Psicologia, Moral e Pessimismo na República de Platão

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, Unicamp Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Filosofia Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP

Psicologia, Moral e Pessimismo na República de Platão COSTA RUGNITZ, N.. ANGIONI, L.

Relatório parcial anual correspondente ao primeiro ano de doutorado de Natalia Costa Rugnitz, sob orientação do Prof. Dr. Lucas Angioni e o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP

São Paulo, Brasil Maio 2015

Índice

1

Introdução ao relatório

3

Psicologia, Moral e Pessimismo na República de Platão CAPÍTULO I – O pessimismo platônico I: A leitura Tradicional: século XIX, James Sully A leitura alternativa Século XXI – Bobonich Século XX – Gould VS. Vlastos Gould Vlastos Século XVIII – Schopenhauer Século I- Clemente de Alexandria e os Marcionistas CAPÍTULO II – O Pessimismo: II. I – Definição e Historia II.II – Conteúdo ANEXO 1 – Acerca de la distinción entre Sócrates y Platón: I - Nietzsche

5 7 12

20 27 32

36 39 xx

ANEXO 2 - Apresentações em Congressos: I – II Congreso de La Sociedad Filosófica del Uruguay, Agosto 2014 Sócrates optimista, Platón pesimista? 41 II -Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia, Outubro 2014 Platão entre utopia e pessimismo

BIBLIOGRAFIA

50

81

Introdução

2

Este relatório apresenta o resultado parcial da pesquisa intitulada Psicologia, Moral e Pessimismo na República de Platão, fruto do primeiro ano de doutorado em Filosofia Antiga desenvolvido por mim na Unicamp, orientado pelo Prof. Dr. Lucas Angioni e financiado pela FAPESP. Aproveito para reiterar a gratidão a ambos pela aposta neste trabalho. A suspeita fundamental do nosso estudo é a de que o pensamento platônico contém as sementes de uma tradição que se torna plenamente visível apenas na modernidade: a tradição filosófica do pessimismo. O grosso do texto que segue é uma versão inicial do primeiro capítulo, onde se reúnem diversas leituras que, de uma ou outra maneira, apontaram a nuance pessimista da filosofia de Platão, desde o começo da cristandade à época contemporânea. Seguem também algumas anotações (ainda não revisadas) do segundo capítulo, onde consideraremos o fenômeno do pessimismo desde o ponto de vista histórico e conceitual. No último, ainda não redigido, voltaremos ao princípio e, tendo notado que o comentário refere quase sempre a áreas isoladas nas quais o pessimismo de Platão esta presente, ensaiaremos uma reconstrução do mesmo a partir da psicologia (teoria da alma tripartida) e da epistemologia, passando dali à moral e à política, com o intuito de construir uma plataforma unitária para a discussão.

Adicionam-se aqui, em seguida, dois apêndices. O primeiro pretenderá oferecer uma retrospectiva da possibilidade tentadora de entender o pessimismo platônico com base no contraste entre o pensamento do discípulo e o do mestre.

3

Consideramos adequado reunir estas anotações por separado - elas são produto de uma estratégia antecipadamente falida, já que o esforço por cindir Sócrates e Platão é, em última instância, irrealizável. Contudo daremos atenção a alguns dos autores que embarcam neste caminho, relacionando o otimismo com a figura de Sócrates e o pessimismo com a de Platão. Entre tais autores se encontra Gould, quem até agora tem se mostrado como o principal defensor do pessimismo platônico, e Friedrich Nietzsche, a cuja interpretação dedicaremos, por enquanto, todas as páginas do apêndice. Nietzsche foi filólogo clássico de formação e profissão; o estudo do legado antigo ocupou pelo menos os primeiros dez anos da sua carreira, tempo no qual ensinou em Basiléia. Segundo Heidegger, é impossível entender Nietzsche sem entender os gregos. Isto, no caso, significa entender a interpretação nietzschiana da cultura grega como um todo, nas suas mais diversas etapas e manifestações, de Homero a Eurípides, do Peloponeso à Macedônia. Mas entre todos os gregos, diz Heidegger, é justamente Platão o único filósofo crucial para a obra madura de Nietzsche1. Isto é relevante para nós, especialmente porque Nietzsche nomeia Sócrates como Pai do Otimismo. O objetivo desta parte do anexo é compreender tal denominação rastrear a impressão nietzschiana de Platão. Cabe adiantar que este apêndice está ainda em construção e é redigido, por motivos práticos, em espanhol. O segundo apêndice reúne os trabalhos apresentados em congressos em 2014: Sócrates optimista, Platón pesimista, comunicação oral exposta no II 1

HEIDEGGER, M., Nietzsche, Pfullingen, 1961, Vol. I, citado em: NIETZSCHE, F., Introdução aos diálogos platônicos, tradução ao italiano Piero di Giovani, Ed. Bollati Boringhieri, Torino, 1991, p. 9

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Congreso de la Sociedad Filosófica del Uruguay (Uruguay, Agosto 2014); e Platão entre utopia e pessimismo, cujo resumo foi lido no XVI Congresso da Associação Nacional de Filosofia, ANPOF (Brasil, Outubro 2014). Ambos estes artigos foram submetidos à publicação nos anais dos respectivos eventos, ainda em organização.

*

5

Psicologia, Moral e Pessimismo na República de Platão

CAPÍTULO I: O pessimismo platônico

A posição tradicional Na paradigmática obra Pessimism: A History and Criticism (1877), o inglês James Sully sustenta com todas as letras uma ideia que não é incomum: a de que a filosofia platônica constitui “um exemplo de otimismo insuperável”, comparável “apenas às interpretações mais favoráveis da teologia cristã” as quais, ele acrescenta, a posição platônica vence 2. Esta é uma formulação um tanto extrema de uma leitura, não obstante, muito difundida: trata-se do Platão idealista, aristocrático e despótico, fundador de utopias, criador de homens superiores. Sully parece pertencer a esta linha interpretativa, que podemos chamar tradicional. Ele, conceituado como o primeiro historiador do pessimismo, entende que as raízes do fenômeno se estendem até abraçar o espírito grego arcaico mas que elas retrocedem, inclusive desaparecem, poucos séculos depois, 2

SULLY, Pessimism: A History and Criticism, Henrry S. King & CO., Londres, 1887, p. 43.

6

estando completamente ausentes na época clássica. O inglês detecta traços pessimistas no discurso dos poetas. Tal traço é, de fato, tão sugestivo que vale nos deter nele e resgatar com cuidado a evidência, inclusive porque haverá de ser-nos útil no capítulo seguinte. Hesíodo diz: “A terra e o mar estão repletos de males, e de dia e de noite pendem pesados fardos sobre os seres humanos” (Os trabalhos e os dias), enquanto Homero lamenta: “entre todas as coisas que respiram e se movem sobre a terra não há nada mais miserável do que o homem” (Ilíada, 446-7). “Não ter nascido seria o melhor, mas tendo visto a luz do dia o preferível é voltar tão logo quanto seja possível a ali de onde se veio”, proclama Sófocles (Édipo em Colono, 1225). O inglês aceita, ainda, que existe, nos filósofos pré-socráticos pelo menos, um profundo senso do caráter insondável do universo e das graves limitações da busca humana de conhecimento. Neste contexto, Empédocles inaugura o tratado Sobre a Natureza com a seguinte advertência: “E (...) são muitas as dificuldades que atrapalham as meditações. Após ter observado no curso das suas vidas uma parte miserável, efêmeros como o mundo se lançam a voar, convencidos apenas daquilo que cada um encontrou no seu vaguear de um lado a outro, jactando-se de tê-lo descoberto tudo. Mas a tal ponto não são coisas observáveis nem audíveis pelos homens, nem abarcáveis pela sua inteligência! Assim que tu, que até aqui vieste, saberás, porém não mais do que o mortal pode chegar a saber” 3

Esta notável passagem de Empédocles deixa em evidência como o insight trágico estava realmente presente nos primeiros pensadores. Sully entende, porém, que a percepção se retrotrai progressivamente, na medida em que, em 3

Em: Filosofos Presocráticos, ed. Alianza, Madrid, 1988. Tradução do grego de A. Bernabé, tradução do espanhol própria.

7

última instância, a “verdade” se torna de alguma maneira acessível. Contudo, o autor não se estende na explicação de por quê e de que maneira esta confiança teria sido suficiente para livrar os pré-socráticos do embate pessimista a ponto de

libertá-los,

inclinando-os

antes

à

tendência

contrária.

Ele

observa

simplesmente que, pelo menos no âmbito cosmológico, uma solução otimista é atingida enquanto há um reconhecimento geral da ordem e da harmonia do universo, associado a um princípio ou processo regulador (o nous para Anaxágoras, a philia como contrapeso do ódio para Empédocles, etc.). Sully entende que isto é suficiente para propiciar uma disposição cada vez mais favorável e sustenta que o ar que se respira quando, na época clássica, a natureza humana se torna o foco de atenção, conserva esta nota positiva: “Todos principais éticos, Sócrates, Platão e Aristóteles, junto com as escolas rivais dos Cirenaicos e Cínicos, Epicúreos e Estoicos, parecem ter defendido tacitamente que o bem se encontra dentro das possibilidades humanas”4. No momento de se pronunciar a respeito do caso platônico, o inglês se remete ao viés cosmológico e teológico: a criação acontece para Platão na forma de uma imposição da inteligência, o “elemento divino”, sobre a necessidade, e o mal é um fenômeno confinado ao mundo sensível enquanto espectro do Ideal. O autor não enxerga nisto, na sua um tanto apressada consideração, elementos de pessimismo que mereçam ser considerados; para ele, a inclinação pessimista será retomada somente no período helênico com o desenvolvimento da filosofia em Alexandria (neoplatonismo e neopitagorismo). A respeito desde período tardio, Sully comenta que “na maior parte das mentes gregas brilhantes, a felicidade tinha se 4

SULLY, Ibidem - A SUSPEITA FUNDAMENTAL, etc.

8

tornado tão ligada ao exercício intelectual da contemplação da verdade que o abandono da busca da verdade absoluta levou naturalmente a uma visão pessimista (pessimist) da existência”5. Esta é uma posição da qual porém, segundo Sully, Platão não participa. Embora o autor admita que existem, mesmo que implicitamente, alguns traços não de todo otimistas no pensamento de Sócrates e Platão (ele cita por exemplo a distinção entre fontes verdadeiras e ilusórias da felicidade; a de que o prazer pressupõe, pelo menos em muitas das suas manifestações, um estado de dor, etc.6). A filosofia platônica é, nas palavras de Sully, “otimista ao extremo”7. A leitura alternativa Contudo, não são poucos os eruditos que interpretam a questão num sentido diametralmente oposto, utilizando o termo pessimista para qualificar certos aspectos da filosofia platônica. Embora seja verdade que nenhum dos autores que traremos aqui se lança à procura do pessimismo como o traço fundamental da filosofia platônica8, todos utilizam o epíteto, em ocasiões várias vezes, para rotular esta ou aquela posição. Bobonich Christopher Bobonich, na sua obra de 2002 Plato´s Utopia Recast9, pode ser um bom exemplo para começar. O autor está interessado na ética platônica 5 6 7

SULLY, 1877, p. 45 SULLY, Idem., p. 42. Cfr. por exemplo CIORAN, E., Historia y utopía: “A própria ideia de uma cidade ideal é um sofrimento para a razão, uma empresa que honra o coração e insulta o intelecto – Como pôde Platão consentir a ela? Esquecia que ele é o precursor de todas estas aberrações” (Cfr. 1960: p. 128 ). Cfr. também DE UNAMUNO, M., El sentimiento trágico de la vida en los hombres y en los pueblos, Austral, Argentina, 8va. Edição, 1947, pp. 54-55; NISBET, R., La Historia de la idea de progreso, Gedisa, Barcelona, 1981, p. 56-57. 8 Com a exceção, até certo ponto, de Gould. Cfr. (COMPLETAR) 9 BOBONICH, Ch., Plato´s Utopia Recast, Clarendon Press, Oxford, 2002

9

da República e chama a atenção para o fato de que, ali, cada uma das virtudes é analisada em termos de partes da alma e depende, para ser genuína, da possessão prévia do conhecimento das Formas, ou seja, do cumprimento do érgon racional. A sabedoria (sophia), de um modo obvio10; a coragem (andreia), na medida em que para ser autêntica requer uma visão prévia da Forma do Bem; a justiça (dikaiosune) também, pois exige que todas as partes da alma aceitem que a sábia razão tem a palavra final; a moderação (sophrosyne), por último, enquanto se realiza em função do métron, a medida justa, revelada pela sábia razão. Diz Bobonich: “Assim, cada virtude requer a posse da sabedoria, a qual, por sua vez, requer a posse do conhecimento. Apesar de não ser ainda evidente para os interlocutores de Sócrates no final do L. IV, tal caracterização exclui todos os não-filósofos da virtude uma vez que, como os livros posteriores procedem a esclarecer, os auxiliares e os artesãos carecem de conhecimento”11.

Segundo Bobonich, embora possa entender-se que para Platão existe uma virtude alheia ao conhecimento (o tirano é, por causa desta “virtude”, inferior ao

democrático,

por

exemplo12),

o

caráter

ético

dos

não-filósofos

é

essencialmente mal-formado: ele se funda na adesão casual, irreflexiva e (sendo um tanto anacrônicos, mas talvez oportunos) inconsciente, à opinião verdadeira, e é tão criticável quanto ela:

10 Cfr. Rep. 442c 11 Ídem., p. 43. A tradução é própria. 12Cfr. também Rep. 416d, onde Platão fala na “coragem” dos auxiliares. 10

“Nos membros das duas classes inferiores, a parte racional não desenvolve sua função própria de estabelecer o fim do sujeito utilizando seus próprios recursos. A parte racional dos guardiões e dos artesões adere aos fins ditados pelas partes irascível e apetitiva. Deste modo, os guardiões e artesãos tomam respectivamente como os seus fins últimos, os objetos característicos da parte irascível e da apetitiva”13

Na República, Platão descobre que a experiência cognitiva do homem corrente se encontra limitada a e pelo sensível e que, concomitantemente, suas ações são suscitadas por paixões e emoções irracionais antes do que pelo sábio conselho da razão esclarecida. Bobonich ressalta o fato de que a educação musical comum, que constitui junto com a ginástica o teto da formação da multidão, não tem por objeto desenvolver a racionalidade senão moldar os aspectos inferiores do caráter. Os não-filósofos (non philosophers), insiste, estão ancorados nos patamares mais baixos tanto da realidade quanto da sua própria mente. Neste contexto, o autor considera o fabuloso mito de Er, presente no livro X da República, no qual se sugere que alguns não-filósofos são admitidos no céu. Bobonich expõe primeiramente a leitura tradicional: os não-filósofos, se viverem numa cidade justa e sob o controle dos esclarecidos, perseguem o bem e a virtude, ainda que sob a guia e supervisão dos que detém o conhecimento em primeira mão. Enquanto isto acontece, eles podem ter uma vida em grande medida boa. Mas Bobonich rejeita esta leitura. Para ele, o mito comunica que há duas maneiras de participar na virtude: o hábito ou o caminho filosófico. Quando

13

BOBONICH, 2000: p. 51.

11

as almas daqueles homens virtuosos por hábito que “foram ao céu” descem para escolher uma nova forma de vida, elas erram na escolha: pela sua ignorância, escolhem reencarnar na figura de um tirano, devendo por isto devorar os próprios filhos e assassinar os amigos. Na seguinte rodada cósmica, a alma ignorante passará outros mil anos, agora embaixo da terra, antes de ter novamente a possibilidade da escolha. Isto significa que a ação virtuosa conjuntural do ignorante não tem valor ético14. Para Platão, a verdadeira ação virtuosa requer um tipo muito específico de exercício inteligente : “o raciocínio moral genuíno e a eleição que possui valor moral, exige uma forma de reflexão muito especial e uma apreciação profunda dos motivos”15. Em última instância, o certo é que só a alma verdadeiramente sábia e virtuosa tem uma boa perspectiva na eterna mutação do Universo. Platão vislumbra as multidões na terra como hordas de almas irracionais; Homero as visualiza descendo ao Hades massivamente, carregando o sofrimento por um tempo incomensuravelmente maior do que uma existência humana, que desde esta perspectiva se torna insignificante16. CITA OD. Tendo

estabelecido

isto,

Bobonich

extrai

as

conseqüências

eudaimonológicas da condição racional do homem promédio:

“O filósofo, isto é, a pessoa que enxerga as coisas como elas realmente são, preferiria passar por qualquer sofrimento a viver a vida dos indivíduos presos na caverna. Na República, todos os nãofilósofos estão na caverna e, assim, uma conclusão pessimista (a 14 15 16

Cfr. BOBONICH, 2000: p. 82. BOBONICH, 2000: p. 84 Cfr. Rep. 619b-e. 12

pessimistic conclusion) a respeito da sua felicidade é garantida. Enquanto é verdade que a vida destes sujeitos, e não apenas sua condição cognitiva, é lamentada, tal vida é lamentada em razão da sua condição cognitiva”17

Bobonich

enxerga

as

mesmas

limitações

que

condicionam

o

desenvolvimento da razão retardando também o da virtude. Platão valoriza o logos no contexto da teoria, mas simultaneamente, e com igual intensidade, no contexto da práxis; ao estar ausente o exercício do logos, o ethos não encontra lugar e, sem ele, tampouco a eudaimonia; os habitantes do submundo, portanto, além de viver na ilusão, vivem na imoralidade e na infelicidade. Por outro lado, embora o prazer não seja patrimônio dos filósofos, os prazeres dos presos na caverna, assim como as suas crenças, são tidos por Platão como ilusórios18. A “falha” dos não-filósofos “não é apenas sua incapacidade de enxergar os verdadeiros valores, mas também a de expressá-los adequadamente por meio da ação” 19. Esta é a posição de Bobonich em relação à obra que haverá de ocupar-nos mormente neste trabalho, República, e o seu caráter pessimista. O autor deixa por enquanto a reflexão sobre este diálogo e avança na sua investigação, arribando à conhecida tese do caráter homuncular da psique. Mas desta tese trataremos posteriormente. Século XX – Embate Gould vs. Vlastos 17

Idem., p 52. A tradução é própria.

