Psicologia e Amizade: Por uma ética da amizade na relação terapêutica. Grandes Temas do Conhecimento: Psicologia, São Paulo, p. 13 - 17. 2016.

May 29, 2017 | Autor: Oriana Hadler | Categoria: Nietzsche, Agamben, Psicología, Amizade, Relação Terapeuta-Paciente
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Por uma ética da amizade na relação terapêutica

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UALQUER PESSOA QUE FOR EXPERIMENTAR A FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA PODERÁ, MUITO PROVAVELMENTE, DEPARAR-SE COM A SIMPLES, PORÉM NEVRÁLGICA, ADVERTÊNCIA: O PSICÓLOGO NÃO DEVERÁ SER OU TORNAR-SE AMIGO DE SEUS CLIENTES. MUITO COMUM E SIMPLES, ESTA ADVERTÊNCIA COLOCA LUZ E TENTA RESOLVER O POLÊMICO DILEMA DA NEUTRALIDADE DO PROFISSIONAL PSICÓLOGO COLOCANDO EM CENA, TALVEZ, UM COMPLEXO JOGO DE PROXIMIDADE E DISTANCIAMENTO QUE POSSA DEFINIR UMA RELAÇÃO PROFISSIONAL E NÃO AMICAL. CONTUDO, HÁ NESTE ALARME UMA NOÇÃO DE AMIZADE QUE PODE FAZER TODA A DIFERENÇA – NÃO SÓ PARA O DILEMA DA NEUTRALIDADE, MAS PARA TODO O CAMPO PSI – E POR ISSO DIZEMOS QUE AQUI SE ENCONTRA ALGO NEVRÁLGICO. Dentre as palavras que ocupam os nossos silêncios em qualquer dia a dia e que fluem com a naturalidade irreflexível do apenas dizer, digamos aquelas as quais não necessitam reflexão, pois nos ocorrem sem a dificuldade de um questionamento ou um pensamento filosófico a fim de conjurá-las em um enunciado, encontra-se a palavra amigo . uando dizemos, então, sou seu amigo ou tenho amigos , estamos considerando que há outro ser com o qual estabelecemos uma relação de confiança e fraternidade podemos inclusive ser mais literais e dizermos

que fulano é irmão, brother, mano, etc.). É aquele outro com quem saímos para tomar uma cerveja e celebrar algo, que nos apoia e luta por nós, para quem contamos nossos segredos mas não todos . ão há mistério nisso. Parece ser bastante claro o que é um amigo e, portanto, faz todo o sentido que você não saia para tomar cerveja com o seu psicólogo, já que este não se insere neste círculo social, mas sim como um profissional ao qual cabe não tomar partido, que o faz enfrentar se a si mesmo e descobrir segredos nas profundidades de suas vivências e história, buscando com que você se torne algo que ainda não é, para então melhorar sua qualidade de vida e inclusive aprimorar suas relaç es interpessoais com seus amigos. stabelece se desta forma uma relação chamada terapêutica, até então considerada diferente da relação de amizade. Porém, se seguirmos na linha de Agamben, passamos a considerar a amizade não como uma categoria para a qual selecionamos pessoas, e sim uma condição existencial que é, de fato, a amizade senão uma proximidade tal que dela não é possível fazer nem uma representação ou um conceito econhecer alguém como amigo significa não poder reconhecê lo como algo . ão se pode dizer amigo como se diz branco , italiano ou quente a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito. Agamben, 9, p. 8

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Nesta condição, a relação terapêutica convoca para a relação amical uma intensidade do com: de comviver. e pensarmos em amizade sob esta ótica, já ampliada de seu senso comum, e a tensionarmos deste jeito para a relação terapêutica, podemos sim dizer que existe amizade na psicologia. Afinal, o profissional psi não compartilha e comdivide das vicissitudes e histórias daqueles que a ele chegam , mais do que isso, ele não comvida este sujeito a questionar sobre sua própria relação consigo osso foco aqui será exatamente colocar em análise a amizade da relação terapêutica, e para isso nos apoiaremos em alguns amigos discursivos, como os autores Agamben 9 e ietzsche 1998, , 8 . ão sem o receio de cometer imprecis es conceituais, buscaremos abrir um debate que não se fecha em verdades, mas que se prop e ao instável e, desta forma, aposta na potência de uma relação terapêutica que está disposta a novas configuraç es. A esta, aproximaremos outros modos de pensar a amizade, não aquela de tomar cerveja, mas aquela que convida o sujeito a se beber em seus afetos, que celebra diferentes formas de ser e luta por outros modos de pensar a si mesmo e o mundo. ma amizade que se relaciona psicologia ampliando e potencializando suas formas terapêuticas, mas, mais do que isso, colocando-a em deslocamento. lhar para a psicologia e amizade desta forma é pensar esta relação como um movimento em permanente processo, não como algo “O que é, de fato, a amizade senão uma proximidade tal que dela não é possível fazer nem uma representação ou um conceito?”

