Psicose: Análises da adaptação da obra literária ao meio audiovisual

June 6, 2017 | Autor: L. Cazani Junior | Categoria: Psicose, Adaptação para o cinema
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LUÍS ENRIQUE CAZANI JÚNIOR E OCTÁVIO NASCIMENTO NETO

PSICOSE: ANÁLISES DA ADAPTAÇÃO DA OBRA LITERÁRIA AO MEIO AUDIOVISUAL1 Luís Enrique CAZANI Júnior2 Octávio NASCIMENTO Neto3 RESUMO Este trabalho apresenta análises da adaptação cinematográfica Psicose (1960), dirigida e produzida por Alfred Hitchcock a partir da obra literária homônima escrita por Robert Bloch com primeira edição publicada em 1959. O protocolo metodológico foi estabelecido no estudo comparativo e descritivo, centrando nas categorias da narrativa de personagem, tempo, espaço e focalização, com o objetivo de levantar o modo como foram traduzidos os recursos expressivos da linguagem verbal para audiovisual. Palavras-chave: Audiovisual; Adaptação literária; Cinema; Psicose; Hitchcock.

ABSTRACT This paper presents analysis of the film adaptation Psycho (1960), directed and produced by Alfred Hitchcock from the eponymous literary work written by Robert Bloch with the first edition published in 1959. The methodological protocol was established in comparative and descriptive study, considering the categories of narrative character, time, space and focus, with the goal of raising how the verbal language resources have been translated for audiovisual. Keywords: Audiovisual; Literary adaptation; Cinema; Psycho; Hitchcock.

1.INTRODUÇÃO Adaptada das páginas do romance Psicose, do escritor estadunidense Robert Bloch com primeira edição em 1959, a cena do chuveiro tornou-se um marco na história do cinema, no filme homônimo produzido e dirigido por Alfred Hitchcock. Para compor a obra literária Robert Bloch inspirou-se no caso real de Ed Gein, criando o personagem Norman Bates, um assassino solitário que vive em uma localidade rural isolada e tem um relacionamento conturbado com sua mãe. Bloch antecipa e prenuncia a explosão do fenômeno serial killer, que teve início no final dos anos 80, tornado Norman um arquétipo do horror incorporado a cultura pop. 1 Trabalho publicado no Livro de Atas do 5º Seminário História de Roteiristas, realizado em 2014. 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. E-mail: [email protected]. 3 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. E-mail: [email protected].

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Partindo desse pressuposto, o presente trabalho estuda a adaptação desta história da linguagem verbal para audiovisual, buscando compreender as estratégias utilizadas para manter o suspense, aflição e, principalmente, o mistério sobre o assassinato. Como protocolo metodológico, realizou-se um estudo comparativo e descritivo entre obra literária e produção cinematográfica, considerando as categorias de análise de personagem, tempo, espaço e focalização, priorizando a construção dos três personagens principais, suas cenas e interações.

2. FOCALIZAÇÃO O posicionamento do narrador no universo da história determina o grau de conhecimento sobre os eventos que ele conduz. De acordo com Reis e Lopes (1988, p. 246), a focalização deve ser compreendida como uma categoria da narrativa, “a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história quer o do narrador heterodiegético”. No campo da teoria literária, Genette (1995) levanta três possibilidades de focalização em uma obra de forma não excludente: interna, externa e neutra. Na focalização neutra, o narrador é onisciente e detém o conhecimento integral dos eventos narrativos. Na focalização externa, o narrador é observador e lança seu olhar sobre a exterioridade dos acontecimentos e personagens. Na focalização interna, o narrador é personagem, limitando o seu narrar aos eventos em que participa e considerando-os sob sua perspectiva. A exterioridade ao relatar um evento é uma característica eminente do narrador audiovisual. Ao traduzir um determinado texto do verbal para esta linguagem apontamse a câmera subjetiva e a voz over como expedientes que superam essa predominância e instauram a focalização interna. Pode-se definir a câmera subjetiva como recurso que possibilita ao espectador assumir a visão e posição do personagem. Já a voz over deve ser compreendida como locução que apresenta uma reflexão interior e fluxo de consciência. Os capítulos da obra literária Psicose são apresentados por um narrador onisciente que resgata os eventos narrativos pregressos, caracteriza os personagens e invade suas mentes e corpos. Destaca-se que em cada capítulo aflora um ponto de vista de determinado personagem. A focalização permite que Robert Bloch construa um dos maiores mistérios da trama: quem matou Mary Crane? Norman estendeu a mão, de novo trêmula, agora não de medo. De antecipação, talvez, pois sabia o que ia fazer. Ia afastar para um lado a licença municipal emoldurada e espiar pelo buraquinho que havia muito tempo fizera na parede. Ninguém sabia. Nem a mãe. Era um segredo só dele. (...) (BLOCH, 2013, p.24)

