Psicologia para fazer a crítica, a crítica para fazer a psicologia

July 18, 2017 | Autor: Odair Furtado | Categoria: Social Psychology
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Cap. 13 Psicologia para fazer a crítica, a crítica para fazer a psicologia.1 Odair Furtado2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Psicologia e o compromisso social/Ana Mercês Bahia Bock (org.). -- 2. ed. rev. -- São Paulo: Cortez, 2009. Vários autores. ISBN 978-85-249-1515-4 1. Compromisso (Psicologia) 2. Pesquisa psicológica 3. Psicologia - Brasil 4. Psicologia - História 5. Psicologia como profissão 6. Psicologia social I. Bock, Ana Mercês Bahia. 09-05762 CDD-150.981 índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Psicologia: História 150.981 pp. 241 – 254.

1. O pensamento crítico Desde os pré-socráticos temos exercitado o pensamento crítico. A Filosofia se caracteriza dessa forma desde a Grécia Antiga. Então, esta forma de pensamento não representa nenhuma novidade. As escolas se sucedem exatamente pela crítica do modelo anterior e não foram poucas. Entretanto, não deve ser desse ponto de vista que estamos enquadrando o termo crítica ao apontarmos que é necessário realizar a crítica da psicologia hoje e como usá-la para fazer a própria psicologia. Estamos falando, certamente, do fato de que o conhecimento consolidado se transforma em conhecimento conservador. Vou usar, como referência, o pensamento que considero crítico por excelência, a filosofia política de Karl Marx. Marx utiliza a crítica como método e parte do que considera a base de conhecimento a ser superada, na época, a filosofia oficial do estado prussiano – o hegelianismo. Ocorre que Hegel também era crítico, mas seu pensamento crítico, com o passar do tempo passa a ser usado como uma verdade absoluta pelo estado prussiano, ou seja, a filosofia de Hegel passa a ser usado como instrumento de manutenção do status quo. Quando sua filosofia é instrumentalizada pelo estado, o hegelianismo perde sua virulência e 1

Versão adaptada e revista da intervenção em mesa-redonda realizada no I Congresso Brasileiro Psicologia: Ciência e

Profissão em setembro de 2002, realizado na cidade de São Paulo (SP). 2

Professor Associado da PUC-SP, doutor em Psicologia Social, coordenador do Programa de Estudos Pós-Graduados em

Psicologia Social da PUC-SP. Membro do Instituto Silvia Lane de Psicologia e Compromisso Social. E-mail: [email protected].

deixa de ser crítico. Se um pensamento crítico pode ser capturado, isso significa que ele não é tão virulento como poderíamos supor. Sabemos, que uns são mais facilmente capturados que outros. Valho-me de uma produção do cotidiano – o movimento punk na periferia de São Paulo na década de 80: esse movimento era absolutamente virulento e, portanto, crítico. Sua crítica era voltada para a sociedade de consumo e, com uma rapidez que caracteriza a sociedade capitalista moderna, foi transformado em consumo. O hegelianismo foi um conhecimento que permitiu sua captura porque servia para justificar o estado prussiano. Um bom exemplo da virulência da crítica exercida por Marx, encontramos no livro Miséria da Filosofia. Trata-se de uma resposta ao pensador francês P.J. Proudhon que havia escrito A Filosofia da Miséria. Em um determinado trecho do livro Marx ataca ao mesmo tempo Hegel e o próprio Proudhon: “Desse modo absoluto fala Hegel nos termos seguintes: ‘O método é a força absoluta, única, suprema, infinita, a que nenhum objeto pode opor resistência; é a tendência da razão a encontrar-se e reconhecer-se a si mesma, em cada coisa’ (Lógica, t. III) Se cada coisa se reduz a uma categoria lógica, e cada movimento, cada ato de produção ao método, daqui se infere, naturalmente, que cada conjunto de produtos e de produção, de objetos e de movimento, se reduz a uma metafísica aplicada. O que Hegel fez para a religião, o direito, etc., o Sr. Proudhon pretende fazer para economia política.” p.103