redutivelmente curativo que enxerga indivíduos fechados em patologias, mas, pelo contrário, toma os sujeitos como seres em transformação. sto significa dizer que a relação terapêutica não trata uma essência, pois abre mão da crença em um n cleo humano ou natureza humana , e aposta no potencial do outro, compartilhando das vicissitudes da vida. Nesta relação, a noção de amizade, como corriqueiramente é conhecida, não parece encontrar sentido. Porém, o que propomos aqui é exatamente retirá la do seu lugar comum. Tomar a amizade como força relacional, mais do que um limite estabelecido. Tal proposição amical convoca a relação entre psicologia e amizade para um território entre. ma passagem na qual a terapêutica se dá como experiência, provocando uma outra forma de habitar o mundo, um modo outro de estar no mundo, uma ética um modo de conduzir se e uma estética um estilo arrosa, , p. . Podemos dizer que ao tomar a relação terapêutica sob esta ótica, prop e se um caminho para uma metamorfose, pois nessa passagem e forma de ocupar o mundo, não seremos mais os mesmos. ão devemos nos enganar, contudo, ao pensar que esta ética relacional seja algo fácil ou até mesmo sutil. ste campo de experimentação é lançado sobre o sujeito como uma força tamanha, que não somente passa a movimentar a forma como o sujeito pensa o mundo, mas a própria condição do pensar: um processo de se descarnar de si. A amizade, assim, conjuga se como a própria condição de colocar se contra seu próprio eu. m processo de estar em guerra consigo mesmo. Consideramos que a relação terapêutica seja uma forma de provocar este encontro bélico, pois as práticas psicológicas buscam possibilitar um encontro do sujeito consigo mesmo. este encontro, não se pode retirar afetos, escolher lados ou definir fronteiras tão claras. Ao entrar em contato com aquilo que se é ou, no caso, se está sempre em vias de ser), o sujeito deve lidar com tudo o que tem de sombra e luz, do que existe de solidão em si um processo de dobradura sobre si. Pensar a amizade desta forma na psicologia, remete dizer que o lugar do amigo é aquele que põe o outro à prova dele mesmo. Nesse sentido, o lugar do amigo também é deslocado de sua compreensão naturalizada. Para o filósofo alemão, riedrich ietzsche, o amigo é exatamente aquele que convida o outro a um combate, inflige nele uma proposição mudança não o exalta nem o glorifica, mas o

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“És capaz de chegar-te muito perto do teu amigo, sem te passares para o lado dele?”

conduz simplicidade de seu ser, em toda a potência que existe nesta condição. a figura do amigo em seu reverso ê ao menos meu inimigo Assim fala o verdadeiro respeito, que não ouso pedir amizade. e se quer ter um amigo, então também deve querer fazer guerra por ele e para fazer guerra, é preciso poder ser inimigo. esmo na pessoa do amigo, se deve honrar o inimigo. s capaz de chegar te muito perto do teu amigo, sem te passares para o lado dele Deves ter no teu amigo o teu melhor inimigo. quando o contrarias que deves estar mais próximo dele com o coração. ietzsche, 1998, p. 3 profissional da psicologia neste sentido é um amigo. aquele que possibilita o espaço onde o sujeito encontrará seus abismos mais profundos, ao mesmo tempo em que provocará com que este se enxergue como na superfície de um rio. ntre abismo e superfície, o questionamento sobre quem se é, quem se torna. a amizade neste meio é a força que possibilita não somente a confiança para lançar se frente ao abismo, como para refletir se sobre sua própria