Na passagem a seguir é possível de vislumbrar o fluxo de consciência de Norman Bates, apresentado em grifo por Bloch.

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Estava no meio do quarto e se pôs a tremer. Não, não posso fazer isso. Não posso vê-la. Não vou lá dentro. Não vou! Mas tem que ir. Não há outro jeito. E deixe de falar sozinho! O mais importante era isso. Tinha que deixar de falar sozinho. Tinha de recuperar a tranquilidade anterior. Tinha de encarar a realidade. (BLOCH, 2013, p.32)

Na adaptação cinematográfica, o narrador “câmera” se debruça naturalmente sobre os fatos externados. A focalização interna é instaurada através de inúmeras câmeras subjetivas. Através do recurso de voz over é possível vislumbrar o fluxo de consciência de Norman, assumido por Norma na cena final do filme, e os diálogos que ocorrem fora da tela de exibição, como a discussão entre Norma e Norman ocasionada pela acolhida à Marion e as conversas sobre o desaparecimento de Marion no escritório que são ouvidas enquanto ela dirige em fuga. Além dos expedientes voz over e câmera subjetiva o diretor Alfred Hitchcock mantém os mistérios da trama a partir do desenvolvimento de ações fora da tela de exibição, técnica denominada extracampo. De acordo com Leal e Jácome (2011, p.93), “o extracampo pode ser entendido como uma forma de linguagem indireta, de adensamento de sentidos que envolvem uma contemplação, ou seja, uma demora, e exige do espectador uma forma de atenção e de apropriação peculiares, que centrifugamente articulam a imagem com algo externo a ela”. A maioria das cenas em que Norma participa ocorrem sob o olhar distante do narrador, seja por meio dessa técnica ou, pela angulação da câmera, inclinada em noventa graus.

3. PERSONAGENS Ao propor uma análise da adaptação sob a luz dos personagens, considerando-os como uma categoria da narrativa, analisam-se os conflitos e as ações que vivem. O trabalho se debruça sobre Mary/Marion Crane, Norman e Norma Bates.

3.1 Mary/ Marion Crane “FAZIA alguns minutos que chovia a jorros, sem que Mary reparasse nisso e ligasse o limpador do para-brisa, ao mesmo tempo acendendo os faróis.” (BLOCH, 2013, p.7). Essa é a introdução da personagem na trama de Bloch, apresentada no segundo capítulo a trajetória da personagem é contada pelo autor enquanto a personagem enfrenta a estrada com chuva forte. Todos os acontecimentos de seu passado, que terão alguma importância no decorrer da narrativa e, principalmente, a tarde anterior que fez com que Mary tomasse rumo pela estrada são contados através de uma espécie de flashback narrativo. A existência da irmã e do noivo da personagem e ainda toda a história de como Mary pegou os 40 mil dólares da empresa em que COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 10| n.10|p. 173-184| 2° Semestre 2015 | 175