Em uma outra oportunidade Marx e Engels, no livro A Sagrada Família 3, que leva o sugestivo subtítulo de “Crítica da crítica crítica: contra Bruno Bauer e consortes” podemos notar que o tom da crítica é o mesmo, mas há também uma exposição dos critérios da crítica, que de resto, nestes autores estão bastante explicitados no decorrer de sua obra: “Para o senhor Bauer a verdade é, como para Hegel, um autômato que se demonstra a si mesmo. O homem só tem de a seguir. Como em Hegel, o resultado do desenvolvimento real não é senão verdade demonstrada, isto é, levada à consciência. A Crítica absoluta pode portanto, coincidindo com o teólogo mais limitado, pôr a questão: ‘Para que serviria a história, se não tivesse por missão precisamente prova-nos estas verdades, as mais simples de todas (como o movimento da terra à volta do sol)?’” (p. 119)

Neste caso, o fundamento para a crítica é a contraposição do materialismo ao idealismo e a crítica sistemática da filosofia e dos filósofos neo-hegelianos, levam Marx e Engels a produção do livro A Ideologia Alemã: Crítica da novíssima filosofia alemã nas 3

MARX, K & ENGELS, F. A sagrada família ou a crítica da crítica crítica: contra Bruno Bauer e consortes. Lisbora: Presença. São Paulo: Martins Fontes, 1974.

pessoas de seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stiner e do socialismo alemão na de seus diferentes profetas. Neste caso, um profundo trabalho teórico em que os autores expõem as bases da constituição material da consciência humana, para demonstrar que não é a consciência que constrói o mundo, mas o mundo a constrói numa inter-relação dinâmica e dialética. Quando Marx busca colocar Hegel de cabeça para baixo, como aprendeu com Feuerbach, procura levar a crítica ao seu limite o que significa produzir um manejo que impediu a fácil captura desse conhecimento pelo Estado e pelas classes dominantes. Isso significa dizer que o marxismo será crítico para sempre? Não, se formos radicalmente marxistas, não podemos acreditar na existência de qualquer coisa eterna, porque isso seria acreditar no fim da história. O que aprendemos com Marx é que a crítica para ser eficiente deve ser radicalmente crítica. Gosto muito de um texto de Michel Foucault chamado, Nietzsche, Freud, Marx4 ele mesmo um autor crítico. Neste texto, Foucault procura demonstras a base da construção crítica dos três monstros do pensamento moderno. Ele considera que os três construíram uma nova epistemologia que leva em consideração a interpretação. Ou seja, cada um ao seu modo busca a proveniência do fenômeno que não está na sua aparência, no sentido de factibilidade (claro que não vou cair na armadilha de considerar o fenômeno através do essencialismo). Freud busca a determinação do sujeito no seu inconsciente, Nietzsche na cultura e o que me interessa, Marx, nas múltiplas determinações da história. De qualquer forma, para os três é necessário um exercício de desvelamento da realidade. A coisa não nos aparece, no imediato, como ela realmente é. No caso de Marx, temos a teoria da maisvalia e todas as decorrências da produção da mercadoria. Então, o que Marx faz é levar ao limite a crítica ao capitalismo e suas várias formas de expressão. Conhecemos muitas tentativas de captura do marxismo, desde a interpretação reformista da social-democracia até a leitura acadêmica conservadora. Conhecemos formas que procuram aprofundar o pensamento crítico e gostaria de mencionar a escola de Frankfurt – Adorno e Horkheimer. A preocupação com a crítica é tão intensa que chega a paralisar e não encontramos uma solução para o problema – como superar o capitalismo. 4

Foucault, M. Nietzsche, Freud, Marx. In Nietzsche. Cahiers de Royaumont, Philosophie nº VI. Paris : Minuit, 1967 (183 – 192)