18 19

Cfr. BOBONICH, 2000: p. 55 y Rep. 586b; 587b. BOBONICH, 2000: p. 87

13

Gould Passemos agora a um classicista anterior, que trata mais pontualmente do assunto que nos convoca. No século XX, em Cambridge, J. Gould distingue o pessimismo (pessimism) como um traço central do pensamento de Platão – um modo de ser que aparece de maneira clara na República, diz ele, e se torna cada vez mais presente, até se transformar na essência da filosofia platônica final e última das Leis. Na obra intitulada The development of Plato’s Ethics, publicada em 1955, o autor desenvolve sua impressão de que, entre os primeiros e os últimos diálogos platônicos, há um abandono gradual do moralismo idealista (socrático, ele suspeita) e que, em seu lugar, emerge uma ética “realista”, adaptada à condição humana, e por isso uma ética das massas, ou, caso a expressão resulte incômoda, pelo menos não apenas uma ética da minoria esclarecida. Platão, entende Gould, torna-se pessimista ao se tornar realista. Isto evoca a posição nietzschiana, e será rejeitado taxativamente por Vlastos. Evoca a posição nietzschiana na medida em que o idealismo abandonado é associado a Sócrates20; contudo, embora Gould descarte a interpretação tradicional segundo a qual episteme equivale simplesmente a conhecimento teórico (posição que Nietzsche adota), interpretando em vez disso que se trata de certa “experiência cabal” da coisa, uma experiência profunda, que transcende em muito o mero raciocínio lógico, seguindo a tradição ele considera que, segundo Sócrates, o possuidor de episteme (assim entendida) não pode senão agir sempre em concordância com o que se lhe revela, e nunca contrariamente: “ninguém erra sabendo” – este traço tipicamente socrático se mantém. Aquele que deveras 20

Ver Anexo 1

14

conhece é impelido naturalmente a atuar. Mas Sócrates acredita no que poderíamos chamar de a força da verdade, e edifica sobre esta crença o seu idealismo moral. É este idealismo que Platão deixa paulatinamente para trás segundo Gould, arrastado pelo que o autor denomina de “princípio de realidade” (reality principle). Já desde o Górgias, insiste Gould, vê-se em Platão “uma insistência... na dificuldade e no tamanho da tarefa de aceder à episteme”21. Nesta linha, no livro II da República, Glauco avança um dilema chave no diálogo. É o dilema moral do homem comum, que já tinha sido introduzido antes por Trasímaco: a virtude não é um bem em si mesma, mas qualquer sujeito razoável é justo para fugir do castigo. A ideia contida aqui é que todo homem racional se ilude de atuar segundo o seu mais profundo desejo, a saber, uma espontânea tendência egoísta, com o fim de conviver com seus semelhantes, igualmente egoístas, e não ser condenado por eles, tirando o maior proveito da convivência. Com esta objeção de Glauco, Platão traz uma das principais vozes do debate: aquele cujo discurso revela um fundo motivacional irracional do comportamento, uma tendência brutal, mas quase impossível, porém, de ser evitada. É provável que, tanto Platão quanto Sócrates, vissem nesta fonte inesgotável de desejo a causa do desprezo segredo à “virtude”, assim como da má formação do caráter e da opinião vulgar. Na República, com efeito, Platão sustenta repetidas vezes que a opinião da maioria está errada e distante da verdade. Segundo Gould, o antigo irá aprofundando nesta idéia até voltar sua atenção completamente a ela e concluir que oi polloi, expressão que será nuclear no nosso trabalho, “a 21

Gould, p. 141. Cfr. Eutidemo 274a; Laques 196b, Gorgias 455a

15

maioria”, “os mais”, são incapazes de compreender algo no sentido forte do termo, muito menos as questões de maior importância como o Bem, etc. – questões estas difíceis, e que beiram o inexpressável. Lembremos: apenas por inspiração divina o homem se inclina à virtude (Cfr. Rep., 366a). Esta observação, nascida de alguma maneira como negação do ninguém erra voluntariamente socrático, será considerada por Platão um dado de fato, um traço constituinte, uma condição da realidade psíquica humana que terá um papel chave no contexto da teoria da alma e da especulação moral. E Gould prossegue com a análise do livro V, onde se trata da distinção entre doxa e episteme. O argumento que o autor ressalta começa em 474b e se estende até o final do livro em duas linhas argumentativas, segundo ele, bem diferentes. Uma é “a do próprio Platão”, que confia nas Formas e num mundo mais real, no sentido ontológico e epistemológico da expressão, e define o filósofo como aquele capaz de ver tais Formas para além dos indivíduos que participam delas; a outra é a do “amante dos sentidos” (VER GR), que não aceita que exista nada exceto o que é dado na individuação, no espaço e no tempo. Aquele possui a gnosis; este, apenas a doxa. O conceito de doxa emerge aqui, como bem se observa, em um contexto grave. No Menon, esta atmosfera já tinha sido antecipada, embora de alguma maneira mais positivamente, associada à ideia de o segundo melhor (deuteros plous): a opinião é um pis aller, um substituto ante o caráter raro do encontro com a verdade22. Ali, a opinião é concebida como possuindo um valor próximo da episteme; ela é sugerida como um “ver as coisas como realmente são” (tó ta 22

Cfr. Gould, pp. 136-140

16

onta doxacein, 413a), como uma “posse da verdade” (aletheuein) e denominada finalmente de “verdadeira” (alethes doxa). Em República, não obstante, a reflexão parece desenvolver-se impregnada de certo nervosismo. Aqui se estabelece claramente, lembra Gould, a relação entre os diferentes estados cognitivos, seus objetos e produtos correspondentes, sendo cada estado definido como uma dynamis, termo que freqüentemente se traduz por capacidade, faculdade, poder. Sendo o conhecimento e a opinião dois fenômenos diferentes, eles devem ser produto de poderes distintos e ter objetos diferentes: a doxa é um estado mental entre o conhecimento e a ignorância, episteme e agnoia, e o seu objeto existe entre o ser e o não-ser. Um corolário que pode ser extraído disto é que “o mundo dos fenômenos (...) é descrito como irreal na medida em que nenhum enunciado verdadeiro pode ser afirmado sobre ele”23. Gould vai ainda mais longe: “uma vez que Platão aceitou, como parece que o fez, que neste mundo e sobre este mundo nenhuma certeza pode jamais ser adquirida, a via para um sentimento completo de desespero estava aberta”24. O inglês entende que os livros VI e VII, com a alegoria da linha e da caverna, são o ápice da formulação da teoria platônica de República – estas imagens representam metaforicamente a situação, constatada anteriormente, do caráter inacessível das Ideias. Daqui em diante, tudo é um “caminho para baixo”, “a crônica de um descenso”. Os últimos livros dão “uma sensação do caráter iniludível do processo de decadência, de uma distância do ideal demasiado grande para ser atravessada. A

23 24

Gould, p. 158 Gould, p. 163

17

esperança nunca foi firme, e agora um conceito chave é estabelecido: o da necessidade, anagké” 25

A necessidade, introduzida na República como responsável pela decadência humana e do cosmos no geral26 é, segundo Gould, uma das notas mais características do pessimismo platônico emergente. Sua natureza e efeitos se tornarão completamente visíveis no Timeu. Quando se relata no Timeu o famoso mito da criação, a necessidade não ocupa um papel menor. No contexto, anagké se refere a um fundo caótico e irracional, que se torna visível no contraste com o nous, princípio ordenador e da legalidade. Mas não se trata aqui, alerta Gould, da necessidade nos moldes da mecânica do século XIX27; a necessidade tem, antes, um estatuto ontológico28. Ela está sim associada à matéria (GR), mas também essencialmente associada ao acaso (tuxé), ao caos (GR) e ao irracional (GR); ela é o acaso e o caos irracional enquanto força real e atuante. O relevante aqui é que ela é uma força que o Demiurgo consegue vencer, porém não anular:

25 26 27

Gould, pp. 183-4. Cfr. Rep. Gould critica as posições como a de Solmsen (Plato’s Theology, 1942), que descreve a necessidade como um mecanismo e utiliza a palavra “determinar” em ditames tais como “a cadeia de causas necessárias que determina o processo físico”. A necessidade é, desde esta perspectiva, a regularidade dentro do caos original, e não o próprio caos. A reflexão platônica, assim como a aristotélica, não contava com a primeira lei do movimento de Newton, e por isso não concebia que um corpo continuasse em movimento a menos que outro o impulsionasse. Para os antigos, todo evento possui uma causa definível sem que exista um nexo universal de causas e efeitos. Isto os leva a acreditar que o mundo não pode ser ordenado exceto se for dirigido por uma força criativa propositada. Mas essa força está limitada por outra ainda mais potente: a da necessidade, que se encontra tanto na matéria quanto nas limitações que a regem. Cfr. Gould, p. 193. 28 Explica Cornford: “O caos é, em algum sentido, uma abstração... Se abstrairmos a razão e o seu trabalho sobre o universo, o que sobra é a alma irracional, uma causa para os movimentos aleatórios, e o elemento desordenado do corpóreo, em si mesmo se mexendo sem plano nem medida” (Cornford, Plato´s Cosmology, 1948, p. 203). E ainda: “o corpo do universo (...) contém movimentos e poderes ativos que não são instituídos pela razão, e que produzem perpetuamente efeitos indesejáveis” (Cornford, 1948: 176). Citado em: Gould, pp. 203 e 176).

18

“A faculdade do nous (...) tem poderes limitados sobre a necessidade, e sua capacidade (...) está confinada por meio dos laços que o atam à aisthesis (...) O cosmos veio a ser graças à vitória da persuasão racional (peithous emphronos) sobre a necessidade: mas esta é apenas uma vitória parcial, ainda que sem ela nenhuma ordem seja possível”29.

Ora, embora no Timeu primem as questões cosmológicas, não é impossível extrair uma moral subjacente, diz Gould. Quando a alma do homem é criada segundo a alma do mundo, ela entra no tempo e no espaço e então as paixões (pathemata) colidem com a razão (nous). Ao desenhar o indivíduo, os deuses se viram forçados pela necessidade e, tal como no plano criacional maior, foi- lhes necessário incluir a matéria, isto é, o corpo, com o qual eles ancoraram o sujeito no mundo sensível. Esta não é uma posição nova, mas o autor destaca que no contexto do Timeu ela recebe uma ênfase diferente, de notável tragicidade: “a razão e as sensações não são somente opostas, mas estão irrevogavelmente unidas; a alma está destinada ao corpo”30. O que acontece na circunstância humana “porque a necessidade assim o demanda” (Tim. 47e) é fácil de antecipar: devido ao seu aspecto irracional, ergo somático, a alma é mortal e contém “emoções terríveis, e não obstante inevitáveis”

31

. “Tudo isto está

implícito no Timeu. Pode ser que não esteja estabelecido diretamente, mas devemos esperar encontrar sinais de pessimismo (pessimism) no que o diálogo tem a dizer sobre a personalidade humana” 32. Dados os anagkaia pathemata, “a psique incorre em uma predisposição involuntária para o mal, que pode ser 29 30 31 32

Gould, Gould, Gould, Gould,

p. 198-199 p. 198. p. 199 1955: p. 199

19

parcialmente driblada apenas mediante um rigoroso treinamento”

. Os

33

conceitos de proporção (summetria) e medida (tó metron) se concentram, segundo Gould, nos diálogos do último período; nos primeiros diálogos, o irracional deve ser extirpado, enquanto nos últimos é assumido finalmente como um “mal necessário”:

“De todos estes sinais pode se inferir que o pessimismo (pessimism) é a marca distintiva (...) dos diálogos tardios. O Timeu seria um prelúdio deste grupo, ao sinalizar a fonte do pessimismo: a eterna e incompleta vitória da Razão sobre a Necessidade”34

Gould chama a atenção, ademais, em como a psicologia tripartida de República e a sua ascendente, a do Fedro, completam-se no Timeu. No Time, Platão adjudica uma localização fisiológica às três eide da alma, localização que justifica em chave moral: o pescoço evita uma proximidade exagerada entre a cabeça - onde a razão, o elemento divino (GR), tem seu apoio, e o peito (especificamente o coração) - onde se assenta a emoção, o thumos (que o autor traduz aqui por “instinto de auto-afirmação”); isto ocorre, segundo Platão, pois a fonte primária da energia, do impulso, “precisa estar perto” para poder “escutar” as recomendações racionais. Assim o exige a necessidade. O veículo da paixão, to epithumetikos, é representado aqui como uma Fúria, uma besta selvagem espantada para o estômago e o intestino, com o fim de acalmar o sistema apetitivo. O corpo, desde esta ótica, rasga a unidade espiritual do 33 Gould, p. 201. 34 Gould, 1955: p. 203

20

homem, rouba-lhe a possibilidade de ser puro elemento divino, e os apetites submetem a alma à escravidão. Esta será a posição na qual desembocará a psicologia da República. Na República, sugere Gould, a necessidade emerge como algo inexorável – “tudo que é, está condenado a degenerar” (CIT.REP). Após o erro genético inicial, o sujeito se corrompe em uma longa estirpe degenerada, até o ponto em que “vemos surgir o espetáculo de um homem dominado por paixões que não consegue controlar, um homem em perpétuo estado de guerra não apenas em relação aos demais, mas a si mesmo” 35. “Com o mito de Er, a necessidade consolida o seu papel principal (...)No processo que vai do L. VIII ao X, o conceito de necessidade (...) passa de ser um mero matiz, uma mera suspeita de escuridão num todo iluminado, a tingir a totalidade da obra” 36.

Logo após República, o pessimismo platônico irá se desenvolvendo em complexidade e profundidade tanto na psicologia quanto na ética, na cosmologia e na política. O autor sustenta especificamente que o pessimismo, com os seus olhos de lince, que brilham só na escuridão, antecipa-se no Mênon, inicia-se na República e logo se estende pelo Timeu, o Político e o Filebo, coroando-se por fim, já completamente formado, nas Leis: “Platão continua lutando com uma enorme paixão com os problemas da existência humana, porém desde uma plataforma bem diferente. Esta plataforma é uma que reconhece a humanidade como naturalmente inclinada ao mal, seja por fraqueza, seja por causa de um desejo pelo mal mesmo. Já não nos surpreende encontrar Platão falando no “caráter vicioso geral” (840d) como causa dos problemas (...) Existe (...) nas Leis (...) uma avaliação dos problemas morais 35 36

Gould, p. 187, Gould, pp. 183-4.