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trabalhava e fugiu para finalmente poder viver com seu pretendente. Mary chega ao Bates motel e sua trajetória é interrompida, ainda no capítulo 3. Já a obra audiovisual, inicia com a personagem Mary, aqui chamada Marion, trocando carícias com Sam num motel durante seu horário de almoço. Parte para o trabalho e acontece todo o episódio de como ela se apossou do dinheiro e partiu para sua casa e depois pegou estrada para desaparecer. No filme, a personagem é presente durante a primeira metade da obra, e o espectador é conduzido a acreditar que é a personagem principal e desenvolverá toda a trama. Porém, após sua repentina morte, nota-se um momento de confusão em relação ao fio condutor da narrativa. O filme cria novos programas narrativos para essa personagem, como no caso da perseguição policial. No dia em Marion foge com o dinheiro e acaba dormindo dentro do carro no acostamento da estrada, ela é acordada por um policial, que depois a persegue até a próxima cidade e fica observando-a enquanto faz a troca de carro, para dificultar que a encontrem. Cria-se aqui novas cenas de suspense, a sensação é que o policial pode descobrir que Marion está com o dinheiro roubado. Essas cenas são apresentadas, em sua maioria, com o uso da câmera subjetiva, levando o espectador a sentir-se na situação da personagem. O espectador aproxima-se mais de Marion, torce para que ela consiga escapar do policial, para posteriormente lamentar ainda mais por sua morte.

3.1.1 Crime no chuveiro Muito antes de o leitor suspeitar que o crime acontecerá, o autor brinca através do jogo de palavras que antecipam o futuro da personagem, como podemos ver na passagem a seguir, logo após Mary chegar no Bates Motel: De que lhe valia o dinheiro? De que lhe valia Sam? Errara o caminho, estava numa estrada desconhecida... não havia recurso. Cavara sua própria cova e agora tinha de deitar-se nela... (BLOCH, 2013, p.14)

O livro apresenta cada capítulo através da visão de um personagem, esse momento é narrado primeiro pela perspectiva de Mary, onde depois do jantar e da discussão com Norman, a personagem está em seu quarto e tomada por seus pensamentos decide voltar para sua cidade, devolver o dinheiro e tentar limpar sua consciência em relação a sua má conduta no trabalho. Depois dessa decisão, ela sente-se bem, confiante e determinada, vai para o banheiro tomar um banho e é assassinada no chuveiro. (...)Não era máscara, não podia ser. Uma camada de pó-de-arroz de um branco mortal tapava-lhe as feições, exceto as maçãs do rosto onde se concentravam duas rosas héticas de rouge. Não era máscara. Era o rosto insano de uma velha louca. Mary começou a gritar. (BLOCH, 2013, p.23)

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O autor descreve a entrada da mãe no quarto, seu caminhar até o chuveiro e então faz sua caracterização, somente após abrir a cortina. As características do assassino são descritas só após Mary vê-lo. E a morte acontece de uma vez, com um só golpe sua cabeça é separada do corpo e Mary morre. No capítulo seguinte, Bloch descreve o personagem Norman na recepção do motel, ele está bebendo e fica pensando em Mary, espia através de um “olho mágico” a personagem se despindo para o banho, mas começa pensar na mãe, porque sabe que está não aprovaria seu desejo, sua atitude em admirar a mulher despindo-se. Então, lembra-se que a mãe está só há muito tempo, e lembra que ela possui as chaves da casa e do motel, inclusive do quarto de Mary. Norman perde o contato visual com Mary, corre até o quarto e encontra a mulher morta no chuveiro. No filme, a cena inicia com Norman vigiando Marion pelo buraquinho da parede, aqui a imagem é apresentada através da câmera subjetiva levando o espectador direto para a mente de Norman. Antes que Marion vá para o chuveiro ele desiste de olhar e volta para a casa. A trilha sonora que antecipa a tragédia que virá, se tornou uma das mais famosas dentro do suspense, faz o espectador ficar tenso e apreensivo, e a melodia se torna cada vez mais aflitiva até seu ápice. A cena é apresentada através de vários enquadramentos diferentes, diversos planos detalhes que seguem na estratégia de alimentar o suspense e a aflição. Então, para em um enquadramento estranho, a estranheza é causada pelo excesso de espaço vazio: de um lado está Marion no chuveiro, mas metade do quadro tem apenas a cortina turva do box do chuveiro. Esse plano faz o espectador direcionar a atenção para o espaço vazio, aguardando algo surgir por ali. E como é esperado, surge uma silhueta através da cortina. A trilha alcança seu momento mais crítico, a cortina abre e aparece uma velha com a faca atacando Marion.

