Psicanálise da conquista do Fogo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA – FAFICH CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA DAVID JOSÉ GONÇALVES RAMOS

Psicanálise da conquista do Fogo

BELO HORIZONTE 2014

DAVID JOSÉ GONÇALVES RAMOS

Psicanálise da conquista do Fogo

Monografia apresentada ao curso de Especialização em Teoria Psicanalítica, da Faculdade

de

Ciências

Humanas

e

Filosofia, da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de especialista em teoria psicanalítica Orientador Prof. Dr. Verlaine Freitas

BELO HORIZONTE 2014

Para Miriã

Resumo: O fogo é um elemento fundamental para o psiquismo humano de acordo com importantes psicanalistas. Seja na história da espécie humana, como na história do indivíduo a presença do fogo é marcante e definidora de símbolos, mitos e hábitos presentes na adaptação do ser humano no Planeta. Na presente pesquisa abordaremos o mito de Prometeu a partir de Freud e Bachelard, e buscaremos ver presente no século XXI as impressões que o fogo deixou na sociedade. Palavras Chaves: Fogo, Freud, Bachelard, Psicanálise do Fogo, Prometeu.

Abstract: Fire is a fundamental element for the human psyche according to many important psychoanalysts. In the history of the human species, as in the history of the individual the presence of fire is striking and defines symbols, myths and habits present in the adaptation of the human being on the Planet. In the present study we discuss the myth of Prometheus from Freud and from Bachelard, and we seek to see in this XXI century which impressions that fire has left in the society. Keywords: Fire, Freud, Bachelard, Psychoanalysis of Fire, Prometheus.

Sumário

INTRODUÇÃO............................................................................................................................5 CAPÍTULO 1. A CONQUISTA DO FOGO COMO ANTI-SEXUAL........................................ 7 CAPÍTULO 2: A CONQUISTA DO FOGO COMO INTELECTUALIDADE.........................15 CONCLUSÃO. O FOGO COMO TELEOLOGIA....................................................................25 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................................32

INTRODUÇÃO “Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração, há um passado no meu presente, um sol bem quente lá no meu quintal...” diz uma canção de Milton Nascimento falando de uma identidade central na vida de um ser humano que é a infância. A relação de um ser humano com o fogo começa na infância e por isso é marcada pela brincadeira. Do ponto de vista da criança, pode ser que o fogo se apresente como uma alegre experiência nas primeiras vezes, que passa a ser ressignificada pela interdição de um adulto, o que, segundo Bachelard, é um ato de passagem do menino para a condição do moleque. O fogo convida a uma transgressão: acender o fogo escondido e tornar-se adulto. As brincadeiras com o fogo são a situação inicial da memória do problema que Gaston Bachelard descreve na Psicanálise do fogo. Seu objetivo é perseguido por um esforço de buscar, em sua ação filosófica instigada pelo fascínio do fogo na sua infância, o arquétipo da busca por conhecimento objetivo. As dimensões inconscientes das emoções despertadas pela visão de uma chama, os benefícios do domínio do fogo pelas modelagens possíveis de serem feitas com este elemento levaram o ser humano a considerar a origem do fogo no domínio dos deuses. O fogo é um ser cultural, foi obtido na natureza, domesticado pelo ser humano há milênios para fins de desenvolvimento social. Essa criatura é também uma imagem espelhada da forma da alma, estrutura esférica semelhante ao sol: segundo Aristóteles, boa pergunta é se a alma é fogo. Para o ser humano o fogo é um outro poderoso, perigoso, pelo qual há de se ter temor: segundo a lenda de Prometeu, não deve ser apagado. As relações iniciais de um ser humano com o fogo são mediadas pelas interdições dos pais, de modo que quando as brincadeiras com o fogo começam, as crianças são advertidas de que fazem até pipi nas calças, pela noite, segundo um dito do interior de Minas Gerais. Na sociedade contemporânea, o fogo mudou de forma: ficou elétrico, e pode ser armazenado em baterias que alimentam telas de celulares e computadores. Seria o mesmo fascínio de um homem primitivo diante de sua fogueira, observando as imagens dançantes da chama esclarecedora? Seria o mesmo mecanismo psíquico operando quando se está diante da tela de uma das máquinas inteligentes humanas atuais? Prometeu imaginaria que a inteligência dos seres humanos levaria a tornar o fogo uma criatura tão doméstica a ponto de ser possível colocá-lo dentro de minúsculas máquinas digitais? Talvez por essa razão tecnológica Prometeu tenha levado o fogo como um elo evolucionário. Talvez sim, pois o dispositivo que Prometeu utilizou para transportar o fogo do Olimpo até Gaia foi um portátil aparelho feito de caule de funcho. O encanto de uma criança diante de uma chama pode ter semelhanças ao que é experimentado frente às luzes azuladas

de seus aparelhos celulares, o futuro de uma relação ígnea antiga, reveladora de um conjunto de complexos psíquicos. Bachelard desenvolve sua abordagem remetendo continuamente às suas experiências com o fogo na infância, justificando que as opiniões que ele pode fazer, como cientista adulto e objetivo, são estabelecidas em funções inconscientes que operam determinando parte de sua capacidade lógica. O fogo está relacionado com processos de sublimação que realizamos desde a infância. Bachelard nos diz que a ciência moderna não se dedicou a estudar exaustivamente o fogo como a Alquimia, e cita a falta de necessidade científica de tal objeto A constituição de uma perspectiva positivista na modernidade científica, e posteriormente o positivismo lógico, cuidaram de afastar a Alquimia e seu discurso em busca da legitimidade científica. Abordaremos também o texto a conquista do fogo de Freud, onde uma interessante análise do controle das funções do pênis é descrita correlacionada com a descoberta e manutenção do fogo nas sociedades.

CAPÍTULO 1. A CONQUISTA DO FOGO COMO ANTI-SEXUAL Segundo Laplanche, é em Jung que Bachelard encontra as ideias de referência na sua abordagem psicanalítica do fogo. Bachelard anuncia que faz uma psicanálise secundária, que lida com o nível do devaneio, não propriamente do inconsciente, e que por isso tem a vantagem de, segundo ele, ter familiaridade em estudar a imaginação. Jean Laplanche argumenta que a psicanálise do fogo se trata de um texto psicanalítico realmente, e que a dimensão do devaneio é um estado psíquico economicamente ligado, e que os complexos descritos por Bachelard representam possibilidades de trabalho para a teoria psicanalítica. Laplanche descreve certo desconhecimento por parte de Bachelard sobre os escritos freudianos relacionados ao fogo, e descreve a opção do filósofo por Jung, que responde por parte das citações de Bachelard com relação à origem do mito. Segundo Laplanche (...) do mito, Bachelard passa à pré-história: “A conquista do fogo é uma conquista primiti vamente sexual”, ao passo que, mostrando as cartas desde já, eu diria, pelo contrário, que, para Freud, a conquista do fogo é uma conquista primitivamente anti-sexual. Na verdade, para Freud, o que conta mais do que a produção do fogo é a sua domesticação e conservação, enquanto para Bachelard o problema é, em primeiro lugar, o da sua produção.1

As razões para as análises de Freud e Bachelard sobre as possibilidades psicanalíticas do fogo são diferentes: Freud relaciona as formas de conservar e promover o fogo como uma metáfora para o controle da libido que um sujeito deve realizar para experimentar a vida cultural. Qual o significado a conservação do fogo tem para a adaptação da espécie humana? O ser humano é um animal que, através da domesticação do fogo, alcançou o poder de controle da vida em todo o planeta Terra. Se a origem da relação do ser humano com o fogo tem uma inclinação sexual, o desenvolvimento dessa relação atingiu nos tempos de hoje um grau íntimo de simbiose. A citação de Laplanche de que a concepção da origem e da conservação do fogo para Freud se refere a uma função anti-sexual liga-se ao que “Freud descreverá, a propósito de Prometeu, como algo mais dialético, muito mais enterrado e recalcado” 2. Os fatos relacionados à origem e antropomorfização do fogo demonstraram a teleologia do que é possível fazer através da sua conservação. Dois textos podem ser apontados como parte do debate psicanalítico em torno do fogo: Símbolos da transformação (1915) de C.G. Jung, e A aquisição e o controle do fogo (1932) de S. Freud. No texto de Jung as referências ao fogo são vastas e se iniciam com uma historiografia da 1 LAPLANCHE, Jean, 1989. pág 128. 2 Idem. pág 129

relação entre sexualidade e o fogo, reunindo citações de episódios culturais que direcionam o trabalho de conceitualização do fogo: (...) devemos a Karl Abraham ter-nos chamado atenção para uma relação etimológica entre o cavar e a ação de acender o fogo. Este autor encontrou um estudo especial no trabalho de Adalbert Kuhm. Suas pesquisas nos mostraram a possibilidade de Prometeu, o portador do fogo, ter sido irmão do hindu Pramatha, isto é, o pedaço de madeira masculina por cuja fricção se ascendia o fogo. (…) o culto da produção do fogo como superstição foi mantido na Europa até o século XIX. (…), usava-se o feitiço principalmente contra epidemias de gado: “certos donos de animais que eram clérigos por sua posição mas não por convicção ensinavam ao povo a acender fogo pela fricção de paus”.3