Em Dialética do Esclarecimento5 os autores corretamente analisam a proveniência do homem burguês e como a perspectiva estava traçada desde o mito de Ulisses na Grécia Antiga – eles estão fazendo referência à capacidade de iludir. A pedra de toque do capitalismo está na sua capacidade de iludir, de encobrir através da ideologia, os processos de dominação de classe. Curioso notar que o desdobramento da escola de Frankfurt, Habermas, nos leva na direção da superação do problema e na produção de um outro problema: Em seu Discurso da Ação Comunicativa, Habermas supera o negativismo da escola de Frankfurt ao mesmo tempo em que acaba com a virulência da crítica. A ação comunicativa se coloca no lugar da revolução e o capitalismo será superado por dentro – como diria o poeta Thomas S. Eliot, não com um estrondo, mas com um suspiro! Temos também hoje a releitura de György Lukács e de Antonio Gramsci. O primeiro usado muitas vezes como exemplo de submissão ao stalinismo e o segundo como prémentor do eurocomunismo. Mas a potência de Lukács tem sido retomada como forma de discussão do sujeito – sobre a consciência de classe e a ontologia do ser social. E o segundo vem sendo muito usado, particularmente no campo da educação. Curioso pensar que fora Adorno e Horkheimer, nunca ouvimos falar dos outros autores na psicologia. Curioso porque a educação, a economia, a ciências sociais não prescindem desses autores para exercitar o pensamento crítico. Por que a psicologia não precisa deles? Acho que temos aqui um sinal!

2. A crítica na psicologia

Acho que posso afirmar sem susto que a produção de conhecimento na psicologia tem sido conservadora. Não preciso fazer retrospectos e o leitor deve conhecer a história da psicologia. Não há um autor, dos mais conhecidos, que tenha se dedicado à produção de um conhecimento revolucionário. Mesmo Freud mencionado acima, era um pensador conservador. Revoluciona o conhecimento psicológico, mas não coloca esse conhecimento a serviço da transformação social. São raríssimos autores da psicologia que trabalham de um ponto de vista radicalmente crítico como mencionamos anteriormente. Vigotski e seus seguidores representam uma exceção. Lucien Sève, Louis Althusser, Georges Politzer 5

ADORNO, Th. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 2ª ed.

escreveram sobre a psicologia desse ponto de vista crítico, mas não eram psicólogos ou se dedicavam à psicologia como tema central de sua obra. Mesmo os autores da Escola de Frankfurt emprestaram à psicologia, pela vertente da Psicanálise uma leitura crítica, mas também como os anteriores, não era a Psicologia o objeto central de suas preocupações. Quando observamos o carro chefe da Psicologia Social, da Psicologia do Desenvolvimento, da Psicologia Clínica, a produção é, na imensa maioria das vezes, conservadora e quando há crítica, ela está no limite da crítica interna, que leva em consideração a própria consistência do objeto analisado, do ponto de vista da lógica formal. Bem, talvez o próprio objeto da psicologia seja conservador. Trabalhar com o psiquismo é trabalhar com o resultado das determinações sociais como algo pronto, dado, consolidado. Mesmo quando se admite a plasticidade desse psiquismo, ele é pensado a partir de seu próprio referencial. Não se pensa o sujeito como produto de múltiplas determinações (inclusive as orgânicas e mentais). Só muito recentemente o pensamento crítico chega à psicologia e posso mencionar Deleuze e Guattari como exemplo. A referência destes autores está assentada em Marx, Nietzsche e Freud e em uma visão militante de filosofia. Deleuze, filósofo francês que revê a filosofia a partir da leitura de Platão, Leibniz, Bérgson, Hume e Nietzsche, se associa a Félix Guattari, psicanalista francês que participou do movimento institucionalista da década de 60 e produziu a reforma no hospital psiquiátrico de La Borde. Dessa união nasce um dos mais contundentes ensaios da psicologia contemporânea – O Anti-Édipo6. É verdade que a influência pós-modernista ou pós-estruturalista leva Guattari na direção da micropolítica e ao movimento autonomista, que teve sua maior expressão na Itália dos anos 80. Entretanto, não se pode negar que trouxeram para a psicologia uma visão programática de intervenção na realidade. Aqui no Brasil, parte do movimento de Rádios Piratas e, depois, rádios comunitárias, foi incentivada pela intervenção de Gattari quando aqui esteve. Existem outros, como é o caso de Serge Moscovici, Robert Pagès, Max Pagès, Claude Faucheux que em 1962 escrevem para o volume 25/26 da revista Arguments, “Vers une psycho-sociologie politique”7 e podemos dizer que a partir da década de 60 chega à psicologia uma vaga de pensamento crítico. Será também a partir dos anos 60 que Michel 6

DELEUZE, G. & GUATTARRI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assirio & Alvim. S/d. edição do original em francês pela Minuit em 1972. 7 Moscovici, Serge et alli Psicologia Social y compromisso político: Responsabilidades actuales del Professional de la psicologia. Buenos Aires: Rodolfo Alonso Ed., 1971.

