Publicidade e identidade cultural: nacionalidade e hibridismo na comunicação publicitária da Coca – Cola

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Mestrado em Comunicação da UFSM

O Projeto Político-pedagógico do Mestrado de Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria foi aprovado em 27.01.2004 pelo Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão e recomendado pelo Comitê da Área de Ciências Sociais Aplicadas I da CAPES em 17.09.2005. O Mestrado de Comunicação foi criado pelo Conselho Universitário da UFSM em 18.02.2006 e admitido na assembléia da Compós de 08.06.2006. Suas atividades começaram em outubro de 2005 com edital público para seleção da primeira turma que efetivou as provas a partir de dezembro de 2005 e realizou suas primeiras matrículas em março de 2006. O Mestrado em Comunicação da UFSM tem seleção anual, 10 vagas, sua área de Concentração é em Comunicação Midiática e contempla duas linhas de pesquisa: • Mídia e estratégias de comunicação • Mídia e identidades contemporâneas Os docentes vinculados ao Mestrado de Comunicação foram aprovados pelo Colegiado de Curso a partir das atividades do II Seminário de Credenciamento realizado em novembro de 2007.

Volume 14, jul-dezembro 2008

Santa Maria (RS) - Brasil

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS Reitor - Clovis Silva Lima Diretor CCSH - Rogerio Ferrer Koff

Conselho Editorial

Ada Cristina Machado da Silveira (Editora) – Dra em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona com pós-Doutorado na Sorbonne Paris III Adair Caetano Peruzzolo – Dr em Comunicação e cultura pela ECO-UFRJ com pósDrado na Universidade Autônoma de Barcelona Elizabeth Bastos Duarte – Dra em Letras pela USP com pós-Doutorado na Sorbonne Paris III Eugenia M. Mariano da R. Barichello – Dra em Comunicação e cultura pela ECO -UFRJ Inesita Araujo – Dr em Comunicação e cultura pela ECO-UFRJ Gustavo Cimadevilla – Dr em Sociologia pela Universidad Nacional de Río Cuarto Luciana Pellin Mielniczuk – Dra em Comunicação e cultura contemporâneas pela UFBA Maria Lilia Dias de Castro – Dra em Letras pela USP com pós-Drado na Sorbonne Paris III Marcius Freire – Dr em Cinematografia pela Universidade Paris X-Nanterre e professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Rogerio Ferrer Koff – Dr em Comunicação e cultura pela ECO-UFRJ Tania Siqueira Montoro – Dra em Comunicação Audiovisual pela Universidade Autônoma de Barcelona Veneza V. Mayora Ronsini – Dra em Sociologia pelo IFCLH-USP Animus: revista interamericana de comunicação midiática / - - - Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Ciências Sociais e Humanas. Vol. 13 (jan/jun 2008). Santa Maria, NedMídia, 2008v. ISSN 1677-907x Semestral CDU: 316.77(051) Capa Produção FACOS Agência de Comunicação Editoração Eletrônica Bibiana Silveira Cidade Universitária – UFSM Impressão Prédio 21 – Sala 5240, Camobi, Santa Maria – RS – Brasil Imprensa Universitária Fone/fax: 55 3220 8491, CEP: 97105 – 900 Fotolitos [email protected] Fotoligraf

Impresso no Brasil - 2009

Sumário Editorial7 Dossiê Comunicação, Instituições e Responsabilidade Social Produtos comunicacionais e a responsabilidade social na indústria da comunicação

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Os sites organizacionais: Características e transformações no contexto das organizações privadas  29 Licitações nas Outorgas de Rádio e TV: a Ineficácia dos Critérios Técnicos

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Dossiê Comunicação e Identidade Qual é a cara da cultura brasileira apresentada pelo Jornal Nacional? O gênero televisivo como estratégia de enunciação[1] 65 Publicidade e identidade cultural: nacionalidade e hibridismo na comunicação publicitária da Coca – Cola83 Do circuito cultural ao circuito da notícia: intersecções teórico-metodológicas

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Artigos Estetização do mundo da vida: ameaça ou redenção do processo formativo?  113 A recepção e produção de sentido sobre os espaços urbanos: olhares dos acadêmicos de cinema da UFPel

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Editorial A reformulação editorial que anunciamos na edição anterior em Animus. Revista Interamericana de Comunicação Midiática prossegue nesta edição. Com a introdução da versão eletrônica, alteramos seu leiatue para proceder às adequações necessárias. Também vamos manter uma versão impressa para distribuição aos autores e programas de pós-graduação em Comunicação do Brasil. Registramos novamente que procedemos à alteração no registro de numeração de seus volumes para adequar às normas vigentes, sem que isso interfira na sua contagem. Assim, o volume 14 corresponde ao que, anteriormente, designávamos por volume VII, julho-dez de 2008, número 2. Esta edição prossegue com os dossiês temáticos. Apresentamos inicialmente o Dossië mídia, esfera pública e esfera privada. Apresentamos o artigo de Gino Giacomini Filho, professor do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Ele analisa a responsabilidade social da indústria da comunicação tendo em vista os conteúdos transmitidos, utilizando-se de estudo bibliográfico e pesquisa de campo com organizações da indústria da comunicação da Região do ABC paulista. Noutra perspectiva empresarial, Fabiane Sgorla e Maria Ivete Trevisan Fossá, respectivamente uma mestra pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFSM e sua orientadora, estudaram os sites organizacionais. Tomando-os enquanto espaços midiáticos importantes para as organizações privadas, faz uma abordagem da esfera privada imbricada no espaço público. Estudando o setor calçadista do sul do Brasil, elas o fazem a partir de uma apreciação comparativa com a evolução dos sites noticiosos baseada nas fases do webjornalismo. Cristiano Aguiar Lopes Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, analisa as licitações para a outorga de concessões e permissões de rádio e televisão. Ele constata a interferência do critério econômico para as outorgas de radiodifusão e que elas podem ser utilizadas como moeda de barganha política antes da obrigatoriedade de realização de licitações, através de certas brechas. Trata-se de uma abordagem crítica das relações entre esfera pública e privada na atividade midiática. Na Sessão Mídia e identidades contemporâneas, Simone Maria Rocha, Carolina Abreu Albuquerque e Renata Carneiro de Oliveira, integrantes de grupo de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade

Federal de Minas Gerais analisam as relações entre cultura brasileira e noticiário televisivo. A questão do gênero televisivo reportagem é enfocada no posicionamento dos atores com vistas a  captar como os diferentes sujeitos são convocados para oferecer opiniões sobre a identidade brasileira. Maria Alice de Faria Nogueira, mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da PUCRJ e professora da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, estuda duas ações de comunicação publicitária da Coca-Cola. Detendo-se em peças feitas na década de 1940 e na década de 2000, o trabalho também aborda o tema da identidade nacional e seu projeto de nação no período em referência.  Outros artigos que apresentamos são de Vilso Junior Santi, doutorando pela Famecos-PUCRS e Márcia Franz Amaral, professora de nosso programa de pósgraduação, que aborda o círculo da cultura de Johnson. O professor Amarildo Luiz Trevisan, do Programa de Pós-graduação em Educação da UFSM que aborda a questão da reificaçáo e seus efeitos sobre o indivíduo. O artigo enfoca as contribuições de Honneth e Jameson, em sua interconexão com a atividade comunicativa. Por fim, Fabio Souza da Cruz da universidade Católica de Pelotas e Guilherme Carvalho da Rosa, da Universidade Federal de Pelotas estudam as circunstâncias de recepção e produção de um documentário. Inquirindo como os espaços urbanos são tratados, o artigo reflete sobre uma produção de acadêmicos de cinema da Universidade Federal de Pelotas através de um olhar teórico-metodológico está voltado para dois momentos. Ada Cristina Machado da Silveira – Editora

Produtos comunicacionais

e a responsabilidade social na indústria da comunicação Gino Giacomini Filho Doutor e livre-docente em Comunicação Social pela ECA/USP. Docente e coordenador do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Professor do curso de graduação da ECA/USP.

Resumo: O propósito deste artigo é analisar a responsabilidade social da indústria da comunicação tendo em vista os conteúdos transmitidos em seus produtos comunicacionais. O trabalho reflete uma pesquisa exploratória, utilizando-se de estudo bibliográfico e pesquisa de campo com organizações da indústria da comunicação da Região do ABC. Os resultados mostraram que a responsabilidade social organizacional está incorporada na indústria da comunicação, quer na sua gestão ou na forma de produtos comunicacionais. Palavras chave: Conteúdo comunicacional, Responsabilidade Social Organizacional, Indústria da Comunicação, Região do ABC. Resumen: El proposito del articulo és analisar la responsabilidad social de la industria de la comunicación bajo los contenidos que transmiten sus productos comunicacionales. El trabajo reflete una pesquisa exploratoria que utilizó estudo bibliografico y pesquisa de campo con organizaciones en la industria da comunicación de la región de ABC. Los resultados mostraran que la responsabilidad social organizacional se inserta en la industria de la comunicación, quer en su gestión o en la forma de productos comunicacionales. Palabras clave: Contenido comunicacional, Responsabilidad social organizacional, Indústria de la comunicación, Region del ABC. Abstract: The aim of this article is to analyze the social responsibility of communication industry according contents inside communication’s products. This work reveals an exploratory research that used bibliographical study and field research with organizations in the communication industry of ABC region. The results showed that the corporative social responsibility is present in the communication industry, either in the management activities or communication’s products. Keywords: Communication contents, Corporative Social Responsibility, Communication industry, ABC region.

Produtos comunicacionais e a responsabilidade social na indústria da comunicação

Introdução

Os integrantes da indústria da comunicação (IC) têm cobrado de todas as organizações posturas socialmente responsáveis. São denúncias em jornais contra a indústria petroquímica, alertas em anúncios contra danos ambientais, ações de relações públicas sobre posturas éticas na indústria farmacêutica, e tantas outras manifestações que a IC, por meio de seus produtos comunicacionais, realiza em consonância com postulados da responsabilidade social organizacional (RSO). Porém, é preciso questionar se as organizações da IC possuem atuação socialmente responsável e de que forma indicam essa atuação nos produtos comunicacionais próprios ou produzidos para terceiros.

Este trabalho[1] pretende analisar a responsabilidade social organizacional da indústria da comunicação considerando seus produtos comunicacionais.

Os produtos de mídia ocuparam em 1993 o segundo lugar em exportações americanas, depois de produtos aeronáuticos (STRAUBHAAR LAROSE, 2004). Essa relevância da indústria da comunicação faz com que sua responsabilidade se evidencie, pois além da importância intrínseca de suas atividades, suas práticas e discurso também servem de parâmetro para outras instituições, quer por meio de produtos comunicacionais próprios ou confeccionados para terceiros. Nesse sentido, entende-se que seria oportuno verificar como tal indústria encampa o discurso da RSO nos produtos comunicacionais. O método utilizado contextualiza-se no delineamento exploratório e pesquisa de campo. Para obter indicadores de práticas de RSO da IC foram investigadas, no período de 2007 e 2008, organizações desse setor sediadas na região do ABC paulista, região que se destaca pelo bom padrão de qualidade de vida, desenvolvimento econômico e dimensão populacional.

Tal investigação ocorreu por meio de entrevista com gestores e análise de produtos comunicacionais vinculados a essas organizações. O objetivo da pesquisa de campo, portanto, foi o de apurar indicadores de RSO na IC na região do ABC e, a partir dessas referências, mostrar como essas organizações mostram em seus produtos comunicacionais valores de responsabilidade social. 10

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Gino Giacomini Filho

Indústria da comunicação e produto comunicacional

O termo “indústria da comunicação” tem sido largamente utilizado no meio acadêmico e profissional para designar as organizações que participam diretamente do mercado da comunicação, tais como imprensa, emissoras, agências de propaganda e outros (BELTRÃO QUIRINO, 1986; GOMES, 2004; JIN, 2008). Embora este termo, em certos contextos, seja preterido por “indústria cultural”, possui a vantagem de não carregar a ideologia forte empregada pelos pioneiros da escola de Frankfurt ( JACKS, 2003), que equipararam bens culturais, caso de filmes e programas de rádio, a mercadorias de uma autêntica indústria (MATTELART, 2004).

Jacks (2003) considera que a indústria da comunicação pode encarregar-se da criação, produção e distribuição de produtos culturais destinados ao grande público, ou seja, é uma indústria que “[...] nomeia o sistema de bens simbólicos produzidos pelas empresas de comunicação, com o objetivo de atingir a um grande número de pessoas.” (p. 25). A autora, apegando-se a tal conceito, estuda a indústria cultural gaúcha representada pelo rádio, revista, jornal, editoras, televisão, discos/gravadoras e publicidade. Da mesma forma como a indústria da comunicação encontra similaridade com a indústria cultural, o produto comunicacional possui afinidade com produto ou bem cultural, desconsideradas as ligações ideológicas preconizadas pelos estudos “frankfurtianos”. Santaella afirma que:

Segundo a lógica da indústria cultural, todo e qualquer produto cultural – um filme, um programa de rádio ou de televisão, um artigo em uma revista etc. – não passa de uma mercadoria submetida às mesmas leis de produção capitalista que incidem sobre quaisquer outros produtos industrializados: um sabonete, um sapato ou quaisquer outros objetos de uso. Diferentemente destes, os produtos da indústria cultural são simbólicos produzindo nos indivíduos efeitos psíquicos de que os objetos utilitários estão isentos (2001, p. 39). Mestrado de Comunicação - UFSM

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Produtos comunicacionais e a responsabilidade social na indústria da comunicação Miége (2007) reconhece que “O universo dos produtos culturais e da informação é de uma grande diversidade” e que pode abrigar basicamente o modelo editorial (livros, discos, cinema) e modelo de flot (rádio e TV), mas com amplas conexões tecnológicas e informacionais, em que a publicidade assume papel relevante.