Segundo Jung a origem do fogo está no corpo dos deuses, no corpo de deus. Prometeu, ao tirar o fogo e levar aos homens, estaria retirando uma força muito íntima, expondo uma benção poderosa aos seres humanos, inferiores, criaturas finitas. Nas palavras de um demiurgo, Âtman: “deveras, eu próprio sou a criação, pois eu criei o mundo todo!... esfregou então (as mãos mantidas diante da boca), assim; da boca, como do seio materno, e das mãos produziu então o fogo” 4. Ao esfregar as mãos a divindade estabelece a fricção como origem do fogo, o ponto de origem, a atitude criadora, uma atividade rítmica infantil diante do frio, friccionar com as mãos, é a introdução ao problema da importância do fogo para a espécie humana. Friccionar as mãos foi o gesto estabelecido como um ato ontogênico em alguns mitos pesquisados por Jung, e essa sabedoria, ao chegar aos homens, foi imitada pela fricção habilidosa de peças de madeira gerando o gesto criador das primeiras chamas domesticadas. No mito, Prometeu obteve o fogo e o levou aos homens, e com a chegada do fogo estes passaram a desfrutar de coisas que só eram permitidas aos deuses. Laplanche descreve outros dois pontos de abordagem do fogo na psicanálise; Freud e Bachelard. Freud aborda as castrações envolvidas na descoberta e controle do fogo, e Bachelard parece querer tratar da conservação da prática de acender o fogo como imagem da ação intelectual. São reflexões complementares. Ainda segundo Jung, A libido represada por um obstáculo não regride necessariamente para objetos sexuais antigos, mas para atividades rítmicas infantis que são modelo primário tanto do ato de alimentação quanto do ato sexual. Segundo o material de que dispomos, não parece impossível que a descoberta da produção do fogo tenha ocorrido desse modo, isto é, através do redes3 JUNG. C.G., 1986. pág 137. 4 Idem. pág 147.

pertar regressivo do rito. Esta hipótese me parece psicologicamente possível. Não quero dizer com isso que o fogo foi descoberto desse modo. A descoberta pode ter acontecido também ao se bater a pederneira. O que quero constatar aqui é apenas o processo psicológico cujas alusões simbólicas indicam uma tal possibilidade da descoberta de como acender fogo5.

O texto de Jung sobre o fogo surge em 1915, época de sua ruptura teórica com Freud, por razões da teoria da sexualidade. Em 1932 surge A aquisição e o controle do fogo, texto em que Freud fala da relação entre o fogo e a micção. A associação entre o mito de Prometeu e a consciência das funções do pênis (função fisiológica e a função sexual) se dá a partir de uma referência a uma lenda mongol da proibição de urinar nas cinzas de uma fogueira para apagá-la, de como esse hábito é causador de desconforto quando praticado em alguns grupos nômades asiáticos, os mongóis. Entre outras coisas, urinar nas cinzas da fogueira é um desrespeito ao esforço dos ancestrais de encontrar meios de conservação do fogo. Laplanche diz que para Freud o fogo é um fenômeno anti-sexual porque representa a expressão de uma necessidade social de conter os impulsos fisiológicos dos seres humanos, ou pelo menos organizá-los. Freud fala também de uma homossexualidade no ato de urinar nas cinzas, e para ele a inibição da pulsão ou o adiamento de sua satisfação são condições para o nascimento do espaço psíquico. Que conjecturas se podem fazer sobre a aquisição e conservação do fogo pelo homem? São dois acontecimentos ligados aos primórdios da vida social humana. Se o fogo é um fenômeno natural não tão comum na natureza, que tipo de metáfora o ser humano poderia possuir no momento das tentativas iniciais de sua conservação? A vida material do indivíduo, seus interesses por segurança, proteção, calor são aguçados pelas possibilidades do domínio do fogo. Qual seria o objetivo desse esforço de conservar um fenômeno conseguido a partir de algum controle pulsional dos homens? No mito, Prometeu traz o fogo aos homens sendo, portanto, sua origem. Mas a conservação do fogo, seu controle, é obra da engenhosidade humana “(...), com a finalidade de conseguir controle do fogo, os homens tiveram de renunciar ao desejo, mesclado de homossexualismo, de apagá-lo com um jato de urina. (…) os elementos que comportam interpretação analítica, contudo, são, afinal, os mais surpreendentes e importantes, ou seja: a maneira pela qual Prometeu transportou o fogo, as características desse ato (um ultraje, um roubo, um logro contra os deuses) e a significação desse castigo.6“ 5 Idem. Pág 141. 6 FREUD, Sigmund, 1976. pág 227-228. “O mito conta-nos que Prometeu, o titã, herói cultural que era ainda um

deus e que originalmente talvez fosse mesmo um demiurgo e criador de homens, trouxe o fogo aos homens, tendo-o roubado aos deuses e escondendo-o num pau oco, um caule de funcho. Se estivéssemos interpretando um

Freud se propõe interpretar o mito de Prometeu como se interpreta um sonho. A ação de roubar o fogo dos deuses e trazê-lo aos homens, tanto quanto a ação de urinar sobre as brasas, em um sonho, podem significar estar diante do pênis. Prometeu traz o fogo em um pau oco, um caule de funcho, um tubo-pênis que serviu para conservar o fogo na viagem. Na análise dos símbolos, utilizando a observação do contrário do que o símbolo pode dizer, Freud diz: “(...) o que um homem contém no seu tubo-pênis não é o fogo. Pelo contrário, é o meio de apagar o fogo; é a água do seu jato de urina. (…), a aquisição do fogo constituía um crime: foi realizada mediante roubo ou furto. Esse aspecto é constante em todas as lendas sobre a aquisição do fogo.7

A aquisição fogo é a história de uma domesticação: o homem aplicou a domesticação a vários fenômenos naturais, e o fogo, sendo um fenômeno raro na natureza (como gerado em queimadas, raios, vulcões, …) impulsionou o ser humano a desenvolver uma técnica refinada, aprendida, aperfeiçoada, ensinada por uma geração à outra de controle sobre si mesmo. Fabricar o fogo, repetir a gênese de um fenômeno natural, é uma atitude fundante da cultura, para Bachelard. Para Freud, a questão é a sublimação envolvida no tempo de descobrir os mecanismos realizadores do fogo. Sua pergunta é sobre o caráter criminoso desse ato; o feito que leva às intervenções punitivas. Seria ao final o conhecimento do fogo e reprodução desse fenômeno (tão agressivo e indolente em estado natural), resultado de um tempo sem sexo? O fogo foi um importante fator adaptativo, possibilitando várias populações humanas se estabelecerem em locais de baixas temperaturas. Seria o temor ao homossexualismo o verdadeiro impedimento da proibição das brasas urinadas? Freud aborda o mito de Prometeu para responder sua problematização do surgimento do fogo civilizado: “(...) falando em termos analíticos, diríamos que a vida pulsional — o Id — é o deus que é defraudado quando se renuncia à extinção do fogo: na lenda, o desejo humano transformase em privilégio divino. (…) Prometeu foi acorrentado um rochedo, e todos os dias um abutre vinha comer-lhe uma parte do fígado. Também nas lendas referentes ao fogo, em outros povos, entra em cena um pássaro, que deve ter algo a ver com o assunto.8“

sonho, tenderíamos a considerar esse objeto como um símbolo do pênis, embora o acento incomum que se coloca no fato de ser oco nos faça hesitar. Mas, como podemos correlacionar tal tubo-pênis com a preservação do fogo? Parece difícil fazer essa correlação, até que nos lembramos do uso da inversão, da transformação no contrário, da inversão da relação, que é tão comum nos sonhos e que tantas vezes nos oculta o seu significado.” 7 Idem. pág. 228. 8 Idem. pág. 229.