Foucault passará a demolir sistematicamente a noção naturalizada e conservadora de subjetividade que predominava na psicologia e psiquiatria até então. Na América Latina, como apontou Maritza Montero8, o pensamento crítico chega à Psicologia através do educador brasileiro Paulo Freire e do sociólogo colombiano, FalsBorda. Os dois exerceram forte influência na produção de um pensamento crítico latinoamericano e essa visão crítica acabou também influenciando a Psicologia latino-americana, até então muito ligada aos cânones do experimentalismo que dominava a psicologia dos Estados Unidos da América. Apontando a influência de Paulo Freire e Fals-Borda, escreve Montero: Sobre estas bases la psicologia comienza, a mediados de los años 70 a intentar redefinir su praxis social, tratando de responder así a las críticas y acusaciones de ser socialmente irrelevante e insensble. Tal examen de consciencia, así como el dolor de tales pecados y su correspondiente propósito de enmienda, se traducirán en el surgimiento de una corriente de construcción y transformación crítica, mardada por ideas liberadoras en el campo de la psicología comunitaria, cuyo desarrollo inicialmente concretado a formas de intervención, ha pasado a la construcción teórica y a la disquisición epistemológica, así como a ser objeto de aplicación y estudio en otros ámbitos… (p.13)

Em artigo tratando da psicologia e ação social, Furtado et alli9 chegam a uma posição muito semelhante a essa manifestada por Maritza Monteiro, analisando como surge a Psicologia Social Comunitária em São Paulo. Neste caso, também a influência marcante, do ponto de vista de uma teoria crítica, é a de Paulo Freire e Fals-Borda. Mas no caso de São Paulo, particularmente na produção realizada na PUC-SP e capitaneada pela professora Silvia Lane, esse pensamento crítico é também influenciado pelo marxismo e é o que levara Silvia Lane a aproximar-se de Vigotski, Lúria e Leontiev e constituir o que Maria Auxiliadora Banchs chamou de Escola de São Paulo. No mencionado artigo os autores apontam que: ... a participação dos setores de classe média nos movimentos populares, através da JUC, cresce qualitativa e quantitativamente na virada dos anos 60. Os militantes mais preparados da JUC conquistam cargos nas UEEs de vários estados e na UNE, e tendem a se constituir como um verdadeiro partido. Ainda de acordo com esse autor, é nesse momento que militantes da JUC e líderes políticos formulam a idéia de uma nova organização política que será conhecida como Ação Popular, a famosa AP. A AP passa progressivamente a funcionar como um partido e afasta-se da direção ideológica (de caráter religioso) dada pela Ação Católica. Com o golpe de 64 e a mudança de rumos no compromisso político dos setores de esquerda, que se colocam na luta de resistência ao modelo que se impôs através da força das armas, a AP rompe com a

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Montero, Maritza Perspectivas y retos de la Psicología de la liberación. Em Vázquez Ortega, José Joel (coord) Psicología Social y Liberación en América Latina. Cid. do México: UAM Iztapalapa, s/d. 9 FURTADO, O; BICHARA, T; RIBEIRO, C. A psicologia social e a ação social. Psicologia Revista: revista da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, nº 7, dezembro de 1998.

Igreja Católica e torna-se um movimento independente com características de partido revolucionário.10