Figura 1 e 2: Marion Crane sendo assassinada no chuveiro, a silhueta aparenta ser uma senhora a protagonista do crime

O ataque, diferentemente do livro, dura muito tempo. São diversos enquadramentos e diversas facadas, aumentando a aflição enquanto dá ao espectador um pouco de esperança para que Marion consiga fugir. Durante as facadas alguns planos apresentam novamente a câmera subjetiva, alimentando o horror, fazendo o espectador se colocar na posição da vítima; o espectador se sente sendo esfaqueado. Depois de gritos e vários cortes, a mão de Marion escorrega junto com seu corpo e o enquadramento foca nos olhos da personagem, até eles ficarem totalmente vazio e COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 10| n.10|p. 173-184| 2° Semestre 2015 | 177

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imóveis. A câmera movimenta pela cena, chegando ao ralo do chuveiro, mostrando o sangue escorrendo pelo esgoto, como uma maneira de mostrar a vida de Marion escorrendo pelo ralo e então, volta para um plano fechado na personagem morta no chão do banheiro.

3.2 Norman Bates Marion para seu carro em frente ao motel e buzina sem parar. Da casa na ladeira, Norman ouve a sinalização e desce até o Bates Motel. O espectador visualiza todo o transcurso do rapaz. Norman hospeda a moça. Nesta passagem, ele é indagado sobre possíveis lugares para ela jantar. No quarto, Norman convida Marion para jantar. Mary e Norman jantam na cozinha da casa na obra literária, enquanto que no filme Norman traz um sanduíche para Marion no escritório da recepção. Este local é utilizado para a complementação da caracterização de Norman: um espaço sombrio, com diversos pássaros embalsamados, frutos de seu hobby: a taxidermia. Através das câmeras subjetivas, Marion vasculha esse local. Ambos sentam-se. Os planos de Marion são mais claros pela proximidade a uma luminária. Já os planos de Norman revelam sombras e uma tonalidade escura. Na obra literária, Mary fuma e é irônica diante das respostas de Norman: “Proibem-lhe fumar. Proibem-lhe beber. Proibem-lhe ter namorada...Que faz, então, além de dirigir o motel e cuidar de sua mãe? (BLOCH, 2013, p.19). No filme, Mary é doce ao questionar Norman sobre sua rotina e seu comportamento com sua mãe. A medida que as perguntas invadem a intimidade dos personagens, os planos são mais fechados, acentuando a angulação da câmera em contra-plongée. Não há movimentação de câmera, mas um declínio e reclínio da postura de Norman que demonstram seu incômodo. Ao enquadrar os pássaros espalhados ao fundo, os diálogos tornam ainda mais obscuros. Ao ser indagado sobre uma possível internação de sua mãe, Norman é mostrado em um plano mais fechado. Ele se reclina ainda mais como se quisesse enfrentar Marion. Ao final da conversa, fica subentendido que Marion decidiu desistir da fuga e retornar ao escritório. Ao levantar-se, ela é enquadrada com angulação em contraplongée. Norman permanece sentado, no seu contra-campo, em plongée. Dessa forma, Marion sai vitoriosa da conversa por reverter a sua situação, enquanto Norman, relutou em deixar sua mãe. De acordo com a obra literária, Norman acompanha Mary até seu dormitório e embriaga-se. Um capítulo é dedicado a sua embriaguez, suas sensações ao ver Mary despir-se por um buraco na parede e a sua perda de consciência. Ao despertar, Norman constata o assassinato de Mary. Já na produção cinematográfica, Marion despede-se e vai até o seu quarto. Norman permanece na recepção do Bates Motel. Confere a assinatura da moça, espia Marion despir-se e, logo em seguida, vai para a sua casa. Após constatar a presença de sangue na sala da casa em uma cena em extracampo, o rapaz desce até o motel, gritando. Norman encontra o corpo de Marion, fecha a janela, apaga as luzes e vai até a recepção pegar um esfregão e um balde. Norman limpa o quarto e coloca todos os vestígios de Marion, corpo e pertences, no porta-malas do