Em um sentido metafórico, Prometeu realizou uma brincadeira, uma travessura, retirou um objeto divino de seu lugar, deslocou o sagrado. Quais seriam as memórias de Freud sobre suas brincadeiras com o fogo na infância? Ele não considerou tal problema por abordar a filogênese da questão, diferente de Bachelard, que faz uma descrição de suas experiências como suporte para desenvolver seu argumento. Laplanche faz comentários elogiosos ao livro Psicanálise do fogo e descreve a tentativa de Bachelard em demarcar o conceito de fogo natural e de fogo cultural, e por tratar o fogo como objeto da psicanálise, no sentido de relacionar à vida intelectual. O fogo como índice de civilização em Freud tem um correlato no conceito de fogo civilizado: “(...) o chamado fogo civilizado, o fogo dos civilizados, é inicialmente o fogo natural, o fogo do céu, ou é o fogo produzido por manipulação, a famosa fricção de dois pedaços de madeira?”9. Segundo a leitura de Freud, o fogo estava com os deuses e era parte da realização de seus desejos, numa vida soberana das pulsões, em que eles experimentam legitimamente todo tipo de transgressão moral, coisa que não é permitida aos seres humanos. Depois desta introdução, Freud segue abordando a punição de Prometeu: ser acorrentado e sofrer a devora diária de seu fígado, sendo o fígado a sede de todas as paixões e desejos. A ave que cumpre a missão de comer o fígado de Prometeu para Freud é uma representação do pênis: “(...) aqui se pode perguntar se nos é permitido atribuir à atividade mitopoiética uma tentativa de dar (ludicamente digamos assim) uma representação disfarçada para os processos mentais universalmente conhecidos”10. O fogo em suas chamas sugere o reinvestimento dos desejos libidinais, que depois de terem sido extintos pela saciedade voltam para atormentar as decisões. Um desejo indestrutível fazia o fígado de Prometeu se reconstruir, e um desejo igualmente indestrutível fazia o pássaro voltar para se alimentar. A renúncia ao instinto que o levou a contrariar os deuses precisava ser lembrada na justa punição. A sequência do mito de Prometeu mostra Hércules, filho de Zeus, pondo fim ao martírio, salvando Prometeu e matando a ave. Esta sequência não foi abordada nem por Freud nem por Bachelard. Este mito de origem do fogo é antigo e foi reelaborado por escritores como Hesíodo (séc. VII a.C.) e Ésquilo (séc. IV a. C.). Nesse momento do texto, Freud passa a tratar a oposição entre o fogo e a água, apontando para uma dupla função do pênis como imagem da função do sexo (fogo) e a função do mijo (água). Segundo ele: “(...) quando o pênis se encontra no estado de excitação, que o levou a ser comparado a um pássaro, e enquanto estão sendo experimentadas sensações que sugerem o calor do fogo, a micção é impossível; e, ao contrário, quando o órgão está servindo para eliminar urina

9 Idem. pág. 230. 10 Idem. pág. 231.

(água do corpo), todas as suas conexões com a função genital parecem ter-se extinguido. 11“

Há no pênis uma tensão entre ser veículo do fogo, do calor seminal, e veículo de água, as excreções líquidas. Para Freud, no mito de Prometeu o controle do fogo se associa ao controle do pênis, ou seja, da sexualidade. A passagem do fogo e a passagem da água referem-se à força e inibição dos impulsos libidinais, sempre renovados, em referência simbólica ao tempo para o controle do esfíncter urinário que uma criança precisa ter para uma infância satisfatória “(...) e o homem primitivo, que trata de compreender o mundo externo com a ajuda de suas próprias sensações e estados corporais certamente não teria deixado de perceber e utilizar as analogias que lhe foram mostradas mediante o comportamento do fogo.12“

Freud aponta três questões importantes no mito de Prometeu: — a relação entre o fogo e a água, quando tomamos a abordagem do mito semelhante à análise do sonho. Também a forma como o fogo é transportado faz referência ao pênis e sugere o conflito entre a micção e a ejaculação; — a aquisição do fogo como resultado de um crime, pois ele é obtido através de um roubo. A aquisição do fogo está ligada a um crime; — a punição ao infrator, a correlação entre o crime e a justiça feita por Zeus, fazendo Prometeu ser atingido no fígado, lugar onde nascem as paixões. Estes elementos do mito de Prometeu se entrelaçam para que Freud represente a origem social do controle da libido, simbolizada pelo falo. Para Freud, o homem primitivo tinha uma relação com o fogo semelhante à paixão amorosa, o calor do fogo causa sensações parecidas às de um estado de excitação sexual. O simbolismo que se estabeleceu para o homem primitivo com relação ao fogo se perpetuou na necessidade de conservá-lo para sua sobrevivência, essas razões se ligam ao inconsciente. O controle da libido foi fundamental para os acordos éticos relacionados à vida social, para evitar o incesto, assassínios, etc. O controle desses impulsos passa pelo conjunto de recomendações quanto ao pênis. O pênis, possuidor das duas funções já descritas aparece para a criança como um objeto enigmático; a impressão que elas manifestam é a de que as duas funções do pênis estão ligadas e que o homem urina dentro da mulher para nascer bebês. “A oposição entre essas duas funções poderia nos levar a dizer que o homem apaga seu fogo com a própria água”13.

11 Idem. pág. 233. 12 Ibidem. 13 Ibidem.

As prescrições do homem primitivo sobre este assunto, ligado às sensações e condições do próprio corpo, tiveram papel na organização psíquica do desejo pessoal em prol da convivência no grupo. O mito de Prometeu aponta para uma vida de um corpo de desejos, o controle desse calor corporal também está relacionado à necessidade do controle do fogo, como parte da evolução das formas sociais e da consequente civilização. A evolução da espécie tem como base as soluções para as necessidades de adaptação ao mundo, principalmente a alimentar. A atividade criminosa de Prometeu confronta a moralidade dos deuses, que privam desse calor o ser humano, um tipo diferente de criatura, que pensa e de inteligência semelhante. Esse conflito parece ser uma analogia da crise entre moralidade e necessidade sempre presente nas formas políticas. O mito de Prometeu é composto na verdade por dois crimes. Freud analisa o furto do fogo, mas antes desse evento há um episódio de uma trapaça que Prometeu realiza contra Zeus. Prometeu era um titã, com o encargo de intermediar a organização e entrega de alimento aos deuses, rituais de sacrifício e queima de oferendas às divindades. Por ocasião de uma oferenda, um boi, a ser entregue a Zeus, Prometeu retirou a carne do animal e distribuiu aos homens, e apresentou a Zeus apenas ossos e gordura envolto por couro. Prometeu astucioso brincou com Zeus e por causa disso este não mais desejou dar o fogo aos homens. A recusa de Zeus desencadeia o mito propriamente dito, que foi o roubo do fogo para dar aos homens. O problema inicial foi a comida, e logo depois o fogo. Sob o prisma de um sonho (segundo Freud) ou mesmo como historiografia, talvez o mito de Prometeu tenha sido cultivado desde o início do povoamento da Grécia como identidade de interdição, à semelhança dos mitos mongóis sobre a urina. A questão de Freud se refere ao segundo delito, o roubo, mas a questão da oferenda adulterada relaciona o alimento ao fogo, o calor e a comida. Essa relação nos remete ao ato de amamentar, o calor e o alimento que são provenientes do corpo da mãe. A primeira punição de Zeus foi justamente negar o fogo aos homens, retirando-lhes infinitas possibilidades; uma punição indireta, pois quem cometera o delito dos alimentos fora Prometeu. Esta punição inicial contra os homens apresenta as grandes dificuldades da origem da espécie humana. Sem a presença do fogo não haveria, segundo Freud, a metáfora concreta da sublimação dos desejos, do adiamento da realização das pulsões conflituosas com a experiência social. De acordo com Laplanche, Freud “(...) procura extrair da etnografia argumentos por manipulação, e de que a domesticação do fogo teria precedido a sua produção técnica. E isso parece confirmado pelo recurso a Prometeu, que, precisamente, não é um produtor do fogo, mas alguém que roubou o fogo do céu; evidentemente, somos tentados a pensar no fogo do raio ou dos vulcões.14“

14 LAPLANCHE, Jean, 1989. pág. 133

O texto de Freud deixa sem comentários a relação entre a fricção e a masturbação, uma vez que, sendo o controle do pênis como resultado do controle do fogo, a atitude masturbatória no homem faria parte desse controle.