É no bojo desta participação que aparece a psicologia comunitária no Brasil. Os acontecimentos imediatos que antecedem ao seu aparecimento são bastante ilustrativos. Já relatamos que a década de 70 marca o encontro dos pesquisadores latino-americanos que estão descontentes com a teoria predominante na psicologia social e que é quase toda importada dos EEUU e, pela sua pretensão de se constituir como uma produção neutra, não responde à realidade latino-americana, que, pelo contrário, exige posicionamento político do pesquisador, como já demonstrava o campo da Educação e das Ciências Sociais. Em 1977, depois de amadurecer a crítica à psicologia social americana, Silvia Lane e Alberto Abib Andery lançam o programa que abrirá estágios na cidade de Osasco, na Grande São Paulo. Abib é padre, além de psicólogo, e, na época, estava ligado à Frente Nacional do Trabalho, que tinha um núcleo bastante ativo em Osasco, e à JOC - Juventude Operária Católica. Em 1978, juntamente com Luiz Eduardo W. Wanderley, que dirigia a URPLAN - Instituto de Planejamento Regional e Urbano da PUC-SP, Silvia Lane e Abib realizam um detalhado estudo sobre os dois bairros de Osasco para a Secretaria de Economia e Planejamento do Governo do Estado de São Paulo, que foi publicada em 1979. Os bairros escolhidos para o estudo eram Jardim Yolanda (o mesmo onde se instalou a primeira Comunidade Eclesial de Base em Osasco) e Jardim Santo Antônio.

Não é possível neste espaço, dado o próprio escopo deste artigo, avaliar a influência da militância em partidos políticos de esquerda ou da própria influência que um pensamento

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Para Luís Eduardo Wanderley, “...um grupo de jucistas e mais alguns profissionais cristãos engajados, predominantemente, criaram um movimento político que estava fadado a exercer influxo na ACB (Ação Comunitária Brasileira) e no processo político brasileiro. Lançado informalmente em 1961, tornou-se público em meados de 1962. Sua história ainda está por ser escrita, havendo múltiplas versões principalmente na bibliografia que trata da Igreja.” Citando Souza Lima, Wanderley aduz que “O desenvolvimento da ACB e a formação da AP são fenômeno nacional, que se coloca dentro dos marcos teóricos e históricos do processo de formação das esquerdas brasileiras e necessita ser conhecido, compreendido, analisado e criticado como tal...” Ainda citando Souza Lima, Wanderley conclui que “...são três os fatores que permitiram a AP crescer nos seus dois de vida legal (1962 -1964): a) era uma organização nacional e assim recebeu militantes da ACB (basicamente da JUC e JEC) de todo o País... b) era uma organização presente em várias classes e setores de classe da sociedade - com hegemonia na direção do movimento universitário e grande força no movimento dos estudantes médios, e penetração razoável em setores da pequena e média burguesia; c) possuía uma ideologia em via de definição - propunha o engajamento político dos cristãos na mudança social brasileira, na direção de um projeto socialista, a partir de motivações humanistas cristãs fundidas com o materialismo histórico, e com críticas à natureza das transformações ocorridas na União Soviética e em outros países socialistas.”

ou uma teoria revolucionária teria exercido sobre os promotores do pensamento crítico na Psicologia a partir da década de 60, mas o caso brasileiro pode ser emblemático e assim estar apontando uma tendência. Há um evidente compromisso dos atores da construção do pensamento crítico na psicologia brasileira com a transformação social. A trajetória de Silvia Lane se consolida com o lançamento, juntamente com Wanderley Codo, do livro que os dois organizam em 1984 – Psicologia Social: o homem em movimento11. Nesta obra os organizadores não deixam dúvidas, pretendem construir uma psicologia social militante, um instrumento para pensar a realidade brasileira e que sirva como elemento crítico para seus leitores. Podemos dizer que nasce ali uma Psicologia Social brasileira com forte compromisso social, em que o exercício da crítica é o fio condutor de toda a obra, reunindo autores que vinham discutindo alternativas para a Psicologia Social de cunho cognitivista e experimental praticada nos Estados Unidos e como decorrência, também no Brasil. A intervenção social e a discussão do compromisso social do psicólogo e a renovação teórica a partir do desvelamento da realidade, do cotidiano do trabalhador, do morador da periferia, representou uma verdadeira práxis social. Qualquer pensamento que se disponha a uma crítica radical, não pode prescindir da práxis no sentido da intervenção, da reflexão, da abstração, enfim da construção de uma teoria crítica da realidade. Martin-Baró também é um grande exemplo de construção de um pensamento crítico na psicologia latino-americana. Ainda de acordo com Furtado et alli: Martín-Baró nasceu na Espanha. Foi jesuíta, padre paroquial, teólogo e psicólogo. Foi assassinado em 16 de novembro de 1989 por soldados do governo de El Salvador. Sua trajetória foi fortemente marcada pelo seu envolvimento político, quando abraçou a concepção da opção preferencial pelos pobres, princípio central da Teologia da Libertação Critica o capitalismo e a relação entre exploradores (classe dominante) e explorados (classe dominada), assumindo a perspectiva da maioria oprimida. Para tanto, faz investigações sistemáticas das classes trabalhadoras utilizando o método dialético. Coloca o resultado de suas pesquisas à disposição dos próprios trabalhadores, buscando com isso a ação política a partir do seu trabalho científico. Acredita, desta forma, numa ciência que esteja engajada, que toma partido e que não advoga a neutralidade. O ponto central de sua produção é o que ele poderia aprender que viesse a contribuir para a sua tarefa de criar e aplicar uma psicologia a serviço da luta do povo Salvadorenho por liberdade e justiça.

