita. Bourdieu constrói sua teoria com base na relação entre estrutura, habitus e práticas. É particularmente o tema dos habitus que será trabalhado e aperfeiçoado por Jessé Souza.
Valendo-se da sociologia das trocas simbólicas de Pierre Bourdieu, Souza critica essa visão, pois entende que as noções de personalismo e patrimonialismo referem-se à circulação de um tipo de capital social de relações pessoais que, apesar de serem recursos importantes para o sucesso pessoal nas relações cotidianas, não são estruturantes das hierarquias sociais como um todo. Essa função é cumprida pela apropriação diferenciada dos dois tipos de "capitais impessoais" essenciais à reprodução tanto do Estado burocrático centralizador, quanto do mercado competitivo: o capital econômico e o capital cultural.
A produção e apropriação diferencial do capital econômico se dá pelo processo de acumulação pela burguesia da riqueza produzida pela classe trabalhadora. Já o capital cultural refere-se à apropriação diferenciada de bens e recursos simbólicos escassos na sociedade, pelos quais as classes disputam acesso. O "capital cultural" se divide em dois subtipos principais: o capital escolar e o capital familiar, sendo que o primeiro corresponde à incorporação do conhecimento técnico e escolar fundamental para a reprodução tanto do mercado quanto do Estado, enquanto o segundo, o capital familiar, diz respeito ao contexto social primário dos indivíduos, isto é, ao conjunto de disposições para o comportamento adquiridos pela socialização primária. Desse modo, a estratificação social combina aspectos econômicos e socioculturais ligados às classes e frações de classe em disputa. No interior de cada classe, durante o processo de socialização, os indivíduos aprendem a reproduzir, de forma opaca e irrefletida, um tipo de atitude em relação ao mundo atrelado à sua condição de classe, o que Bourdieu chamou de habitus de classe.
Partindo desse pressuposto, Souza retoma a incorporação dos valores e do racionalismo das duas principais instituições modernas, o Estado e o mercado, para explicar a eficácia da hierarquia valorativa decorrente dessa incorporação em nossa vida cotidiana. É precisamente a partir da hierarquia valorativa implícita e ancorada institucionalmente de forma invisível enquanto tal que se define quem é ou não "gente" e, por consequência, quem é ou não cidadão. Isso ocorre segundo critérios contingentes e culturalmente determinados pelo desenvolvimento histórico de cada sociedade.
Assim, a existência de classes marginalizadas envolve a produção e reprodução de pré-condições morais, culturais e políticas e não meramente econômicas, de modo que o antídoto para a desigualdade não passa apenas por uma ajuda tópica e passageira do Estado para que o sujeito marginalizado possa "andar com as próprias pernas". A questão é mais profunda no sentido de que as práticas diárias dos indivíduos, pressupõem a formação de certos habitus mais ou menos adequados aos imperativos institucionais do capitalismo. Estes habitus, por sua vez, dizem respeito aos esquemas avaliativos e disposições de comportamento objetivamente internalizados e incorporados que permitem tanto o compartilhamento de uma noção de cidadania efetiva quanto a reprodução da condição de "subcidadania".
Para explicar esse processo, Souza (2004) propõe uma ampliação do conceito de habitus formulado por Bourdieu, para incluir um aspecto histórico mais matizado no sentido de incluir as particularidades históricas de cada sociedade na formação e diferenciação dos habitus de classe. Souza chama de "habitus primário" o resultado do processo de aprendizado moral incorporado na personalidade das pessoas que logrou generalizar as precondições sociais para o compartilhamento da noção de "dignidade humana" que constitui a base da noção moderna de cidadania. O habitus primário é o que garante a eficácia do padrão normativo vigente em uma sociedade regida pela lógica dos direitos. No entanto, o autor diferencia o habitus primário de dois outros tipos de hábitos: o "habitus secundário" e o "habitus precário". O habitus secundário significa o limite "para cima" do habitus primário, ou seja, ele significa uma fonte de reconhecimento e respeito social que pressupõe, no sentido forte do termo, a generalização do habitus primário. Neste sentido, o habitus secundário já parte da homogeneização dos princípios do habitus primário e institui, por sua vez, os critérios classificatórios de distinção social a partir da apropriação diferencial de recursos materiais e imateriais escassos favoráveis à integração social. Já o "habitus precário", corresponde ao limite "para baixo" do habitus primário, isto é, corresponde àquele tipo de personalidade e disposição para o comportamento que não atende as demandas objetivas para que um indivíduo ou grupo social possa ser reconhecido como produtor útil em uma sociedade competitiva.
No caso do "habitus primário" o que está em jogo é a efetiva disseminação da noção de dignidade do agente racional que o torna agente produtivo e cidadão pleno. Em sociedades avançadas, essa disseminação é efetiva e os casos de "habitus precário" são fenômenos marginais. Em sociedades periféricas como a brasileira, o "habitus precário", que implica a existência de redes invisíveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos, e isso sob a forma de uma evidência social insofismável, tanto para os privilegiados como para as próprias vítimas da precariedade, é um fenômeno de massa e justifica minha tese de que o que diferencia substancialmente esses dois tipos de sociedades é a produção social de uma "ralé estrutural" nas sociedades periféricas. Essa circunstância não elimina, nos dois tipos de sociedade, a existência da luta pela distinção baseada no que chamo de "habitus secundário", que tem a ver com a apropriação seletiva de bens e recursos escassos e constitui contextos cristalizados e tendencialmente permanentes de desigualdade (Souza, 2012a, p.177).