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cheia de senso comum que, em comparação com o platonismo mais inicial, um se veria inclinado a denominar não platônica” 37

Lamentavelmente não podemos nos demorar mais em Gould, mas voltaremos a ele posteriormente. Não obstante, cabe ressaltar que sua obra é de grande importância para o tema que nos ocupa: Gould se rastreia o pessimismo platônico passo a passo, desvendando-lo com cautela e apoiado em copiosa evidência. Vlastos Mas a posição de Gould será contestada pela comunidade filosófica do século XX, que não lhe concederá sua aprovação com facilidade. Dois anos depois da publicação do texto do inglês, em um artigo publicado em 1957 e intitulado Socratic knowledge and platonic “pessimism”, Gregory Vlastos coloca o pessimismo entre aspas, alinhando antecipadamente à leitura tradicional e confrontando, não sem certa ironia, a leitura de Gould. Gould tinha advertido que Platão abandona paulatinamente a moralidade idealista de Sócrates e sustentado que, em seu lugar, surge um pessimismo que cresce lentamente na seqüência Mênon, República, Timeu, Político, Filebo e Leis. Porém, no seu artigo Vlastos considera unicamente o Timeu como alvo do ataque. Ele defende que o intuito deste diálogo é exatamente o contrário do estabelecido por Gould: no Timeu Platão deseja ressaltar o caráter divino da criação; a imagem desenhada tem sobre tudo o objetivo de comunicar o insight de uma inteligência superior, ordenadora e poderosa, que se impõe sobre um fundo irracional caótico para 37

Gould, 1955: p. 120

22

submetê-lo gloriosamente. A necessidade recua diante da razão, curva-se obedientemente, e não vice-versa. Aos olhos de Vlastos, Gould se equivoca: não existe pessimismo algum na mensagem do Timeu. A moral da épica da criação tem a ver com o triunfo do logos, e não com as miudezas da batalha nem com o destino do vencido! Platão, diz Vlastos, contempla a obra do Demiurgo como um bem - o maior, mais excelente, o mais belo e perfeito – essa contemplação está longe de conter quaisquer notas pessimistas: “Você pode olhar para este mundo pensando “É apenas uma cópia”, e sentir certo mal-estar ou nostalgia, uma impaciência com o melhor que o mundo pode oferecer; ou [...] pode dizer a si mesmo: “Mas é uma cópia excelente, uma que só poderia ser produzida por uma inteligência suprema unida a uma bondade perfeita”, e alegrar-se da boa sorte de se encontrar em um mundo assim” 38

Vlastos vê então no Timeu a “alegria” de Platão e parece acreditar, sobretudo, que se trata de uma questão de pontos de vista, de modos internos de reagir à realidade. Mas existe aqui uma distinção que não pode demorar a ser feita. Trataremos dela com maior dedicação no segundo capítulo; neste momento, chamemos somente a atenção para a diferença entre o pessimismo no senso vulgar do termo, ou seja, enquanto tendência subjetiva, inclinação do caráter ou da personalidade do homem corrente, e o pessimismo no sentido propriamente filosófico, fenômeno eminentemente literário, que acontece no círculo das indagações humanas fundamentais e nos infinitos ensaios para resolvê-las. Do mesmo jeito que Gould não acerta com termos como “desespero”

38

Vlastos, p. 232

23

, Vlastos é também inoportuno ao falar em “alegria” e “nostalgia”. Trata-se do

39

cosmos e do caos sendo simultaneamente iluminados pela inteligência; os avatares que as emoções e a própria inteligência sofrem durante o périplo podem ter o seu lugar, mas o fenômeno do pessimismo, tal como gostaríamos de entendê-lo aqui, consiste antes na visão do horizonte paradoxal da realidade, e no exercício do pensamento que assimila e atravessa tal horizonte. Ainda fazendo um uso no geral inadequado do termo, Vlastos apresenta alguns comentários interessantes. O acadêmico entende que Platão conservou uma “atitude positiva” ao enfrentar as ambivalências do seu esquema ontológico (ser-devir; modelo-cópia) e epistemológico (conhecimento-opinião) sendo, como ele foi do começo ao fim, um fiel adepto do credo do logos. Isto não impede a Vlastos reconhecer, não obstante, que Platão abre mão da utopia ao perceber e admitir que o ideal, tão admirado, construído e sonhado, é inatingível. Vlastos sugere isto, mas em seguida volta à leitura tradicional, com o argumento de que se trata de um ponto irrelevante, pois “a certeza não é necessária para nenhum dos propósitos que Platão considera essenciais” (VER VL). Pergunta Vlastos: “Não renunciaram muitos filósofos modernos à busca da certeza (...) sem demasiada melancolia? Por que não Platão?” 40. Independentemente de quão objetável seja a asserção de que a certeza sobre o mundo é desnecessária para os interesses 39

Lembremos: “uma vez que Platão aceitou, como parece que o fez, que neste mundo e sobre este mundo nenhuma certeza pode jamais ser adquirida, a via para um sentimento completo de desespero estava aberta”, Gould, 1955: 163. Embora assim expressa a colocação resulte excessiva, a percepção sobre a que se apoia parece apropriada: uma vez que Platão leva a sério o aspecto irracional da realidade e as limitações que isto implica para o exercício do logos, ele perde a ingenuidade e, com ela, o tom utópico e entusiasta.

40

Vlastos, 1957: p 233.

24

últimos de Platão, insistamos sobre o equívoco: não se trata do quanto Platão sinta melancolia ou entusiasmo em relação ao mundo. O pessimismo ao qual Gould faz referência surge da consideração do conteúdo do pensamento platônico, não do estado de ânimo do seu autor. No caso do Timeu, este pessimismo acompanha a visão de um fundo caótico adverso e iniludível, que arrasta tanto o sujeito quanto o cosmos na sua totalidade para a corrupção. Platão assume esta circunstância, a considera seriamente no momento de diagramar o esquema educativo, construir a sociedade e propor sua ideia de progresso, tanto da cultura no geral quanto do indivíduo no particular. É neste sentido ou, melhor, por este motivo, que Gould o considera pessimista. Vlastos, porém, parece entender esta leitura como uma espécie de perversão hermenêutica. Avançando no seu artigo, contudo, Vlastos parece querer conceder, mais uma vez, que existe uma relação entre Platão e o pessimismo. Há uma “feliz esperança”, diz Vlastos (VER VL), a respeito da qual Platão se “resigna” antes da sua morte, e isto poderia ser entendido como uma forma de pessimismo. De novo, o acadêmico desenvolve uma análise inadequada (de corte biográfico, no caso); Vlastos não se refere a um pessimismo teórico, mas a algo semelhante à depressão do ânimo e à angústia. Ele entende que a “fé” (faith) platônica no absolutismo esclarecido, que estava ainda intacta na época do Político, quebrouse posteriormente, provavelmente quando o filósofo se encontrava próximo aos 70 anos de idade: em ocasião do encontro com Dionísio, o jovem, Platão teria experimentado muito de perto a capacidade corrosiva do poder, vivenciando

25

assim o “colapso de uma esperança conservada pela maior parte da sua existência adulta” (VER Vlastos). Diógenes Laércio relata o ocorrido neste encontro com Dionísio com as seguintes palavras: (VER DIÓGENES). Fora os equívocos, Vlastos percebe que em determinado momento de sua vida Platão renuncia à crença de que alguma vez o rei-filósofo imaginado por ele, sob influência de Sócrates seguramente, possa vir a ser; em outras palavras, Platão renuncia à crença de que o controle racional da conduta está ao alcance da maioria dos homens. Isto, finalmente, parece ser para Vlastos um chão para o pessimisms. Mas ele retrocede por última vez: depois da “desilusão” experimentada em Siracusa, “não vemos a Platão apartando-se do mundo” ou “deixando cair cansadamente seus projetos” (VER Vlastos); ele se engaja ainda na redação das Leis. O acadêmico parece estar utilizando o conceito popular de que, para ser consequente com a sua visão de mundo, o pessimista deve paralisar necessariamente todo tipo de ação e negar a existência. Dado que Platão continua escrevendo nos seus últimos anos de vida, logo ele consegue fugir do fantasma do pessimismo. Este novo equívoco de Vlastos será analisado com maior dedicação no próximo capítulo, quando a distinção entre pessimismo prático e teórico seja elaborada. Por enquanto, anotemos apenas que o pessimismo filosófico não é necessariamente um sinal de declive 41. Como diz Dienstag:

“Quando em boas mãos, o pessimismo pode ser – e, de fato, tem sido historicamente - uma filosofia instigante e inclusive libertadora. Embora ele de fato coloque a exigência de eliminar certas esperanças e

41

Cfr.NIETZSCHE, F., El nacimiento de la Tragedia, Edaf, Buenos Aires, p. 42 e ss.

26

expectativas, ele também está em condições de oferecer meios para melhor navegar o difícil universo que descreve” 42.

Scott Mas continuemos adiante no século XX. No artigo intitulado Platonic pessimism and moral education, publicado na Oxford Studies in Ancient Philosophy em 1999, o contemporâneo D. Scott faz menção ao pessimismo platônico

(Plato’s

pessimism43)

abordando-o

principalmente

do

ângulo

epistêmico: existe para Platão, segundo Scott, um certo tipo de caráter impermeável à dialética, uma disposição psíquica na qual o aparelho motivacional é completamente imune à argumentação racional. Platão é, por isto, decididamente crítico a respeito do racionalismo socrático, para o qual o caminho de salvação pelo logos é aberto a todo homem. Scott aponta que Platão é consciente do caráter refratário da razão, assim como também leva em conta o que isto implica em relação ao estatuto moral da pessoa44. Após analisar os casos de Polus e Cálicles do Górgias45, Gould estuda o análogo de Trasímaco no L. I de República. Trasímaco, sendo honesto, diz que ele acredita que a justiça é o que convém ao mais forte e que há mais vantagem em cometer do que em sofrer injustiça. Sócrates o interpela e o induz a contemplar 42DINSTAG, Op. Cit., p 1. 43 SCOTT, D., 1999: P. 16. 44 Cfr. Rep. 344e-345a. 45 Nestes casos o elenchus socrático se mostra ineficiente pois nem Polus nem Cálicles mudam

suas opiniões e muito menos as atitudes ligadas a elas. Apesar do esforçado argumento socrático, é evidente que as respostas de Polus são infiéis à suas crenças reais, e que ele não aceita verdadeiramente que (a) que cometer injustiça é pior do que sofrê-la, (b) que os injustos são infelizes e (c) que eles são ainda mais infelizes se conseguem escapar do castigo. No caso de Cálicles, quando ele é convidado a aceitar que o conhecimento é necessário para distinguir entre prazeres bons e maus, “ele responde que concorda apenas para finalizar a argumentação o mais rápido possível (501c)” (p. 19).

27

a “falsidade” desses postulados; ele, porém, concorda com as interpelações “a custo” (VER GR, Rep. 342c, 342e) desde o começo. Quando a sua opinião está prestes a ser rebatida, Trasímaco explode num discurso irado e volta atrás, desconsiderando os passos dados até então e defendendo com certo dogmatismo justamente aquilo que, se a argumentação continuasse sua natural cadência, haveria de ser rejeitado. Imediatamente a esta intervenção, o rebelde e obstinado Trasímaco tem a intenção de retirar-se, e fica apenas porque é forçado pelos presentes (Rep. 344d). Na sequência se retoma a conversa, evidenciando num anticlímax as divergências: sendo fiel a si mesmo, Trasímaco insiste em que o injusto é o inteligente e feliz; mas Sócrates, ainda confiante, embarca em uma empreitada dialética até por fim deixar em evidência o errado da posição (Rep., 350c). Mas embora o processo até aqui aconteça com o constante assentimento de Trasímaco, as suas sucessivas concordâncias são, como o próprio Sócrates ressalta, de má vontade: “Trasímaco então concordou com tudo isto, não com a facilidade com que agora estou a contá-lo, mas arrastadamente e a custo, suando espantosamente” (Rep. 350d). Chegado a este ponto, Trasímaco, cujo desejo é fazer um percurso diverso ao “guiado” por Sócrates, vendo-se coagido desta maneira decide que, a partir dali, suas respostas não terão outro objetivo senão o de agradar o seu interlocutor. Ele aceita continuar a “discussão”, mas declara que as respostas que dará (respostas do tipo: “Sim, segundo o teu raciocínio”, 353e) não serão francas, mas apenas as esperadas para que a demonstração socrática seja exitosa e a conversa acabe de uma vez. Este será o espírito que Trasímaco conservará até o epílogo da conversa, da qual partirá,

28

apesar do longo caminho percorrido, conservando seu modo de pensar do começo. Modo de pensar e de agir, é claro. A respeito dos casos de Polus e Cálicles do Górgias, a leitura de Scott é que, com eles, Platão chama deliberadamente a atenção para o problema da intransigência, que consiste fundamentalmente no fato de que alguns interlocutores possuem opiniões tão intimamente arraigadas que nunca lhes será possível renunciar a elas. Trata-se de uma relutância em aceitar juízos desagradáveis,

diferentes

dos

próprios,

sólidos,

cristalizados,

independentemente de quão necessariamente eles se sigam da evidência oferecida. Assim, a dialética revela uma fraqueza, uma incapacidade de penetrar na psique e produzir uma mudança no ethos de alguns indivíduos. Na República, observa Scott, Platão dá um passo adiante ao propor que a argumentação deve ser realizada apenas com aqueles receptivos a ela – por isso Gláucon e Adimanto tomam o lugar de Trasímaco e a discussão avança por sendas menos tortuosas. O autor entende que Platão reconhece duas fontes para a intransigência. A primeira remete às opiniões formadas na infância, “pois é sobretudo nessa altura que se é moldado, e se enterra a matriz que alguém queira imprimir numa pessoa” (Rep., 377a); estas opiniões tendem a se tornar pétreas com o tempo, e refratárias às razões, “é que quem é novo é incapaz de distinguir o que é alegórico do que não é. Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indelével e inalterável” (Rep., 378d). A segunda causa da intransigência se relaciona com o fato de que existem desejos irracionais completamente surdos à razão:

29

“O diálogo filosófico não é mais para todo mundo: em efeito, aqueles que não gozaram do treinamento do caráter quando jovens podem alcançar um ponto no qual a disciplina intelectual não lhes faça já bem. A argumentação não terá nenhum efeito; produzirá o riso, reações violentas ou nenhuma resposta em absoluto. Este ponto de vista deprimente se mostra na sua forma mais extrema após o reconto do programa educativo no Livro VII...”

46

Novamente, nos encontramos com termos impróprios como “ponto de vista deprimente” (depressing view). Mas o insight que subjaz parece, mais uma vez, acertado: “O conflito entre o racional e o não racional resulta na expulsão de certas crenças herdadas da razão e, no seu lugar, na adoção de novas crenças em concordância com os desejos das partes não racionais” 47. Esta é, segundo Scott, uma circunstância da qual Platão tem plena consciência; esta consciência é o que faz dele um pessimista. Século XVIII: Schopenhauer Aproximando-nos ao fim desta revisão bibliográfica, atentemos à interpretação que o alemão A. Schopenhauer faz da filosofia platônica. Schopenhauer é considerado, como se sabe, o Pai do pessimismo filosófico48, motivo pelo qual voltaremos a sua posição repetidamente no nosso percurso. Ele fala do divino Platão e assume a filosofia platônica como um pilar fundamental

46SCOTT, D., 1999: p. 19. 47SCOTT, 1999: p. 36. 48 Antecipado por Sócrates e Platão, por Hume e Voltaire, Jean Lefranc entende que

“Schopenhauer descobriu, propriamente falando, o pessimismo”. Para Lefranc, Schopenhauer “não somente introduziu a palavra na filosofia, mas fez do pessimismo uma tese de alcance crítico, a contrapartida da doutrina leibniziana do melhor dos mundos possíveis” (LEFRANC, 2005: p. 29)

30

do seu pensamento49. A seguir, percorreremos algumas das referências que Schopenhauer faz ao antigo na sua opera magna, O Mundo como Vontade e Representação. Em primeiro lugar, Schopenhauer adere absolutamente, ainda que desde uma perspectiva peculiar, à teoria das Ideias50. No Livro I da obra em questão ele concorda com que o fenomênico, ou seja, o relativo ao phainomenon, “o que aparece”, não tem senão existência relativa – relativa, dirá kantianamente mais tarde, ao sujeito ao qual aparece e à constituição a priori do seu aparelho cognitivo, que funciona, muito grosso modo, nos moldes do tempo, do espaço e da causalidade. Tudo o que cai nestes moldes – tempo, espaço, causalidade – é em alguma medida ilusório, e o Mito da Caverna é, segundo Schopenhauer, a alegoria poética Ocidental originária para representar esta circunstância (no Oriente, a doutrina Vedanta do “Véu de Maia” carrega, segundo Schopenhauer, o mesmo significado51). Por outro lado, Schopenhauer relaciona a concepção platônica de uma realidade que vem a ser e outra que é, com a distinção kantiana entre coisa em si, noúmeno, por oposição a fenômeno. Por este caminho, ele desemboca em uma ideia capitular da sua filosofia: tempo, espaço e causalidade são apenas categorias a priori do entendimento; o mundo regido e revelado por elas, ergo o fenomênico, é relativo e insubstancial; a essência íntima das coisas está para

49 SCHOPENHAUER, O Mundo..., p. 23. Cfr. também: p. 525. 50 Cfr. por exemplo SCHOPENHAUER, mvr: p. 191 51 Cfr. SCHOPENHAUER, MVD: p. 49, 250, 31

além dos limites da razão e, por conseguinte, das ciências52. Eis as palavras do autor: “Kant (...) apresentou a mesma verdade (...) que já Platão incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte modo: este mundo que aparece aos sentidos não possui um verdadeiro ser, mas apenas um incessante devir, ele é, e também não é; sua apreensão não é tanto um conhecimento quanto uma ilusão. Isto é também o que Platão expressa miticamente na passagem mais importante de todas as suas obras (...), ou seja, no início do sétimo livro da República, quando diz que os homens, firmemente acorrentados numa caverna escura, não viam nem a autêntica luz originária, nem as coisas reais, mas apenas a luz débil do fogo na caverna, e as sombras de coisas reais passando à luz desse fogo atrás de suas costas: eles opinavam contudo que as sombras eram a realidade e que a determinação da sucessão dessas sombras seria a verdadeira sabedoria. A mesma verdade, reapresentada de um modo completamente outro, é também uma doutrina capital dos Vedas e Puranas, a saber, a doutrina de Maia, pela qual não se entende outra coisa senão aquilo que Kant nomeia o fenômeno em oposição à coisa-emsi: pois a obra de Maia é apresentada justamente como este mundo visível no qual estamos , um efeito mágico (...) , uma aparência inconstante e inessencial, em si destituída de ser, comparável à ilusão de ótica e ao sonho, um véu que envolve a consciência

humana

(...)