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carro, e parte com o carro para o pântano. Norman observa-o sendo tragado pela lama, com a metade da face obscura. Ao final, sorri vitorioso. Após limpar os vestígios no entorno do pântano é narrada sua rotina no motel, recebendo clientes, a lavanderia, um policial federal e o detetive Arbogast. A produção cinematográfica limita seu narrar a chegada deste último. Arbogast não oculta sua identidade e Norman não é confrontado. Ao confirmar pelo livro de registro a presença de Marion, os enquadramentos dos personagens apresentam-se mais fechados como close-up e em contra-plongée. A identidade de Arbogast é ocultada na obra literária, revelação que ocorre quando confronta e ameaça Norman. No filme, ao despedir-se, Arbogast vê Norma na janela da casa ao fundo do Bates Motel e quando questiona sobre a mãe, Arbogast é convidado por Norman a retirarse e buscar um mandato. Já na obra literária, Norman autoriza Arbogast ver sua mãe com apenas uma condição: que o deixa falar com ela primeiro. Ao entrar na casa, Arbogast é assassinado. Na produção cinematográfica, Arbogast entra na casa sem a permissão de Norman. Sobe as escadas e é assassinado por Norma, rolando pela escada. A obra literária detalha Norman encobrindo os vestígios do assassinato de Arbogast e ensaiando o que diria sobre esses eventos, enquanto que, o filme mostra ele apenas observando o carro de Arbogast sendo sugado pelo pântano. Norman ouve Sam chamando pelo detetive. Sam e Lila vão até o local. Alugam o quarto onde Mary foi assassinada, encontrando um brinco com sangue coagulado. Sam pede que Lila vá até a cidade para chamar o xerife. Sam e Norman bebem. Bates revela que roubou o corpo da mãe e, por fim, que sabe que Lila subiu até a casa. Agride-o com uma garrafa. Na produção cinematográfica, Lila e Sam não ficam no mesmo quarto do assassinato e um pedaço de papel usado por Marion no cálculo de suas despesas é encontrado. Sam distrai Norman para que Lila entre na casa. Norman descobre, agride Sam com um objeto da recepção e corre até a casa. Após a descoberta de que Norman é o assassino, ele é apresentado na cadeia, em um recinto branco e vazio. Uma aproximação lenta da câmera procura desvendar o íntimo da personagem e a adentrar a sua consciência, assumida por Norma.

3.3 Norma As duas obras têm o mesmo ponto principal, responsável pelo mistério que é presente durante toda a trama, e esse ponto é a personagem Norma, a mãe. Sua personalidade forte e seu domínio sobre o filho chama atenção desde o início da narrativa. Depois do assassinato de Mary, o interesse fica voltado ainda mais em entender o que se passa com essa personagem. Somente no final é revelado que Norma está realmente morta há muito tempo e a mãe presente no decorrer da história é, na verdade, uma outra personalidade do filho. Cada obra tem sua estratégia para enganar o leitor/espectador em relação a esse mistério. O livro consegue de maneira mais assertiva convencer o leitor com a personagem

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da mãe. No primeiro capítulo, há uma passagem de diálogo entre mãe e filho. A cena é natural e comum. Eles discutem: ela o questiona em relação aos livros que lê, e diz que têm conteúdo ruim e de mau gosto, algo normal, uma discussão de filho com uma mãe velha e rabugenta. Nessa passagem, não é apresentado ao leitor nenhum motivo para duvidar da “existência” da mãe. Não olhou; fingiu continuar lendo. Ela estivera dormindo. Ele sabia que acordava rabugenta. O melhor era ficar Miado, na esperança de que não estivesse muito azeda... — Sabe que horas são, Norman? Ele suspirou. Fechou o livro. (BLOCH, 2013, p.3)