A indústria da comunicação não se restringe a um conjunto complexo de organizações, mas agrega produtos comunicacionais, profissionais, tecnologias, gestão, procedimentos mercadológicos, discursos e conteúdos. O produto cultural ou comunicacional é caracterizado de forma semelhante nos conceitos das indústrias – cultural, informação, mídia e comunicação – ou seja, seriam os serviços e bens oferecidos ao mercado pelas organizações de comunicação ou que fazem comunicação, caso de filmes, cartazes, programas, conteúdos de site, jornais, revistas (MATTELART, 2004; STRAUBHAAR LAROSE, 2004).

Straubhaar e Larose (2004) mencionam que o setor da informação pode ser dividido em primário e secundário. O primeiro produz, processa e vende produtos e serviços de informação, enquanto no segundo, muitas empresas que não vendem informação produzem, processam e distribuem informação para seu próprio uso interno. Nesse sentido, o produto comunicacional pode destinar-se a diferentes públicos, que poderiam equiparar-se aos seus stakeholders. Portanto, uma organização da indústria da comunicação pode elaborar produtos comunicacionais para funcionários, clientes, fornecedores, comunidade e outros. A produção e circulação das formas simbólicas nas sociedades modernas é inseparável das atividades das indústrias da mídia. O papel das instituições da mídia é tão fundamental, e seus produtos se constituem em traços tão onipresentes da vida cotidiana, que é difícil, hoje, imaginar o que seria viver num mundo sem livros e jornais, sem rádio e televisão, e sem os inúmeros outros meios através dos quais as formas simbólicas são rotineira e continuamente apresentadas a nós (THOMPSON, 2000, p. 219).

Enquanto as empresas tradicionais usam a comunicação como instrumento mercadológico e institucional, as organizações da indústria da comunicação as têm também como produto. Portanto, o produto comunicacional é resultado do processo produtivo da indústria da comunicação. 12

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Gino Giacomini Filho É difícil um produto comunicacional atender a todos os gostos e expectativas, uma vez que precisa manter relações de significado com diferentes receptores e seus conteúdos precisam estar presentes na cultura ( JACKS, 2003); nesse sentido, precisa lidar com complexas responsabilidades sociais diante de interesses antagônicos.

Responsabilidade Social Organizacional e a indústria da comunicação

Convivem muitos conceitos para caracterizar a RSO, muitos deles contraditórios, até porque consiste em uma área que só recentemente tem recebido contribuições mais sistematizadas. No entanto, em função da sua importância estratégica e social, a área desenvolveu modelos e postulados que possibilitam empresários, acadêmicos, pesquisadores e cidadãos em geral lidar com ações socialmente responsáveis. Responsabilidade social organizacional é “relação ética e transparente da organização com todas as suas partes interessadas, visando o desenvolvimento sustentável”; assim define a norma brasileira ABNT 16001 (ABNT, 2004).

As partes interessadas estendem-se ao meio ambiente, trabalhadores, comunidade e os próprios componentes da gestão organizacional, caso de dirigentes e acionistas. As organizações devem reconhecer os direitos e interesses de vários stakeholders na RSO, ou seja: acionistas, empregados, clientes, credores, fornecedores, sindicatos, concorrentes, governo, comunidade e público em geral (SIMS, 2003; CARROLL BUCHHOLTZ, 2006). Porém, ser uma organização socialmente responsável é atuar eticamente de forma a cumprir suas atividades em diferentes esferas, caso da área ambiental, trabalhista, da saúde, educação, segurança, marketing, cultura, dentre outras. Portanto, duas estruturas são fundamentais para caracterizar a RSO, ou seja, quais as responsabilidades e em relação a quem. A primeira se refere ao objeto da responsabilidade, caso de ser responsável pela saúde, segurança, educação, inclusão social, transporte, alimentação, bens culturais, valores sociais legítimos, condições de trabalho, governança corporativa, concorrência justa, comunicação ética, sustentabilidade sócio-ambiental, interesse público, qualidade dos produtos, exercício de direitos e outras exMestrado de Comunicação - UFSM

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Produtos comunicacionais e a responsabilidade social na indústria da comunicação pectativas e necessidades das pessoas. A segunda reporta aos contingentes que afetam e são afetados por essas responsabilidades, ou seja, as partes interessadas, caso de clientes, funcionários, comunidade, proprietários, minorias, fornecedores, intermediários, parceiros, governo, sindicatos, mídia, concorrentes, meio ambiente e outros públicos interessados. (CERTO PETER, 1993; ABNT, 2004; MELO e FROES, 2001). Tais configurações podem ser resumidas em quatro grandes categorias: 1) Recursos humanos, 2) Institucional; 3) Sócio-ambiental; 4) Stakeholders (Tabela 1).

A indústria da comunicação também está afeita às responsabilidades sociais decorrentes de suas atividades.

A primeira abordagem reporta-se às responsabilidades que os profissionais ou dirigentes de comunicação devem assumir quanto ao conteúdo nas programações, acesso às informações e adequação aos valores sociais. Nesse sentido são clássicas as responsabilidades do jornalista para com a democracia, do publicitário para com o livre-mercado, ou ainda do radialista para com a liberdade de expressão. A segunda abordagem se refere às responsabilidades pelos efeitos de seus produtos comunicacionais, merecendo até instrumentos éticos de auto-regulamentação, códigos de conduta profissionais, legislação específica e mecanismos de controle social McQuail (1994) sugere que os principais postulados da teoria da responsabilidade social dos meios de comunicação de massa seriam: Obrigações da mídia e dos seus controladores para com a sociedade; Jornalismo verdadeiro, acurado e relevante; Mídia como fórum de idéias, auto-regulamentada, e, sob certas circunstâncias, enquadrada pela sociedade para servir ao interesse público. Segundo Bertrand (1999), o regime da responsabilidade social da imprensa mostraria que as organizações jornalísticas não seriam empresas 14

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Gino Giacomini Filho comerciais comuns, tendo que harmonizar lucros com atuação responsável perante os diversos grupos sociais, ou seja, responder às suas necessidades.

A comunicação pode representar os propósitos da organização, denotando a cultura organizacional, missão, objetivos e atividades de responsabilidade social. É sob a aprovação dos dirigentes (ou anunciantes) que promoções, anúncios, releases, comunicados, cartazes, publicações internas, folhetos e demais produções de comunicação são articuladas. A visibilidade que a comunicação social proporciona para que as instituições promovam marcas, produtos e idéias, também pode contribuir com as ações de responsabilidade social. Para Bueno: “A empresa ou entidade deve se pautar por uma comunicação verdadeira [...] A empresa ou entidade deve refletir, em sua comunicação, aquilo que ela realmente é [...] A transparência é a arma das organizações modernas, pois estabelece uma relação de confiança com os seus públicos” (2003, 12-13). Govatto compartilha de posição semelhante: “Para serem mais competitivas e conquistarem igualdade de condições no mercado, as empresas precisam rever suas atitudes, inclusive sua forma de se comunicar com seus públicos. A coerência entre o discurso e a prática das empresas deve ser entendida como necessidade de primeiro grau, visto que sua função, nos dias atuais, já não se concentra apenas em transmitir informações, mas em mudar comportamentos, impulsionando a organização em direção a suas metas” (2007, p. 65). Crowther sustenta que conforme o comportamento socialmente responsável é integrado às atividades corporativas, estas organizações podem ser ativas em comunicá-los. O autor exemplifica que a comunicação ambiental tem demonstrado intensificação em várias vertentes, inclusive na comunicação empresarial dirigida às partes interessadas.

SIMS (2003) defende a institucionalização do comportamento ético nas organizações em três eixos: Estabelecer o valor ético, Comunicar esse valor e Selecionar e Treinar empregados com esse valor na mente. Segundo o autor, uma organização precisa comunicar seus compromissos agregando valores éticos.

Crowther e Rayman-Bacchus[2] estabelecem alguns fatores que condicionarão o futuro da RSO, dentre eles a forma como as organizações de comunicam. Nesse sentido destaca que a comunicação com os stakeholders precisa ser transparente, ou seja, verdadeira, pertinente e acessível.

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Produtos comunicacionais e a responsabilidade social na indústria da comunicação Observa-se que o setor da comunicação no Brasil tem recebido diversos aprimoramentos quanto a uma atuação socialmente responsável no âmbito organizacional. Um dos trabalhos a ser destacado é o do Instituto Ethos (Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social) em parceria com a ANJ (Associação Nacional de Jornais) que, em 2008, estipulou os Indicadores Ethos-ANJ de Responsabilidade Social Empresarial para o Setor de Jornais (ETHOS-ANJ, 2008). No critério estabelecido, uma empresa jornalística pode estar em um dos quatro estágios em termos de RSO: Estágio 1 (ações apenas reativas às exigências legais), Estágio 2 (postura defensiva), Estágio 3 (atividades sustentáveis) e Estágio 4 (proatividade e padrões de excelência). Os atributos considerados são: Valores, Transparência e Governança; Público Interno; Meio Ambiente; Fornecedores; Consumidores e Clientes; Comunidade; Governo e Sociedade. Um caso que pode ser destacado é o do Grupo Estado, que mantém vários produtos comunicacionais: jornal O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, OESP Gráfica, OESP Mídia, Agência Estado, Estúdio Eldorado e a Rádio Eldorado. Anualmente emite o seu Relatório de Responsabilidade Corporativa. O relatório em sua versão de 2007 seguiu a versão G3 das diretrizes da GRI – Global Reporting Initiative - para avaliar o desempenho de sustentabilidade das suas atividades. Numa escala de A a C, o Grupo obteve C, o menor nível, mas compatível para empresas que iniciam o relato de acordo com esse modelo (GRUPO ESTADO, 2007).

Análise de conteúdo dos produtos comunicacionais: um estudo da Região do ABC

O contexto regional desta pesquisa é a região do ABC, conjunto de sete cidades – Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano, Diadema, Mauá, Riacho Grande e Rio Grande da Serra - que integram a região metropolitana de São Paulo. Segundo a Fundação Seade[3] do governo do Estado de São Paulo, a região do ABC possuía no ano de 2000 população de 2,4 milhões de habitantes, participação de 13,18% da indústria do estado de São Paulo e 5,79% do comércio em 1999 e, em função da elevada renda per capita (R$ 8.509,00 em 1999), apresentava boa oferta de serviços, como shoppings centers, supermercados, escolas e instituições financeiras. 16

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Gino Giacomini Filho A pesquisa de campo teve origem com o levantamento de todos os componentes da IC sediados na região do ABC, trabalho este finalizado em 15/04/2006 e, no qual foram desconsideradas as organizações que estivessem a menos de dois anos em atividade contínua.

O levantamento resultou em 364 organizações da indústria da comunicação, que foram contatadas no período de 2007 a 2008 por dois entrevistadores, momento em que muitas se tornaram inviáveis de serem visitadas, resultando 44 organizações que puderam atender aos requisitos e responder integralmente às questões, ou seja: 1 Emissora de Televisão, 2 Faculdades de Comunicação, 9 Empresas de Jornais, 2 Editoras de Revistas, 2 Assessorias de Comunicação, 3 Cinemas, 7 Teatros, 6 Gráficas, 3 Produtoras, 5 Agências de Publicidade e Promoção, 2 Emissoras de Rádio, 1 Estúdio de Fotografia e 1 Estúdio de Som (Tabela 2).

Durante a entrevista, os gestores foram abordados de forma a apontar iniciativas de sua organização em termos de RSO. Foram convidados a indicar o material de comunicação (produtos comunicacionais) que pudesse atestar iniciativas de RSO agregadas à organização a que pertenciam. Portanto, o conjunto de produtos comunicacionais estudados retrata uma escolha ou recomendação dos gestores entrevistados. 29 organizações apresentaram produtos comunicacionais que puderam ser analisados (Tabela 2), de forma que as demais (15), embora alegassem praticar RSO, não mostraram sequer parte dessas ações nos conteúdos comunicacionais (Tabela 3). Para verificar como as organizações contemplavam iniciativas de RSO em seus produtos comunicacionais, foi empreendida análise de conteúdo (BARDIN, 2004) que considerou as quatro categorias de RSO (Figura 1) e os tipos de produtos comunicacionais apresentados pelas organizações e categorizados da seguinte forma:

1) Peças promocionais impressas: Comunicação persuasiva veiculada em papel impresso, caso de folheto, cartaz e folder Mestrado de Comunicação - UFSM

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Produtos comunicacionais e a responsabilidade social na indústria da comunicação nico

2) Site: Páginas na internet acessíveis mediante endereço eletrô-

3) Peças institucionais: Informes ou documentos restrito ao público interno (mural, comunicados e documentos internos) e catálogos destinado ao público externo (catálogo, portfólio, guia). 4) Peças jornalísticas: Veículos e peças de linguagem jornalística tais como jornais, revistas e releases.

Considerou-se produto comunicacional os bens alinhados conceitualmente no referencial teórico (Item 2) e que tanto eram produtos próprios (caso de um jornal próprio de uma empresa jornalística) como produzidos para terceiros (caso de um anúncio produzido por agência sob encomenda de um anunciante). Cabe destacar que vários fatores podem ter evitado do gestor apontar produtos comunicacionais para análise, como comodismo, falta de tempo, insuficiência de material de comunicação. São limitações que explicam deficiências como ausência de peças de vídeo, áudio e até anúncios publicitários veiculados na mídia. Mas, as mesmas condições foram dadas a todos os respondentes, sem exceção.

A partir do conjunto de produtos comunicacionais apresentados pela organização, procurou-se alocar esses produtos nas quatro categorias de RSO de forma a não repetir, para cada organização, dois ou mais produtos numa mesma categoria de RSO. Portanto, um mesmo produto comunicacional poderia atender às quatro categorias de RSO, porém nenhum outro poderia ser considerado para quaisquer dessas categorias para a mesma organização, o que gerou uma decisão dos pesquisadores em seguir o critério da diversificação das peças nas categorias de RSO (Tabela 3).