Platão

e

os

indianos

(...)

fundamentaram suas afirmações (...) sobre uma intuição geral do mundo, produzindo-a como enunciado direto de sua consciência e a expondo mais mítica e poeticamente que filosófica e distintamente”53. 52 SCHOP. MVR, P. 356 53

SCHOPENHAUER, MVD: p. 528

32

Será Kant, diz Schopenhauer, quem trará luz sobre esta intuição e a levará até as últimas consequências. O importante para nós é assinalar que com o seu conceito de Vontade, Schopenhauer qualifica o noúmeno kantiano e define o que se lhe apresenta como a essência da realidade: um conjunto de forças irracionais, cegas, famintas, subjacentes a tudo e a todos, que lutam entre si eternamente pela posse da matéria. A Vontade é a fonte da disgregação, da multiplicidade; é o substrato da realidade, em termos gregos, pura stasis, um combate interno que avança livre e solto mas, porém, sem um objetivo que a razão possa apreender nem do qual possa participar. O intelecto, para Schopenhauer, é um derivado secundário da Vontade, um subproduto propício (pelo menos em certa medida) para a manutenção da espécie e, portanto, um acidente na constituição humana – o essencial nela, como no resto das coisas, é a Vontade. Resumindo: a coisa em si encontra-se para além das categorias racionais; a razão, pela corrente das causas, é essencialmente impotente para penetrar nela. Sirva isto para ir compondo uma imagem do pessimismo tal como ele foi originariamente postulado por Schopenhauer. Não podemos evitar notar desde

já,

não

obstante,

uma

afinidade

subjacente

entre

a

posição

schopenhaueriana e a mensagem metafisica da cosmologia do Timeu; porém, como o alemão não diz nada a este respeito, deixemo-lo de lado. Guardemos na memória, por enquanto, apenas o fato de que o pai do pessimismo desenvolve um argumento cujo insight inaugural é atribuído por ele, explicitamente, a Platão, embora se trate mais de um insight poético do que de uma posição

33

filosófica já formada e bem estabelecida. Schopenhauer parece sustentar, ao que parece, que o espírito do pessimismo estava acordando para a vida com sensibilidade platônica. O alemão trata também na sua obra alguns dos paradoxos que podem afetar a razão (aos quais, como veremos no terceiro capítulo, Platão dedica também muita atenção) e cita, neste contexto, o Platão do Sofista: “À medida que demonstramos que a natureza do ser outro existe e se dispersa sobre todo o ser em relação recíproca, e desde que opusemos cada partícula desta natureza ao ser, inclinamo-nos a afirmar que precisamente este é, em verdade, o não ser” (VER SOF). Schopenhauer explica isto distinguindo o nada como negação (nihil privativo), do nada em si mesmo (nihil negativum), e fala da incapacidade do intelecto, nous, de transcender dificuldades deste tipo. Ele sustenta, ainda, que além de ter alertado sobre o caráter ilusório do mundo fenomênico, Platão enxergou

também

os

limites

do

discurso

lógico-racional.

Metafísica

e

epistemologia estão, aqui, sistematicamente ligadas. Em relação ao exemplo da ilusão do bastão quebrado na água, o alemão diz:

“Reconheceu-se que a intuição sensível não é incondicionalmente confiável, concluindo-se precipitadamente que tão só o pensamento lógico-racional funda a verdade, embora Platão (em Parménides) mostrasse (...) como, por seu turno, também silogismos e conceitos conduzem a erros, sim, produzem paralogismos e sofismas que se originam muito mais facilmente e são muito mais difíceis de resolver do que a ilusão da intuição sensível”

54

(VER PARM)

54

SCHOPENHAUER, MVD: p. 125. O autor remete, no mesmo contexto, à passagem do Teeteto onde se apresenta a imagem do pombal, no qual pode se agarrar uma pomba indesejada (VER TEET).

34

A informação sensível é enganosa, de nenhuma maneira infalível, muito pelo contrário. A fonte da verdade está para além, ali onde reina a razão (...) e mais longe ainda, num lugar inconcebível ao qual jamais chegaremos. Schopenhauer diz que é necessário “reconhecer e, inclusive, transcrever em detalhes o lugar na Apologia de Sócrates onde Platão leva o mais sábio dos mortais a dizer que a morte, mesmo quando nos priva para sempre da consciência, deve consistir em um proveito maravilhoso (...) pois um sono profundo e sem sonho é (...) preferível a qualquer dia, mesmo da vida mais agraciada”55.

Eis a passagem platônica: (VER APOLOGIA). Estas fortes palavras sugerem um pessimismo socrático. Tinha Sócrates outros traços pessimistas? Como seja, o importante para nós é que fica claro e distinto que Schopenhauer reconhece o pessimismo platônico, revelando neste reconhecimento as raízes do seu próprio pessimismo. No Senilia, no final da sua vida, o alemão escreve: “já os antigos filósofos, Heráclito, Empédocles (...) e Platão (...) ensinaram o pessimismo (pessimismus)”56. Logo em seguida ele dedica algumas páginas a comentar um escrito de Clemente de Alexandria, no qual o teólogo grego pretende objetar o pessimismo platônico mas resulta, segundo Schopenhauer, sendo o seu involuntário apologista. No livro IV da obra Stromata, o pai da Igreja acusa de herética à seita gnóstica dos Marcionistas que, inspirados segundo eles em Platão, consideravam imperfeita a criação e praticavam o

55 SCHOPENHAUER, A.. WWV II, p. 750. 56 SCHOPENHAUER, 2010 (1852): p. 72,1- 73,1.

35

celibato com o fim de não propagar a espécie. Clemente se revolta, e lança que esta interpretação é ofensiva não só para Platão, mas principalmente para Deus! O pessimista é um herege, uma criatura ingrata que despreza o criador e a criação. Em favor desta leitura Clemente apresenta uma coleção de citações interessantíssimas de vários diálogos platônicos. Do trabalho do medieval trataremos em seguida. Vejamos agora o comentário de Schopenhauer:

“[Clemente] não quer conceder aos Marcionistas nem sequer a honra da originalidade,

mas,

armado

de

sua

conhecida

erudição,

mostra,

documentando-o com as melhores citações, que já os antigos (...) tinham ensinado o pessimismo. Só que, no seu erudito entusiasmo, não se dá conta de que precisamente desta maneira leva água ao moinho dos Marcionistas, enquanto mostra que (...) Platão (...) e os mais sábios de todos os tempos ensinaram e cantaram o mesmo que eles” 57.

Século I: Clemente de Alexandria Para compreender integralmente a ironia deste comentário levemos nossa atenção sobre o que foi dito pelo alexandrino. Suas palavras serão duplamente interessantes para nós, na medida em que constituem não somente mais um caso de menção ao pessimismo platônico, mas também representam uma contribuição valiossísima à história do despertar do espírito pessimista na cultura grega. No livro terceiro da sua obra intitulada Stromata, este teólogo judeucristão nascido em Atenas acusa de heresia a Marcião, quem propugna a engkrateia, isto é, a continência de todo e qualquer tipo, sob a premissa de que a existência deste mundo é, como Platão bem dissera, ruim e defeituosa e,

57

SCHOPENHAUER, Senilia: p. 183.

36

portanto, não deve ser perpetuada. O santo irá se posicionar contrário a esta leitura num viés muito semelhante ao de Vlastos58: o importante é que o Demiurgo se impõe ao caos, que cria o mundo e cria o homem. A leitura de Vlastos se mostra, agora desta perspectiva, como uma leitura tipicamente cristã. Mas independentemente deste fato, o que nos interessa é o compêndio de das diferentes etapas na qual o insight pessimista se desenvolve na antiguidade na cultura Ocidental que Clemente de Alexandria coleciona, documentado com precioso detalhe, em uma linha que se origina nos poetas e filósofos da natureza gregos, avança até Platão e, misturada com elementos pitagóricos, desemboca no verdadeiro insulto dos Marcionistas. O trecho merece ser citado na íntegra:

“Os filósofos que até agora mencionamos, dos quais os Marcionistas derivaram com blasfêmia a sua teoria de que o nascimento é um mal (...) não sustentaram que é mau por natureza, mas somente para a alma que tem percebido a verdade (!). Pois eles pensam que a alma é divina e que está neste mundo que é um lugar de sofrimento (...) Mas esta não é a teoria dos Marcionistas, senão daqueles que pensam que as almas estão presas nos corpos e mudam desta prisão e são sujeitas à transmigração (...) É muito claro que Heráclito considera o nascimento como um mal quando diz: “Quando os homens nascem, eles são forçados a (...) morrer (...) e deixam filhos que também sofrem a morte”. Empédocles concorda evidentemente com ele quando diz: “Quando vi o lugar, tão estranho que era, chorei e lamentei”. E ainda: “Do que era vida ele fez a morte, mudando as suas formas”. E de novo: “Oh, raça desgraçada dos mortais, malditos homens! De que tipo de desordem vocês nasceram!”. E a Sibila também diz: “Vocês são homens mortais, e de carne, não são nada”, como o poeta que escreve: “A terra não nutre algo tão fraco quanto o homem!”. 58

Cfr. p.

37

Além do mais, Theognis mostra que o nascimento é mau quando fala assim: “Para os mortais, o melhor é jamais nascer e nunca ver a luz do sol, mas tendo nascido, atravessar as portas do Hades o quanto antes”. Com isso concorda também o poeta trágico Eurípides, quando escreve: “Quando um homem nasce devemos apenas compadecer de seu destino (...) mas quando um morre e chega ao final dos problemas, então devemos nos alegrar e celebrar sua feliz partida”. E de novo ele diz o mesmo com estas palavras: “Quem sabe se a vida não é na verdade morte, e a morte vida”. Heródoto, está claro, faz Sólon dizer o mesmo: “Oh, Croesus, cada homem é uma desgraça”. E o seu mito sobre Cleobis e Biton não tem outra intenção senão descreditar o nascimento e exaltar a morte. “Como folhas ao vento, assim é a raça humana”, diz Homero. E no Cratilo, Platão atribui a Orfeu a doutrina de que a alma neste corpo está sofrendo um castigo. Isto é o que ele diz: “Alguns dizem que o corpo é o cárcere da alma, como se estivesse soterrada nele durante esta vida. E devido a que a alma se expressa (semainei) por este corpo, seja o que for que ela queira expressar, assim está corretamente chamado de túmulo (sema). Os órficos, em particular, parecem ter lhe dado este nome, porque eles pensam que a alma sofre castigo pelos seus atos. Vale a pena também mencionar Philolao. Este pitagórico fala como segue: “Os antigos teólogos e visionários deram testemunha de que a alma está unida ao corpo para sofrer certo castigo, e isto, como se estivesse soterrada em um túmulo. E Píndaro se refere aos mistérios eleusinos como segue: “Bendito seja aquele que viu antes de ir embaixo da terra, pois ele conhece o fim da vida e sabe também sobre a sua origem divina”. Assim, no Fedro, Platão não duvida em escrever: “E estes homens que estabeleceram os nossos mistérios (...)

vivem com os deuses”. Como

quando diz: “Enquanto possuamos um corpo e a nossa alma esteja envolvida

em

semelhante

mal,

não

possuiremos

jamais

o

que

verdadeiramente desejamos”. Não está sugerindo ele que o nascimento é a causa, o pior de todos os males? E no Fedro: “Todos aqueles que têm se ocupado corretamente da filosofia correm o risco de que os outros homens notem que o seu único objeto é perseguir a morte e morrer”. E em outro

38

lugar: “a alma do filósofo no geral despreza o corpo e se aparta dele, e busca existir por si mesma” (...)

E que os intercâmbios sexuais eram

rejeitados muito tempo antes de Marcião por Platão está claro desde o primeiro livro da República. Pois após ter prezado (praising) a velhice, ele continua: “escuta bem: para mim, quanto mais os prazeres do corpo desaparecem, mais crescem os desejos e os prazeres da indagação racional”. E sobre às relações sexuais: “Cala, homem! É com a maior alegria que fugi disso – como quem foge de um amo selvagem e tirano”. De novo, no Fedro, ele despreza o nascimento quando diz: “nós, homens, estamos em uma espécie de prisão”. E de novo: “Aqueles que se distinguem manifestamente pela santidade da sua vida são libertados destes lugares na terra e deixados em liberdade, como se a terra fora uma prisão, e vão para o lar puro lá encima”. Não obstante, embora defenda isto, Platão percebe que a administração deste mundo é boa: “não se deve libertar-se e escapar”. Resumindo, ele não deu a Marcião ocasião para a sua ideia de que a matéria é o mal, quando ele mesmo diz do mundo: “Tudo que é bom este mundo recebeu daquele que o compôs; mas do seu estado anterior surgem todas as coisas injustas e adversas”. Com maior clareza ainda, ele adiciona: “A causa destas coisas era o elemento material na constituição do mundo, que se encontrava na sua natureza antiga. Pois antes que adquirisse este estado ordenado, encontrava-se em uma condição de grande caos”. No mesmo respeito, ele lamenta os homens dizendo: “Os deuses têm piedade da humanidade, que nasceu para a luta, e para dar a ela descanso da sua tarefa forneceram o ciclo das festas”. E no Epinomis discute as causas desta lamentável situação e diz: “No começo, o nascimento era difícil para o ser humano; chegar ao estado de ser um embrião, depois nascer, ser alimentado e educado, tudo isto está cheio de sofrimento, como todos concordamos”. O quê, então? Não chama Heráclito à vida, morte, como Pitágoras e Sócrates no Górgias, quando diz: “A morte é o que vemos quando estamos acordados; e o que vemos dormindo é um sonho”. Mas basta disto. Acredito ter mostrado suficientemente que Marcião tomou de Platão o

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ponto de início da sua estranha teoria, sem o devido reconhecimento nem a compreensão adequada” 59.

Resta agora simplesmente agradecer a Clemente por tão maravilhosa revisão do capítulo inicial da história do pessimismo, da qual trataremos em profundidade em seguida. Acreditamos ter mostrado neste capítulo que existem bons motivos para entender que o pensamento de Platão no geral, e da República e dos diálogos tardios em particular, constitui a sementeira, o momento de gestação de uma posição que estará completamente formada e se tornará plenamente visível no século XIX: a tradição do pessimismo filosófico.

°

59

CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, KINDLE Ed., Early Church Theology, 2012, pp. 118-

212

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CAPÍTULO II: O Pessimismo

II. I – Definição e Historia

No presente capítulo consideraremos finalmente, desde diferentes ângulos, o fenômeno do pessimismo. Em primeiro lugar devemos distinguir o pessimismo anímico do filosófico; em segundo, o pessimismo teórico do prático. Quanto à primeira dupla, ela é fonte corrente de confusão: Vlastos cai no equívoco, assim como também em ocasiões o próprio Gould (quem, pelo demais, utiliza o termo acertadamente60). O pessimismo que estes autores evocam ao utilizar expressões como “desespero” ou “melancolia” é um acontecimento subjetivo, um estado de ânimo, justamente. Mas assim como “é absurdo tratar as conclusões otimistas de Mill e Marx em termos da disposição ensolarada dos seus 60

Schopenhauer não comete este erro, na medida em que endossa a Platão uma posição de alguma maneira pré-filosófica, ao tempo que interpreta a metafísica e a epistemologia do antigo encontrando nela a fonte do seu próprio pessimismo.