Em outras palavras, a existência desses diferentes graus de habitus nas relações transclassistas significa, no limite, a existência de acordos e consensos sociais mudos e subliminares que perpassam toda a sociedade brasileira e que "naturalizam", como que por meio de fios invisíveis, a distinção entre "cidadãos", de um lado, e "subcidadãos", de outro. Este é obviamente um consenso não admitido, que nenhum brasileiro jamais confessaria partilhar, e é precisamente isso que garante sua eficácia como consenso real, que produz cotidianamente a vida social e política brasileira injusta como ela é.
Acredito que o mais importante do modelo teórico de Souza seja o fato de ele associar os critérios de demanda por reconhecimento (tal como presente em Taylor) à teoria da distinção social de Bourdieu pela noção de habitus. Isso permite pensarmos agora as possíveis contribuições e intersecções do esquema de Souza com a Teoria Crítica do reconhecimento de Axel Honneth.

Considerações finais
Antes de tudo é importante lembrar, por um lado, que ambos os autores (Honneth e Souza) pretendem desenvolver modelos críticos de teoria social que expliquem as patologias das sociedades modernas. Ainda que exista uma diferença fundamental entre eles com relação às bases epistemológicas adotadas – o primeiro permanece ligado à tradição hegeliana de esquerda ancorada na concepção dialética da história, enquanto o segundo parte de uma herança weberiana e está mais preocupado em atualizar uma teoria da ação social no contexto do capitalismo periférico – esses autores apostam igualmente na primazia de uma crítica normativa da sociedade. Tanto para Honneth como para Souza a dimensão moral (e simbólica) da sociedade é determinante para a emancipação. Neste sentido é que podem ser considerados representantes de uma perspectiva moral de teoria crítica da sociedade.
Por outro lado, as diferenças entre esses autores são muitas. Convém destacar um aspecto primordial que os distingue: a presença ou ausência da categoria de luta social. Em Honneth, a luta – isto é, os conflitos sociais – é elemento constitutivo da gramática moral do reconhecimento. Para ele é somente através das lutas explícitas por reconhecimento é que se amplia o horizonte ético de uma determinada comunidade. Em Souza, no entanto, o conflito social é tratado em sua dimensão implícita, opaca e pré-reflexiva, de modo que pouca ou nenhuma atenção é dada aos conflitos sociais mais prementes. Podemos então esboçar as seguintes questões: se para Honneth toda dinâmica de reconhecimento ou desrespeito é motivada/motivadora de conflitos sociais, então como explicar a estabilidade nas sociedades mais desiguais, como a brasileira? Por outro lado, se os mecanismos opacos e pré-reflexivos sustentam através dos habitus de classe específicos a reprodução da dominação simbólica, como sustenta Souza, então qual o fundamento das insurgências dos segmentos sociais oprimidos? Parece-me que essas questões poderiam ser respondidas por um ou outro teórico, mas não de modo tão consequente quanto se pensados em conjunto: os conflitos são de fato a base da dinâmica moral das lutas por reconhecimento, porém inescapavelmente operam no nível dos habitus de classe. Em outras palavras: as lutas por reconhecimento provêm e modificam as estruturas pré-reflexivas de formação da identidade no interior de cada classe ou fração de classe.
Por fim, como as teorias críticas do reconhecimento e da desigualdade social brasileira podem contribuir para a análise das políticas sociais? Acredito que fundamentalmente pelo viés das formas de desrespeito (não-reconhecimento) que se reproduzem no cotidiano de implementação das políticas. Retomando a ideia do "consenso implícito" que sustenta as hierarquias de classe, podemos pensar que no âmbito das políticas públicas de modo geral, esse consenso se traduz de forma inarticulada naquilo que Souza (2009) chamou de má-fé institucional. A má-fé institucional refere-se a um padrão de ação institucional que se articula tanto no nível do Estado, através dos processos decisórios em relação à formulação das políticas públicas, quanto no nível da implementação, isto é, "no nível das relações de poder cotidianas entre os indivíduos que, dependendo do lugar que ocupam na hierarquia social, podem mobilizar de forma diferente os recursos materiais e simbólicos que as instituições oferecem" (Souza, 2009, p.294-295). Para Souza sempre que houver "consensos inarticulados" que legitimem práticas cotidianas de exclusão e marginalização, as instituições vão reproduzir a má-fé dos setores politicamente hegemônicos como a classe média (privilegiada pelo acesso seletivo ao capital cultural em conhecimento útil) e a classe alta (privilegiada pelo acesso seletivo ao capital econômico) (Souza, 2009). O remédio para a violência concreta e simbólica pode residir então na "articulação" moral e simbólica que encontra sua gramática moral nas lutas efetivas dos movimentos sociais por reconhecimento. Nesse sentido, entendo que a luta é pedagógica. O reconhecimento não é apenas o fim, mas o meio para a expansão do horizonte moral na perspectiva de uma eticidade formal. A questão que fica é saber, de dentro da das práticas institucionais, quais os indícios de transformação e quais os obstáculos à emancipação. Essa tarefa depende da investigação empírica orientada por uma teoria que seja crítica da sociedade.


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