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Gino Giacomini Filho A seguir, comenta-se genericamente o conteúdo observado em todas as organizações. Tal comentário terá efeito apenas indicativo, uma vez que será restrito a alguns produtos e categorias de RSO. Como boa parte dos entrevistados não autorizou a divulgação do nome das organizações, estas serão identificadas com o código “OIC” (Organização da indústria da comunicação) agregado com uma seqüência numérica.

OIC1 - Filial de TV a cabo; sustenta, em seu site, ser uma empresa comprometida com o desenvolvimento social do país e com a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos brasileiros. Destaca os projetos: inclusão digital, em que oferece seus serviços audiovisuais a mais de 80 instituições filantrópicas, escolas e outros; inclusão social, em que atende deficientes físicos; incentivo ao trabalho voluntário de seus colaboradores. Declara como parte de seus valores institucionais: trabalhar com a verdade e ética. Possui serviço de atendimento ao consumidor, que também é um elo para a campanha antipirataria. OIC2 - Instituição de ensino superior com curso de Comunicação Social que, de acordo com seus folhetos, promove diversos eventos abertos à comunidade interna e externa, além de projetos sociais que beneficiam alunos, funcionários, docentes e públicos em geral. Os alunos do curso de jornalismo, por exemplo, elaboraram um jornal impresso que trabalhou com vários assuntos de responsabilidade social, caso da edição de abril de 2007 que trouxe matéria acerca da coleta seletiva do lixo no ABC.

OIC3 - Instituição de ensino superior com curso de Comunicação Social que, em folhetos, folders e site, prevê como missão básica a ação educativa na construção da cidadania. Oferece vários programas sociais, dentre eles um que proporciona atividades esportivas para portadores de deficiência e para jovens carentes. Desenvolve ações favoráveis ao meio ambiente em que uma delas envolveu 450 alunos. Possui um Balanço Social de suas atividades. OIC4 - Empresa de comunicação que possui como destaque um jornal impresso, que tem trazido diversas matérias relacionadas à responsabilidade social, caso de informações para um melhor consumo, atividades culturais e esportivas da região, e mercado de trabalho. Uma de suas ações sociais mais visíveis é o suplemento dedicado aos bairros, em que abre espaço para os diversos problemas e realizações de diferentes localidades do ABC, além de possibilitar a manifestação de seus moradores em termos culturais, esportivos, sócio-ambientais dentre outros.  Dedicou um supleMestrado de Comunicação - UFSM

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Produtos comunicacionais e a responsabilidade social na indústria da comunicação mento inteiro aos portadores de deficiência física atribuindo um enfoque empreendedor para esse público.

OIC5 - Empresa jornalística cujo principal produto é o jornal impresso. O veículo retrata as sete cidades do ABC e traz em suas páginas assuntos relacionados à área de saúde, infra-estrutura, esportes, cultura e meio ambiente, dentre outros. Permite a participação de leitores no conteúdo editorial. A empresa possui gráfica que presta serviços, dentre eles a produção gráfica de uma revista sobre Meio ambiente, Inclusão Social e Consumo consciente vinculada a uma organização não governamental e impressa em papel reciclado.

OIC6 - Empresa jornalística que possui como destaque o jornal impresso. Em edições de 2007 foi possível constatar diversos assuntos ligados à responsabilidade social, como colunas e matérias abordando o meio ambiente, saúde da comunidade, empreendedorismo, cultura regional, serviços ao consumidor. E editoria Meio ambiente, por exemplo, abordou o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, edifícios ecológicos, licenciamento ambiental, consumidor ecológico, reciclagem do óleo comestível, dentre outros. OIC7 - Empresa jornalística que edita um jornal impresso, dedicado à cobertura do ABC. Oferece espaço para assuntos regionais, ambientais, culturais e esportivos. Há páginas especiais voltadas à responsabilidade sócio-ambiental, caso das referentes à Educação e Ecologia. No caderno de Ecologia e Meio ambiente foram veiculadas matérias como a que retratou uma ativista ambiental da região, uma apresentação do Greenpeace e um relato sobre a cidade de Ribeirão Pires em busca do desenvolvimento sustentável.

OIC8 - Empresa jornalística com várias publicações, com destaque a um jornal impresso. Traz conteúdos ligados à área da saúde, segurança, educação, meio ambiente, trabalho, cultura e prestação de serviços, caso de encarte sobre profissões e cursos para orientar estudantes. Possui uma seção de carta do leitor em que a comunidade pode expressar-se, além da editoria de cidades em que problemas e realizações nos bairros e localidades são apresentados.

OIC9 - Grupo de jornais que possui dois jornais impressos como carros-chefe, sendo um distribuído gratuitamente e outro com distribuição paga. Ambos abordam temas diversos, incluindo meio ambiente, educação, cultura, segurança pública, saúde e notícias locais. O primeiro, numa edição 20

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Gino Giacomini Filho de setembro de 2007, trouxe reportagem especial sobre o efeito da obesidade na qualidade de vida das pessoas, enquanto o segundo, em outubro, retratou a questão sócio-ambiental em relação à mudança no plano urbanístico de uma cidade do ABC. OIC10 - Empresa jornalística que edita um tablóide impresso. É um veículo voltado às questões que envolvam as sete cidades do ABC com forte linha editorial política. Na sua edição de dezembro de 2007 estampou assuntos como acessibilidade social, trabalho social voluntário e projetos de educação destinados ao adolescente tendo em vista suas perspectivas de emprego.

OIC11 - Empresa jornalística que edita veículo impresso. Conta com várias editorias, como na área de saúde, educação e cultura. Em uma edição de dezembro de 2007 retratou a balneabilidade de prainhas no entorno da represa Billings e dicas de cuidado com a manutenção do veículo antes de realizar uma viagem.

OIC12 - Grupo editorial que possui como destaque uma revista dedicada à região do ABC. A publicação tem como linha editorial o incentivo e divulgação das realizações de empresários, prefeituras e instituições da região. Na edição de agosto de 2007 trouxe matéria apresentando o projeto de inclusão artística-cultural de Mauá, além de outros assuntos, como as atividades do Centro de Defesa dos Direitos da Criança, também da cidade de Mauá. Concede prêmios na esfera sócio-ambiental, como o que homenageou mulheres dedicadas a trabalhos voluntários na região do ABC. OIC13 - Editora cujo produto destacado é a revista focada no ramo automotivo. Embora com forte conteúdo comercial, é distribuída gratuitamente e desenvolve temas de prestação de serviços para usuários e proprietários de veículos, caso de matéria sobre uma transportadora e seu empenho em zelar pela segurança do passageiro e dos condutores, além de uma coluna em que há orientações para a condução de cargas perigosas. A editora publica também diversos livretos educativos destinados a crianças.

OIC14 - Assessoria de comunicação com clientes regionais. Dentre seus clientes, há uma associação que trabalha em prol da melhoria das condições de tratamento e atendimento ao câncer infantil conforme detalha um de seus releases.

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Produtos comunicacionais e a responsabilidade social na indústria da comunicação OIC15 - Empresa dedicada à comunicação empresarial que, segundo seu site, assessora empresas e oferece programas de treinamento na área de comunicação. Tem atendido vários clientes, caso de instituições beneficentes e filantrópicas.

OIC16 - Cinema comercial com diversas salas para exibição de filmes. Como informa seu folheto promocional, possui bilheterias informatizadas e horários diferenciados para atender ao público e lidar com a segurança dos espectadores. Oferece descontos de vários tipos, como a idosos, menores, estudantes, inclusive a trabalhadores nas segundas-feiras. Estipula conduta para seus freqüentadores a fim de possibilitar um conforto coletivo durante as exibições. OIC17 - Cinema comercial pertencente a uma rede internacional. Dedica parte de suas salas à exibição de cinema nacional, inclusive com preço menor. Mantém no interior de suas dependências cartazes para incentivar o bom comportamento das pessoas no recinto a fim de proporcionar bem-estar aos espectadores. Segundo documento interno, possui política de avaliação periódica dos seus funcionários principalmente para aperfeiçoar a conduta e o atendimento ao público. Distribui um tablóide em que apresenta os títulos dos filmes em exibição e traz informações históricas sobre a empresa e o cinema mundial.

OIC18 - Teatro sediado em centro cultural. Seus catálogos e folhetos informam que, além de peças teatrais, oferece seu espaço para atividades culturais gratuitas tais como dança, workshop e projetos educacionais. Recebe doações para campanhas sociais, caso da doação de livros para a biblioteca municipal. Uma das peças exibidas é o Teatro do Lixo, com elenco de 25 pessoas, que enfatiza temas como educação ambiental, coleta seletiva, reciclagem e o “lixo social”.

OIC19 - Teatro abrigado em uma fundação (autarquia municipal). Verificam-se em seus catálogos, folhetos e folders que o teatro, por meio de seus diversos Núcleos, tem produzido peças e apresentado espetáculos com músicas clássicas e populares de forma gratuita. Serve como escola de teatro visando principalmente crianças e jovens. Faz parcerias com outras instituições culturais e educacionais para promover eventos, encontros e workshop, caso dos que trataram dos temas Sala de aula e Linguagem do teatro para o público em geral. OIC20 - Teatro municipal que, segundo catálogos e folhetos, está voltado para a formação teatral lastreado no programa Cultura Viva do 22

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Gino Giacomini Filho Ministério da Cultura. Oferece oficina de teatro, cursos, dança, música e várias atividades gratuitamente. Exibe peças e realiza mostras de teatro, inclusive dedicadas à arte e criação infantil. Compartilha de um projeto que realiza ações sócio-ambientais no entorno da represa Billings.

OIC21 - Teatro vinculado a uma prefeitura do ABC. Segundo o guia cultural da prefeitura, tem apresentado várias peças dedicadas ao público infantil, ambientado trabalhos musicais e oficinas culturais. Segundo o folheto, o teatro oferece um projeto no período de férias escolares em que o elenco de atores, transportado num caminhão, percorre os bairros da cidade para oferecer espetáculos gratuitamente, como registra o folheto promocional. OIC22 - Empresa dedicada a serviços gráficos. Um de seus trabalhos é uma série de folhetos e folders que promovem serviços de um hospital de cunho filantrópico, além de atividades de cunho social para os públicos de interesse dessa mesma instituição hospitalar sediada no ABC.

OIC23 - Produtora de eventos que fornece equipamentos (fotografia, sonorização, projeção) e serviços para confecção de vídeos, áudios e imagens. Também segundo seus folhetos, organizou e ajudou a organizar diversos eventos sociais, artísticos, culturais e esportivos, muitas vezes com parcerias com entidades públicas e privadas.

OIC24 - Agência de propaganda que tem como meta atender os clientes de forma personalizada e com grau de excelência conforme se verifica em seus folhetos. Faz trabalhos institucionais, caso de um programa que objetivou melhorar o clima de trabalho em uma empresa: melhorar o trabalho do funcionário, melhorar a empresa e a comunidade. OIC25 - Agência de publicidade que estipula, em folhetos promocionais, missão de atender plenamente os clientes na área de comunicação visual e propaganda. Seu site abre espaço para manifestação dos clientes e consumidores.

OIC26 - Agência de comunicação que presta serviços notadamente na área de promoção e propaganda. Seu site enfatiza ter a agência atuação direcionada a satisfazer e superar as expectativas dos clientes. Tem elaborado diversas campanhas sociais, como a que incentivou a coleta responsável e seletiva de entulhos. OIC27 - Agência de propaganda que, segundo seu catálogo, está voltada para atender plenamente seus clientes e solucionar seus problemas Mestrado de Comunicação - UFSM

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Produtos comunicacionais e a responsabilidade social na indústria da comunicação de comunicação. Um de seus trabalhos a ser destacado refere-se ao catálogo elaborado para uma consultoria ambiental que, dentre vários serviços, oferece consultoria para licenciamento ambiental e avaliação de riscos ambientais.

OIC28- Emissora de rádio comunitária, cujo propósito comunitário proporciona elevado percentual de apresentadores voluntários. Segundo informativo interno, possui como uma das políticas internas estabelecer diretrizes para que seus locutores e colaboradores façam programas afinados com o interesse da comunidade e consigam a colaboração de empresas e pessoas para conteúdos dos programas e verbas para a emissora. Estabelece, na forma de mural, um código de conduta para seus locutores, que fica afixado no interior da emissora. OIC29 - Emissora de rádio comunitária vinculada a uma associação cultural. Conforme se constata em um folheto, sua grade de programação inclui conteúdos religiosos, musica regional, atrações culturais locais e espaço para que os ouvintes da comunidade se manifestem (linha aberta), além de oferecer premiações aos participantes, caso do prêmio atribuído ao estudante que apresentou trabalho ecológico sobre envolvendo o Pólo Petroquímico de Mauá e que está afixado na forma de mural; sugere aos apresentadores, em um mural, informar aos ouvintes que não realiza ações que infrinjam os direitos autorais ou se configurem como pirataria. A análise de conteúdo não permite um tratamento quantitativo devido ao número limitado de organizações e peças apresentadas.

Mas, em termos qualitativos, mostra conteúdos de RSO diversificados que afetam ou estão vinculados a interesses específicos de cada organização ou trabalho comunicacional. Apontam larga abrangência do campo da RSO e inserção significativa dos fatores de RSO nos produtos comunicacionais. Embora não se possa quantificar o grau de envolvimento da indústria da comunicação com conteúdos de RSO, indicam os resultados que a IC, de certa forma, está sintonizada com a demanda social por melhores condições da qualidade de vida para com a coletividade.