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autores (especialmente porque não a tinham)”, tampouco o pessimismo de Platão consiste em um estado de “luto”, “angústia”, ou qualquer outro sentimento do tipo. “Filosofia e disposição de ânimo simplesmente não devem ser confundidos (...) Devemos divorciar o conceito de pessimismo do de infelicidade tanto quanto separamos o de otimismo do de felicidade” 61. Não é o temperamento de Platão o que nos ocupa, mas a sua filosofia. Isto não significa, é claro, que o aspecto íntimo, psicológico do fenômeno seja irrelevante; pelo contrário, conservemos em mente a distinção, pois pode resultar de utilidade no momento de pronunciar a palavra final sobre o antigo. Por enquanto, porém, separemos bem os conceitos. O pessimismo ao qual nos referimos quando aplicamos o epíteto a Platão está escrito em prosa, é filho de uma tarefa racional e crítica e remete à história do pensamento. A maior parte dos estudiosos concebe a emergência do pessimismo como um processo paulatino, que se inicia bastante antes de ser possível batizá-lo. Segundo Dienstag, se trata de um fenômeno moderno que se prefigura com a instauração do calendário gregoriano e o surgimento dos primeiros relógios mecânicos nas torres dos espaços públicos, na Idade Média. Segundo o autor, estes acontecimentos deram lugar a uma espécie de corporização do tempo, que teve um efeito revolucionário na sensibilidade européia da época: “as medidas de tempo públicas (...) alteraram a consciência do tempo”

. Lentamente, o

62

tempo deixou de ser cíclico e passou a ser linear; um fluxo que transcorre indefinidamente para frente. Esta nova percepção moderna do tempo, misturada 61DIESTANG, 2006: p. 4. 62DIENSTAG, 2006, p. 13;

42

com os avanços das ciências e das técnicas, a abundância material e a inovação, formaram o caldo de cultivo ideal para a idéia de progresso. Neste estado das coisas, surgiram teorias otimistas, políticas e econômicas principalmente. Com uma eternidade em aberto, a confiança fermentou rapidamente. Humano demasiado humano. Contudo, segundo Dienstag outra corrente se gestava no subsolo deste processo de mudança cultural desde o começo. A palavra pessimista é já utilizada no final do século XVIII a respeito de certas figuras literárias como Voltaire63,64 (CONT!!). Para Dienstag, se trata de um fenômeno moderno e principalmente político. Subterrâneo à revolução industrial e ao otimismo próprio dela, o pessimismo nasce e se desenvolve em paralelo, não como o oposto, mas como a negação das teorias do progresso:

“O liberalismo, o socialismo e o pragmatismo, devem ser todos entendidos como otimistas na medida em que compartilham a premissa de que a aplicação da razão às condições políticas e sociais resultará, em última instância, na melhora de tais condições. O pessimismo, que também considera o tempo linear, nega rotundamente esta premissa, ou, com maior cautela, não encontra evidência para ela, e nos chama a filosofar nesta ausência”

65

63Cfr. Diestang, 2006: p. 9. Voltaire é acusado de “pessimisme” na Revue de Trévoux. Para a

relação entre pessimismo filosófico e literário Cfr. esta mesma obra p. 6. 64Em 1766 Lichtenberg escreve “pessimismus” em alemão; na língua francesa, o termo aparece no nome de uma peça de teatro satírico: Le pessimiste ou l´homme méconte em 1799- a Academia Francesa indexa o termo, porém, só em 1878, passados cem anos; em inglês, ele surge logo em seguida. Por sua parte o termo otimismo tem, na raiz da sua história, o uso, por parte de Leibniz (na Théodiceé, em 1710) da palavra latina “optimum” como correlato de “maximum” e “minimum”; Voltaire deu ao conceito difusão ao intitular sua conhecida obra Cândido ou l’optimisme, em 1759. 65DIENSTAG, 2006: P. 18

43

Montaigne escreve: “A alma é mortal ou imortal. Se mortal, não existirá a dor; se imortal, ela continuará se desenvolvendo. Mas eles nunca consideraram a outra alternativa: e se ela continuar a degenerar?” “tradição invisível”, a “irmã gêmea oculta”

67

66

. O pessimismo é uma

do impulso progressista. Uma

mesma linha liga a Rousseau, Leopardi, Nietzsche, Weber, Ortega y Gasset, Freud, Camus, Adorno, Foucault, Cioran, etc.68 e, de alguma maneira, a Platão. Cioran diz por exemplo: (COMPL) E Leopardi: (COMPL) Lembremos, além do mais, que também Schopenhauer, pai do pessimismo filosófico, amem, também nos sugere que levemos nosso olhar à antiguidade. Ele oferece uma valiosíssima referência, e entre o material resgatado tão aplicadamente pelo pai da Igreja e por Sully temos suficiente material para um panorama inicial da história deste fenômeno, o pessimismo, como acontecimento literário. (REVER SULL/CLEMENT)

66 Citado em: DIENSTAG, 2006: p. 16 67Hidden twin, CFR: DIENSTAG, 2006: p. 16 68Dienstag menciona também, como “precursores” a Montaigne, Lichtenburg, La Rochefoucauld,

e diz que Sarte, Arendt, Benjamin, Wittgenstein e Weil podem ser considerados “sócios próximos” (2006: p. 6).

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Detenhamo-nos agora na segunda distinção: aquela entre pessimismo prático e teórico. Está claro que por pessimismo teórico entende-se determinado posicionamento argumentativo, um conjunto de idéias trançadas ao compasso dos aspectos sombrios da realidade. O pessimismo teórico schopenhaueriano é metafísico (a Vontade é um impulso cego que se devora a si mesmo); e quiçá seja adequado dizer que o pessimismo de Platão é, pelo menos inicialmente, antropológico. O pessimismo prático, por sua vez, tem a ver, evidentemente, com a ação. É, segundo o entendimento geral, o credo do suicida. Como seja, não é o produto do trabalho do teórico. Nietzsche diz que o pessimismo prático é “inimigo da Natureza, como algo verdadeiramente antinatural”69; e também: “O pessimismo prático (...) esse vendaval envenenado70”. Mas este sacrifício da ação não é a única alternativa; em todo caso, não é a alternativa que aqui nos interessa.

I. 2 – Conteúdo

Passemos, por tanto, ao conteúdo teórico do pessimismo -

O pessimismo “desafia nossas noções de ordem e significado de um modo dramático”; ele é um substituto para o progresso, “ainda que não um inofensivo” . Para começar, contém uma verdade incômoda, pois revela fenômenos ou

71

circunstâncias cuja existência é indesejável; por este motivo é uma corrente 69 NIETZSCHE, F. Ensayos..., p. 8. 70Idem., p. 101. 71TALLIS, 1999, xiv; Citado em: DIESTANG, 2006: p. 4-5. 45

marginal: o inconsciente precisa no geral evitar a gravidade; esperto como é, encontra com freqüência a maneira de evadir-se. Existe uma espécie de medo ou denúncia: “O ataque contemporâneo aos valores do Iluminismo carrega grandes perigos (...) A humanidade esta se levando a si mesma a um estado final de desespero, desgosto e impotência” 72; e também: “A disseminação do desespero e a dúvida tem se tornado tão penetrante que a aceitamos como uma postura intelectual normal (...) O pessimismo moderno (...) tem conseguido destruir a nossa idéia mesma de civilização” 73; e ainda, mais recentemente: “De modo que devemos mudar a lei, melhorar a lei, e existe um progresso infinito a ser realizado (...) Alguns tentaram opor (...) a desconstrução do Iluminismo. Não, eu sou a favor do Iluminismo, do progresso; eu sou “ 74. Após estes comentários é possível notar como, inclusive no século XXI, a posição pessimista continua a ser considerada uma “trava à evolução” e a suscitar uma reação, ainda em ampla medida emocional, de rejeição, como se fosse um posicionamento negativo, decadente e infértil. Mas deixando esta critica de lado, vejamos as proposições positivas do pessimismo. Segundo Dienstag, o pessimismo não constitui uma filosofia sistemática, isto é, não possui um núcleo permanente de lineamentos comuns aos quais aderem absolutamente todos os seus adeptos, mas existem algumas posições implicitamente compartilhadas factíveis de serem descobertas75.

72Herman, 1997, 10, 450; citado em: idem. 73 74 75

DERRIDA, 2001: P. 31. Citado em DIENSTAG, 2006: p. 5. DIENSTAG, 2006: p. 8

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Segundo o autor, todos os pessimistas subscrevem, em maior ou menor medida, aos seguintes postulados: que o tempo é um fardo; que o curso da história é de alguma maneira irônico; que a liberdade e a felicidade são incompatíveis e que a existência humana é absurda -

°

Anexo 2 – Apresentações em Congressos, 2014

II Congreso de la Sociedad Filosófica del Uruguay Montevideo, Agosto 2014

Optimismo socrático, ¿pesimismo platónico? Natalia Costa Rugnitz, Orientador: Lucas Angioni Unicamp Órgano de Fomento: FAPESP

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Socratic optimism, platonic pessimism? Abstract: In The Birth of Tragedy Nietzsche indicates that in Socrates´ thought we can find three basic axioms of the optimistic spirit: that knowledge is virtue, that no one does wrong willingly and that the virtuous man is the happy man. There is a common interpretation according to which Plato´s philosophy adhere to these maxims, constituting

“a system of optimism which has hardly been

surpassed - even by the most favourable interpretations of Christian theology”. However, there are multiple dimensions in which the platonic position inclines to pessimism. We intend to show that even if we accept that in dialogs like Republic Plato understands, like Socrates, that reason is the noblest element in the soul, that virtue is intrinsically related to knowledge and that it´s only due to knowledge that a happy life is possible to human being, we will have to accept, as well, that in great contrast to his master he points out several limitations to the rational capacity and doesn’t seem to believe in its capability to change the moral background of individuals. We will state that this “mistrust” is enough to exclude Plato´s position from the field of ingenuous optimism. Key words: Plato, pessimism, Socrates, optimism, Nietzsche * Palabras clave: Platón, pesimismo, Sócrates, optimismo, Nietzsche Resumen: En El Nacimiento de la Tragedia Nietzsche indica que en el pensamiento socrático están presentes tres axiomas del espíritu optimista: “la sabiduría es la virtud; se peca solo por ignorancia; el hombre virtuoso es

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el hombre feliz”. Existe una difundida valoración según la cual la filosofía platónica constituye también un “ejemplo de optimismo difícilmente superado históricamente, ni incluso por las interpretaciones más favorables de la teología cristiana”. Sin embargo, existen múltiples dimensiones en las que la postura platónica se inclina al pesimismo. Pretendemos mostrar que, mientras en diálogos como la República Platón entiende que la razón es lo más noble del alma, que la virtud está relacionada al conocimiento y que solo a partir de éste es posible una vida feliz, al mismo tiempo, en notable contraste con su maestro, adjudica

importantes

limitaciones a la parte racional y no parece

creer en su capacidad de alterar el fondo moral del individuo. Con fundamento en esta “desconfianza”, defenderemos que Platón pregona una posición que, si no merece ser denominada pesimista, por lo menos es digna de ser excluida del ámbito del optimismo ingenuo.

I Anotemos en primer lugar que cuando hablamos de pesimismo nos referimos a una actitud teórica, eminentemente filosófica, que surge como fruto de una tarea especulativa, metódica y racional, y no a la disposición del ánimo negativa o depresiva que corrientemente se asocia con el término (hasta donde tal distinción es posible). Esta anotación debería estar de más, puesto que aplicamos el calificativo “pesimista” a la obra de uno de los referentes máximos de la Filosofía occidental; sin embargo, el hecho de que Platón sea antes hombre que filósofo hace posible que se piense que la referencia es a una propensión subjetiva del individuo Platón. En vista de este malentendido, queda dicho

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entonces que al hablar de un pesimismo platónico nos referimos a una posición que, aunque pueda – e incluso deba - encontrar algún reflejo en el ámbito de las inclinaciones íntimas es, antes, un fenómeno de naturaleza intelectual. Defenderemos puntualmente que el pesimismo platónico tiene sus raíces en la concepción que el pensador presenta de la interioridad humana, sus componentes, estructura y tendencias más fundamentales. Nuestra estrategia será exponer lo que puede ser entendido como un optimismo socrático, ya que en el contraste con él la posición platónica revela su veta más oscura. Tanto la figura como las ideas de Sócrates sugieren que existió en él una confianza absoluta en la capacidad racional de todo ser humano de aprehender la verdad y adecuar la acción al conocimiento resultante; su polémica premisa “nadie se equivoca voluntariamente” es vestigio de ello. En El nacimiento de la tragedia (1872/1886), Nietzsche lo explica de un modo iluminador con la distinción entre lo apolíneo y lo dionisíaco. Apolo es el dios de la apariencia, del límite y por lo tanto del orden, la belleza y lo comprensible – la fuerza apolínea triunfa “con la ayuda de un poderoso espejismo de ilusiones agradables” (Nietzsche, 2009: 43 y ss.), dice Nietzsche. Dionisio, en contraste, es la divinidad de la embriaguez y del éxtasis, de la explosión primaveral y de la irracionalidad (Nietzsche, 2009: 34-35). Dionisio sería, podríamos decir, el elemento constitutivo “de fondo” de la realidad, el “caos primordial”; Apolo, la apariencia ordenada de la superficie. Pues bien: Nietzsche dirá que el arte, en sus manifestaciones más altas - como lo es para él por antonomasia la tragedia griega- nace de la perfecta combinación de estos dos impulsos: el apolíneo y el

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dionisíaco. Según su interpretación de la cultura griega, existía en la época del nacimiento de la tragedia (siglo VII a.C.) un contacto profundo con el aspecto dionisíaco – esto es: extático y, en fin, dramático - de la realidad, contacto cuya sublimación constituye, justamente, la raíz de la obra de arte trágica:

“El alma profunda del heleno, tan incomparablemente dotada para sentir el dolor más ligero o más cruel, se consuela [con el arte trágico]. El griego había contemplado, con mirada penetrante, los espantosos cataclismos de lo que se llama historia universal y había reconocido la crueldad de la naturaleza; y se encontraba entonces expuesto al peligro de aspirar a la negación budista de la voluntad. A este griego lo salva el arte” (Nietzsche, 2009: 64)

En su aspecto musical, sublime e incomparable según Nietzsche, la tragedia de la “Gran Época” (Esquilo y Sófocles) es dionisíaca, mientras la escena y el diálogo constituyen el aspecto más comprensible, es decir apolíneo. Sin embargo, con Eurípides empieza el ocaso de esta manifestación artística. Eurípides encuentra en los dramas de sus antecesores demasiado misterio y oscuridad; “no los comprende”, e inicia una nueva forma, la “Comedia Ática Nueva”, donde todo se torna más claro: los personajes explican sus acciones, el diálogo se torna omnipresente, la música se simplifica. Y en este estado de espíritu, Eurípides encuentra “otro espectador que no comprendía la tragedia y, por este motivo, la despreciaba” (Nietzsche, 2009: 90): Sócrates. Sócrates

“rechazaba deleitarse frente al espectáculo de los abismos dionisíacos… [y] observaba en éste arte trágico sublime y glorioso, según la frase de Platón… algo completamente irracional, causas sin efectos y efectos sin 51

causas, y sobre todo esto, un conjunto tan confuso y diverso que un espíritu reflexivo debía sentirse escandalizado; y las almas ardientes y sensibles, peligrosamente turbadas” (Nietzsche, 2009: 101)

La tendencia antidionisíaca de Eurípides es, según Nietzsche, un eco del socratismo estético, que fue el “primer asesino” de la tragedia (Nietzsche, 2009: 97) y cuyo dogma supremo es, a grandes rasgos, que “todo tiene que ser comprensible para ser bello”. Para Nietzsche, es la irrupción de este “espíritu crítico” y del “ciego racionalismo” anexo a él lo que empobrece la tragedia de Eurípides en comparación con la de sus antecesores y aún más: lo que inicia la decadencia de la cultura griega como un todo:

“Fue Sócrates quien profirió la frase más incisiva sobre el nuevo y extraordinario valor que se le otorgaba al conocimiento y al juicio… Al visitar a los hombres de Estado, a los oradores, a los poetas y a los artistas célebres, veía en todos la pretensión de sabiduría. Reconoció… que… todas esas celebridades no poseían ningún conocimiento correcto y cierto, y obraban sólo instintivamente. “Solo instintivamente”: es esta sentencia la que nos revela la médula y el corazón de la tendencia socrática… Desde esa perspectiva, Sócrates consideró necesario reformar la existencia; como precursor de una cultura, un arte y una moral diferentes” (Nietzsche, 2009: 98-99)

Que la virtud es la sabiduría, que se peca solo por ignorancia y que el hombre virtuoso es el hombre feliz, son los tres grandes “principios del optimismo” (Nietzsche, 2009: 104) que dan muerte a la tragedia y, a su vez, origen a una forma de cultura que desprecia lo irracional y pone como único valor el conocimiento. Al observar Sócrates la ignorancia en que se encontraban