CAPÍTULO 2: A CONQUISTA DO FOGO COMO INTELECTUALIDADE 2.1. Sobre A psicanálise do fogo Gaston Bachelard publica em 1938 o livro A psicanálise do fogo. Seria um livro de filosofia ou um livro de psicanálise? A resposta seria necessária se a finalidade da leitura do livro fosse uma referência direta à clínica psicanalítica. Por razões da reflexão sobre a origem do ser humano, das sociedades humanas, o retorno ao problema do fogo pode ser uma análise sobre as condições propícias para a constituição das formas sociais do ethos. O fogo é um símbolo que arquetipicamente se refere à vida, às paixões, também à repressão, purificação, ou à transgressão. Jean Laplanche no texto A sublimação, de 1976, faz uma reconstituição das abordagens psicanalíticas sobre o fogo e indica o livro de Bachelard como importante, devido aos complexos psíquicos do fogo descritos por ele. A clínica psicanalítica indicada por Bachelard para os portadores desses complexos não serve a pacientes neuróticos, psicóticos, esquizofrênicos, mas sim se refere aos produtores de ciência. Estes também sofrem suas repetições adoecidas que emergem sintomáticas nas formulações do conhecimento objetivo. A reflexão de Bachelard se volta aos estados de devaneio, presentes na vida noturna da produção científica. No livro A psicanálise do fogo Bachelard descreve quatro complexos referentes aos devaneios gerados pelo fogo. Essa descrição de mecanismos libidinais que fundamentam opções descritivas objetivas faz pensar na pertinência da pergunta sobre qual estado psíquico é mais propício para a realização científica; (...) os conceitos de psicanálise e de complexo em Bachelard aparecem na perspectiva de sua ambivalência positiva e negativa. No sentido negativo, Bachelard dirá que os erros, enganos e exageros das explicações sobre a questão dos quatro elementos: terra, água, fogo e ar, provêm não do senso comum, ou de poetas e escritores, mas de homens da ciência, como médicos, cientistas, químicos e físicos. Tais erros e enganos são devidos a consciências não psicanalisadas.15

A dimensão positiva é a proposição de uma psicanálise do conhecimento objetivo capaz de verificar as bases inconscientes do conhecimento científico. Mesmo pesquisadores, acadêmicos, cientistas têm necessidade de libertar-se de preconceitos. Na perspectiva positiva, há a hipótese de que se pode acompanhar o caminho inconsciente do conceito, e Bachelard se propõem a isso

15 SILVA, Luzia Batista de Oliveira, 1999. pág. 29

lidando com o fogo, tratando a origem do fogo na vida humana como a origem de uma fome de saber (...) com efeito, as condições antigas do devaneio não são eliminadas pela formação científica contemporânea. O próprio cientista, quando abandona seu trabalho, retorna às valorizações primitivas. Seria inútil portanto, descrever, na linha de uma história, um pensamento que não cessa de contradizer os ensinamentos da história científica. Ao contrário, dedicare mos uma parte de nossos esforços a mostrar que o devaneio não cessa de retornar os temas primitivos, não cessa de trabalhar como uma alma positiva.16

Os quatro complexos do fogo enunciados por Bachelard se referem a estes estados primitivos despertados pela presença do fogo e das suas formas. “Cientificamente falando, um complexo afetivo é uma imagem emocional viva de uma determinada situação psíquica fixa” 17. Um complexo é uma repetição? É um instrumental objetivo para estudar o psiquismo? Laplanche nos diz (...) eis que Bachelard inventa “complexos”: (…) diverte-se com a psicanálise, cria “complexos”, num sentido não muito distanciado da análise, como complexos de representações e afetos, um conjunto que a psicanálise deverá, diz ele, dissolver ou, pelo menos, analisar em seus elementos (e talvez não sem dano para a poesia; ai está uma questão a considerar).18

A submissão da inclinação poética ao serviço psicanalítico sofre o risco da racionalização empobrecedora, ainda assim, Bachelard prossegue em sua caracterização. Poderia ter buscado a filosofia do fogo, mas a intenção de Bachelard parecia ser a de abordar sintomas da vida subjetiva que surgem na vida objetiva, e a vida subjetiva está associada às experiências de calor, proteção, desconforto, frio, experiências que se aguçam na presença do fogo. Abaixo segue um quadro com uma síntese dos quatro complexos do fogo bachelardiano. Na presente pesquisa abordaremos apenas o complexo de Prometeu, mas é importante ter em vista os demais, ainda que de maneira sucinta:

16 BACHELARD, Gaston, 2008. pág. 5-6 17 SILVA, Luzia Batista de Oliveira, 1999. pág. 18 18 LAPLANCHE, Jean, 1989, pág. 120

Os complexos do fogo bachelardianos Complexo das tendências que nos levam a querer saber Complexo de Prometeu

mais do que nossos pais e mestres provocadas pelos devaneios da produção e uso do fogo.

Complexo de Novalis

Complexo de Hoffmann

Complexo de Empédocles

“(...) O complexo de Novalis é o das almas românticas, que têm como característica uma consciência do calor da intimidade, que busca ultrapassar uma consciência puramente visual da luz. A necessidade objetiva é explicada por uma consciência subjetiva, que sente o desejo de penetração, de interiorização das coisas e dos seres. O autor desse complexo é o próprio Novalis, a partir da obra: Henri d’Ofterdingen (1799). O romantismo que caracteriza a obra de Novalis, busca superar a referência ao concreto, à luminosidade visual, em direção à necessidade de sentir calor íntimo.19“

“(...) O complexo de Hoffmann, ou complexo do Ponche, pelo fato de ele atravessar a obra inteira de Ernst Hoffmann (1776). Além de alcoólatra, Hoffmann se refere constantemente ao ponche, bebida quente. O fogo desempenha um papel primordial nos devaneios, e a inspiração surge da chama do álcool. O ponche, a chama que sai do álcool, nos contos de Hoffmann, tornam o símbolo do ponche, segundo Bachelard, “singularmente ativo”. Bachelard chama Hoffmann de 'imaginador fantástico', pela importância que este atribui aos fenômenos do fogo.20”

“(...) O complexo de Empédocles é aquele que une amor e respeito ao fogo, o instinto de morrer e o instinto de viver. A atração pelo fogo, o desejo de acabar com tudo, de morrer no fogo, de provocar uma morte cósmica, pois junto com a destruição há o aniquilamento de todo o universo. Para Bachelard, Empédocles, ao escolher morrer no fogo, é como se consagrasse sua força, preferindo esconder sua fraqueza. “só é bom o que não morre, e para nós só não morre o que morre conosco” (D’Annunzio). Em “Fragmentos de uma poética do fogo”, Bachelard retorna ao complexo de Empédocles e diz que Empédocles é o herói da morte trágica, que morre para voltar “a vida dos deuses etéreos”.21

Analisaremos o mito de Prometeu, segundo a abordagem de Bachelard, para comparar com a abordagem de Freud e retirar desta dialética elementos para a descrição das situações

19 SILVA, Luzia Batista de Oliveira, 1999. pág. 45 20 Idem. pág 46. 21 Idem. pág 45.

contemporâneas que o fogo estabelece com o ser humano. Os demais complexos bachelardianos do fogo são interessantes e merecem análises mais detalhadas e futuras. O complexo de Prometeu se refere ao conhecido mito da origem do fogo, e Bachelard utiliza a perspectiva psicanalítica de Jung para tratar dos elementos água, fogo, terra e ar. Ele entende que os arquétipos, as regiões psíquicas intermediárias entre a consciência e a inconsciência estão povoadas de cultura, e são processos psíquicos fundamentais. Os arquétipos do fogo, a antropomorfização, simbolização deste elemento foi um fator de evolução social. Bachelard analisa o mito de Prometeu por uma arqueologia psicológica: uma imagem de um verdadeiro rito de passagem que o ser humano faz, em certas sociedades, através do fogo. Há duas questões importantes para a reflexão psicanalítica do fogo propostas por Bachelard: — a identificação do mito de Prometeu a um arquétipo de complexo psíquico (que pode ser desconfortável); — o estudo do conteúdo do mito encontrado por Bachelard em eventos de sua própria infância. Ao considerar a situação epistêmica de Prometeu diante do fogo, Bachelard se afasta um pouco do enfoque freudiano que se refere à transgressão e punição de Prometeu. Bachelard vê o mito como uma oportunidade pedagógica de falar do fogo. Segundo Laplanche (...) Bachelard ignora o estudo de Freud sobre o fogo e veremos a discordância. Mas ele conhece Jung: Metáforas e símbolos da libido, e nele se inspira amplamente. Sua ideia básica (para irmos rapidamente ao essencial dessa obra, que vale sobretudo por seus exemplos, pelo estilo e pela poesia, sendo a própria ideia, em última análise bastante fácil de resumir) é que se deve partir da relação imaginária, sonhada, metafórica, com o fogo, sendo a relação realista, secundária e derivada.22