No filme, a primeira aparição da personagem é minutos antes do jantar entre Norman e Marion. Marion está em seu quarto escondendo o dinheiro e ouve pela janela a discussão entre mãe e filho, Norma dizendo que Norman teria pensamentos impuros e Marion se ofereceria para ele. Na obra audiovisual, esconder o mistério que ronda essa personagem é mais difícil. Enquanto no livro, os acontecimentos narrados pela visão de Norman, apresenta descrição sobre a mãe, seus passos, suas falas, tudo acontece de maneira natural; no filme, em momento algum, Norma é mostrada falando ou andando. Os dois diálogos existentes entre mãe e filho acontecem através do enquadramento da casa ou da porta do quarto, chamado enquadramento extra campo. A ação se passa dentro da casa, mas em quadro apenas a fachada, e não os personagens que estão executando as ações.

Figura 3 e 4: Marion ouve a discussão entre Norman e Norman, tudo mostrado através do enquadramento extra-campo.

Logo depois do crime no chuveiro, o livro brinca mais uma vez, dando dica para o leitor sobre a mãe. Na obra escrita, não é possível suspeitar da personagem mãe, talvez por isso, Bloch apresenta passagens que dão a dica para o leitor antecipar a proximidade entre mãe e filho. Podia ver a mãe... e ela estava no pântano. Era ah que ela estava! Tropeçara na escuridão da margem e não podia mais sair. A lama borbulhava em torno dos joelhos dela, ela tentava agarrar um galho para subir no barranco, mas debalde. Os quadris afundavam no lodo, o vestido lhe grupava às virilhas. Aquilo era

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nojento. Não devia olhar. (...)Mas a podia ver respirando com dificuldade, o que também o fazia respirar com dificuldade; sentia sufocar-se junto com ela, e depois... (era sonho, tinha que ser sonho!) A mãe estava em pé no chão firme, à beira do pântano... e era ele que se afundava! (BLOCH, 2013, p.35)

Apesar de ser apenas um sonho de Norman, o autor antecipa através do inconsciente do personagem a temática da confusão entre as personalidades de Norman e Norma. No filme, também existe uma passagem antecipadora: pouco antes do assassinato no banheiro, enquanto Norman e Marion estão jantando, ela começa a questionar a relação dele com a mãe, chegando a sugerir que a mãe fosse talvez internada. Norman rebate dizendo: “Ela é inofensiva como esses pássaros embalsamados!”. No final, a mãe realmente era inofensiva como os pássaros, já que assim como eles, ela também estava morta. Mais uma vez a presença do jogo de palavras, a dica para o espectador para a revelação do mistério. Ainda na obra audiovisual, mais uma vez a casa de Norman no enquadramento enquanto escuta-se o que acontece lá dentro. Nessa cena Norman encontra a mãe logo após o crime, e ainda enquadrando apenas a fachada da casa, a cena acontece através dos gritos de desespero do rapaz: “Mãe! Mãe! Sangue!” Após essa cena, a mãe desaparece da trama até que o detetive Arbogast vai até a casa para interrogála. Norma aparece nesse momento pela segunda vez, e novamente com a mesma finalidade: cometer um crime. Ela surge no alto da escada quando o detetive está acabando de subir e o surpreende com um golpe. Desce até o final das escadas onde Arbogast está caído e o mata. Durante toda a cena o enquadramento é minuciosamente feito para não revelar ao espectador o rosto de Norma. No alto da escada, a câmera 90 graus deixa em quadro apenas as cabeças dos personagens. Desse ângulo, Norma surge do quarto e esfaqueia Arbogast. Enquanto o detetive cai das escadas, a câmera o acompanha fazendo um movimento que leva o espectador a sentir-se caindo junto, e depois da descida da escada o plano é feito pelas costas de Norma, escondendo seu rosto e sua identidade.