Ou seja, embora a sociedade tenha a expectativa de ser bem servida pelos produtos comunicacionais – informação, entretenimento, inovação - espera também que contemplem os princípios e ações da RSO, o 24

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Gino Giacomini Filho que parece ocorrer, mesmo que de forma parcial, no âmbito da indústria da comunicação, conforme o resultado apurado.

A análise dos produtos mostra que, consciente ou inconscientemente, os profissionais de comunicação oferecem à sociedade espaço para a RSO, o que pode legitimar o setor que historicamente tem sido alvo de críticas por estar divorciado do interesse social, pelo menos em parte.

Na análise de conteúdo elaborada, não se verificou com intensidade a citação explícita da responsabilidade social, mas os conteúdos apurados revelam sua presença em peças jornalísticas, promocionais e institucionais.

Considerações finais

A responsabilidade social corporativa está incorporada na indústria da comunicação, quer na sua gestão ou na forma de produtos comunicacionais. No primeiro caso, manifesta-se quanto às responsabilidades que os meios assumem ao veicular e transmitir conteúdos que afetam a vida de muitas pessoas, responsabilidades que são clássicas e vêm sendo aprimoradas ao longo das últimas décadas. Ainda no primeiro caso, observa-se o surgimento da responsabilidade social corporativa na gestão da indústria da comunicação, contexto em que foram recentemente adotados parâmetros para orientar as empresas de comunicação a conduzir práticas e modelos de RSO, caso das orientações propostas pelo Instituto Ethos e a ANJ para os jornais.

No segundo caso, constata-se que os produtos comunicacionais também externam os valores éticos das organizações comunicacionais, algo que também abarca os valores de RSO. Estar em sintonia com as aspirações e necessidades da sociedade e públicos significa que as organizações da indústria da comunicação precisam contemplar nos produtos próprios ou produzidos para terceiros os elementos de RSO. Essa é uma condição essencial para que a indústria da comunicação seja percebida como socialmente responsável.

Os resultados observados com as organizações da IC na região do ABC mostram que o setor encampa nos seus produtos comunicacionais parte de fatores de RSO, ou seja, os assuntos de RSO voltados aos recursos humanos, esfera institucional, aspectos sócio-ambientais e stakeholders Mestrado de Comunicação - UFSM

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Produtos comunicacionais e a responsabilidade social na indústria da comunicação estão consideravelmente presentes em peças promocionais impressas, sites, peças institucionais e peças jornalísticas. Face ao número limitado de organizações e de produtos comunicacionais indicados por gestores das organizações pesquisadas, não é viável conceber tratamento estatístico, nem comparativo ou passível de uma descrição objetiva, algo que também impede a generalização dos resultados.

Nesse sentido, seriam necessárias pesquisas mais aprofundadas, com maior número de organizações e uma abrangência maior de produtos comunicacionais para resultados mais representativos a fim de oferecer indicadores mais precisos sobre o grau de envolvimento da indústria da comunicação, via produtos comunicacionais, com os postulados da RSO. A indústria da comunicação exercita os elementos de RSO não de forma ostensiva ou formal, mas diluída no contexto de suas ações e produtos, algo que talvez possa ser desconhecido do grande público e até dos que atuam na área, o que incentiva o setor a dimensionar melhor esse esforço e, se for o caso, trabalhá-lo para melhor se posicionar na opinião publica.

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Notas

Este artigo é resultado de pesquisa desenvolvida junto ao Programa de Mestrado em Comunicação da USCS, São Caetano do Sul, e teve como alunos colaboradores Marcela Suemi Komoto de Miranda Pinto, Valdejane Leonilo Bezerra e Caio Bruno Siqueira de Paula. [2] CROWTHER, David; RAYMAN-BACCHUS, Lez. The future of corporate social responsibility. In: Perspectives on corporate social responsibility. CROWTHER, David; RAYMAN-BACCHUS, Lez (Orgs). Hants/England: Aldershot Publishing, 2004, p. 229-249. [3] Seade – Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados. ABC: principal pólo de indústria automotiva no Mercosul. São Paulo: Governo do estado de São Paulo. Disponível em: http://www.seade.gov.br. Acesso em 5/12/2004. [1]

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Os sites organizacionais:

Características e transformações no

contexto das organizações privadas Fabiane Sgorla Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) E – mail: [email protected] Maria Ivete Trevisan Fossá Professora do Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFSM e do Programa de Pós – Graduação em Administração da UFSM. Doutora em Administração pela UFRGS.

Resumo: Os sites organizacionais são considerado hoje espaços midiáticos importantes na comunicação de variadas organizações. Sob essa perspectiva, o objetivo deste artigo é observar os sites de organizações privadas do setor calçadista a partir de uma apreciação comparativa com a evolução dos sites noticiosos – baseada nas fases do webjornalismo. Palavras-chave: organizações privadas; comunicação organizacional; Internet; sites organizacionais; webjornalismo Abstract: Nowadays, the organizational websites are considered the main media space for communication purposes in several organizations. From this perspective, this article proposes to observe the shoe sector private companies’ websites, comparing their evolution with the one of news websites, taking as a reference the progressive stages of webjournalism. Keywords: private companies; organizational communications; Internet; organizational websites; webjournalism Resumen: Los sitios organizacionales son considerados hoy como importantes espacios mediaticos para la comunicación en organizaciones variadas. Desde esta perspectiva, el articlo propone observar los sitios de las organizaciones privadas del sector de zapatos apartir de una comparación con la evolución de los sitios de noticias – basados en las fases del periodismo digital. Palabras-clave: organizaciones privadas; comunicación organizacional; Internet; sitios organizacionales; periodismo digital

Os sites organizacionais

Apresentação

Os processos de globalização, concomitantes ao desenvolvimento de novas tecnologias, têm ampliado as possibilidades de utilização da comunicação midiática no cotidiano de diferentes setores sociais. Suportes tecnológicos como os da Internet estão sendo considerados hoje como os relevantes artifícios para a realização da comunicação, seja no trabalho, na universidade, na biblioteca, no lazer e até no ambiente familiar.

No contexto das organizações privadas, os mecanismos da Internet[1] vêm redimensionando a comunicação organizacional em seus vários âmbitos. Atualmente, os sites organizacionais, que operam por meio do sistema Web[2] – alocado na Internet, são tidos como espaços midiáticos importantes para os processos comunicativos dessas organizações. Neles as organizações tornam visíveis suas questões institucionais, administrativas e/ou mercadológicas e interagem com o público.

Nesse ângulo, este artigo propõe refletir sobre a presença das organizações privadas no contexto do sistema Web através da edificação dos sites organizacionais. Para tanto, esta proposta discute acerca dos sites organizacionais a partir de um paralelo com a evolução dos sites noticiosos. A opção por essa forma de estudo se justifica pelos avanços das teorizações da categoria do webjornalismo (jornalismo na Web, jornalismo digital ou jornalismo on – line) e suas respectivas gerações. Como forma de ilustração do referido paralelo são apresentados exemplos de sites organizacionais de organizações privadas ligadas ao setor calçadista brasileiro. A idéia dessa apreciação comparativa surgiu durante encontro da linha de pesquisa “Estratégias comunicacionais e mídia” do Mestrado em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria e do Grupo de Pesquisa Comunicação Institucional e Organizacional UFSM/ CNPq. No mesmo sentido deste artigo, outros trabalhos teóricos, metodológicos e empíricos estão sendo desenvolvidos pelos demais pesquisadores participantes do citado Grupo de Pesquisa. Logo, as elucidações destacadas aqui podem colaborar com esses estudos em andamento e com outras investigações recorrentes nas áreas da comunicação organizacional e das Relações Públicas.

O artigo está dividido em três partes principais. Primeiramente, são feitas considerações sobre a caracterização das organizações privadas e a comunicação organizacional. O segundo tópico trata de situar as orga30

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Fabiane Sgorla nizações privadas no contexto da utilização dos sites em seus processos de comunicação. Na terceira parte são abordadas algumas das tipificações dos sites organizacionais tendo por base as características dos sites noticiosos incidentes em cada geração do webjornalismo.

A comunicação no contexto das organizações privadas

Segundo o pesquisador Amitai Etzioni (1980, p. 9) “as organizações são unidades sociais, intencionalmente construídas e reconstruídas a fim de atingir objetivos específicos”. Quanto mais desenvolvida for uma sociedade, maior é a necessidade da existência de organizações, pois estas são as responsáveis pela transformação, aprimoramento e produção de conhecimento. As origens e evolução das organizações, como atores sociais coletivos, fundamentam – se também na natureza humana. O homem nasce e passa a maior parte de seus dias em contato com os mais diferentes tipos de organizações. É a partir das organizações que o homem supre as suas necessidades básicas, sociais, culturais e de qualidade de vida. Elas existem em torno de aglomerados humanos, tanto os satisfazendo, quanto sendo satisfeitas por eles.

As organizações podem ser pensadas como um conjunto de indivíduos e que se manifestam através de comportamentos adquiridos e transmitidos ao longo do tempo. Os indivíduos atuam de modo interdependente dentro desses sistemas que são abertos, relativamente estruturados e organizados para atingir objetivos comuns, tendo em vista a satisfação de necessidade das sociedades – necessidades naturais ou estimuladas. A organização de caráter privado, organização privada ou com fins lucrativos, apresenta o lucro financeiro como principal objetivo. Desse modo, toda a atividade executada por uma organização privada, em seus vários departamentos – dos mais simples aos mais complexos – visa, de modo implícito explícito, a contrapartida financeira. Como exemplos de organizações privadas estão as organizações brasileira do setor calçadista.

Atualmente, são inúmeras as organizações privadas, cada qual dotada de características próprias, perseguindo sua própria missão, valores, visão e objetivos. Porém, independente de suas peculiaridades estratégicas e operacionais, as organizações não se fundam como unidades prontas, feMestrado de Comunicação - UFSM

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Os sites organizacionais chadas ou acabadas. As organizações são sistemas vivos, abertos, mutantes e competitivos e possuem uma necessidade iminente de se tornarem visíveis, terem sua existência reconhecida e de realizarem relações, intercâmbios, trocas e interações, internas, com seus públicos. E, são essas relações, intercâmbios, trocas e interações desencadeadas através dos processos de comunicação organizacional, que garantem a sobrevivência às organizações. A comunicação organizacional é o processo que viabiliza o fluxo de informações para a sobrevivência da organização. Essas informações organizacionais podem ser de cunho produtivo, administrativo, cultural, social, financeiro, jurídico, tecnológico, humano e todo o tipo de informações necessárias para a manutenção e evolução de uma organização. Nessa conjuntura, cabe à comunicação organizacional, além da manutenção do fluxo de informação, a administração das melhores formas de se comunicar em cada meio em que está inserida a organização. O processo comunicativo organizacional necessita produzir reflexos positivos diante de todos os públicos da organização, para que ela se desenvolva.

Ao estudar os processos de comunicação no contexto das organizações, Margarida Kunsch salienta que “[...] o sistema organizacional se viabiliza graças ao sistema de comunicação nele existente, que permitirá sua contínua realimentação e sua sobrevivência” (2003, p.69). A pesquisadora afirma que se a organização não desenvolver a comunicação, entrará em entropia e morte, por isso a comunicação é imprescindível para uma organização. De modo geral, a comunicação organizacional compreende todo o espectro de processos e atividades comunicacionais que se realizam no âmbito da organização. Entre as várias vertentes que a comunicação organizacional pode assumir, Kunsch observa que ela,

busca compreender todo o sistema, funcionamento, processos, fluxos, redes, barreiras, meios, instrumentos, níveis de recepção da comunicação que é gerada no dia – a – dia da vida organizacional e as implicações que estão imersas nesse contexto. Analisa ainda as manifestações e expressões discursivas que se configuram nas diferentes modalidades comunicacionais para se relacionar com os agentes com grupos internos e externos da organização, isto é, os públicos, a opinião pública e a sociedade [...] (KUNSCH, 2003, p.113) 32

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Fabiane Sgorla De acordo com Wilson da Costa Bueno (2003), a comunicação organizacional, chamada pelo autor como comunicação empresarial, pode ser tipificada a partir de um insumo estratégico e caminha para assumir, por inteiro, a perspectiva da chamada “comunicação integrada”. Essa conjuntura salienta uma articulação estreita entre os vários departamentos e profissionais que exercem atividades de comunicação nas organizações.

Em seus estudos sobre a “comunicação integrada”, Kunsch (2003) a divide em: “comunicação administrativa” – que se processa na ordem das ações administrativas e permite viabilizar a sistemática funcional da organização, a “comunicação mercadológica” – voltada ao marketing de negócios, e “comunicação institucional” – responsável pela construção da imagem e da identidade de uma organização. Bueno (2003) acredita que no cenário da comunicação organizacional integrada, as ações devem ser pensadas a partir de uma política comum, com valores, princípios e diretrizes que se mantenham íntegros e consensuais para as diversas formas de relacionamento com os públicos. Assim, “[...] as vertentes institucional e mercadológica deixam de ser percebidas como distintas porque são umbilicalmente associadas ao negócio, a visão e a missão da organização” (BUENO, 2003, p.8). Para o autor, isso acarreta economia de recursos e de esforços e contribui para a consecução do que devem ser os objetivos maiores da organização: aumentar a vantagem competitiva da organização face seus concorrentes e consolidar sua imagem, ou reputação, perante a opinião pública. No panorama das organizações privadas, as estratégias da comunicação organizacional são pensadas tendo em vista, principalmente, a necessidade que a organização possui de obter lucro. Frente a isso, são estipulados os mais variados artifícios para estimular e organizar a comunicação nas organizações, seja através de espaços midiáticos ou mesmo no âmbito face – a – face.