Há valores inconscientes com relação ao fogo, e Bachelard pretende falar deles, para assim, ao analisá-los, aproximar nossa capacidade de conhecimento objetivo das operações que as impressões primitivas poderiam ter. Bachelard analisa a interferência dos conhecimentos subjetivos e pessoais nos conhecimentos objetivos e científicos, e “também podemos perceber o contrário, ou seja, nos conhecimentos subjetivos e pessoais, interferências dos conhecimentos objetivos e sociais”23. Bachelard utiliza um recurso de análise da infância, comentando e refletindo acontecimentos de sua família. A poesia com que o filósofo narra episódios do fogo provoca uma 22 LAPLANCHE, Jean, 1989. pág 126 23 SILVA, Luzia Batista de Oliveira, 1999. pág. 29

série de associações psicanalíticas, como a descrição dos papéis do pai e da mãe nos festejos em que o masculino acende o fogo, e, cerimonialmente o feminino o apaga: (...) nas grandes festas de inverno, em minha infância, preparava-se um Brûlot. Meu pai vertia bagaceira de nossa vinha num largo prato. No centro colocava torrões de açúcar, os maiores do açucareiro. Assim que o fósforo tocava a ponta do açúcar, a chama azul corria como um pequeno ruído sobre o álcool derramado. Minha mãe apagava a luz. (…), então se teorizava: apagar muito tarde e ter um brûlot muito doce; apagar muito cedo e concentrar menos fogo (...).24

2.2. O complexo de Prometeu “O complexo de Prometeu pode agrupar todas as tendências que nos impelem a saber tanto quanto nossos pais e mestre e mais do que eles” 25. O foco de Bachelard não é sobre a punição de Prometeu, mas sobre sua ousadia ao arrebatar dos deuses a chama, experiência que, segundo o filósofo, é repetida pelas crianças quando decidem acender o fogo, configurando um complexo de Prometeu que “pode ser considerado, segundo Bachelard, como complexo de Édipo da vida intelectual. Pois existe no homem verdadeira vontade de possuir intelectualidade e superar os mestres, ultrapassar a si mesmo”26. A opção de Prometeu com relação a sua predileção pelos homens mostra que ele, Prometeu, queria participar da história também como uma espécie de demiurgo, de fazedor de homens, ou de evoluidor de homens. A primeira manifestação dessa ousadia se deu quando tentou relativizar as oferendas aos deuses, zombando da diferença entre o que é oferecido aos deuses e o que é destinado aos homens. A segunda ousadia foi ter retirado o fogo do Olimpo e levado aos homens, armando os homens com o fogo celeste, provocando talvez assim um distanciamento entre homens e deuses, e, talvez, instruindo na forma em que ele armazenou o fogo para trazê-lo à terra, um caule oco, o caminho da instrumentalização desse fenômeno físico. A fricção de gravetos se tornou uma prática comum de gerar fogo na antiguidade. Entretanto, o mito Prometeu não revela a origem do fogo, não deixa muito claro como produzi-lo, ele mostra o presente que Zeus postergava em dar.

24 BACHELARD, Gaston, 2008. pág. 125 25 SILVA, Luzia Batista de Oliveira, 1999. pág. 41 26 Ibidem.

O complexo de Prometeu em Bachelard se inicia com o tema do respeito, semelhante ao texto de Freud em que o respeito às cinzas da fogueira deve impedir que se urine ali. As memórias associadas ao fogo, provenientes da vida de criança estão relacionadas ao respeito: (...) o fogo e o calor fornecem meios de explicação nos domínios mais variados porque são, para nós, a ocasião de lembranças imperecíveis, de experiências pessoais simples e decisivas. O fogo é, assim, um fenômeno privilegiado capaz de explicar tudo.27

A facilidade com que o fogo se multiplica, somada ao que se aprende quando criança que o fogo é a queima de oxigênio, o ar que respiramos, leva-nos a pensar que, de alguma forma, o fogo respira. Bachelard segue descrevendo emoções associadas ao fogo, um elemento contido como o ódio e a vingança. Um elemento que pode provocar a purificação agressiva, um elemento a ser temido e respeitado. Quando Bachelard associa o complexo de Prometeu ao complexo de Édipo (na vida intelectual), estaria ele se referindo a uma cena erótica insuportável entre o conhecimento objetivo e o conhecimento subjetivo? A atitude respeitosa de Prometeu infiltrando-se na relação entre o Demiurgo, o pai, Zeus, e sua criação, o homem, teria sido uma atitude sexual de promoção de um bem? O conhecimento objetivo sofreria de uma cegueira com relação a seu passado do mesmo modo de Édipo? Segundo Bachelard (...), o problema do conhecimento pessoal do fogo é o problema da desobediência engenhosa. A criança quer fazer como seu pai, longe de seu pai, e, qual um pequeno prometeu, rouba fósforos. Corre, então, pelos campos e, no fundo de um barranco, ajudado por seus companheiros, acende a lareira dos gazeteiros.28

O fogo é um objeto pelo qual vale a pena ludibriar os deuses, ou os adultos, mas, após a descoberta do feito surge a punição (...) à medida que a criança cresce, as interdições se espiritualizam; o tapa (dado se a crian ça aproxima sua mão do fogo) é substituído pela voz colérica; a voz colérica pelo relato dos perigos do incêndio; pelas lendas sobre o fogo do céu. Assim o fenômeno natural é rapidamente associado a conhecimentos sociais, complexos e confusos. 29

27 BACHELARD, Gaston, 2008. pág. 11 28 Idem. pág. 17 29 Ibidem

Bachelard especifica o grupo cultural que não experimenta este elo com a mentalidade primitiva, ligada à necessidade de convívio com o fogo aceso, com experiências mais próximas de produzir o fogo, e também ao fascínio de roubar o fogo dos adultos: (...) a criança da cidade pouco sabe desse fogo que flameja (…). está isenta desse complexo de Prometeu cuja ação experimentei tantas vezes. Somente esse complexo pode nos fazer compreender o interesse que sempre desperta a lenda — em si bastante pobre — do pai do fogo.30

O fogo é o objeto que não pode ser substituído, há ocasiões em que o manuseio do fogo é índice da organização psíquica. A problematização em torno da sentença “agir como o pai” faz pensar que a vida urbana promove formas de gerar e conservar o fogo (fósforos, fagulhas elétricas, micro-ondas) que não são propícias para momentos das tramas do fogo. Um grupo de pessoas exposto às condições culturais onde a fabricação do fogo seja um hábito constante e de instrumental primitivo está mais propícia a filosofar sobre as origens do fogo, e também sobre os estados psíquicos referentes aos benefícios do fogo. Os momentos de solidão diante do fogo são evocados por Bachelard como parte de uma experiência cognitiva referente a Prometeu. (...) ambicioso e contraditório objetivo da “Psicanálise do fogo”: curar o espírito de suas felicidades, arrancá-lo do narcisismo que a evidência proporciona, dar-lhes outras seguranças que não a posse, outras forças de convicção que não o calor e o entusiasmo, em suma, pes soas que não seriam em absoluto chama! É o homem pensativo que queremos aqui, o ho mem junto à lareira, na solidão, quando o fogo é brilhante como uma consciência da soli dão.31

O complexo de Prometeu envolve uma introspecção como sintoma? Ele começa na imaginação e nas travessuras da criança e segue pela vida, provocando a vontade de saber. No complexo de Prometeu há o risco da solidão, pois “o fogo é bem-estar e respeito. É um deus tutelar e terrível, bom e mau. Pode contradizer-se, por isso é um dos princípios do universo” 32. Bachelard parece dizer que o fogo propõe uma cosmologia, um despertar para explicar o universo, e na solidão diante da presença da chama o sujeito é embalado com perguntas sobre a origem. Talvez haja uma correlação feita pela mente primitiva entre o fogo e as estrelas (fogo dos céus), entre o fogo e a alma. Tais reflexões fazem com que a mente primitiva seja atual, necessária 30 Ibidem. 31 FREITAS, Alexander. Apolo-Prometeu e Dionísio: dois perfis mitológicos do “homem de 24 horas” de Gaston Bachelard. IN: Revista Educação e Pesquisa, USP. São Paulo: (USP), 2006. (jan-abrl). Pág. 103-116. 32 BACHELARD, Gaston, 2008. pág. 12

para fazer pensar sobre elementos também primitivos. A questão de levar o fogo aos homens, criaturas inferiores, primitivas, que representam ainda um nível de animal, é a inclinação intelectual de Prometeu, a de gerar uma saúde. Diz Bachelard: (...) quando eu estava enfermo, meu pai ascendia o fogo em meu quarto. (…) eu não imaginava que meu pai pudesse ser igualado nessa função, que ele jamais delegou a ninguém. De fato, não me lembro de ter ascendido um fogo antes dos dezoito anos. (…) mas a arte de atiçar, que aprendi com meu pai, permaneceu em mim como uma vaidade. Preferia, acredito, fracassar numa aula de filosofia do que em meu fogo da manhã.33