52

sus contemporáneos y el hecho de que sus decisiones se apoyaban en opiniones vagas, entendió que esta era la causa del malestar y los problemas que los afectaban, y desarrolló una confianza en la capacidad racional de revertir la situación, pregonando la urgencia de someter a escrutinio todos los aspectos de la existencia y defendiendo con la vida la idea de que en el ejercicio del logos, en detrimento de cualquier otro aspecto de la interioridad, se encuentra la redención. Esta confianza subvirtió las premisas espirituales más básicas y condicionó la organización de los asuntos humanos por siglos. Según Nietzsche, la fórmula socrática es de cadencia exclusivamente apolínea y por esto criticable: la apuesta en que el mundo es un acertijo no solo descifrable, sino modificable en su esencia, implica un mantenerse en la superficie, desechando los aspectos oscuros e irracionales, es decir dionisíacos, de la realidad. “Este esfuerzo del insaciable conocimiento optimista, cuyo paradigma fue Sócrates” (Nietzsche, 2009: 111-112), es un modo de ser que se escurre hacia los más diversos ámbitos de la cultura occidental hasta la actualidad76. En resumen:

Sócrates es el primer modelo del optimista teórico, que con su fe en la posibilidad de profundizar en la naturaleza de las cosas atribuye al saber, al conocimiento, la virtud de una panacea universal y considera el error como un mal en sí. El individuo socrático consideró que la más noble vocación y la más digna del hombre consistía en indagar las causas, distinguiendo el conocimiento verdadero del aparente y erróneo. A partir de Sócrates, este engranaje de conceptos, proposiciones e inferencias, 76

“La cultura… cuyo hombre ideal es… el hombre teórico… ha capturado al hombre moderno en su red. Todas nuestras metodologías educativas comienzan y terminan en este ideal; cualquier otro género de existencia debe luchar penosamente, desarrollarse accesoriamente, no como una existencia justificada, sino como una existencia tolerada” (Nietzsche, 2009: 127)

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resultó ser considerado como el talento más alto, el más maravilloso de la naturaleza y estimado por encima de todas las demás capacidades. Más aún: las acciones morales más nobles, como los impulsos de la piedad, del sacrificio, del heroísmo e, incluso, ese estado al cual el griego apolíneo denominara sophrosyne [serenidad], que tanto cuesta alcanzar y que solo se puede comparar con la calma silenciosa del mar inmóvil, todo esto, a los ojos de Sócrates y sus sucesores, hasta los más modernos de sus discípulos, es del dominio de la dialéctica del conocimiento, y como tal pueden ser enseñados y aprendidos” (Nietzsche, 2009: 110-111)

Nietzsche es severo en su crítica a Sócrates y al optimismo en tanto posición teórica. La glorificación optimista del saber y del hombre que sabe se le aparecen como una magna cobardía, una grosería antifilosófica, símbolo de la decadencia más que de la elevación humana - “Ese optimismo” dice “se eleva de las profundidades de la concepción socrática del mundo como un vapor perfumado, de acción dulzona y pérfida” (Nietzsche, 2009: 137); e insiste: “La ilusión ilimitada del optimismo: esto es lo que se esconde en lo más profundo de la cultura socrática y que no se nos debe ocultar” (Nietzsche, 2009: 128). En general, la posición platónica es asociada a esta postura socrática: Platón es tenido, de hecho, como un entusiasta constructor de utopías políticas, sociales e incluso como el creador de la figura del filósofo iluminado como el modelo a seguir: el hombre sabio, conocedor de lo terreno y lo divino, virtuoso en todos los sentidos, feliz, moral, es decir el hombre enteramente realizado. Sin embargo, la hipótesis de un pesimismo platónico empieza a tener cada vez más adeptos77 - y esto se debe a que los textos platónicos mismos presentan sobrada, 77

Cfr. por ejemplo Lorenz, H., The Brute Within, Clarendon Press, Oxford, 2006 o Bobonich, Ch., Plato’s Utopia Recast: His Later Ethics and Politics, Oxford University Press, 1991

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aunque sutil, evidencia de su pertinencia. Algunos comentadores han detectado el espíritu pesimista en la cosmología platónica, otros en la moral, otros en la filosofía política; nuestra hipótesis es que es posible encontrar una raíz común en la cual los diferentes aspectos, o al menos la mayor parte de ellos, se unifican: todo parte, diremos, de la concepción que Platón tiene de la psyché humana, y de allí se expande al ámbito epistemológico, moral, eudaimonológico y político. Con la idea de la tripartición, presente en el L. IV de República, Platón presenta su tesis de la existencia de una desagregación estructural característica del alma, postura que confirma posteriormente cuando dice que la unidad del ser humano es apenas un “envoltorio exterior” (Rep,, 588c-e). El elemento apetitivo es retratado como una “criatura monstruosa, multiforme y policéfala” (Rep., 588c), que alberga desde simples impulsos relacionados a necesidades fisiológicas (el hambre, la sed, el ímpetu sexual), pasando por deseos puramente hedónicos, hasta ejemplares directamente inmorales, como el deseo de mantener relaciones sexuales con la propia madre o de comer carne humana78. Lo emocional, por su parte, es presentado en esta misma construcción como un león, y permanece así, a pesar de poseer cierta nobleza, aún como una poderosa fuerza animalesca. De la razón, por último, se sugiere que es el componente más precioso, aunque el más escaso y, en varios sentidos, el más débil del alma. En la alegoría del sol, de la línea y de la caverna, Platón expresa con nitidez su posición respecto a las restricciones de la capacidad racional humana. En la primera, Platón sostiene 78 En relación a esta interpretación, Cfr. PARRY, “The Unhappy Tyrant and the Craft of Inner Rule”, en: The Cambridge Companion to Plato´s Republic, FERRARI, G.R.F. editor, Cambridge University Press, 2007, quien traduce “μιαιφονεῖν τε ὁτιοῦν, βρώματός τε ἀπέχεσθαι μηδενός” como “la contaminación de la sangre y el comer comida prohibida”, y cita a Adam (1962, vol II, pp. 319-20), el cual sugiere que Sócrates se está refiriendo al parricidio y al canibalismo.

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que la Idea del Bien es el máximo objeto de conocimiento (megistón mathema, Rep. 504d-e; 505a, etc), que está más allá de la esencia (epekeina tés ousiá, Rep. 509b) y que es aquello por lo cual el alma hace todo lo que hace (Rep. 505d). Esto último evoca el vínculo entre conocimiento y virtud: “la idea del Bien es el objeto supremo de conocimiento, a partir del cual las cosas justas y las demás análogas se vuelven útiles y valiosas” (Rep. 505a), dice Platón. En otras palabras: es por el conocimiento que poseemos del Bien que reconocemos las acciones virtuosas y, fundamentalmente, que las actuamos – con lo cual se sella la adhesión a la ecuación socrática. Que la Idea del Bien esté más allá de la esencia puede ser entendido en el sentido de que ella se encuentra, en la jerarquía de las Ideas, aún “más distante” que la esencia misma. Este “alejamiento” es confirmado de hecho por la alegoría de la línea: los objetos que constituyen tanto el plano sensible como el inteligible están ordenados en función de su relación con la verdad, siendo que en la cúspide de ese ordenamiento se encuentra la fuente del resto: la Idea del Bien. Con esto, el Bien sería un objeto cognoscible, como su condición de megistón mathemata lo exige; sin embargo – y especialmente - sería también “casi incognoscible”, posicionado en el límite más extremo del Mundo de las Ideas y en la “casi trascendencia”, cumpliendo así con la condición “más allá de la esencia”. Que se escurre hacia la incognoscibilidad es algo que, en efecto, se admite constantemente (Rep. 504d y ss., 505b-c, etc. etc.). Sirva de categórico resumen la célebre tesis, ya mencionada, de que el bien es “lo que toda alma persigue y por lo cual hace todo” lo que hace, que se completa con las siguientes palabras:

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“adivinando que existe pero sumida en la perplejidad… y sin poder captar suficientemente lo que es” (Rep. 505e). Este es justamente el eje sobre el que tiene lugar el movimiento por el que Platón se aleja de eso que Nietzsche ha definido como “optimismo socrático”: la posición que subyace a esta visión del ser humano está lejos de ser optimista. Si la Idea del Bien tiene una importancia tan crucial conjuntamente en el contexto teórico y en el práctico pero al mismo tiempo se encuentra en un lugar remoto al cual la razón difícilmente puede acceder, entonces existe una dificultad natural para completar el proceso cognitivo que da sentido a la existencia humana, tanto desde el punto de vista teórico como de la acción. En otras palabras: en la misma medida que la Idea del Bien es inaprensible, la acción virtuosa es irrealizable. Platón parece coincidir en que todo ser humano actúa siempre en pos de lo bueno pero (y aquí está su desvío) qué es lo verdaderamente bueno, es algo que se le escapa. Esta impresión de la sujeción humana a un estado cognitivo y moral inferior coincide, por si aún quedaran dudas, con aquella propiciada por la imagen de la caverna, donde los prisioneros se encuentran desde el principio encadenados en un recinto muy distante de la verdad – recinto del cual no son capaces de salir por voluntad propia y verdad que no son capaces de contemplar sin pasar por dificultades enormes y por un proceso antinatural. Esta manera de entender las capacidades y principalmente las incapacidades - de la razón, sumada a la forma de concebir las otras fuentes motivacionales – lo apetitivo y lo emocional- como determinantes de la acción, llevará a Platón a considerar que la gran mayoría de los hombres es por naturaleza muy poco apto para avanzar por el camino del

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conocimiento que deriva en la virtud y la felicidad – posición que saldrá a la vista con mayor evidencia en las Leyes. Es a esto que nos referimos, finalmente, al hablar de un “pesimismo” platónico: la diferencia con la postura socrática es evidente. Pero: ¿cuál es el punto de resaltar este fondo “negativo” del pensamiento platónico? Quizá podamos decir algo en relación a los “beneficios” de dejar atrás una posición como la de Sócrates al observar el proceso intelectual existente entre la República y las Leyes. Podría decirse que en ambas obras Platón acomete un mismo objetivo: grosso modo, el de reflexionar acerca de cuál es la disposición de las cosas que más aproxima, tanto al individuo como a la sociedad, a la vida próspera. Pero la solución dada en ambos casos es muy distinta. Una instancia representativa de esa diferencia puede encontrarse, como señala Gould (1955: )79, en la expectativa que Platón tiene respecto a la virtud en uno y otro diálogo: mientras en el primero la tríada justicia, moderación y coraje aparece como correlato necesario de la sabiduría en tanto objetivo y deber supremo de todo hombre, en el segundo este sublime conjunto se limita al menos “refinado” de sus integrantes: la moderación es lo máximo que podemos esperar de la masa de los individuos, y muy probablemente también de los propios gobernantes. Una

79 Gould dice que en las Leyes “el idealismo moral socrático ha sido abandonado… dando paso a

la “socialización” de la ética”: “La ciudad de Magnesia es… un estado de propaganda, cuyo objetivo es inculcar la areté en sus ciudadanos por un “encantamiento” (epoidé) complejo y sutil… En vez de la conversación filosófica… la búsqueda de la virtud es ahora caracterizada por el texto de un legislador que expone lo honroso y lo deshonroso y trabaja sobre los placeres y dolores, deseos y miedos de su sociedad”. Platón requiere en esta segunda utopía suya - mucho más realista que República, por cierto- un legislador para la masa, hecho a su medida y a su altura – y no el rey-filósofo iluminado de antaño. Gould agrega que a este nuevo modelo de gobernante platón “le exige ahora no dotes mentales filosóficos sino… al menos sophrosyne, en su sentido popular (demodé, 701a)” (Gould, 1955: 97).

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lección que podemos aprender de esta transición tal vez sea la siguiente: si nuestro propósito especulativo es reflexionar acerca de las posibilidades de una vida mejor, es decir acerca del progreso humano, sea individual o social, un análisis de la condición real del hombre, de las condiciones que rigen tanto su existencia íntima como la de relación, que incluya honestamente los limitantes existentes que retrasan o incluso tornan imposible tal progreso, será de la mayor utilidad. La historia está llena de este material oscuro, y por paradójico que parezca, si algún progreso es posible, será solo aquel que parta de su asimilación. Quizá el pesimismo platónico parezca tal sólo al cotejarlo con el entusiasmo socrático, ingenuo y optimista, y merezca más ser denominado “realismo”.

°

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Anexo 2.2 – Apresentações em Congressos, 2014

XVI Congresso da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia, ANPOF Campos do Jordão, São Paulo, 2014

Platão entre utopia e pessimismo Natalia Costa Rugnitz, Orientador: Lucas Angioni Unicamp Órgão de Fomento: FAPESP

Resumo: O texto que segue parte da consideração, de um lado, das diversas características que fazem da República de Platão um escrito de caráter utópico e, do outro, da ideia assumida no próprio texto de que qualquer perfeição possível de ser imaginada é impossível de ser realizada, sendo a causa de tal impedimento a própria natureza humana. Observaremos com especial cuidado esta ideia, reconstruindo o que chamaremos de pessimismo platônico a partir da teoria da alma tripartida e suas implicâncias epistemológicas, morais, e eudemonológicas. A pergunta fundamental será: como é possível que a utopia, flor do espírito otimista, coexista com a renúncia à quimera que a visão dos aspectos adversos da condição humana torna inevitável para o olhar pessimista? A resposta ensaiada se apoiará na hipótese de que a fonte do otimismo platônico seja Sócrates, enquanto a do pessimismo o movimento crítico, autônomo e livre 60

de Platão mesmo. A favor desta hipótese se apresentará a descrição do otimismo socrático realizada por F. Nietzsche no Nascimento da Tragédia, em cujo contraste aflorará com maior nitidez o caráter pessimista da posição platônica. Palavras chave: utopia, otimismo socrático, alma tripartida, pessimismo platônico * “Referes-te à cidade que fundamos há pouco com palavras, àquela que repousa no logos, pois não creio que exista em nenhuma parte da terra” República, 592a I–

Utopia

Explicitemos inicialmente o que entendemos por utopia. Enquanto gênero literário, a utopia se caracteriza por agir mais sobre a fantasia do que sobre a inteligência: “O discurso utópico, em geral, não encontra seu fundamento em uma ordem estritamente racional... muito antes de demonstrar, trata-se de mostrar, de apontar, de visualizar”; ele “seduz”, não “convence” (Monzani, 2008: p. 229). O pensamento utópico é construído por hipóteses e suposições antes que por demonstrações; o tom do texto é predominantemente idílico, as personagens nobres até o inverossímil; a temática é clássica: a vida ideal, pacífica, feliz. O leitor comum sai da leitura esperançado, absorto na contemplação de um futuro luminoso:

“As

utopias

fascinam,

sem

dúvida.

Elas,

ao

se

instalarem

predominantemente no campo do imaginário, fisgam o nosso desejo de justiça, de uma realização total e integral de tudo” (Monzani, 2008: p. 239). O conceito popular é ilustrativo: uma utopia é uma construção imaginária do mundo perfeito; imaginária no sentido de inexistente, presente em nenhuma parte como o termo o sugere. 61

Mas é curioso notar como, a despeito da sua condição irrealizável, a utopia conserva a capacidade de exercer seu influxo hipnótico sobre os homens e de fazê-los suspirar, o coração cheio de esperança, pelo paraíso imaginado. Assim, voltando à caracterização da utopia, digamos então que além de um gênero literário ela é um acontecimento no espírito no qual se gesta: o homem utópico, para acometer seriamente a tarefa de esboçar em detalhe a sua utopia , não pode senão se encontrar em certa disposição de ânimo – disposição plausível, em geral, de ser denominada otimista . O otimismo que subjaz à tarefa utópica pode ser entendido, grosso modo, como uma atitude favorável, uma confiança de base nas possibilidades humanas de aperfeiçoamento.