Martín-Baró foi um militante que lutava contra as oligarquias salvadorenhas e foi um militante da psicologia latino-americana, a figura do psicólogo, do teólogo e do

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LANE, Silvia T. M. & CODO, Wanderley (orgs.) Psicologia Social: O homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.

revolucionário se confundiam. Sua psicologia buscou o tempo todo a crítica do modelo conservador a partir da realidade vivida pelo salvadorenho. No artigo mencionado acima12 a obra de Martín-Baró é analisada através das seguintes categorias: Fazer - Fazer transformador: trabalha com a construção de uma nova verdade política e social portanto: Ação social: a psicologia torna-se instrumento de luta Nível de consciência de classe do trabalhador salvadorenho Identidade: situação concreta de vida do trabalhador salvadorenho Constituição da identidade social: condições para o trabalhador buscar sua própria autonomia No artigo intitulado Hacia una Psicologia Politica Latinoamericana, Baró define e classifica os fenômenos que devem estar presentes na elaboração de uma psicologia política. O ponto de partida deve ser a realidade da América Latina e deve enfocar os dilemas 1) entre ditadura e democracia, 2) entre dependência e autonomia regional e 3) entre alienação e identidade histórica.

Silvia Lane, Ignácio Martín-Baró, Maritza Monteiro, Gladys Montecino, Fernando González Rey, entre outros formaram uma geração, ainda hoje bastante atuante, que constrói a base do pensamento crítico na Psicologia latino-americana. A iniciativa é pioneira e se observamos o relato de Ian Parker sobre o mesmo processo no reino unido, veremos que lá o pensamento crítico somente chega à Psicologia no final dos anos 70: La historia comienza com uma intervención teórica por parte de otras personas que fue también concebida como práctica política, con la revista Ideology and Consciousness (Ideología y Conocimiento), que apareció por vez primeira en 1977, antes de que muchos de nosotros fuésemos estudiantes de psicología, y desaparecería en 1981, al comienzo de nuestro trabajo de postgraduado. La revista tradujo escritos de Michel Foucault y otros teóricos franceses, aunque por ese entoces nos pareció bastante incomprensible, esta era la única revista marxista en psicología disponible. También intentó una serie de compromisos con el feminismo proporcionando un marco para el trabajo critico. Había grupos de lectura y discusión en diferentes partes del Reino Unido…13

Os ingleses são influenciados por Foucault, pelos lacanianos e pela geração dos anos 60 e 70, período em que revistas como Humpty Dumpty e manifestos como Rat, Myth and Magic defendiam uma posição crítica e humanista de renovação da psicologia, com a presença de Laing e Cooper, autores da Anti-psiquiatria. A influência francesa está presente também entre os psicólogos latino-americanos primeiro porque Louis Althusser era leitura obrigatória dos marxistas no final dos anos 60 e

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FURTADO, O; BICHARA, T; RIBEIRO, C. (op. cit) Parker, Ian. Discurso, subjetividad y el orden social: El Unidade Del Discurso. Em VÁZQUES ORTEGA, J. J. Psicología Social y Liberacón en América Latina. Cid. do México, UAM Iztapalapa, s/d. 13