Sites organizacionais

As tecnologias de comunicação e informação, especialmente as tecnologias digitais ligadas à Internet, estão se inserindo cada vez mais no contexto das organizações privadas, modificando os processos de comunicação organizacional. Segundo Bueno (2003, p. 60) “a introdução das novas tecnologias no quotidiano das organizações têm provocado mudanMestrado de Comunicação - UFSM

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Os sites organizacionais ças formidáveis no processo de gestão e, particularmente, nos processos comunicacionais”.

Hoje, os sites organizacionais são tidos como espaços midiáticos estratégicos em que as organizações buscam visibilidade e a interação com seus públicos. Segundo Cleusa Maria Andrade Scroferneker, o uso da Internet pelas organizações passou a representar a possibilidade de relações com seus diversos públicos. Nos sites as organizações se apresentam, ser tornam ‘visíveis’, se dão a conhecer. Preocupam – se com o seu conteúdo, mas também com a forma como este é apresentado, buscando atender aos diferentes perfis de seus usuários (2005, p.1).

Cada organização privada utiliza as estruturas e estratégias dos sites organizacionais de acordo com seus objetivos de comunicação, tanto ao encontro da “comunicação institucional”, quanto ao encontro da “comunicação mercadológica”. Quando a prioridade do site é a “comunicação institucional” são divulgadas nele informações referentes à postura organizacional e os conteúdos abordados podem apresentar aspectos acerca do histórico da organização, missão, visão, endereços, número de colaboradores, produção anual, vagas de trabalho, eventos, responsabilidade social, relatórios financeiros, balanços anuais, entre outros. Já quando a prioridade é a “comunicação mercadológica”, os sites organizacionais são utilizados como instrumento de publicidade e, em alguns casos, servindo de apoio a campanhas de marketing de produtos que se iniciam em outros meios de comunicação de massa ou mídias organizacionais. Servem ainda como espaços onde os clientes e consumidores realizam compras ou tiram suas dúvidas a respeito de produtos ou serviços que lhes interessam A popularização na utilização dos espaços midiáticos dos sites pelas organizações privadas tornou possível perceber notáveis evoluções. Essas evoluções se dão até hoje, tendo em vista tanto o diagnóstico de novas necessidades por parte das organizações para o relacionamento com seus públicos, quanto pelo desenvolvimento de novas tecnologias e técnicas relacionadas à Web.

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Fabiane Sgorla

Um paralelo entre as características dos sites organizacionais e os sites noticiosos

Para reconhecer as características e evoluções dos sites organizacionais faz – se uma comparação de suas estruturas e estratégias com as estruturas e estratégias dos sites noticiosos, os quais são vistos a partir das gerações do webjornalismo estudadas por Mielniczuk (2003) e Barbosa (2006). Enquanto os sites organizacionais são criados e gerenciados pelas organizações, no caso deste estudo das organizações privadas, os sites noticiosos são aqueles em que os conteúdos dispostos são estritamente de caráter jornalístico.

Os sites noticiosos são gerenciados pelas chamadas empresas de comunicação ou veículos de comunicação como jornais impressos, revistas, agências de notícia, entre outros. Todavia, na concepção do pesquisador Pedro Gilberto Gomes (2004), as empresas de comunicação são, ao mesmo tempo, organizações que exercem um bem público e têm fins comerciais. “Essas duas dimensões convivem dialeticamente e condicionam – se reciprocamente, fazendo com que seus processos internos sejam extremamente complexos” (GOMES, 2004, p.21). Com o objetivo de ilustrar a discussão proposta neste artigo são apresentados a seguir exemplos de sites organizacionais de organizações privadas brasileiras ligadas a um único setor produtivo – o setor calçadista. Esta pesquisa foi realizada no mês de abril de 2008.

Primeira Geração

A primeira configuração do jornalismo no sistema www aparece a partir da reprodução em formato digital de partes dos jornais, tal como eram apresentados na modalidade impressa. A atualização do material publicado era feita de acordo com o fechamento de novas edições dos jornais. Se o jornal fosse diário, a atualização se dava a cada 24 horas. Nessa primeira geração do webjornalismo não foi possível sinalizar inovações no conteúdo ou estrutura e linguagens dos textos publicados pela imprensa. Como salienta Mielniczuk “a disponibilização de informações jornalísticas na Web fica restrita à possibilidade de ocupar um espaço sem explorá – lo, enquanto um meio que apresenta características específicas” (2003, p. 32). As rotinas de produção do jornalismo também não apreMestrado de Comunicação - UFSM

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Os sites organizacionais sentavam influências pelas peculiaridades sociotécnicas da Internet nessa fase.

Tal como ocorria nos sites noticiosos, as primeiras estruturas de sites organizacionais se caracterizavam pela cópia dos materiais impressos de divulgação das organizações. Se o objetivo da organização era valorizar sua “comunicação mercadológica”, os sites eram utilizados para dar visibilidade às marcas e características dos produtos ou serviços oferecidos. Isso se dava através da reprodução de peças publicitárias (por exemplo, folder, mala – direta, outdoor), fotografias dos produtos, entre outros. De outro modo, se o objetivo era a “comunicação institucional”, o site era utilizado para a reprodução digital de publicidade organizacional impressa como, por exemplo, cartões de visita (com endereço e telefones). Pode – se ainda observar textos que apresentam descrições sumárias sobre a organização (histórico, missão, visão, valores, metas, organograma) e imagens de brasões ou logomarcas organizacionais. Todo o conteúdo era apresentado de forma estática e sua atualização era aleatória. A Figura 1 de um site de uma organização privada do setor calçadistas ilustra as características descritas anteriormente.

Figura 1 – Site da organização Daiby S.A. fabricantes de calçados da marca Daiby. Fonte: Site da organização Daiby S.A.. Disponível em: . Acesso em: 25 de abril de 2008.

Segunda Geração

A segunda geração do webjornalismo surge no fim da década de 90. De acordo com Mielniczuk (2003), nessa época começam a ocorrer 36

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Fabiane Sgorla os primeiros ensaios para a formação de produtos jornalísticos específicos para os sites noticiosos, na tentativa de explorar as singularidades prometidas pela comunicação em rede.

Ao mesmo tempo em que se ancoram no modelo do jornal impresso, as publicações para a Web começam a explorar as potencialidades do novo ambiente, tais como links com chamadas para notícias de fatos que acontecem no período entre as edições; o e – mail passa a ser utilizado como uma possibilidade de comunicação entre jornalista e leitor ou entre os leitores, através de fóruns de debates e a elaboração das notícias passa a explorar os recursos oferecidos pelo hipertexto. A tendência ainda é a existência de produtos vinculados não só ao modelo do jornal impresso enquanto produto, mas também às empresas jornalísticas cuja credibilidade e rentabilidade estavam associadas ao jornalismo impresso. (2003, p. 34)

O avanço das tecnologias permite que os sites noticiosos ampliem seus recursos com a apresentação da “barra de navegação”, a qual apresentava uma espécie de menu (cardápio ou índice) de links. O link compreende a estrutura de disposição de conteúdos, característica do meio digital. A lógica de funcionamento do link está baseada no hipertexto. “A organização da informação, qualquer que seja a sua natureza, acontece na Web através do hipertexto, que são arquivos interconectados” (MIELNICZUK, 2003, p.94). O hipertexto é caracterizado pela apresentação dos conteúdos a partir de três linguagens – verbo, imagens e som.

Um link é sinalizado, por exemplo, através de uma palavra ou imagem destacada, a qual possibilita a entrada em outros textos ou site que contém conteúdos relacionados. Dessa forma, as operações possíveis através do link consentem uma leitura fragmentada, não – linear ou multilinear por parte do visitante do site. Cada visitante faz seu próprio caminho, não seguindo uma seqüência previsível.

Na mesma época em que se concretiza o webjornalismo de segunda geração, as organizações iniciam um processo de assimilação do link e o hipertexto em seus sites. A home page[3], ou página de abertura do site organizacional, traz um cardápio com links que possibilitam o ingresso a uma gama de diferentes conteúdos acerca da organização. Assim, os objetivos estratégicos das organizações, tanto de promover comercial de produtos e serviços, quanto de promover a visibilidade do sistema organizacional, passaram a ocupar o mesmo espaço midiático. Mestrado de Comunicação - UFSM

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Os sites organizacionais A possibilidade do e – mail amplia o relacionamento da organização com seus públicos. A rapidez e facilidade na transmissão de informações criam novas oportunidades de interação, estratégia visivelmente limitada nos demais meios de comunicação organizacional. Os links intitulados “Fale Conosco”, “Críticas e Sugestões”, “Tira Dúvidas”, “SAC” (Serviço de Atendimento ao Consumidor) geralmente apresentam um endereço de e – mail para que os clientes ou consumidores entrem em contato com a organização.

Outros exemplos de títulos de links que começam a surgir são: “A empresa” – detalhando o contexto da organização, “Trabalhe conosco” – possibilidade de envio de currículo por e – mail ou cadastro, “Nossos Produtos” – imagens e descrições sobre os produtos ofertados, “Vendas” – locais e modos de realizar a compra de produtos ou contratação de serviços e o link “Notícias” – composto por textos de caráter jornalístico acerca de fatos organizacionais. A atualização dos conteúdos publicados nos sites organizacionais, que se comparam a segunda geração dos sites noticiosos, é mais freqüente, principalmente nos espaços em que são visíveis as notícias. No exemplo do site abaixo se constata a presença de vários link, com conteúdos que apresentam diferenciados objetivos.

Figura 2 – Link “Empresa” do site da organização Crysalis Sempre Mio Indústria e Comércio de Calçados, fabricante dos calçados da marca Crysalis. Fonte: Site da organização Crysalis Sempre Mio Indústria e Comércio de Calçados. Disponível em: . Acesso em: 20 de abril de 2008.

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Fabiane Sgorla

Terceira Geração

A terceira geração do webjornalismo é marcada pela exploração e aplicação dos mais variados mecanismos potenciais da Web, com ênfase aos recursos de hipermídia (verbo, som e imagem). Nesse momento, concretizam – se iniciativas específicas do jornalismo digital, através das imbricações das peculiaridades sociotécnicas da Internet nas condições de produção dos discursos jornalísticos. Os sites noticiosos passam a apontar um setor específico para o leitor fazer dounwload das edições do jornal impresso e outro setor específico para o webjornalismo com todas suas especificidades. Cristalizam – se nessa fase, as características mais evidentes do sistema em rede como fonte de notícias – a possibilidade da publicação da notícia em “tempo real” e em um fluxo contínuo.

Nesse estágio, entre outras possibilidades, os produtos jornalísticos apresentam recursos em multimídia, como sons e animações, que enriquecem a narrativa jornalística; oferecem recursos de interatividade, como chats com a participação de personalidades públicas, enquetes, fóruns de discussões; disponibilizam opções para a configuração do produto de acordo com interesses pessoais de cada leitor/usuário; apresentam a utilização do hipertexto não apenas como um recurso de organização das informações da edição, mas também começam a empregá – lo na narrativa de fatos. (MIELNICZUK, 2003, p.36) Na terceira geração para os sites organizacionais, as principais características do sistema Web já estão diagnosticadas e reconhecidas pelas organizações privadas. As organizações se sentem preparadas para elaborarem estratégias de comunicação exclusivas para serem aplicadas nesses espaços midiáticos. A maioria dos conteúdos passa a ser desenvolvida unicamente para a publicação nos sites. Nessa fase, os links e o hipertexto são empregados com profundidade nas estruturas dos sites organizacionais e os recursos de som e imagem são densamente apropriados, proporcionando maior complexidade ao conteúdo exposto. Destacam – se os links que disponibilizam, por exemplo, os “Vídeos organizacionais” – que apresentam o resumo sobre a organização e “Visitas virtuais”. Além disso, verifica – se a valorização da transmissão

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Os sites organizacionais de cerimoniais e eventos organizacionais ao vivo, a possibilidade de se fazer download de informativos internos, balanço social, comercias produzidos para programas de rádio ou televisão, banners, músicas, álbum de fotografias, entre outros.

Figura 3 – Home page do site da organização Kidy Birigui Calçados Indústria e Comércio LTDA. fabricante dos calçados da marca Kidy. Fonte: Site da organização Kidy Birigui Calçados Indústria e Comércio LTDA. Disponível em: . Acesso em: 24 de abril de 2008.

Fase de transição da Terceira para a Quarta geração

A partir da configuração das três gerações do webjornalismo estudadas por Mielniczuk (2003), Barbosa (2006) discute a fase intermediária, da terceira para a quarta geração. Barbosa (2006, p.149) considera dois aspectos – chave desse momento: o jornalismo participativo e o paradigma do Jornalismo Digital por Base de Dados ( JDBD)[4]. Nos últimos cinco anos, foi possível observar que as tecnologias de Internet passaram a ser utilizadas com prioridade na busca de um relacionamento de proximidade entre “proprietários e os usuários”, a fim de potencializar a interação: [...] nas estratégias para atrair a participação dos usuários para a criação de conteúdos, nos investimentos em software que habilitam poderosas ferramentas de publicação

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Fabiane Sgorla para também permitir a produção de conteúdos originais, o uso do vídeo, áudio, de ilimitadas bases de dados [...] (BARBOSA, 2006, p.148)

O jornalismo digital motiva o desenvolvimento de um processo em que a comunicação entre pontos rígidos emissor – receptor é quebrada e as funções, tanto do jornalista quanto do leitor, sofrem mutações. Surgem os “repórteres cidadãos” como indivíduos que se ocupam de certas tecnologias de comunicação e informação, até então exclusivas do campo do jornalismo, para participar da produção de notícias na Web.