Prometeu não era um deus, mas sim, um titã, um ser incompleto, seria então o complexo de Prometeu uma referência à inveja? O ato ético de entregar o fogo aos homens justifica as duas tentativas de Prometeu em irritar a Zeus? A figura no mito de Prometeu é uma das formas da necessidade de respeito diante do fogo? Na análise de Bachelard deste mito aparece a figura do pai como um elemento. Na análise de Freud, essa figura está totalmente diluída. A emoção inicial de ver o fogo, de acompanhar seus milagres, como descreve Bachelard na cena de sua enfermidade; o fogo torna possível certas realidades, e o pai é o ser poderoso que controla aquela entidade perigosa, o fogo, que é a imagem do próprio conhecimento. Mesmo que saiba das punições que pode receber, Prometeu acende o fogo para os homens, fabrica um objeto para transportar o fogo e o entrega. Este detalhe Freud explora melhor que Bachelard, analisando o artefato que Prometeu utilizou. A dimensão técnica, a techné do titã, poderia ser analisada, pois faz parte do mito, e está ligada ao controle do fogo, sua miniaturização e acomodação, em que se ressalta a imaginação dos gregos em considerar um caule oco de funcho lugar propício para o transporte da chama. Freud associa o pequeno objeto com o pênis. Já Bachelard enfoca o desejo que levou Prometeu inventar tal instrumento, essa invenção como parte da intelectualidade envolvida nas relações com o fogo. Buscando relacionar a ousadia da criança em arquitetar formas de obter o fogo dos adultos, de adquirir e controlar o fogo (por brincadeira ou outra precisão), o sujeito começa a se habituar com a busca do conhecimento objetivo, que pode ou não corresponder ao controle cultural do desejo, da libido. Para Bachelard “(...) um exemplo do método que pretendemos seguir para uma psicanálise do conhecimento objetivo. Trata-se, com efeito, de encontrar a ação dos valores inconscientes na própria base do conhecimento empírico e científico”34. O fogo pode estar na origem da ciência, mas não claramente na experiência de vida do cientista. Bachelard faz uma crítica à psicologia positivista, que favorece a estrutura e a educação de um espírito civilizado, deixando fora da vida dos sujeitos urbanos as experiências prometeicas, que perdem a credibilidade de um saber: “(...), não é preciso tecer considerações sobre o papel do fogo 33 Idem. pág. 13 34 Idem. pág. 15

nas sociedades primitivas, nem insistir sobre as dificuldades técnicas de sua conservação; basta fazer psicologia positiva”35. Para Bachelard, o fogo é um ser cultural, que teve suas condições de existência, e pôde ser produzido em situações artificiais por um conjunto de substâncias químicas. O segredo da produção e da conservação do fogo pertence à humanidade, mas os mistérios de sua origem continuam fechados, dentro do mito. Os homens seguiram os dizeres de Prometeu em uma obrigação de nunca apagá-lo, no sentido de nunca fazê-lo totalmente. A associação feita por Bachelard do mito de prometeu a um complexo evidencia, pela descrição dos primeiros contatos com o fogo, a existência de convicções inconscientes do discurso objetivo. Estas podem ser encontradas em uma “zona menos profunda do que aquela onde se desenvolveram os instintos primitivos; e esta zona, por ser intermediária, tem uma ação determinante para o pensamento claro, para o pensamento científico” 36. Há uma vontade de intelectualidade na tentativa de Prometeu em ser um co-demiurgo, em interceder pelos seres humanos: Prometeu é um tipo de cientista social, realizando experimentos com o objetivo de laicizar a vida humana (roubando o tributo dos deuses para os homens) e elevar o ser humano a outro status cognitivo. Ser capaz de acender o fogo quando criança confirma certos sintomas do complexo de Prometeu, principalmente a vontade de intelectualidade, uma inclinação primitiva acentuada pela presença do fogo, nos minutos em que a mente humana fica presa ao movimento das chamas e o corpo pondera sobre o calor, e vice-versa; (...) saber e fabricar são necessidades que é possível caracterizar em si mesmas, sem colocálas necessariamente em relação com a vontade de poder. Há no homem uma verdadeira vontade de intelectualidade. (…) propomos, pois, agrupar, sob o nome de complexo de Prometeu, todas as tendências que nos impelem a saber tanto quanto nossos pais, mais que nossos pais, tanto quanto nossos mestres, mais que nossos mestres. 37

O aperfeiçoamento do controle do fogo contribuiu para o aperfeiçoamento do conhecimento objetivo geral, pois se relacionam o fogo e a curiosidade, ambição por mais saber, controle crítico, purificação das ideias. De alguma forma a posse do fogo se relaciona ao desejo de saber utilizá-lo; de maneira a conduzi-lo, filtrá-lo, mudá-lo. O que um sujeito urbano encontra pronto em termos do consumo doméstico de energia não carrega imediata reflexão sobre a história da conquista do fogo. Teria Zeus ficado surpreso com o desenvolvimento do objeto sagrado, e seria esta surpresa semelhante àquela que uma geração experimenta ao ver as evoluções tecnológicas de outra geração? Bachelard volta à comparação entre Prometeu e Édipo, e talvez esteja falando da 35 Ibidem 36 BACHELARD, Gaston, 2008. pág. 18 37 Ibidem

crise de identidade entre as gerações quanto ao desenvolvimento da vida intelectual. Este poderia ser um conflito inconsciente em cientistas, a ambição em superar a geração de pensadores anteriores, e em que medida esse complexo funcionando gera conhecimentos menos objetivos do que se esperava? Freud havia dito que o controle do fogo estava relacionado ao controle das paixões, uma referência ao domínio sobre o desejo, à economia e o zelo com as chamas acesas, e Bachelard acrescenta que uma geração busca superar a outra neste zelo. Quais foram as influências dos devaneios do fogo para a capacidade de pesquisar? O desejo de imitar o pai, para Bachelard, era o desejo de imitar tão bem o pai no controle do fogo, e se esse controle é anti-sexual, a superação da capacidade do pai em acender o fogo pode ser um aperfeiçoamento desta dimensão. A intelectualidade é o tempo psíquico que o devaneio do fogo pode promover, ainda que nem todos os espíritos passem por essa experiência. Uma intelectualidade parece, nas palavras de Bachelard, uma relação produtiva com o fogo, com sua condição cultural, um objeto de ambição por conhecimento: “(...) se a intelectualidade pura é excepcional, ainda assim é muito característica de uma evolução especificamente humana. O complexo de Prometeu é o complexo de Édipo da vida intelectual” 38.

38 BACHELARD, Gaston, 2008. pág. 19

CONCLUSÃO. O FOGO COMO TELEOLOGIA

Tanto para Freud quanto para Bachelard o mito de Prometeu se refere às possibilidades de vida social humana a partir da conquista e controle do fogo. Freud disseca o mito da maneira que faz com um sonho, Bachelard busca memórias de sua infância. Freud observa que o controle das funções do pênis está relacionado com a repressão dos desejos. Para Bachelard é a vontade de acender o fogo autonomamente, uma sede de saber, o que remete ao mito de Prometeu. Tanto para Freud quanto para Bachelard mudanças psíquicas ocorreram na espécie humana pelo contato com o fogo, mas o fogo deixou de ser um elemento explícito, explicitado, nos lares do século XXI em sociedades urbanas. O fogo urbano é o fogo industrializado, inodoro, incolor, invisível. Seria o mito de Prometeu uma referência apenas aos momentos iniciais da relação com o fogo, quando o respeito e o temor realizaram coordenações de condutas em grupos primitivos? Ou a referência é apenas ao fogo amarelo, o fogo da madeira? A análise psicanalítica do fogo levou inicialmente ao mito de Prometeu, e a partir dele se pode traçar a relação entre o fogo e a cultura, que tanto no homem primitivo (Freud) quanto na criança (Bachelard) causaram fascínio provocado pela imaginação ígnea. A primeira desobediência de Prometeu, o engodo do alimento para os deuses não foi assimilada ao restante do mito, mas está relacionada ao roubo do fogo e à repressão dos deuses. Na história da sobrevivência humana, a passagem da comida crua para a cozida ou assada foi um marco adaptativo importante, e representa de alguma forma a distribuição que Prometeu fez do melhor da carne do boi para os homens, entregando a Zeus os ossos e a gordura. As necessidades alimentares trouxeram o fogo para dentro das casas, demandaram as formas de gerá-lo sempre que preciso, as maneiras de conservá-lo, as predições para seu manuseio, e a criação de artefatos mecânicos, como o fogão, o forno, o micro-ondas. A segunda punição de Prometeu é a parte em que Freud se dedica a observar a relação entre a necessidade de controle do desejo (o fígado que sempre se recompõe) diante dos imperativos da existência (o pássaro que sempre retorna). Talvez haja mitos de origem do fogo em culturas indígenas brasileiras tão reveladoras dessa origem quanto o de Prometeu, entretanto a ancestralidade de Prometeu entre os Gregos indica uma história revisitada e ilustrativa de um conflito moral com relação ao fogo. Passados tantos milênios, quais as novas manifestações do devaneio diante do fogo, para além da repressão dos desejos e estímulo à intelectualidade?