II – Platão como utopista: a República Alguns estudiosos entendem que a literatura utópica ocidental se inicia com a obra Sobre o melhor estado de uma República e sobre a nova ilha Utopia, ou simplesmente Utopia, de Thomas More (1516) . Mas embora a palavra “utopia” não seja originariamente grega – ela foi, de fato, criada por More para intitular a sua obra prima no século XVI - os antigos helenos gestaram várias obras do gênero: na Política, Aristóteles fala de uma “arte de inventar cidades”, da qual Platão participa ,. Somos levados a acreditar que, entre todos os diálogos platônicos, a República reúne especialmente as condições para ser, senão a primeira utopia da filosofia e da história, como consideram alguns , pelo menos um notável exemplo do gênero. Ela apresenta as características acima revisadas: embora procure ser rigoroso no seu discorrer racional, Sócrates parece de alguma

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maneira querer seduzir os seus ouvintes. A aura esperançada da qual ele impregna a obra é facilmente reconhecível: “Se acreditarem em mim (...) seguiremos sempre o caminho para o alto, e praticaremos por todas as formas a justiça e a sabedoria, a fim de sermos caros a nós mesmos e aos deuses (...) e, depois de termos ganho os prêmios da justiça, como os vencedores dos jogos que andam em volta a recolher as prendas da multidão (...) haveremos de ser felizes” (Rep., 621d)

Sócrates constrói o modelo a partir da premissa de que o homem é naturalmente

apto,

aberto

para

o

conhecimento;

ele

mesmo

procura

constantemente a análise com uma expectativa ao que parece sincera, acreditando no que faz com uma férrea convicção. Este “caráter nobre” da sua personalidade, que roça certamente o inverossímil, o reconhecemos também por fora do texto, enquanto ele dá a vida pelos seus valores. Sócrates é, sem lugar a dúvidas, o personagem perfeito para uma utopia. A vida ideal é desenhada no diálogo duplamente: pode distinguir-se uma utopia “individual” e outra social, ambas intimamente relacionadas. Enquanto utopia psicológica, subjetiva, a República propõe, segundo a leitura corrente, que provido de um bom entorno e uma boa educação, qualquer ser humano é capaz de avançar no caminho do conhecimento e, com isto, da virtude: o conhecimento do bem aperfeiçoa moralmente, com ele vem a virtude, e com a virtude a felicidade; enquanto utopia política, ela sugere depositar o poder nas mãos de uma gerontocracia iluminada (romântica figura dos “anciões sábios”), conformada pela minoria inteligente após uma extensa, rígida e completíssima educação . Os fabulosos reis-filósofos ditam as leis, o povo as respeita e executa; a propriedade privada 63

não existe (outra característica comum, a propósito, a todas as utopias ) e cada cidadão ocupa seu lugar natural e mansamente, confiando nos governantes para cuja manutenção trabalha e protegido por uma classe guerreira profissional e fiel. Frente a este duplo caráter utópico não podemos evitar pensar que o homem Platão, autor material de tais constructos, guardava para si um sentimento de entusiasmo, uma esperança de que a forma de organização proposta - organização psicológica e também política- poderia de solucionar os problemas, por em ordem o caos da existência humana. III- A República nos limites da utopia Contudo, é interessante notar que, tanto na dimensão político-social quanto na subjetiva, o filósofo tem plena consciência de que sua construção é simplesmente um modelo ao qual aspirar: “Como um paradigma (...) buscávamos a justiça mesma e o homem perfeitamente justo, se é que pode existir, e a mesma coisa com a injustiça e o homem completamente injusto, para que, dirigindo o olhar a estes, se nos mostrassem no que toca à felicidade e à desgraça de modo que nos víssemos forçados a aceitar, a respeito de nós mesmos, que quem seja mais semelhante a eles terá um destino semelhante ao deles” (Rep., 472c-d)

Com este gesto claro e honesto Platão se livra, em grande parte, da justificada acusação de ingenuidade plausível de ser lançada contra todo utopista . Ele deixa claro que o paradigma proposto é uma ficção, um quadro para ser imaginado, contemplado como fonte de inspiração e nada mais. O paradigma não é um projeto para ser realizado, pelo menos não na sua perfeição: “referes-te à cidade que fundamos há pouco com palavras, àquela que

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repousa no logos, pois não creio que exista em nenhuma parte da terra”, esclarece Glauco (Rep., 592a), ao que Sócrates responde: “Talvez haja um modelo no céu para quem quiser contemplá-lo e, contemplando-o, fundar um para si mesmo. De resto, nada importa que exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto é pelas suas normas, e pelas de mais nenhum outro, que ele pautará o seu comportamento” (Rep. 592b)

O caráter utópico do projeto é assumido, então, no L. V e também no IX. No geral, a irrealizabilidade da proposta é considerada irrelevante (as cursivas na anterior citação são nossas): “Julgas – pergunta retoricamente Sócrates, em outra tentativa de convencer seus interlocutores - que um pintor vale menos se tiver desenhado um modelo do (...)

mais belo dos homens, e transmitido

suficientemente à sua pintura todas as qualidades, mas não puder demonstrar a possibilidade da existência de um homem como esse?” (Rep., 472d). E insiste: “Acaso é possível executar algo tal como se diz, ou é da natureza das coisas que a ação tenha menor aderência à verdade do que as palavras?” (Rep., 473a). Basta, segundo ele, se aproximar do modelo tanto quanto possível. Porém, esta posição provoca uma tensão no texto. Ela não parece ser, em efeito, algo inteiramente surgido do espírito utópico, ou pelo menos contrasta de alguma maneira com ele. Não se trata, por conseguinte, de qualificar sem nenhuma ressalva a República como um escrito utópico: a obra não é rósea na sua totalidade, senão que carrega também um chamado de alerta, uma mensagem capaz de pôr fim a qualquer utopia. Mas antes de tentar a reconstrução dessa mensagem, detenhamo-nos um instante nessa tensão. Em

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determinado momento, Platão considera que como o tempo e o espaço são infinitos cabe a possibilidade, por mais remota que seja, de que um homem grandioso como o rei filósofo e uma organização sociopolítica em torno a ele como a projetada venham alguma vez a ser. O ato de medir desta maneira o projeto em relação à eternidade, procurando desesperadamente (como se fosse garantia de algum tipo!) um instante mínimo onde ele possa realmente acontecer, parece ser fruto de uma atitude diferente da expressada acima (a de que basta com se aproximar do modelo tanto quanto possível). Há aqui certo desespero, certa ansiedade que se dispara perante o caráter irrealizável do ideal. E depois de enxergado, esse caráter volta uma e outra vez, gerando tensão na escrita platônica. Platão reconhece, na sequência, que a disposição ideal dos fenômenos, ainda caso algum dia venha a existir, está, enquanto assunto humano, sujeita ao devir, e, portanto fadada à decadência e à desaparição. Parece-nos que este reconhecimento é indício de que uma virada de perspectiva tem acontecido, ou pelo menos de que existe um conflito em relação à questão; perante estes insights trágicos o espírito utópico não pode mais que retroceder, enquanto no seu lugar emerge, como uma poderosa força contida, o peso da realidade. IV – O pessimismo platônico I: República A tradição filosófica do pessimismo é reconhecida explicitamente pelo comentário desde o século XIX - a obra Pessimism: A History and Criticism, de J. Sully, foi publicada pela primeira vez em 1877. Esta obra paradigmática oferece o

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juízo valorativo muito difundido de que a filosofia platônica constitui “um exemplo de otimismo dificilmente superado historicamente, nem mesmo pelas interpretações mais favoráveis da teologia cristã” , e considera que a tradição pessimista se inicia unicamente na idade moderna, com Schopenhauer. No entanto, não são poucos os estudiosos que têm indicado diversos aspectos nos quais o pensamento platônico é pessimista . Acredito que estes aspectos, até agora tratados separadamente, podem ser unificados em uma posição única que caberia entender como “pessimismo platônico”, sem mais. Tal posição pode ser reconstruída tomando como ponto de partida a doutrina da alma tripartida: depois de escrutar, mediante um raciocínio controlada e cuidadosamente desenvolvido, comportamentos representativos de um certo tipo de conflito (stasis) característico da interioridade humana , Platão chega à conclusão de que o homem, na sua existência biográfica, é um ser interiormente fragmentado, despedaçado entre forças diversas e conflitantes: uma precária luz racional que subsiste, em eterna luta, entre duas gigantescas potências escuras os apetites o os sentimentos. Lembremos a magnífica imagem projetada pelo filósofo no L. IX:

“Modelemos em pensamento uma imagem da alma (...)

Uma como a

daquelas criaturas antigas de mitologia – a Quimera, Cila, Cérbero- (...) de quem se diz que tinham formas múltiplas num só corpo (...) Modela então uma criatura monstruosa, compósita e policéfala, com cabeças de animais domésticos e selvagens por toda a volta, e capaz de alterar, ou de criar por si todas essas formas (...) E agora modela outra forma de leão, e outra de um homem, mas que a primeira seja muito maior do que as outras, e a seguir a segunda (...) reúne todas essas formas, que são três, numa só, de

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maneira a formarem um todo, umas com as outras (...)

Cobre-as (...)

exteriormente com uma forma única, a de um homem, de maneira que, a quem não puder ver-lhe o interior, mas apenas aviste o invólucro exterior, pareça um só ser animado – um homem” (Rep., 588c-e)

A unidade do ser humano é então, para o Platão de República, apenas uma aparência capaz de enganar o observador superficial. O filósofo retrata o componente apetitivo da alma, o epithumetikós, como uma “criatura monstruosa, compósita e policéfala”, agregado que sintetiza o que ele expõe em outras partes do diálogo mais a detalhe, a saber: ela alberga desde simples impulsos relacionados com necessidades fisiológicas (como a fome, a sede e o ímpeto sexual), passando por desejos mais sofisticados e alheios a qualquer requerimento biológico (desejos puramente hedônicos, como aquele por tal ou qual bebida), até exemplares exóticos e considerados diretamente imorais, como a vontade de manter relações sexuais com a própria mãe, cometer parricídio ou comer carne humana . A representação do elemento concupiscível como a superposição das três entidades mitológicas resulta num ser imponente que reflexa, com genial eficiência poética, o caráter vertiginosamente variado, extremamente feroz e dificilmente controlável adjudicado a ele por Platão. O núcleo emocional humano, o thumoeidés, por sua parte, é associado a um leão, permanecendo assim ainda como uma poderosa força animalesca (embora possua certa nobreza na medida em que tem uma afinidade natural à parte racional). Em outros momentos do diálogo, o filósofo dirá que a parte irascível está sujeita à corrupção: quando mal educada, ela pode recair de leão a macaco (Rep., 590b) e, em certas ocasiões, pode quebrar seu pacto de honra e atuar junto ao

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elemento apetitivo em contra da razão, ou pode por si mesma “tiranizar” as outras partes, tornando o sujeito arrogante, irritável ou sentimental (Rep., 604c e ss.). Ela pode, ainda, simplesmente diferir dos ditames racionais, impedindo a ação unificada do indivíduo (Rep., 390d, 441c). Da razão, logistikón, por último, se sugere que é o componente mais precioso, porém mais escasso e em certo sentido mais débil da alma. Este modo de caracterizar o logistikón evoca certas “imperfeições” explicitadas por Platão no resto da obra: além de poder ser submetida pelos elementos inferiores, existem “perversões” que atingem a razão independentemente da ação daqueles. Durante a educação do jovem, por exemplo, se ele se dedica às discussões teóricas antes do tempo, deixando-se refutar e em seguida refutando àqueles que o refutam, pode se precipitar no ceticismo e danificar sua capacidade racional para sempre (Rep., 390 e ss.). Isto é interessantíssimo enquanto implica que a capacidade racional é entendida como vulnerável à degeneração (Cfr. também Rep. 539c, 588c, etc.). Platão reconhece de modo explícito, além do mais, que ela pode encistar-se desde o começo mesmo da existência e, no caso de alguns indivíduos, não se desenvolver jamais: “Até nas crianças qualquer pessoa pode ver que, mal nascem, são logo cheias de irascibilidade, ao passo que a razão, alguns nunca alcançam, segundo me parece, e a maioria só tarde” (Rep, 441a-b). No contexto do problema do conhecimento, as limitações não provêm apenas do órgão racional humano, mas do próprio objeto de conhecimento: a alegoria da linha sugere que este é remoto, esquivo, que se oculta da luz da razão e é vislumbrado apenas em casos excepcionais. Ali, Platão sugere que o

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Bem (to agathón) é o máximo objeto de conhecimento (megistón mathema – Rep., 504de; 505a, etc.), o que suporta e dá fundamento a todo o resto dos valores. O Bem, diz Platão, está para além da essência (epekeina tés ousías – Rep., 509b) - com o que provavelmente quer significar que ele se encontra na cúspide da hierarquia das ideias: é mais uma ideia, porém a “ideia das ideias”, objeto mais afastado ainda que a existência ou a própria essência. O Bem seria, assim, um objeto cognoscível, mas seria também “quase incognoscível”, posicionado no limite extremo do mundo inteligível, na “quase-transcendência” . Que ele beira, com efeito, a incognoscibilidad e a inexpressabilidade é algo que Platão faz Sócrates admitir constantemente. Desde o começo ele introduz o bem o impregnando de uma aura de mistério: a ele, que se vincula diretamente com a realização do ergon humano, se chega “após um extenso rodeio” e “pelo caminho mais longo” (Rep.504d). Sócrates se evade de percorrer esta via, ou seja, de oferecer uma resposta direta à pergunta acerca do bem, transitando, no lugar, o “caminho mais curto”, capaz de conduzir apenas a suas proximidades. Mais adiante, enfatiza explicitamente o caráter escorregadio da ideia do Bem, observando que em geral “não temos desta ideia um conhecimento completo”, e adicionando que qualquer coisa que saibamos ou possuamos por fora do Bem carece de valor. Posteriormente insiste pela terceira vez na posição, acrescentando que não apenas temos um conhecimento inadequado da ideia do Bem, mas, na maioria dos casos, uma opinião diretamente errada: “para a maioria (tois pollois) o prazer é o bem, enquanto que para os mais refinados é a inteligência”. Contudo - ele argumenta, para completar - estes últimos não

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conseguem indicar inteligência do quê, e acabam caindo no sem sentido de afirmar que o bem é a inteligência do bem (Rep., 505b-c). Com isto se estabelece que nem mesmo aqueles intelectualmente mais dotados se encontram capacitados para atingir a essência do bem. Logo em seguida se insere a questão moral, com a célebre tese de que o bem é “aquilo que toda alma persegue e pelo qual faz tudo o que faz” (Rep., 505d). Mas esta fórmula, tão impermeável à crítica, tão difícil de rejeitar, não se completa aqui: o bem, diz Platão, é o máximo objeto de conhecimento e de desejo para todo homem, porém, também é aquilo cuja qualidade distintiva a maior parte dos homens “adivinha […] sem poder, na sua perplexidade, apreender suficientemente o que seja” (e de novo a transição política: mantendo-se “nesta condição tenebrosa até para aqueles eminentes cidadãos em cujas mãos colocamos todas as coisas”, Rep., 505e). Mas se a ideia do bem tem uma importância tão crucial conjuntamente no contexto teórico e no prático e, ao mesmo tempo, ela é concebida como uma entidade situada no limite extremo da cognoscibilidade, então existe, para Platão, uma dificuldade natural de alcançá-la e completar o processo cognitivo que confere valor à existência humana desde o ponto de vista da ação. Em outras palavras, na mesma medida em que a ideia do Bem é inapreensível, a ação virtuosa é irrealizável. É nisto que pensamos quando falamos em pessimismo, e é desta maneira que o pessimismo se escorre da psicologia à moral e à política e se relaciona com a epistemologia.

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Tudo isto se encontra, se bem se observa, em absoluta consonância com a imagem que o Platão de República apresenta da condição humana nos seus trechos mais famosos: o homem vem ao mundo e desenvolve sua vida na ignorância do real, no interior da caverna, deixando-se arrastar pelas paixões e pelo instinto como qualquer outro animal , opinando sobre tudo, pois o verdadeiro saber lhe foge. Tomando por real aquilo que não é senão um reflexo sem

substância

(os

dados

dos

sentidos),

os

mais



oi

polloi-

são

preponderantemente motivados pelos desejos (epithumiai) e inclinados ao prazer, e só raramente algum se dirige à sabedoria: “um homem em consonância com a virtude e regulado pela sua cadência à perfeição, até os limites do possível, em atos e em palavras (...)