Figuras 5 e 6: Arbogast sendo morto ao subir as escadas para confrontar Norma.

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Antes das cenas finais, em ambas obras, é revelado pelo xerife que Norma está morta há muitos anos. Enquanto isso, Norman cria uma mentira para contar para todos que viessem atrás de Arbogast, mas, para que tudo desse certo era preciso que a mãe ficasse escondida por um tempo. Ele vai até ela para pedir que fique no porão. Eles discutem e Norma leva a mãe a força até o piso inferior. Aqui, mais uma vez uma passagem com Norma. Fazendo parecer realmente que ela está lá, tanto no livro quanto no filme. — Norman, recuso-me a discutir esse assunto com você. Não saio absolutame9nte deste quarto. — Nesse caso, terei de a carregar. — Norman, você não se atreve... Ele se atreveu. Retirou-a da cama e carregou-a nos braços. (BLOCH, 2013, p.70)

O filme traz esse diálogo dentro do quarto, enquanto a câmera passeia pela escada e para exatamente na posição em que ficou quando Arbogast toma o primeiro golpe no alto da escada. Será agora alguma revelação para o desenvolver da narrativa? Então, Norman passa com Norma sendo carregada no colo. Aqui Hitchcock, mais uma vez, afirma a presença da mãe na história. Assim como nos dois assassinatos, nessa cena, é mostrado a velha em quadro, apesar de não mostrar sua fisionomia. Então, no final da obra, a cena reveladora em que Lila está vasculhando a casa em busca de respostas, em relação ao desaparecimento da irmã Marion. Lila desce até o porão e encontra a mãe, apresentada em cena pela primeira vez como realmente é: apenas um corpo. E logo em seguida vemos Norman, que chega pela porta vestido com as roupas da mãe e usando peruca. Norma estava morta desde o começo da trama, mas estava presente como uma outra personalidade de Norman. No último capítulo, é revelado o mistério, que se trata de um transtorno de Norman. Na sala de interrogatório, Norma assume a mente de Norman e culpa-o por terem sido pegos. Na última cena do filme, Norman enquadrado sentado na sala de interrogatório. Cenário limpo, apresenta apenas Norman, a cadeira e a parede clara ao fundo. A câmera aproxima-se do personagem cada vez mais, como se quisesse fazer o espectador entrar dentro da cabeça do personagem, ou seja, depois de revelado toda a história do personagem e sua condição, é possível ver com clareza (cenário vazio) que Norman é Norma, e responsável pelos crimes no Bates Motel. Se ficasse ali sem se mover, todos saberiam que ela era normal, normal, normal... E ali ficou longo tempo sentada, até que uma mosca entrou zumbindo através

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das grades. Entrou e foi pousar diretamente em sua mão. Se quisesse, poderia matá-la. Não a matou, porém. Não a matou, e tinha a esperança de que a estivessem observando, pois isso vinha provar que espécie de pessoa ela era: Incapaz de fazer mal a uma mosca! (BLOCH, 2013, p.109)

4. TEMPO O tempo é uma categoria da narrativa que pode estar relacionado a situação da enunciação, a temporalidade dos eventos a serem enunciados e a temporalidade dos eventos quando enunciados e modelados no discurso. De acordo com Fiorin (2001, p.230), três noções básicas emergem dessa diferenciação. Diz o autor: “História é o conteúdo narrativo, o conjunto dos acontecimentos contados; récit (narrativa) é o enunciado, o discurso narrativo, que conta os acontecimentos; a narração é a enunciação narrativa”. Na obra literária, os eventos são apresentados segundo a perspectiva de um narrador onisciente que se debruça, também, sobre pontos de vistas dos personagens. Em algumas situações, a ocorrência de um evento é citada e resgatada no capítulo seguinte sob o olhar de outro personagem participante. Ao traduzir a história para a linguagem audiovisual, o diretor dispõe os eventos de forma cronológica. Em geral, Hitchcock estende o tempo das cenas através da proliferação de planos detalhes e câmeras subjetivas. Os transcursos das ações são apresentados em completo, principalmente, quando Norman sai do Bates Motel e vai até sua casa. Ressalta-se, por fim, que alguns eventos encontram-se deslocados em comparação com a sequência apresentada pela obra literária.