Os objetos tecnológicos contemporâneos possuiriam inscrições primitivas em sua utilização? Seria o mesmo devaneio experimentado diante de um celular ou notebook aquele que é sentido diante das chamas de uma fogueira? As estruturas epistemológicas envolvidas na trajetória de um mito influenciam o pensamento daqueles que têm parte com ele; o que nos fez humanos uma vez pode funcionar em muitas gerações, pois a fisiologia humana não mudou tanto assim; as questões relacionadas com o controle do fogo íntimo (Freud) e relacionadas com a intelectualidade (Bachelard) ainda estão colocadas, mesmo que a vida contemporânea abandone a promessa de uma vida digital, distanciando o ser humano de suas origens. Os tecnólogos se colocam no lugar de Prometeu e constantemente trazem de seus deuses novidades tecnológicas que são o aperfeiçoamento do tubo-pênis original, guardando a chama no seu interior, a energia. Os minúsculos compartimentos de um aparelho eletrônico digital conduzem as chamas elétricas, fazendo funcionar as potencialidades, principalmente relacionadas à comunicabilidade humana. Se buscarmos a análise do mito de Prometeu por Freud, encontraremos a transgressão do desejo e a necessária repreensão, para que as más inclinações fiquem contidas. O ser humano é um animal voraz, que não tem um controle fisiológico instintivo para seus apetites, demandando da cultura a força coercitiva de seu caráter. Como pensar a relação entre o desejo e a posse dos bens tecnológicos? Pensando a proposição de Bachelard, o excesso de busca de superação de uma geração sobre a antecessora, muito evidente na distância intelectual instaurada pelo uso dos objetos tecnológicos atuais, veríamos como um sintoma problemático, não se tratando mais de superar intelectualmente os pais e mestres por razões de autonomia, mas de superar-se constantemente, usando aparelhos e paradigmas novíssimos em nome de uma distância afetiva e de uma escravidão do consumo. A eletricidade conduzida aos lares nas sociedades industriais fez surgir conflitos na racionalidade. Herbert Marcuse, em Tecnologia, guerra e fascismo, descreve os lares alemães da década de 1940 como lugares onde a racionalidade individual sofria as pressões do que ele chama de racionalidade tecnológica: os aparelhos de rádio transmitiam a ideologia nazista e ocupavam o centro da vida familiar, como um fogo aceso irradiando ideias e verdades difíceis de serem contraditas pelo esforço individual de pensar o pensamento. O desenvolvimento do controle do fogo possibilitou a energia elétrica, o fogo elétrico, e a partir deste as invenções, a teleologia das máquinas domésticas. Emergiu a compulsão de produzir sempre novas invenções a partir do controle e possibilidade de transporte do fogo, na forma de baterias; o indivíduo do século XXI recarrega seus aparelhos digitais e transporta dentro deles a chama que faz funcionar estes objetos. Sem a energia, sempre recarregável, celulares e computadores são objetos frios e mortos. O calor

que impulsiona estas máquinas é o longínquo calor escondido em um pedaço de madeira trazido pelo titã. Laplanche associa a questão do fogo com a sublimação; procedimentos de controle da chama, passagem de um estado sólido para o estado gasoso, em termos psíquicos: a condução de uma pulsão a um estado suportável. Para Laplanche, Freud apresenta uma imagem linear da sublimação ao tratar a imagem do controle do fogo: a sublimação do desejo de Prometeu, da posse do fogo ocorre de maneira radical com a punição de Zeus. Em Bachelard a sublimação é dialética, a descrição memorial entre a ignorância e o saber no percurso da formação intelectual não ocorre de uma vez, num imediato da repressão, mas sim em constantes episódios em que a criança acende o fogo longe dos pais como pedagogia para futuras criações científicas. Na verdade não se trata aqui de detalhar o conceito de sublimação, que é denso, mas se pensarmos, por exemplo, o vício do cigarro como forma sublimatória de desejos ansiados por serem realizados, e vermos o fogo, a queima do fumo, presentes nesse processo, poderíamos ver a perspectiva linear (fumar para deslocar temporalmente o desejo) e dialética (acender o cigarro longe dos adultos e a cada cigarro se tornar mais adulto, ou, o cigarro como hábito intelectual). Voltando ao mito de Prometeu, ele teria força literária para ajudar a conhecer os objetos tecnológicos, passíveis de controle libidinal e desenvolvimento intelectual? As referências psicanalíticas ao fogo serviriam para iluminar os novos capítulos da história do ser humano com o fogo, a era tecnológica? Se sim para essas perguntas, vamos às primeiras proposições: — O fogo desenhado para aquecer e fazer funcionar máquinas digitais do século XXI, máquinas principalmente de comunicabilidade humana, continua sendo o fogo de Prometeu, ocasião de controle das pulsões ígneas, relacionado com a ação de forças emocionais violentas como a chama, e nesse sentido há uma tensão a ser represada, reprimida no uso do fogo contemporâneo, principalmente do fogo elétrico. Nessa perspectiva o mito de Prometeu abordado da maneira de Freud ainda seria útil para tratar, por exemplo, dos conflitos pessoais com o consumo de energia, da necessidade da sociedade de modular a voracidade dos indivíduos, no caso contemporâneo, no excessivo estímulo ao consumo que gera o excessivo controle do trabalho. Por essa perspectiva, usuários compulsivos de eletrodomésticos, do fogo industrializado, seriam os prometeus não educados pela punição dos deuses; — Na perspectiva de Bachelard a impressão forte seria a da busca de superação intelectual dos pais e mestres que o fogo provoca. Sua posição é a de que os indivíduos urbanos não produzem conhecimento objetivo da mesma forma que indivíduos campesinos, por exemplo, pelas distintas maneiras em que o fogo é apresentado, ou, as distintas maneiras que o acendedor do fogo é pressentido, invejado e imitado. Na cidade não se trata mais do fogo

das lareiras, fogueiras, velas, lamparinas, formatos ligados à vida rural, indígena, campesina, onde os conflitos da posse do fogo são mais explícitos. A vida na cidade desloca esta experiência. Então, a primeira referência contemporânea ao problema do fogo partindo de Bachelard é negativa, pois ele demonstra uma saudade de certos estados psíquicos ligados à lida direta com as chamas. A segunda referência à Psicanálise do fogo, em termos do mito de Prometeu, pode ser positiva, pois é a descrição do desejo ígneo de superar intelectualmente os mentores, e essas podem ser as razões para o constante progresso da experiência digital, e, como causa, da experiência de manejo industrial do fogo. A relação que as economias contemporâneas estabelecem entre a venda do fogo e o trabalho necessário para adquirir recursos para tal consumo coloca os indivíduos urbanos em uma forma de viver em que precisam sublimar constantemente seus desejos de construção pessoal para participarem do mundo do trabalho de forma intensa. O desejo de realizar os objetivos ligados ao contato com o fogo industrializado, para o prazer, segurança, saúde e demais benefícios primitivos que o fogo traz ainda hoje está submetido ao regime de trabalho dos sujeitos consumidores, e, também, aos formatos de família possíveis nessas condições. As formas de armazenar o combustível para criar o fogo também estão monetizadas, já não se obtém a madeira para a fricção, ou lenha da mesma forma, e não seria possível abastecer de combustível imensas populações como as atuais da mesma forma que no passado; o ser humano urbano recebe, compra esses serviços, de produção de combustível, condução e armazenamento, já não vivem a necessidade cotidiana de pensar a causa do fogo. Talvez nesse sentido o mito de Prometeu se refira apenas ao momento originário da relação do homem com o fogo, e à vida rural, como vivida por Bachelard em Bar-surAlbe, cidadezinha do leste da França no final do século XIX. A imagem de homens nômades urinando nas cinzas fumegantes de uma fogueira, e as recomendações de Prometeu de que o fogo deve continuar aceso, no entanto, alcançam a imaginação teleológica da evolução digital, que diz ao ser humano urbano que há um constante futuro nas tecnologias digitais, um constante futuro se tornando presente, causando uma expectativa infinita da evolução industrial linear do ser humano. Essa evolução da produção tem razões materialistas para criar regimes de trabalho intenso, e formas de viver anti-sexuais para obter essa constante metamorfose positiva. As séries de objetos digitais se substituem em tempo cada vez menor; a velocidade com que Prometeu rouba o fogo dos deuses acelerou; a dependência do ser humano urbano criada sobre o desenvolvimento tecnológico faz com que os jovens refaçam o desafio intelectual que Bachelard diz haver em Prometeu, mas sem o calor da relação direta com o fogo; é um fogo razoavelmente frio guardado dentro de minúsculas caixas, baterias. O tempo de viver dedicado por seres humanos