A aproximação entre “proprietário e os usuários” permite que eles se conheçam mutuamente. Desse modo, outro destaque dessa fase é o desenvolvimento de produtos jornalísticos específicos para cada usuário e, além disso, a implementação da publicidade dirigida nos espaços dos sites noticiosos. A possibilidade de produtos dirigidos a cada público também passa a ser relevantes nos sites organizacionais mais atuais. De acordo com o perfil de usuário, cartografado a partir de dados de cadastro ou escolhas por links e registradas em visitas anteriores aos sites organizacionais, as organizações constroem a publicidade digital dirigida. Essa modalidade de publicidade pode ser enviada por e – mail ao público específico ou ser disposta em espaços restritos nos sites organizacionais, em que o usuário tem acesso através de sua senha e login individual.

Outra ênfase mais atual dos sites organizacionais é a ativação, com maior intensidade, das possibilidades de interação com os públicos, tais como o blog organizacional. Um blog é uma página na Web, criada e mantida por uma organização ou indivíduo e que tem como principal característica estimular a interação, a partir de determinada temática e políticas de participação. Como um diário, os conteúdos publicados são agrupados no blog de modo cronológico. Conforme os pesquisadores Alex Primo e Raquel da Cunha Recuero, Os Weblogs, ou simplesmente blogs, são sistemas de publicação na Web, baseados nos princípios de microconteúdo e atualização freqüente. O sistema vem ganhando crescente popularidade, graças à facilidade de publicação, uma vez que proporciona que qualquer um, mesmo sem conhecer a linguagem HTML, possapublicar seu blog. (PRIMO e RECUERO, 2003, p. 55) Mestrado de Comunicação - UFSM

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Os sites organizacionais No blog o produtor e o leitor assumem posições que tendem ao equilíbrio e ao diálogo, no sentido de que cada um deles podedeclarar suas opiniões. Assim, tanto o usuário/visitante/internauta/leitor, quanto o produtor, assumem o status de interagentes. “Dentro de uma caixa de comentários, oferece – se um espaço de fórum, onde os internautas podemdeixar seus comentários e, posteriormente,retornar para ver as contribuições de outras pessoas” (PRIMO e RECUERO, 2003, p.56).

Hoje é possível se observar blogs organizacionais com diferentes enfoques, com foco no público interno como externo, seguindo os objetivos das organizações. Para a pesquisadora Inara Souza da Silva (2006), o blog interno é visto como um “espaço privilegiado para a empresa ouvir o funcionário, que poderá compartilhar informações referentes às suas rotinas, de forma informal, permitindo a troca de sugestões e críticas e a captura de conhecimento tácito e incentivo à colaboração” (SILVA, 2006, p. 41). Direcionado ao público interno o blog pode servir como ferramenta colaborativa para a elaboração e desenvolvimento de projetos coletivos e registro das informações.

Segundo Silva (2006) quando destinado ao público externo, o espaço do blog colabora na divulgação do posicionamento estratégico da organização em relação às questões políticas, econômicas e sociais. De outra maneira, colabora na divulgação de produtos e serviços, na recepção de comentários dos clientes e consumidores, possibilitando a rápida apreciação de suas questões, auxiliando a organização nos processos de pós – venda on line. “O Weblog tem se tornado uma ferramenta de marketing com a manutenção de um canal direto entre o consumidor e os executivos” (SILVA, 2006, p.42).

Com esse mesmo intuito de ter um espaço onde os conteúdos organizacionais são gerados também pelos usuários (consumidores, clientes, ou mesmo o público interno da organização) estão os fóruns on – line, as comunidades em sites de relacionamento, etc. As comunidades de organizações que existem no site “Orkut” (www.orkut.com.br), por exemplo, em muitos casos, não são propostas pela organização, mas por indivíduos que, de alguma maneira, estão ligados a ela. Observa-se que blog, no contexto das organizações privadas, é ainda considerado uma estratégia nova e é adotado por um número restrito de organizações. As possibilidades de receber críticas e reclamações, de maneira explícita, advindas de diferentes públicos, são vistas como barreiras 42

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Fabiane Sgorla para a aplicação dos blogs organizacionais e têm sido o norte de infindáveis polêmicas no âmbito empresarial. A home page apresentada na Figura 4 é um exemplo de site com as características descritas.

Figura 4 – Home page do site da Calçados Ramarim LTDA., fabricantes dos calçados da marca Ramarim. Fonte: Site da organização Calçados Ramarim LTDA. Disponível em: . Acesso em: 21 de abril de 2008.

Considerações finais

Assim como nos sites ligados ao jornalismo, as características dos sites das organizações privadas, desde o advento comercial da Web em meados da década de 90,até os dias de hoje, podem apresentar significativas transformações. Transformações verificáveis nas estruturas dos sites, na sua funcionalidade, possibilidades produtivas, linguagens, tipos de conteúdos movimentados, processos de interação entre organização – público, entre outros. Enquanto as primeiras versões dos sites organizacionais eram estáticas, rígidas e com conteúdos copiados de outros meios de comunicação organizacionais mais tradicionais, os sites organizacionais de hoje podem ser considerados flexíveis, dinâmicos e complexos.

Contudo, a partir dos exemplos é possível perceber que a evolução das características dos sites organizacionais não é homogênea, ou seja, nem todos os sites organizacionais utilizam todas as potencialidades da Web e nemapresentam as mesmas características. O que se vê hoje é a coexistência, em uma mesma categoria de organizações, como é o caso das organizações do setor de calçados, de sites organizacionais que podem ser Mestrado de Comunicação - UFSM

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Os sites organizacionais observados na comparação com os sites noticiosos, tanto com a primeira geração do webjornalismo, quanto com a geração mais atual. Essa constatação revela indícios de que por mais que as várias possibilidades tecnológicas para a construção de sites organizacionais estejam disponíveis, as organizações se apropriam dessas tecnologias e caracterizam seus sites de acordo com seus objetivos específicos de comunicação.

Parece desafiador descrever com precisão quais seriam as possibilidades comunicativas permitidas nos sites organizacionais que ainda estão por surgir em um futuro próximo. Sob essa perspectiva, torna – se imprescindível que os profissionais de comunicação conheçam em profundidade os mecanismos da Web e que os mesmos estejam aptos a elaborar estratégias específicas, combinando técnicas já existentes com as técnicas de vanguarda, utilizando – as de acordo com as necessidades dos negócios das organizações.

Bibliografia

BARBOSA, Suzana. Jornalismo Digital em Base de Dados ( JDBD) – Um paradigma para produtos jornalísticos digitais dinâmicos. Tese de Doutorado, FACOM/UFBA. Salvador, 2006. ETZIONI, Amitai. Organizações modernas. (6ª ed.) São Paulo: Pioneira, 1980. GOMES, Pedro Gilberto. Processos midiáticos como objeto de estudo. In: Tópicos teoria de comunicação. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004. (p.17 – 33) KEGLER, Jaqueline Quincozes Silva. Comunicação pública e complexidade: uma perspectiva das Relações Públicas como sujeito comunicacional e estratégico no cenário da midiatização. Dissertação de Mestrado, FACOS/UFSM. Santa Maria, 2008. MIELNICZUK, Luciana. Jornalismo na Web: uma contribuição para o estudo do formato da notícia na escrita hipertextual. Tese de Doutorado FACOM/UFBA. Salvador, 2003. PINHO, José Benedito. Relações Públicas na internet: técnicas e estratégias para informar e influenciar públicos de interesse. São Paulo: Summus, 2003.

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Fabiane Sgorla SCROFERNEKER, Cleusa Maria Andrade. As organizações na Internet: um estudo comparativo. E – Compos, Revista Eletrônica – COMPÓS, v. 4, 2005. (p. 1 – 21) SILVA, Inara Souza da. Weblog como fonte de informação para jornalistas. Dissertação de Mestrado. UNB. Brasília, 2006.

Notas

A Internet foi criada em 1969, pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, como um projeto pioneiro de transmissão de dados. Hoje a Internet é um conglomerado de redes de computadores (empresariais ou microcomputadores pessoais) que, em escala mundial, são interligados e permitem o acesso e a transferência de conteúdos em distintos formatos (verbo, imagem e som). Os meios que ligam os computadores dessa rede são variados como: rádio, linhas telefônicas, ISDN (Integrated Services Digital Network), satélite e fibras – ópticas. Fonte – Glossário de Termos da Internet – LabComp – Universidade Federal da Bahia (UFBA). . Acesso em: 29 de jun. de 2008. [2] A World Wide Web (teia de alcance mundial), sistema www, ou simplesmente, Web (teia), é um dos serviços oferecidos pela Internet, o qual compreende um conjunto dos servidores que “falam” a linguagem HTTP (Hypertext Transfer Protocol, que significa Protocolo de Transferência de Hipertexto) e armazenam a informação em no estilo HTML (HyperText Markup Language, que significa Linguagem de Marcação de Hipertexto) (1). É na Web que estão localizados os sites (o que para alguns estudiosos também é chamado de portal), que foram liberados para o uso comercial no ano de 1994. Fonte – Glossário de Termos da Internet – LabComp – Universidade Federal da Bahia (UFBA). . Acesso em: 29 de jun. de 2008 [3] A home page é a primeira e a principal página de um site e objetiva nortear e organizar o acesso do público. Segundo Pinho (2003, p. 45) a página home page “é mais visualizada do que qualquer outra, nela devem conter as informações mais relevantes sobre a empresa, de forma fácil e direta.” Como um cartão de visita do site a home page teria a tarefa de atrair, de imediato, o interesse do visitante [4] “O JDBD é o modelo que tem as bases de dados como definidores da estrutura e da organização, bem como da apresentação dos conteúdos de [1]

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Os sites organizacionais natureza jornalística, de acordo com funcionalidades e categorias específicas, que vão permitir a criação, a manutenção, a atualização, a disponibilização e a circulação de produtos jornalísticos digitais dinâmicos.” (Barbosa, 2006, p.218)

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Licitações nas Outorgas de Rádio e TV: a Ineficácia dos Critérios Técnicos Cristiano Aguiar Lopes Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados. E-mail: [email protected]

Resumo: Analisa as licitações para a outorga de concessões e permissões de rádio e televisão. Aborda a utilização das outorgas de radiodifusão como moeda de barganha política antes da obrigatoriedade de realização de licitações. Mostra que, ainda hoje, existem brechas que continuam a permitir a existência de critérios políticos para a outorga. Explica quais são as regras existentes nas concorrências de radiodifusão, que adotam a modalidade técnica e preço. A partir da análise de 1996 concorrências, cujos editais foram publicados entre 1997 e 2002, prova que a metodologia de avaliação das propostas técnicas que vem sendo utilizada torna o critério técnico de pontuação ineficaz. Com isso, o critério econômico, sozinho, define os vencedores na maior parte das licitações. Palavras-chave: radiodifusão; outorga; concessão, licitação, políticas de comunicação Abstract: The article analyzes bids for the granting of broadcasting licenses.It adresses the use of broadcasting grantings as a currency for  political trickery. The article also shows that, even today, there are many political criteria, instead of the technical ones, that guide the grantings of these broadcast licences. Besides that, based on the analysis of 1996 competitions that took place between 1997 and 2002, evidence shows that the methodology of assessing technical proposals that is being used makes the technical criteria for scoring ineffective. Therefore, only the economic criteria determines the winners in most of biddings. Keywords: radiodifusion, concession, licitation, communication politics.

Licitações nas Outorgas de Rádio e TV: a Ineficácia dos Critérios Técnicos

Introdução

Em 07 de fevereiro de 1997, acontecia algo inédito na história das políticas de comunicação no Brasil. Pela primeira vez, uma outorga de radiodifusão seguiria critérios objetivos, e aconteceria de forma transparente. Nessa data, ocorria a primeira licitação para rádio e TV, que outorgaria FMs, AMs e geradoras de televisão em vários estados brasileiros. O então Ministro das Comunicações, Sérgio Motta, declarou na ocasião: “todo o serviço de radiodifusão no país será outorgado por critérios públicos e transparentes[1]”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez coro ao seu ministro, e afirmou que “antes, o presidente dava concessões, tinha direito de conceder bilhões. Agora temos licitação, comissão, transparência[2]”. A novidade era fruto de dois novos documentos jurídicos, que alteraram o antigo Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, vigente desde 1963[3]: os Decretos nº 1.720, de 1995; e nº 2.108, de 1996. Em conjunto, eles mudaram diversos pontos do regulamento, quase todos relativos à política de concessões e permissões de rádio e TV. A mudança mais importante ocorreu em seu art. 10 – a partir daquele momento, a outorga de radiodifusão comercial seria “precedida de procedimento licitatório, observadas as disposições legais e regulamentares[4]”.

Mas, se por um lado o estabelecimento de obrigatoriedade para a licitação de outorgas de radiodifusão era uma velha demanda dos que militam pela democratização das comunicações, por outro existia o risco iminente de se trocar um critério excludente por outro igualmente excludente. Sairia (ou deveria sair) de cena o critério político até então vigente, e no lugar entraria a lei do mais forte economicamente. Esse possível império de um critério absolutamente tecnicista, sem interferência do interesse público, pode levar, em última instância, a uma ameaça à própria estrutura da democracia representativa (RAMOS, 2005).

Pieranti e Zouain (2006, p. 68) advertem ainda que as licitações, sob o domínio exclusivo de uma melhor proposta financeira, reforçam a estrutura já vigente e mantêm o funcionamento do sistema sob as mesmas bases anteriores. Argumentam os autores que, se o critério para a obtenção de concessões passa a ser financeiro, privilegiam-se empresários já atuantes, que dispõem de experiência e, principalmente, de recursos para a operação de novas emissoras. Estas foram ameaças que, aparentemente, não passaram despercebidas à época. Por isso, optou-se por estabelecer que as licitações de ra48

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Cristiano Aguiar Lopes diodifusão ocorreriam na modalidade concorrência, do tipo técnica e preço. Portanto, não apenas a proposta financeira, mas também as propostas técnicas – que incluem compromissos para a veiculação de programas educativos, informativos e produzidos regionalmente – teriam peso na decisão final do Poder Público. Porém esses critérios técnicos efetivamente têm sido preponderantes na definição dos vencedores das outorgas? Ou é a proposta de preço que termina por decidir as concorrências para a outorga de serviços de radiodifusão? São essas as perguntas principais que pretendemos responder neste artigo, a partir da análise das licitações que ocorreram de 1997 até hoje.