início dos 70. Filósofo e militante do Partido Comunista Francês, responsável pela depuração da visão stalinista da geração anterior a autor da famosa tese do “corte epistemológico” entre Hegel e Marx, Althusser ganhou tantos admiradores quanto críticos neste período. O fato é que para a geração de 68 ele representava algo novo no campo do comunismo, muito marcado pela oficialidade soviética e pela política stalinista. Representava a renovação para os que buscavam alternativa no campo da esquerda, assim como o maoismo (mais) e o trotskismo (menos) adotado pelos jovens estudantes franceses que estavam atrás das barricadas nas ruas de Paris em maio de 68. Herbert Marcuse, filosofo alemão radicado nos Estados Unidos, membro da Escola de Frankfurt, era praticamente o filósofo “oficial” da juventude rebelada em 1968. Assim, Althusser respondia aos jovens que simpatizavam com PCF e estavam submetidos a severas críticas pelos opositores do stalinismo. Evidentemente, entre as posições de Marcuse e as de Mao Tse Tung havia considerável distância, mas o que importava realmente era uma leitura combativa que garantisse a ação revolucionária e a crítica ao status quo do comunismo representado pelos Partidos Comunistas servis a direção soviética, ou seja, ao stalinismo. O período carrega inúmeros intelectuais franceses para a esquerda e é famosa a “conversão” de Jean-Paul Sartre ao marxismo e seu apoio aos estudantes, visitando-os em plenas barricadas. De resto, Sartre já havia escrito em 1960 o famoso Critique de la raison dialectique pela Gallimard14, que colocava o existencialismo na direção da teoria crítica, exatamente respondendo a crítica que lhe faziam os marxistas. A crítica ao estruturalismo era o outro pólo desse efervescente caldeirão de idéias representado pela geração de 68 e dessa crítica surgem posições como as de Foucault que começa seu itinerário crítico discutindo exatamente a psicologia, a partir da década de 60. Claro deve ficar que a geração anterior a esta geração crítica dos anos 60 e 70, também exerceu um pensamento crítico e talvez, Georges Politzer, tenha sido um pioneiro, elaborando o projeto que denominou de Psicologia Concreta. De acordo com Marcos R Ferreira: Militante do Partido Comunista, no qual ingressou já no final da década de 20, parece ter chamado para si a tarefa de articular o estabelecimento dos fundamentos de uma nova Psicologia, compatível com o materialismo histórico. Fuzilado pelos nazistas em 1942, há 13 anos deixara de escrever de forma sistemática sobre a Psicologia, o que tem sido atribuído por 14

Sartre, Jean-Paul. Crítica de la Razón Dialéctica. Buenos Aires: Losada, 1979, 2 vl.

alguns estudiosos de sua obra a uma possível desistência (e descrédito na possibilidade) de construir a Psicologia Concreta...15

Lembro-me que Silvia Lane tomava como base, no final dos anos 70, a Psicologia Concreta de Politzer para iniciar a discussão crítica da Psicologia Social. Politzer fez a leitura crítica da psicologia da década de 20 e, apesar de severas críticas à Psicanálise, considerava que esta era a concepção que mais se aproximava do modelo crítico que defendia. Não chegou a construir as bases dessa nova Psicologia, mas deixou o clamor e a necessidade de um pensamento crítico na Psicologia. Com um pouco de esforço podemos retroagir até a Volkerpsychologie de Wundt e a produção de um projeto para a Psicologia que teria mudado sua face atual. Michel Cole16, representante da Psicologia Sócio-Cultural, seguidores americanos de Vigotski, aponta que ocorreu uma reviravolta no pensamento de Wundt, na primeira década do século XX, renegando a trajetória por ele próprio inaugurada, do experimentalismo na Psicologia, que entretanto acabou não vingando. Alguns pesquisadores, como Cole, estão buscando nesta tradição aportes para a discussão de uma Psicologia Crítica através de um ramo que intitulam, inspirados em Wundt, de Psicologia Cultural. Até aqui apontamos a presença de vários autores que tiveram como objetivo a construção de uma Psicologia crítica. Porém, nosso propósito não era o de fazer um inventário do tema e portanto, outros nomes devem fazer parte deste rol e como a preocupação não é a do historiador, fizemos uma escolha que reflete a posição do autor deste artigo. Na realidade, podemos considerar este conteúdo como apontamentos para uma história da Psicologia crítica.