na produção e consumo dos tubos-pênis metálicos e inteligentes, o tempo dedicado às pesquisas, ao controle das pulsões que interferem na dedicação de cientistas e operários, as imensas corporações, conglomerados, multinacionais que arregimentam grandes massas humanas são fenômenos atuais do controle do fogo. As demarcações conceituais do fogo, entretanto, parecem estar ocultas do que se pode dizer sobre o psiquismo do fogo industrial; as demandas cognitivas do homem primitivo diante da chama (que ainda podem ser experimentadas quando de um acampamento nas montanhas, onde a fogueira acesa entre o espaço das barracas ilumina, aquece e causa o devaneio da intelectualidade) não parecem acontecer diante do fogo industrializado. Se a clínica psicanalítica está presente no livro de Bachelard, ela se refere aos tecnólogos e cientistas, aos produtores do saber objetivo, que no edifício do conhecimento contemporâneo não percebem os sintomas de sua relação primitiva com o fogo, ou com a falta da presença desta relação. O fogo industrializado pode corresponder a estados psíquicos novos, e a falta de análise sobre os estados inconscientes do uso das tecnologias, por exemplo, corresponderia ao complexo de Prometeu bachelardiano e seus elementos negativos, como a solidão, a individualidade. Há culturas que ainda oportunizam as maneiras tradicionais de produzir o fogo, possibilitando o devaneio que provoca a vontade de saber. A ciência produzida em cidades superpopulosas, feitas por cientistas que tiveram uma infância de apartamento e excesso de bens eletrônicos é uma ciência menor? Que outras formas de fazer ciência, que outros devaneios o fogo industrial provoca, sedimenta inconscientemente imagens, sensações, memórias, que depois se ligam na base das certezas? Se para Bachelard os centros urbanos não são locais propícios para um Prometeu, para Freud talvez seja o local privilegiado para o titã, uma vez que a vida urbana é ocasião de maior controle da libido, pelo grande conjunto de regras, normas e proibições impostas à vida sexual do sujeito, impostas à sua chama íntima. Os processos de sublimação podem estar ocorrendo nas situações de trabalho, de obediência, de sobrevivência. As crianças urbanas do século XXI possuem um conjunto de rotinas que as afastam do fogo, de sua visão e controle, mas não do fogo industrial, comunicativo. A Psicanálise do fogo, mesmo do fogo industrializado, seria útil para simbolizar o que vai na alma dos sujeitos contemporâneos? Segundo relato de um tecnólogo americano: (...) na minha infância, o ritmo da inovação era extremamente lento. Lembro-me de quando o rádio a transmissor apareceram. Comprei um e o levei para a colônia de férias no verão. Todos nós tínhamos um. Foi uma inovação maravilhosa. E aquele rádio e seus predecessores não mudaram durante anos. Também me lembro de nossa primeira televisão. Aquele aparelho também durou anos, até o aparecimento de uma inovação: as cores.39

39 TAPSCOTT, Don, 2010. pág 117.

A evolução do controle da energia ígnea doméstica tem na estética dos eletrodomésticos as funções antes realizadas pela fogueira, pela vela: a fogueira foi substituída por uma infinidade de objetos, capazes de gerar o fogo elétrico, o calor, a luz, o fogo radioativo, e tantos outros, na finalidade de atender as novas experiências psíquicas, existenciais das famílias urbanas. Para Bachelard um afastamento do objeto concreto fogo impede a aventura de acendê-lo, a visão dessa aventura primitiva. Em churrascos, ocasiões onde se queima a carne sobre brasas, e o fogo é visto, muitas reflexões ainda se podem fazer, ou alcançar pelos devaneios ali despertados, com relação ao fogo e suas funções sociais, culturais. Para Freud, o estudo psicanalítico do fogo parece ter sido útil na demonstração de como estudar um mito: da forma como se estuda um sonho. Até mesmo esta suposição poderia ser colocada em investigação analítica, mas o texto de Freud parece ter surgido como ilustração para debates sobre a origem da civilização, descrição da sexualidade primitiva, descrição de parte da filogênese masculina, ilustrando como o controle das funções do pênis é um mecanismo de sublimação da energia sexual, gerando como consequência social o sujeito civilizado, que atualmente é o sujeito produtivo, operador na esfera de Apolo. Já para Bachelard, o fogo é um projeto epistemológico: falar das experiências com o fogo nos aproximaria do tema da curiosidade infantil que está presente na produção da ciência, e, porque não, da tecnologia; a intelectualidade pode ser causada por desejos inconscientes. Trazendo as referências de Freud e Bachelard numa atualização do mito de Prometeu, da relação do homem com o fogo, a partir da imagem de um fogo contemporâneo, podemos dizer que: — O controle do tempo no mundo do trabalho capitalista impossibilita para grande parte da população a produção manual do fogo como forma portadora de devaneios, ou, em outra formulação: a civilização não se orienta mais pela forma primitiva de produção do fogo; — O fogo ainda é a energia que organiza a experiência gregária das famílias, mesmo em lares urbanos: a busca por acender o fogo escondido do pai pode-se tornar, em menor escala, a busca da criança por operar de maneira mais eficiente os eletrodomésticos e máquinas digitais, ou, ao menos, possuir mais desses objetos tecnológicos que os pais. Portanto, ainda se faz possível indagar bachelardianamente se o uso dessas máquinas ígneas geram devaneios que influenciarão o senso crítico, o fazer lógico objetivo; — O impulso em superar o intelecto dos pais, incorporado ao processo de sublimação do fogo íntimo leva à aparente tensão da autonomia, uma vez que, segundo Bachelard a inveja da criança é a inveja como a de Prometeu. Novas formas de roubar o fogo dos adultos têm determinado o rumo da civilização tecnológica, não sem refinamento das experiências antisexuais.

No Prometeu freudiano a reconstituição das energias sexuais é limitada pela ação da ave, do pênis, a vida sexual é diminuída em tempo para que outras atividades possam ser realizadas. Se o celular é uma espécie de fogo contemporâneo, há uma força de repressão da libido agindo no seu uso, se é energia, se é fogo industrializado armazenado alimentando funções elétricas da máquina, seu uso também é tempo dedicado a finalidades de organização da libido. As inovações tecnológicas que são apresentadas aos jovens nos centros civilizados do planeta custam valores altos, demandam recursos que são dispostos pelo trabalho, não necessariamente relacionado com a vida íntima do fogo pessoal. O fogo das máquinas digitais se extingue rápido, e novas máquinas, novos tubo-pênis, portadores de energia ígnea, luminosos e interativos são apresentados, criando um ciclo de controle do trabalho e da sexualidade. O tempo curto entre uma inovação tecnológica e outra demonstra o grau de controle que o homem tem do fogo, tanto no design industrial da produção das máquinas, quanto na engenharia de armazenamento de energia dessas máquina. A tecnologia digital representa assim uma forma de controle externo da vida pulsional dos sujeitos. A produção do fogo doméstico responde também às razões dos Estados, com seus tributos e leis, legitimando a forma social, no momento teleológico que Freud descreve como civilização. O padecimento intelectual dessa civilização pode ser causado pelo fato de haver uma distância grande entre usufruir de um aparelho digital e indagar sobre as formas de produção da energia necessária ao funcionamento de tal aparelho, seu fogo. A atualidade do complexo de Prometeu, da Psicanálise do fogo, poderia ser buscada na problematização dos hábitos digitais. A dimensão clínica da abordagem da solidão digital, talvez.

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