Outorgas de radiodifusão antes de 1997

Desde o nascimento do rádio no Brasil, existiu uma grande centralização do processo de outorgas de radiodifusão no Poder Executivo Federal. O nascimento dessa política pública centralizadora ocorreu em março de 1931, quando o Governo Federal publicou o Decreto nº 20.047, de 27 de maio e, posteriormente, o regulamentou, com o Decreto nº 21.111, de 1º de março de 1932 (SARDINHA, 2004, p. 55). Ambos os decretos, baixados pelo presidente Getúlio Vargas, determinavam a competência exclusiva do Governo Federal para regulamentar a telegrafia, a radiotelegrafia e as atividades de radiodifusão. Mas foi o Decreto 21.111 que estabeleceu um regulamento específico para a execução do que era chamado àquela época de “Serviço de Rádio Comunicação”. E também foi ele que, pela primeira vez, definiu regras e procedimentos para a outorga de rádios. Todo o capítulo IV do regulamento (arts. 16 a 22) é destinado ao “processo a seguir na outorga de concessões e permissões”.

Na esteira da regulamentação, o Governo Federal procurou aumentar seu domínio sobre o rádio, tanto no seu conteúdo quanto na distribuição das freqüências. A criação do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, bem como o estabelecimento de regras para a concessão e a execução dos serviços de radiodifusão, são pontos fundamentais para se entender essa progressiva interferência estatal sobre a execução dos serviços de rádio ( JAMBEIRO et al, 2002). A política de outorgas de radiodifusão imposta àquela época, como podemos notar, já traz em si características fundamentais, que persistem em certo grau até hoje: a ausência de critérios objetivos; a falta de transparência; e o domínio de interesses discricionários Mestrado de Comunicação - UFSM

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Licitações nas Outorgas de Rádio e TV: a Ineficácia dos Critérios Técnicos na concessão de canais de radiodifusão O resultado é a adoção de uma política na qual inexiste um mecanismo de controle democrático – sem esse mecanismo, a tendência à transgressão do interesse público é muito grande (LOPES, 2007, p. 6). Em última instância, pode-se dizer, sobre aquela época: Os serviços de radiodifusão são executados por entidades públicas e privadas, mediante concessão do Executivo (...). Esse regime jurídico especial dava ao Estado o pleno poder de arbitrar sobre as concessões, com critérios aparentemente técnicos, mas que no fundamental são políticos (HERZ, 1987, p. 78).

A Constituição de 1934 manteve intacto o que havia determinado o governo provisório nos decretos anteriores sobre radiodifusão. O inciso VIII do seu artigo 5º determinava como competência privativa da União “explorar ou dar concessão aos serviços de tellegraphos e radio-communicação”. Assim, firmava-se o entendimento da aplicabilidade do trusteeship model – princípio segundo o qual existe responsabilidade governamental em organizar de forma racional o espectro radioelétrico, podendo o próprio Estado operar os serviços de radiodifusão, ou transferir esta responsabilidade a um agente privado, por meio de uma outorga pública. Também se consolidava um modelo de gestão de espectro muito semelhante ao command-and-control norte americano, que condiciona a utilização de ondas de rádio à emissão de uma licença, na qual estão estabelecidos os termos nos quais se fará esse uso (LIMA e RAMOS, 2006, p. 7).

As constituições seguintes de 1937, 1946, 1967 e 1988 mantiveram a exclusividade do Governo Federal nas outorgas de radiodifusão, bem como o trusteeship model e o command-and-control. Porém houve alterações nos procedimentos de outorga – as mais importantes acrescidas pela Constituição de 1988 (SIMIS, 2006, p. 10), como veremos em breve.

Após muitos remendos aos Decretos 20.047/31 e 21.111/32, criou-se um cipoal jurídico relativo à radiodifusão de difícil entendimento, quase todo ele formado por legislações infra-legais. Essa realidade deixou evidente a necessidade de uma consolidação do marco regulatório do setor, por meio de uma nova legislação para as telecomunicações, incluindo a radiodifusão. O início da consolidação, que culminaria na promulgação de um código, teve início em 1953, com a apresentação do Projeto de Lei do Senado nº 36, de 1953[5]. Após 9 anos de discussões, finalmente foi apro50

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Cristiano Aguiar Lopes vado o Código Brasileiro de Telecomunicações[6] (CBT), que tratava dos meios de comunicação eletrônica, da telefonia e de outras tecnologias de transmissão de dados.

As discussões que antecederam a aprovação do CBT no Congresso - e, principalmente, a derrubada de todos os 52 vetos apresentados pelo Presidente da República João Goulart à nova legislação - inauguram um período de grande influência dos radiodifusores no estabelecimento das políticas de comunicação no Brasil[7]. (PIERANTI e MARTINS, 2007, p. 134). Não por coincidência, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) se formou justamente durante as atividades de lobby exercidas pelos radiodifusores no Congresso Nacional para a derrubada dos vetos de João Goulart[8].

Nesta época, já estava consolidada a utilização de critérios discricionários para as concessões de radiodifusão. Uma das regulamentações do Código Brasileiro de Telecomunicações, que trouxe as regras primordiais para a outorga de serviços de radiodifusão[9] - muitas delas vigentes até hoje -, manteve critérios pouco transparentes, que davam margem à utilização patrimonialista das licenças de funcionamento (SIMIS, 2006, p. 10). O resultado foi, entre outros, a criação de um fenômeno conhecido por “coronelismo eletrônico”. Trata-se de um conceito controverso nas ciências sociais, que carece de uma reflexão conceitual mais abrangente (SANTOS, 2006, p. 10). Baseado no conceito de coronelismo criado no estudo de Victor Nunes Leal sobre as práticas políticas no Brasil rural, o “coronelismo eletrônico” é um fenômeno do Brasil urbano do século XX e tem, em grande parte, origem justamente na centralização das outorgas pela União e nos poderes exagerados dados ao chefe do Poder Executivo na escolha de quem será agraciado com uma concessão, permissão ou autorização. No coronelismo eletrônico, portanto, a moeda de troca continua sendo o voto, como no coronelismo tradicional. Mas no lugar da posse da terra, entra o controle da informação e a capacidade de influir na formação da opinião pública (LIMA, 2006; LIMA e LOPES, 2007).

Em 1967, houve significativas alterações no Código Brasileiro de Telecomunicações, inseridas no texto legal por meio do Decreto-lei 236, de 1967. Já vivíamos o período do regime militar, e estas alterações procuravam inserir na legislação de comunicações alguns preceitos considerados estratégicos para a segurança nacional. Do ponto de vista das outorgas de radiodifusão, as alterações mais importantes foram a imposição de limites Mestrado de Comunicação - UFSM

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Licitações nas Outorgas de Rádio e TV: a Ineficácia dos Critérios Técnicos de propriedade, a criação da modalidade educativa de televisão e de rádio e o endurecimento das regras para transferência direta ou indireta da propriedade.

Apenas em 1988, com a promulgação de uma nova Constituição Federal, houve uma efetiva reformulação do processo de outorgas de radiodifusão. A maior mudança foi retirar do Poder Executivo a exclusividade na competência de outorgar concessões e permissões de radiodifusão, cabendo também ao Congresso Nacional apreciar as outorgas e renovações de outorga[10]. Desde então, mais de 6 mil processos desse tipo foram analisados pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal[11].

Licitações para a outorga de emissoras de radiodifusão – fim do coronelismo eletrônico?

Durante o governo Sarney, houve o ápice da utilização das outorgas de radiodifusão como arma de barganha política. Apenas entre os anos de 1985 e 1988, 1028 outorgas foram assinadas. Motter (1991, 1994) demonstra que essas outorgas foram utilizadas intensamente na aquisição de apoio no Congresso Nacional para as matérias consideradas mais importantes pelo governo. Seus estudos demonstram que 91 constituintes receberam outorgas no governo Sarney, e 90% votaram pela ampliação do mandato presidencial de quatro para cinco anos.

No governo Collor e, posteriormente, no breve período Itamar, houve uma inflexão no ritmo de outorgas concedidas, embora a utilização como moeda de barganha política continuasse intensa. Assim, a organização da radiodifusão herdada por Fernando Henrique em seu primeiro mandato era aquela formada por décadas de ausência quase absoluta de transparência e de critérios objetivos para a concessão, permissão e autorização de emissoras de rádio e televisão.

Foi nesse contexto que surgiu o então chamado “pacote ético” nas políticas de comunicação que, entre outras ações, incluiu a instituição de obrigatoriedade de realização de licitações para as outorgas de radiodifusão. A partir de então, as regras da lei de licitações[12] passaram a ser observadas nos serviços de radiodifusão. Vale ressaltar, contudo, que algumas brechas foram deixadas. Isso ocorre porque, apesar do texto dos decretos 1.720/95, e 2.108/96 parecerem universais, apenas as outorgas de radiodifusão comercial passaram a exigir a realização de licitações. As outorgas de radiodifusão educativa seguiram sendo dadas de acordo com critérios discricionários, 52

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Cristiano Aguiar Lopes bem como as autorizações de retransmissão de televisão (RTV). Em 1998, surgiu, com a Lei nº 9.612, a radiodifusão comunitária, que também não exige a realização de procedimento licitatório para sua autorização.

O resultado dessas brechas foi a manutenção de critérios políticos nas outorgas que não foram abrangidas pelas mudanças. No caso das RTVs, 268 de 1848 autorizações do primeiro governo de FHC foram dadas a entidades ou empresas controladas por 87 políticos (COSTA e BRENER, 1997). As rádios e TVs educativas seguiram também sendo largamente outorgadas a políticos. Em agosto de 2002, uma série de reportagens publicada pela Folha de São Paulo mostrava como o governo FHC havia dado continuidade à prática de distribuição de TVs educativas a políticos aliados[13]. Já em matéria também da Folha de São Paulo de 19 de junho de 2006, era reportado que das 110 emissoras educativas aprovadas pelo governo Lula até então, pelo menos 34 haviam sido dadas a fundações ligadas a políticos[14]. E até mesmo a radiodifusão comunitária tem sido dominada por outorgas dadas a políticos. Um estudo recente demonstra que 1106 das 2205 rádios comunitárias (50,2%) outorgadas entre 1999 e 2004 tinham algum tipo de vínculo político detectável em suas diretorias (LIMA e LOPES, 2007).

As regras para as licitações de radiodifusão comercial

Desde o governo FHC, a entidade que deseja obter uma outorga de radiodifusão comercial deve provocar o Ministério das Comunicações, solicitando a abertura de edital para o serviço e a localidade pretendidos. Contudo, ainda que exista um canal disponível, a decisão sobre a abertura ou não de um procedimento licitatório é discricionária do ministro. Caso o ministério opte por publicar um edital, há algumas regras a serem observadas. O edital deve indicar, entre outros: o objeto da licitação; o valor mínimo da outorga; condições de pagamento; relação de documentos necessários à habilitação; e critérios para julgamento das propostas técnicas e de preço. Também deve haver no edital indicação de critérios objetivos para a gradação da pontuação, sendo vedada a comparação entre propostas. As concorrências ocorrem em três etapas. A primeira é a fase de habilitação e, caso o candidato cumpra todas as exigências do edital, passa à fase seguinte. Na segunda etapa, são analisadas as propostas técnicas e, por último, as propostas financeiras. Mestrado de Comunicação - UFSM

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Licitações nas Outorgas de Rádio e TV: a Ineficácia dos Critérios Técnicos A etapa mais importante para nosso estudo é de avaliação das propostas técnicas. A tabela abaixo mostra quais são os quesitos técnicos avaliados, bem como a pontuação máxima que pode ser atribuída a cada um deles: Tabela 1: quesitos e critérios para avaliação das propostas técnicas[15]:

Vejamos um caso prático. A tabela 2 mostra como foram estabelecidos os critérios para a elaboração da proposta técnica, sua análise e julgamento no edital de concorrência nº 001, de 2000. Também traz uma proposta fictícia, para exemplificar como seria analisada uma proposta técnica na prática: Tabela 2: critérios para elaboração da proposta técnica, sua análise e julgamento (edital nº 001, de 2000)

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Somente são classificadas para a etapa seguinte, na qual ocorre a análise e julgamento da proposta de preço, as entidades que atendam às condições mínimas estabelecidas para cada um dos quesitos da proposta técnica e que somem, no mínimo, uma determinada pontuação total. Esse limite mínimo para a pontuação técnica total varia de acordo com a modalidade do serviço que está sendo licitado. Há três categorias de modalidades definidas pela legislação[16]:

Grupo A: Onda tropical, onda curta, onda média local e regional e freqüência modulada classes C, B1 e B2: mínimo de 50 pontos; Grupo B: Onda média nacional, freqüência modulada classes A1, A2, A3 e A4; televisão classes A e B: mínimo de 60 pontos; Grupo C: Freqüência modulada classe E1, E2 e E3, televisão classe E: mínimo de 70 pontos. O cálculo da pontuação atribuída à proposta de preço pela outorga varia de grupo para grupo, de acordo com fórmulas que levam em conta o valor mínimo estabelecido no edital (Vmin) e o valor ofertado pelo proponente (Vof ). A tabela abaixo mostra os critérios de pontuação utilizados em cada uma das categorias, bem como o cálculo da pontuação atribuída a uma proposta fictícia, levando-se em conta um valor mínimo estabelecido em edital de R$ 100 mil e um valor ofertado de R$ 200 mil.