5. ESPAÇO O espaço deve ser compreendido como a ambientação da história, um componente físico que confere sentidos contextuais, sociais, psicológicos, históricos e estéticos à narrativa, corporificando o tempo e complementando as caracterizações. Sobre os cenários e enquadramentos, nota-se a inspiração no expressionismo alemão. O movimento é caracterizado por temas sombrios, o suspense policial, mistério, personagens bizarros e assustadores, dramaticidade excessiva, cenografia carregada e ambientes mórbidos. COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 10| n.10|p. 173-184| 2° Semestre 2015 | 183

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Os pássaros empalhados na saleta da recepção do Bates Motel demonstram o hobby de Norman. A mobília clássica sinaliza para um tempo morto. A câmera geralmente enquadra Norman carregado de objetos ao fundo, sempre algum de seus animais empalhados. Tal concepção se contrasta com Mary, enquadrada na parede clara. Desprende-se como sentidos, a forte personalidade de Norman e o esvaziamento da vida de Mary, um prenúncio de seu futuro, já que, morre na cena seguinte. A angulação da câmera em contra plongée dá superioridade a Norman em alguns enquadramentos. Além do cenário em si, tem-se o uso da iluminação cinematográfica com finalidade de formar sombras duras em grande parte das cenas, trazendo a sensação de algo obscuro presente naquele lugar e naqueles personagens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Psicose (1960), a clássica obra cinematográfica de Alfred Hitchcock, foi desnudada neste trabalho, considerando as categorias de análise da narrativa de personagem, tempo, espaço e focalização, resultando, nesta última, a maior articulação na tradução da obra literária homônima de Robert Bloch. Através dos expedientes da linguagem audiovisual, como a câmera posicionada em noventa graus e a estratégia da realização de ações fora da tela de exibição, manteve-se os mistérios que engendram a sua fábula, estabelecida em um narrador ora onisciente, ora em primeira pessoa do singular. Diferenças na construção das personagens e “transgressões” na adaptação também foram discutidas nesta leitura. Ao final desta análise, destaca-se a emersão na contemporaneidade de novas tramas sobre Ed Gein, o assassino de Wisconsin. A ficção seriada televisiva Bates Motel (2013), produzida por Carlton Cuse, Kerry Ehrin e Anthony Cipriano, reconstrói os programas narrativos da obra literária. Há, ainda, a refilmagem da produção cinematográfica realizada por Gus Van Sant em 1998. Abrem-se, dessa forma, novos caminhos para estudo dos sentidos trazidos por essas adaptações emergentes.

REFERÊNCIAS BLOCH, Robert. Psicose. Rio de Janeiro: Darkside Books. 2013. 240p. BULHÕES, Marcelo Magalhães. A ficção nas mídias: um curso sobre a narrativa nos meios audiovisuais. São Paulo: Ática, 2009. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2001. GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Lisboa, Vega, 1995. LEAL, Bruno; MANNA, Nuno; JÁCOME, Phellipy. O extracampo na TV: rachaduras no mundo televisivo. Revista Galáxia, São Paulo, n. 21, p. 92-101, jun. 2011. PSICOSE. Direção: Alfred Hitchcock. Produção: Martire de Clemont-Tonnere e Arthur Cohn. [S.l.]: Shamley Productions, 1960. 109 min. Netflix. REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

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LUÍS ENRIQUE CAZANI JÚNIOR E OCTÁVIO NASCIMENTO NETO

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PSICOSE: ANÁLISES DA ADAPTAÇÃO DA OBRA LITERÁRIA AO MEIO AUDIOVISUAL

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