3. O futuro da Psicologia Crítica

Rigorosamente, é possível dizer que ainda não temos uma Psicologia Crítica e que a psicologia só chegará a sua maioridade quando souber construir seu pensamento crítico com toda a virulência que vimos no primeiro quadro, somente quando ela servir 15

FERREIRA, Marcos R. Exigências históricas para a Psicologia: Georges Politzer e a Psicologia Concreta. Psicologia

Revista: revista da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, nº 4, maio de 1997, pp. 61-72 16

COLE, Michael. Psicología Cultural: una disciplina del pasado y del futuro. Madrid: Morata, 1999.

como referência para o pensamento crítico, como serve de referência para a psicologia a política, a sociologia, a economia, a história. Penso que este caminho possa estar delineado ao citar, no início do artigo, a presença de Gramsci e Lukács. Este último, particularmente, construiu uma trajetória que interessa muito à Psicologia. Curiosamente, tal construção se dá como uma forma de descartar a Psicologia como pensamento subjetivista e individualista, fruto da tradição burguesa de escapar da essência das questões colocadas pela realidade, projetando para o indivíduo questões que estariam ligadas a própria estrutura da sociedade capitalista. Ao menos, é como eram colocadas tais questões no final do século XIX e início do século XX pelos marxistas. É preciso considerar que o pensamento marxista, que a produção de Marx e Engels se dá no bojo de uma vaga revolucionária que varre toda a Europa a partir de 1848 e que vai até a Comuna de Paris em 1871, primeira experiência de poder operário no planeta. O momento seguinte que vai até a Revolução Russa de 1917, foi de refluxo do movimento revolucionário e neste período se constitui a Segunda Internacional, que dá origem a social-democracia européia. Engels, um dos fundadores da Segunda Internacional e herdeiro político de Marx, que havia morrido em 1883, se propõe a explicar o que teria ocorrido com a consciência das massas neste refluxo do movimento revolucionário. Como Engels admite que as massas quando atingem um determinado patamar de consciência não podem retroagir, o que estaria acontecendo é que o nível de consciência verificado anteriormente, no processo revolucionário, tratava-se de uma “falsa consciência”. Vejam, como essa discussão colocava em pauta a própria Psicologia e ao mesmo tempo, como a Psicologia do período, com seu método introspectivo, não teria a menor chance de responder a essa questão. György Lukács, filósofo húngaro, enfrenta o problema apontando o erro de Engels, que estaria ligado há maneira como este entendia a dialética da natureza, de forma mecânica e muito influenciado por Darwin e pela Teoria da Evolução das Espécies. Lukács faz a análise histórica da constituição da consciência de classes. Entretanto, ele próprio ira, nos anos 70 do século XX, fazer a crítica de sua análise. É neste momento que o autor envereda para a análise da ontologia do ser social. A psicologia crítica desde Vigotski tem estudado a consciência e trabalhado com a consciência como objeto

de estudo da Psicologia. Entretanto, questões como a da consciência de classe e da gênese do ser social, particularmente do ser social em sua expressão individual na sociedade capitalista, estão para acontecer na Psicologia. Quem é o sujeito da transformação social? Está é a questão que deve ser respondida. Marx e Engels iniciam o Manifesto Comunista com a célebre frase: Um espectro ronda a Europa. Vou parafraseá-la para: um espectro ronda a psicologia – penso que esse espectro é a ausência de um pensamento crítico consolidado. É esta a tarefa para a nossa e futuras gerações. As discussões sobre subjetividade e a constituição do sujeito da psicologia, que tira o foco sobre a concepção de objeto da ciência, dos paradigmas científicos emprestados das ciências naturais, podem produzir algum efeito. Na se trata de buscarmos, como foi feito no início do século XX o estatuto de uma ciência positivista, mas de saber qual a contribuição da psicologia na compreensão do ser humano, e não há nada mais revolucionário que ele próprio, na medida que trata-se do sujeito histórico por excelência e, portanto, o sujeito da transformação. É o ser humano o único animal na face da Terra em condições de transformar sua própria história. Quando a Psicologia tiver essa compreensão estará produzindo um conhecimento revolucionário. Trata-se de buscarmos referências que definam esse ser da transformação, que estudem sua subjetividade e que relacionem tal subjetividade dialeticamente com as condições objetivas da transformação social. Neste momento teremos, de fato, uma Psicologia crítica.

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