é coisa que elas [as multidões] jamais

viram” (Rep., 498e) . Em outras palavras, a maioria dos homens não persegue de modo espontâneo a “verdade” e o “melhor”, senão pela força e pela coação . Se deixarmos agir, a partir daqui, a própria axiomática platônica (axiomática, a propósito, de ascendência genuinamente socrática, segundo a qual conhecimento, virtude e felicidade estão em intrínseca relação), obteremos que o indivíduo humano, na medida em que é inclinado tão fracamente ao esclarecimento, não se encontra em uma situação favorável em relação nem à virtude nem à felicidade. O problema da virtude é encarado na República, de fato, dentro do problema maior da felicidade e da vida boa. Desde o começo do diálogo a vida boa e virtuosa é assimilada à vida feliz (Rep., 354a) - esta é a ideia que subjaz ao L. VIII, quando se apresentam os principais tipos de caracteres humanos em função das relações das partes da alma entre si. Sócrates não poupa

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ali argumentos para mostrar que a existência do sujeito tiranizado pelo apetite, que se desenvolve nas antípodas da razão, implica a mais extrema infelicidade: o mais irracional dos homens é também “mais profunda e mais longamente infeliz”, ele diz (Rep., 576c). No L. IX, e sempre no contexto do “exame [que] diz respeito ao que há de mais importante, a felicidade ou infelicidade na vida” (Rep., 578c), se conclui diretamente que “o melhor e o mais justo é o mais feliz, e que esse homem é o mais adepto da realeza e rei de si mesmo, e que o pior e o mais injusto é o mais desgraçado, e esse (...) é o que mais tiraniza a si” (Rep., 580c). Assim, o resultado da investigação é que o modo de vida fundado na auto possessão com base na razão é o melhor, o que implica a virtude e a felicidade mais altas. Ora, vedada a possibilidade de uma visão profunda do Bem, e junto com a submersão na ignorância e na imoralidade característica da condição humana, a felicidade também retrocede. Acreditamos que isto seja suficiente para mostrar como em República existe não apenas uma visão dramática da condição psicológica humana, mas também uma epistemologia, uma moral e uma eudaimonologia pessimistas. Que o pessimismo tinge assim mesmo a posição política é algo que também acreditamos ter ficado claro até aqui – caso contrário, basta lembrar, por exemplo, que o melhor que se pode esperar é que o povo claudique a uma mentira perpetuada pelos dirigentes (mito das três raças) e se submeta a seu comando. V- República entre utopia e pessimismo

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Até aqui se têm nos revelado, então, duas faces do pensamento exposto em República: uma utópica, a outra a pessimista, assim como a tensão entre elas. Mas, como é possível esta coexistência? A utopia é o fruto, a flor do espírito otimista, inspiração para os homens e motor para a história; o pessimismo, pelo contrário, ao considerar a condição humana nos seus piores aspectos, renuncia inevitavelmente a toda quimera. A nossa suspeita é que no homem Platão da época de República existiu um conflito entre, por um lado, o entusiasmo - sob a forma de uma aposta na “causa humana”, fundada na confiança no progresso com base na razão - e, por outro, os resultados da própria pesquisa, que tornam esta confiança obsoleta. Neste contexto, suspeitamos ainda que seja possível, e até provável, que o entusiasmo, o tom utópico e otimista que impregna República seja um ecoar da voz de Sócrates (ou antes: de Platão enquanto discípulo de Sócrates, do Platão socrático, digamos), enquanto a fonte do pessimismo esteja no vôo livre do próprio Platão e as novas paisagens nele divisadas. VI- O otimismo socrático Mas antes de nos aprofundar nesta possível “independência” platônica explicitemos um pouco o otimismo socrático, pois é em contraste com ele que ela revela sua veia mais escura. Apoiaremos-nos para isso na análise oferecida por F. Nietzsche no Nascimento da Tragédia. É bem conhecido que ali o alemão distingue dois impulsos fundamentais da natureza no geral e da criação artística no particular: o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o deus da aparência, da medida, do limite e, portanto do princípio de

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individuação, da ordem, da beleza e do compreensível – a força apolínea, diz Nietzsche, triunfa “mediante poderosas alucinações e ilusões agradáveis” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 35). A ordem é para ele, portanto, uma ilusão, e a força apolínea a encarregada de penetrá-la. Por isto Apolo é o deus do sono e da adivinhação, pois encontra sentidos inusitados, ata, torna a realidade compreensível. Dionísio, em contraste, é a divindade da embriaguez e do êxtase, da explosão primaveral, da irracionalidade em todas suas expressões, do esquecimento de si e da fusão na totalidade primordial, nas antípodas da individuação. Dionísio seria, por assim dizer, porta-voz do elemento constitutivo de fundo da realidade, do caos; Apolo, do cosmos, da aparência ordenada da superfície. Nietzsche dirá que a arte, nas suas manifestações mais altas – como o é para ele, por antonomásia, a tragédia – nasce da perfeita combinação destes dois princípios: o apolíneo e o dionisíaco. Segundo sua interpretação da cultura grega, existe na época arcaica (“Grande Época”, s. VII a.C) um contato profundo com o aspecto dionisíaco da realidade e da experiência, que se contrabalança, se sintetiza ou reduz graças a um gesto cultural apolíneo, sublimando-se na forma artística: “O heleno, com o seu profundo sentido das coisas, tão singularmente apto ao mais terno e ao mais pesado sofrimento, ele que mirou com olhar cortante bem no meio da terrível ação destrutiva da assim chamada história universal, assim como da crueldade da natureza, e que corre o perigo de ansiar por uma negação budista do querer. Ele é salvo pela arte, e através da arte se salva nele a vida” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 52).

O aspecto musical da tragédia - que segundo Nietzsche é seu traço mais sublime na Grande Época (fundamentalmente Ésquilo e Sófocles)- deixa atrás sua

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força dionisíaca com a obra de Eurípides, onde a cena e o diálogo, aspectos apolíneos por natureza, se tornam o principal. Eurípides encontra nos dramas dos seus antecessores demasiado mistério e escuridão, “não os compreende”, e inicia uma nova forma expressiva onde tudo é mais claro, a Comédia Ática Nova. Neste estado de espírito, diz Nietzsche, Eurípides “encontrou outro espectador que não compreendia a tragédia e por isso não a estimava” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 75): Sócrates. “Imaginemos agora o grande e único olho ciclópico de Sócrates voltado para a tragédia, aquele olho em que nunca ardeu o gracioso delírio do entusiasmo artístico – e pensemos quão interdito lhe estava mirar com agrado os abismos dionisíacos: o que devia ele realmente divisar na “sublime e exaltada” arte trágica, como Platão a denomina? Algo verdadeiramente irracional, causas sem efeitos e efeitos sem causas e, no todo, um conjunto tão variegado e multiforme que teria de repugnar a seu espírito reflexivo” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 85)

A tendência antidionisíaca de Eurípides é, segundo Nietzsche, um reflexo do socratismo estético; este, por sua vez, é “o primeiro assassino” da tragédia, sendo sua arma principal a ideia de que “tudo deve ser inteligível para ser belo” e a paralela de que “só o que sabe é virtuoso” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 78). O alemão vai ainda mais longe, e sustenta que a irrupção do “espírito crítico” e do “cego racionalismo” socráticos são os responsáveis últimos da decadência não apenas da arte, mas da cultura grega como um todo: “A palavra mais incisiva em favor dessa nova e inaudita estimação do saber e da inteligência foi proferida por Sócrates (...) em suas andanças críticas através de Atenas, conversando com os maiores estadistas, oradores, poetas e artistas, se deparava com a presunção do saber. Com espanto, reconheceu que todas aquelas celebridades não possuíam uma

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compreensão certa e segura nem sequer das suas profissões e seguiam-nas apenas por instinto. “Apenas por instinto”: por essa expressão tocamos no coração e no ponto da tendência socrática (...) A partir desse ponto julgou Sócrates que devia corrigir a existência: ele, só ele, entra com ar de menosprezo e de superioridade, como precursor de uma cultura, arte e moral totalmente distintas” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 82).

Que a virtude é o saber, que só se peca por ignorância e que o homem virtuoso é o homem feliz, são as “três fórmulas básicas” do que Nietzsche chama “otimismo socrático” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 87, etc.). O esforço insaciável do conhecimento otimista, diz o alemão, “que veio ao mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates”, se ergue sobre uma insólita e “inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e (...) está em condições, não só de conhecê-los, mas inclusive de corrigilos” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 91). Ao observar o estado de perplexidade em que se encontravam seus contemporâneos, Sócrates desenvolveu uma confiança no poder da razão de reverter à situação e pregou a urgência de submeter todos os assuntos ao mais rigoroso escrutínio, defendendo com a vida a ideia de que no exercício do logos se encontrava a redenção do homem. Nietzsche acusa Sócrates de racionalismo ingênuo e otimista, de paroxismo apolíneo digamos, ou seja, de total e absoluta superficialidade, mas aceita que esta postura sua resultou ser uma força capaz de subverter as premissas espirituais mais básicas e de condicionar os assuntos humanos por séculos, sendo o motor principal do espírito científico moderno (igualmente digno de crítica). Digna de ser notada é, neste contexto, a “tranqüilidade” que acompanha o ponto de vista otimista do mundo. A linguagem, “órgão e símbolo das

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aparências”, os conceitos e, em geral, a explicação e o ângulo científico , trazem consigo uma sensação que Nietzsche chama um tanto sarcasticamente de “serenidade”, ao isolar a consciência do fundo caótico e irracional da existência. A serenidade socrática – serenidade “senil”, na expressão nietzschiana - é resultado de um influxo apolíneo fora de controle. Mas não deve ser esquecido, alerta Nietzsche, que qualquer corpus científico é apenas um aspecto limitado e pequeno da realidade sendo iluminado - aquele aspecto regido pelas leis do espaço, do tempo e da causalidade; em palavras suas: não deve ser esquecido que Apolo vence “mediante a glorificação luminosa da eternidade da aparência” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 99), pelo “prazer pela aparência” e da ilusão da “redenção por meio da aparência”, seja nas ciências quanto nas artes (Nietzsche, 2007 (1886), p. 77) Em outras partes de sua obra o alemão tinha se referido com admiração à “serenidade grega”, “serenidade superior” possível de divisar como aquela à qual acede o espectador da tragédia da Grande Época – uma espécie de calma surgida da contemplação e aceitação da moira, da dor, do irracional. Depois de Sócrates e para além da modernidade, porém, esta serenidade assume uma nova forma contra a qual Nietzsche se rebela, forma viciosa e covarde, serenidade dogmática e ingênua, que não quer aceitar a gravidade do mundo, e arrogante, que entra em cena “como se fosse um bem-estar não ameaçado” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 61): “(...) e se ainda se pode falar da serenidade grega, trata-se da serenidade do escravo, que não sabe responsabilizar-se por nada de grave (...) dessa fuga mulheril diante do que é sério e assustador, esse covarde 78

deixar-se contentar com o gozo confortável (...) de uma serenidade e um prazer (...) senis e de natureza servil” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 73)

Em resumo: “Sócrates é o protótipo do otimista teórico que, na já assinalada fé na escrutabilidade da natureza das coisas, atribui ao saber e ao conhecimento a força de uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo. Penetrar nas causas e separar da aparência e do erro o verdadeiro conhecimento, isso pareceu ser ao homem socrático a mais nobre e mesmo a única ocupação autenticamente humana: tal como aquele mecanismo dos conceitos, juízos e deduções foi considerado, desde Sócrates, como a atividade suprema e o admirável dom da natureza, superior a todas as outras aptidões. Inclusive os atos morais mais sublimes, as emoções da compaixão, do sacrifício, do heroísmo e aquela tranqüilidade d´alma tão difícil de alcançar que o grego apolíneo chamava sophrosyne, foram derivados, por Sócrates e por seus sequazes até hoje, da dialética do saber e, consequentemente, qualificados como ensináveis” (p. 92)

Nietzsche é severo na sua crítica a Sócrates e ao otimismo teórico, e não carece de motivos para sê-lo. A glorificação otimista do saber e do homem que sabe se lhe apresentam como uma grosseria antifilosófica, símbolo da decadência antes que do progresso humano: “aquele otimismo que se eleva, qual uma coluna de perfume docemente sedutor, das profundezas da consideração socrática do mundo” (p. 114) . Em contrapartida, insiste Nietzsche: “Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasce precisa estar pronto para um doloroso ocaso; somos forçados a adentrar nosso olhar nos horrores da existência individual” (Nietzsche, 2007 (1886), p. 100).

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VII- Reflexões Finais Mas não é esta exatamente a posição assumida por Platão mais acima, após sua tentativa desesperada de suportar a irrealizabilidade do ideal utópico? Platão parece endossar confiadamente, sem remorso intelectual, várias premissas de seu mestre. Assim, por exemplo, ele argumenta longamente a favor da ideia de que a razão ocupa um lugar privilegiado na constelação dos elementos que constituem a interioridade humana, possuindo ela a capacidade única de dirigir o homem rumo à melhor versão de si mesmo. Impregnado do mesmo socratismo, ele critica com rigor a paixão e o prazer, e considera que a vida desejável é aquela onde a luz intelectual consegue ofuscá-los, com o perdão do oximoro. A salvação para Platão, tanto quanto para Sócrates, é possível apenas graças a e pelo conhecimento. Contudo, o discípulo não é otimista a respeito disto tudo, como Nietzsche tem mostrado com sobrada destreza que o mestre é; em contraste com a atitude socrática, a platônica é decididamente realista – e, inclusive, pessimista, como até agora preferimos chamá-la. Isto não significa, naturalmente, que ele defenda algum tipo de afirmação do desejo ou do prazer; a sua originalidade consiste, no contexto no qual nos encontramos, simplesmente em anotar quão inevitáveis ambos os fenômenos são para a existência humana e, principalmente, quão adversos à razão e à racionalidade na qual se funda o seu desenvolvimento, tanto individual quanto social. Assim, se bem é possível visualizar, como antes o fizemos, a dívida filosófica e o respeito existencial de Platão para com seu mestre como liames suficientemente apertados para agir a modo de contrapeso no motor

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especulativo, é possível também entendê-los como sujeitos aos efeitos do tempo e do exercício filosófico. No começo chamávamos a atenção sobre o caráter sedutor da utopia, a sua capacidade de exaltar o ânimo dos homens em detrimento do protesto racional - nossa suspeita é, após o dito até aqui, que é nisto que Platão encontra a motivação para construir a utopia que a República sem dúvida é. Não parece de todo inadequado, com efeito, imaginar que tal motivação tenha sido produto do caráter sedutor do otimismo socrático e da aderência, mais emocional que intelectual, de Platão à pessoa e ao pensamento de seu mestre. Mas os elementos pessimistas existentes “no pano de fundo” deste diálogo geram um conflito evidente, um movimento que não podemos evitar considerar “de afastamento” da posição socrática. Este movimento tem sido notado e explicitado por J. Gould, quem defende, para a revolta de importantes figuras como Vlastos , que no caminho que vai de República a Leis Platão avança cada vez com maior autonomia e mais próximo de um “princípio de realidade” que o empurra a deixar completamente a senda do otimismo socrático. Ele entende que as Leis apresentam as convicções platônicas na sua forma mais tardia, e que Platão se separa de Sócrates em um movimento que é um “progressivo pôr-se de acordo com o possível”: Platão continua lutando com uma enorme paixão com os problemas da existência humana, porém desde uma plataforma bem diferente. Esta plataforma é uma que reconhece a humanidade como naturalmente inclinada ao mal, seja por fraqueza, seja por causa de um desejo pelo mal mesmo. Já não nos surpreende encontrar Platão falando no “caráter vicioso geral” (840d) como causa dos problemas (...) Existe (...) nas

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Leis (...) uma avaliação dos problemas morais cheia de senso comum que, em comparação com o platonismo mais inicial, um se veria inclinado a denominar não platônica. (Gould, 1955, p. 120)

Digamos, para encerrar, uma palavra a respeito do caráter utópico de República. Monzani culmina seu célebre artigo com as seguintes palavras: “A crítica de qualquer utopia nunca deve desembocar na crítica do discurso utópico” (Monzani, p. 239). Este é um ditame forte, porém extremamente debatível. Acreditamos que a raiz da controvérsia pode muito bem ser observada no movimento da especulação platônica que, conduzida pelo insight pessimista, acaba por formular um projeto de alguma maneira mais realizável, um projeto que assimila as limitações humanas, constrói o modelo a partir delas e, portanto, que é mais lúcido e eficiente no que toca aos fins práticos. As Leis não costumam ser consideradas, de fato, uma utopia. No fundo da questão esconde-se talvez aquilo que Zint chama da “ação curativa do pessimismo filosófico” (Zint, 1930). Mas curativa do quê? Da ingenuidade do otimismo, em primeiro lugar; da frustração prática, logo em seguida. É claro que esta crítica à utopia é, porém, uma abstração intelectual, um produto da consideração racional, fria e lógica como ela é. A necessidade de se sobrepor ao caráter trágico da própria condição, de imaginar uma vida ideal, livre de todo mal e de discorrer sobre o estado perfeito, político ou individual, parece ser inevitável para o homem – tanto é assim que é possível identificar, para cada época histórica e para cada cultura, uma utopia diferente e própria. Enquanto fenômeno associado à cara emocional

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da nossa constituição, por conseguinte, pretender abolir a utopia equivale a pretender abolir nossos impulsos mais fundamentais. Neste assunto, como em tantos outros, talvez a atitude mais prudente seja curvar-nos, até onde o intelecto o suporte, perante o fenômeno, tomando-o como fonte de estudo, utilizando-o para exercitar nossa capacidade crítica na expectativa de dar à luz modelos políticos e pessoais menos desajustados.

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