superfície. la não é uma condição de cada pessoa este é amigo, este não é amigo , mas um espaço que acontece entre dois indivíduos o terreno onde se transborda a plena liberdade de ser liveira, 11 . á duas características para tomar esta ética da amizade sua forma transitória e a premissa da desconstrução. Em relação à primeira característica, quem nos explica ela é ietzsche 8a , quando este nos fala da transitoriedade da relação amical. filósofo argumenta o quanto as coisas em sua experimentação de mundo não são infinitas, porém, isto não significa dizer que elas sejam levianas, como algo que de tão provisoriamente trespassou, que não deixou vestígio. ão. Ao tratar a amizade como algo transitório, queremos dizer que é exatamente por ser passageira que ela deixa marcas, não pela brevidade, mas por sua intensidade. Como quando lembramos de um professor que marcou o aprendizado de certo saber, ou quando ficamos com o gosto de um doce da inf ncia, ou ainda quando lembramos daquele abraço, daquele carinho de pessoas importantes, mas que não estão mais aqui. São passagens transformadoras, cujas vivências passam a fazer parte de nós e sem as quais não nos compreenderíamos como seres. A transitoriedade da amizade que propomos é neste sentido de marcas que produzem quem somos, ou como diz iacoia 11, p. 1 sse é o sentido da amizade para ietzsche ser ocasião de um devir, uma travessia para que alguém possa tornar se o que é, num processo que permanece em aberto durante toda a vida, tanto para uma como para a outra das pessoas ligadas por um vínculo de amizade. á a segunda característica, coloca se quanto à ideia de desconstrução e está intrinsecamente ligada primeira. xatamente por ser transitória e deixar sua marca, essa amizade provoca uma dor de mudança, um sofrimento quanto sua finitude. Contudo, o sofrimento de perda aqui não vem atrelado a algo necessariamente ruim. Para ietzsche , este processo está para além do bem e do mal, sendo que a possibilidade de adoecer, ainda que cause danos dor, tristeza, lutos , gera criação, a busca por outros caminhos. Dentre os processos criativos que surgem, assinalamos um em especial: ainda que em meio a cuidados de outros, o maior desafio e a maior transformação é que o indivíduo adoecido precisa se voltar para si mesmo, ele possui a liberdade de transbordar e se construir de novo. amigo, nessa relação, é a ponte que nos conduz para nós mesmos e esse nós mesmos não é jamais

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um estado permanente e inalterável, mas permanente processo de autossuperação iacoia, 11, pp. 11 1 . ietzsche quando nos traz a questão de uma ética da amizade, a contrap e a uma moral da compaixão. A moral da compaixão relaciona se com o compartilhamento da dor e do sofrimento. A compaixão carrega em si uma negação da vida no momento em que o que seduz no compartilhar é a vida como flagelo, onde o ser é compreendido como uma vítima da vida. m contrapartida, a ética da amizade seria o seu antídoto nela há o compartilhamento da afirmação da vida, e isto não ocorre senão pelo compartilhamento pleno da alegria porém, isto não diz respeito a uma felicidade utópica ou a um otimismo ilusório . Tomar a relação terapêutica como processo movido por uma ética da amizade significa mobilizar a própria força vital de poder aceitar a existência em seu curso imprevisível e incontrolável. sto é o processo de autossuperação. Assim, a ética da amizade seria o solo nico onde a alegria, a afirmação de existência, pode germinar. ietzsche fala que isto é cultivar a si mesmo. nesta aventura filosófica que encontramos não apenas uma relação de amizade, mas uma ética da amizade, de modo que o amigo não configura se como substantivo, como um elemento concreto que pode ser encontrado em alguém ou alguma coisa, mas como algo somente possível mediante a própria experiência de amizade. xperiências que não necessitam ser comunicadas, explicadas, mas justamente ganham força ao passo em que são compartilhadas no mbito do próprio acontecimento, da própria vida acontecendo.

Assim, parecemos responder pergunta lançada no início deste texto psicologia e amizade não só estão estreitamente ligadas, como tal relação convoca ao sujeito a possibilidade de transbordar e ser novo, de se perder e se encontrar Dias, inter, Costa adler, 1 . em uma ética amical, não é possível convidar o sujeito a pensar sobre si, não é possível olhar para o abismo, banhar se em um rio e sair outro “Eu e Mim estão sempre em conversa demasiado animada; como isso seria suportável se não houvesse um amigo. Para o eremita, o amigo é sempre o terceiro o terceiro é sempre a cortiça, que impede a conversa dos dois de se afundar nos abismos. á á demasiados abismos para todos os solitários. Por isso é que eles anseiam tanto por um amigo e pela sua elevação. ietzsche, 1998, p. (*) Oriana Holsbach Hadler é doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Atualmente realiza Doutorado Sanduíche na University of Westminster (Londres). Mestre em Psicologia Social pela PUCRS, Psicóloga graduada pela UCPel e pós-graduada na Goldsmiths College - University of London, Inglaterra. Psicodramatista pelo IDH-RS. Integrante do Núcleo E-politcs - Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação pela UFRGS. E-mail: [email protected] (**) Pablo Potrich Corazza é psicólogo pela Universidade de Passo Fundo, especialista em Gestão de Centro Educativo pela Universidade Federal do Paraná. Atuou como psicólogo técnico do Programa Ação Rua, pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre/RS e coordenador técnico do Programa Construindo a Liberdade, pela Secretaria de Assistência Social de Piraquara/PR. Cursou especialização em Terapia de Família no Domus em Porto Alegre/RS. Exerce prática clínica voltada para a infância, juventude, família e casais. E-mail: [email protected]

“Exatamente por ser transitória e deixar sua marca, essa amizade provoca uma dor de mudança, um sofrimento quanto à sua finitude. Contudo, o sofrimento de perda aqui não vem atrelado a algo necessariamente ruim.“

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