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Licitações nas Outorgas de Rádio e TV: a Ineficácia dos Critérios Técnicos Tabela 3: critérios para elaboração da proposta de preço, sua análise e julgamento (edital nº 001, de 2000)

Nota-se, portanto, que a proposta de preço tem um peso maior no grupo C, um peso intermediário no grupo B e um peso menor no grupo A. A classificação final das proponentes é feita de acordo com a média ponderada da pontuação obtida nos quesitos técnicos e da proposta de preço, com base em pesos estabelecidos no edital. Esse cálculo da média ponderada é feito de forma a aumentar ainda mais o peso da proposta financeira, conforme aumenta a potência e a abrangência do serviço de radiodifusão licitado. A tabela 4 explica como ocorre o cálculo da pontuação final, e traz também os cálculos feitos para a proposta fictícia analisada neste trabalho. 2000)

Tabela 4: critérios de julgamento das propostas (edital nº 001, de

Metodologia e resultados

Para entender a real influência das propostas técnicas na definição dos vencedores das licitações de radiodifusão no Brasil, realizamos uma análise de 1996 concorrências realizadas entre 1997 e 2008. Essas concorrências foram fruto da publicação de 507 editais de licitação entre os anos de 1997 e 2002, e redundaram na outorga de 1033 emissoras de rádio e de televisão. A maior parte das informações foi fornecida pelo Ministério das Comunicações, em planilha cuja última data de atualização é 19 de junho de 2006. Dados adicionais foram recolhidos de diversas edições do Diário Oficial da União. A primeira análise foi a da pontuação atribuída às propostas técnicas apresentadas pelos participantes de concorrências. Nessa primeira fase do trabalho, chegamos a um total de 9719 propostas técnicas apresentadas. O resultado foi surpreendente. Apesar de termos uma indicação do próprio Ministério das Comunicações de que boa parte das propostas 56

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Cristiano Aguiar Lopes técnicas era avaliada com a nota máxima – seria algo em torno de 60% -, os números levantados pela pesquisa mostram que esse número é muito mais elevado do que o próprio Ministério afirmava (gráfico 1).

Gráfico 1: distribuição de notas na pontuação técnica das 9719 propostas técnicas integrantes da amostra.

Em termos percentuais, isso significa que 90,67% dos concorrentes em licitações para a outorga de serviços de radiodifusão atingiram a pontuação máxima em todos os quesitos de avaliação. 3,19% receberam nota quase máxima – entre 99 e 99,999. Outros 3,17% foram avaliados com notas entre 95 e 98,999. E apenas 2,20% receberam notas inferiores a 90.

Com base nas regras estabelecidas pelos Decretos nº 1.720, de 1995 e nº 2.108, de 1996; nos editais de licitação analisados; e principalmente na distribuição das notas na pontuação técnica, podemos afirmar que existe uma facilidade bastante grande para que os concorrentes conquistem nota máxima ou muito próxima da máxima na avaliação técnica[17]. Note-se também que há um grande grau de subjetivismo na definição do que exatamente pode ser considerado jornalístico, educativo, informativo ou noticioso. Como não existe a avaliação de um plano de programação ou de um piloto do conteúdo que será veiculado, a classificação do tipo de programa que atenderá às exigências do edital de licitação cabe somente ao próprio concorrente. Esse fato por si só, aliado aos percentuais relativamente baixos exigidos pelos editais de licitação, já seriam suficientes para explicar a existência de um número tão elevado de notas máximas ou quase máximas nas concorrências de radiodifusão. Mas é preciso ressaltar que também existe uma estrutura deficiente no que concerne à fiscalização de conteúdo de radiodifusão no Brasil. O Ministério das Comunicações, responsável por essa fiscalização, não conta com delegacias regionais nos estados, extintas no final de 2002[18]. Por Mestrado de Comunicação - UFSM

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Licitações nas Outorgas de Rádio e TV: a Ineficácia dos Critérios Técnicos isso, todo o trabalho de fiscalização, incluindo a instrução dos processos de apuração de infração, fica concentrado em Brasília – mais especificamente no Departamento de Acompanhamento e Avaliação de Comunicação Eletrônica da Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica, que conta com um reduzido quadro de funcionários. Ou seja: os licitantes sabem que dificilmente o Poder Público terá condições de averiguar se o que foi apresentado na proposta técnica durante a concorrência efetivamente será cumprido. Portanto, mais um incentivo a inflar ao máximo as propostas apresentadas.

A principal conseqüência que poderia ser esperada dessa falha na política de outorgas de radiodifusão comercial é a ineficácia da adoção de critérios técnicos como parte da avaliação das propostas nas licitações. E na amostra analisada neste artigo, pudemos comprovar essa ineficácia. Das 1996 concorrências estudadas, 1033 já chegaram a um resultado definitivo. Desse grupo em que já havia um vencedor definido, excluímos 39 concorrências nas quais houve um único concorrente, e outras 89 com apenas um concorrente habilitado. Assim, chegamos a um grupo de 905 concorrências nas quais houve efetivamente disputa entre os concorrentes e, portanto, definição do vencedor com base nas propostas técnicas e de preço. O resultado demonstra um predomínio da proposta de preço como definidora do vencedor das concorrências. Nas 905 licitações analisadas, 846 tiveram como vencedor o concorrente que apresentou a melhor proposta de preço. Em 16, o vencedor apresentou tanto a melhor proposta técnica quanto de preço. E em apenas 43 a pontuação técnica predominou sobre a proposta de preço (gráfico 2). Os casos em que os concorrentes tinham a mesma nota técnica (o que ocorreu na maioria das vezes, com empate na nota 100) foram incluídos na categoria “melhor preço”, já que a proposta de preço foi o fator que desempatou a concorrência.

Gráfico 2: Critério que definiu o vencedor nas 905 licitações integrantes da amostra (em %)

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Conclusão

A pesquisa comprova a ineficácia dos critérios técnicos nas licitações para a outorga de rádios e TVs comerciais. Pode-se afirmar, com base em nossos resultados, que a fase de avaliação da proposta técnica é, na maior parte dos casos, inútil. Recursos públicos estão sendo desperdiçados em uma atividade estatal que em nada tem influenciado a definição do vencedor das licitações. Porém mais grave que isso é comprovar que, uma vez predominando o critério econômico como definidor dos agraciados com concessões e permissões de radiodifusão, o Estado tem contribuído para reforçar a estrutura dominante no mercado de comunicações brasileiro. Com a preponderância do critério financeiro para a obtenção de concessões, estão sendo privilegiados empresários já atuantes no setor, que dispõem de experiência e de recursos para operar novas emissoras. Com isso, são preteridos projetos que possam contribuir para uma maior democratização das comunicações, para a melhoria da qualidade do conteúdo do rádio e da televisão e para a regionalização da produção de comunicação eletrônica.

Concluímos, portanto, que é urgente uma revisão na sistemática de avaliação das propostas técnicas e de preço nas licitações de radiodifusão comercial. É necessário que o Poder Público estabeleça critérios que dêem maior peso às propostas técnicas, de modo a privilegiar empreendimentos que pretendam contribuir para a melhoria do conteúdo veiculado nas rádios e televisões do País. Além disso, também é necessária a construção de uma política de comunicação que fortaleça os papéis regulador e fiscalizador do Estado, de modo a garantir o atendimento do interesse público na escolha dos concessionários e permissionários de radiodifusão.

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Notas

Correio Braziliense. 06/02/1997, p. 19, “Começa amanhã licitação para TV”. O mesmo trecho é citado em COSTA e BRENER, 1997. [2] Correio Braziliense. 07/02/1997, p. 8, “O comandante do governo”. O mesmo trecho é citado em COSTA e BRENER, 1997. [3] Decreto nº 52.795, de 31 de outubro de 1963. [4] As outorgas de radiodifusão educativa e as autorizações para retransmisssoras de televisão (RTV) não foram atingidas pelas mudanças, e seguiram sendo dadas de acordo com critérios discricionários do [1]

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Licitações nas Outorgas de Rádio e TV: a Ineficácia dos Critérios Técnicos Ministro das Comunicações. Posteriormente, houve a criação do Serviço de Radiodifusão Comunitária (Lei nº 9.612, de 1998). Como a outorga para esse tipo de serviço se dá por meio de autorização, ela também não exige procedimento licitatório – embora nesse caso exista um procedimento concorrencial baseado em critérios não econômicos, cujas regras principais são estabelecidas na própria lei que cria a radiodifusão comunitária. [5] Renumerado como PL 3549/1957 na Câmara dos Deputados. [6] Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962. [7] Mathias (2003, p. 125) afirma que, além dos empresários do setor, o Estado Maior das Forças Armadas e partidários da União Democrática Nacional foram atores dolobbyque derrubou os vetos de João Goulart ao CBT. [8] A própria Abert admite que olobbypara a aprovação do CBT foi o fator que organizou os radiodifusores em uma entidade de classe de âmbito nacional. Uma obra na qual são descritos os bastidores da aprovação do CBT e da criação da Abert é o livro “História do rádio e da televisão no Brasil e no mundo: Memórias de um pioneiro”, de Mário Ferraz Sampaio, um dos fundadores da associação. [9] Decreto nº 52.795, de 31 de outubro de 1963. Outro decreto que também regulamenta o Código Brasileiro de Telecomunicações é o nº 52.026, que aprova o Regulamento Geral para Execução da Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962. [10] O inciso XII do art. 49 da Constituição Federal estabeleceu como competência exclusiva do Congresso Nacional “apreciar os atos de concessão e renovação de concessão de emissoras de rádio e televisão”. Já o art. 223 estabelece que “compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens”, ao passo que o seu § 3º deixa claro que “o ato de outorga ou renovação de outorga somente produzirá efeitos legais após deliberação do Congresso Nacional”. [11] Uma boa fonte de pesquisa sobre o histórico da atuação do Congresso Nacional na apreciação dos atos de outorga e de renovação de outorga de radiodifusão é o “Relatório Parcial da Subcomissão Especial destinada a analisar mudanças nas normas de apreciação dos atos de outorga e renovação de concessão, permissão ou autorização de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens”. O documento está disponível na página da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos 62

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Cristiano Aguiar Lopes Deputados, no endereço: http://www2.camara.gov.br/comissoes/cctci/ relatorios.html [12] Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. [13] LOBATO, Elvira. FHC distribui rádios e TVs educativas para políticos. Folha de São Paulo. São Paulo, 25 ago. 2002. P. 228-261. [14] LOBATO, Elvira. Governo Lula distribui TVs e rádios educativas a políticos.Folha de São Paulo. São Paulo, 19 jun. 2006. [15] Conforme art. 16 do Decreto nº 52.795, de 31 de outubro de 1963, com redação dada pelo Decreto nº 2.103, de 24 de dezembro de 1996. [16] Art. 11 do Decreto nº 52.795, de 31 de outubro de 1963, com redação dada pelo Decreto nº 4.438, de 24 de outubro de 2002. [17] No caso do Edital nº 1, de 2000, analisado mais pormenorizadamente neste trabalho, projetamos os seguintes percentuais mínimos para se atingir a nota máxima: tempo total diário de programação: 24 horas; tempo destinado a programas jornalísticos, educativos e informativos: 8%; tempo destinado a serviço noticioso: 8%; tempo destinado a programas culturais, artísticos e jornalísticos produzidos e gerados na própria localidade: 4%; tempo destinado a serviço noticioso produzido e gerado na própria localidade: 4%; prazo para iniciar a execução do serviço em caráter definitivo: 9 meses. [18] O Decreto nº 5.220, de 30 de outubro de 2004, que aprovou a Estrutura Regimental e o Demonstrativo dos Cargos em Comissão e Funções Gratificadas do Ministério das Comunicações, prevê, no item III do capítulo II, a criação de òrgãos Regionais nos Estados. Contudo, essa criação até hoje não ocorreu de fato.

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Qual é a cara da cultura brasileira apresentada pelo Jornal Nacional? O gênero televisivo como estratégia de enunciação[1]

Simone Maria Rocha Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ com PósDoutorado em Comunicação pela UFMG. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação, Mídia e Cultura. Email: [email protected] Carolina Abreu Albuquerque Graduanda em Comunicação Social pela UFMG; monitora do Programa de Iniciação a Docência na disciplina Comunicação e Cultura e voluntária de iniciação científica no Grupo de Pesquisa Comunicação, Mídia e Cultura. Email: [email protected] Renata Carneiro de Oliveira Graduanda em Comunicação Social pela UFMG. Email: [email protected] Resumo: O objetivo deste trabalho é entender como a Cultura Brasileira é apresentada na TV e seus desdobramentos. A partir de uma metodologia que articula análise de conteúdo com análise de gênero televisivo investigaremos o Jornal Nacional, exibido pela TV Globo. Especificamente abordaremos a série especial de reportagem chamada Identidade Brasil e, dentro dela, uma atenção será dada ao posicionamento dos atores para captar como os diferentes sujeitos são convocados para oferecer opiniões e concepções acerca do tema. Palavras-chave: análise de conteúdo; análise de gênero televisivo; cultura brasileira; televisão. Resumen: El objetivo de este artículo es entender cómo la cultura brasileña es presentada en la televisión y sus implicaciones. Metodologicamente nos propusimos a realizar una articulación entre análisis de contenido y género televisivo para investigar el Jornal Nacional, noticiario exhibido en la Red Globo de Televisión. Específicamente abordaremos a la serie especial de reportajes llamada Identidade Brasil y, dentro de ella, una atención será dada al posicionamiento de los actores para captar cómo los diferentes sujetos son convocados a ofrecer opiniones y concepciones acerca del tema. Palabras clave: análisis de contenido; análisis de género televisivo; cultura brasileña; televisión. Abstract: The aim of this paper is to understand how brazilian culture is presented on TV and their implications. From a methodological approach which matches content analysis with gender television analysis we’ll investigate the show news Jornal Nacional, exhibited by Rede Globo of Television. Specifically we’ll approach the special documentary called Identidade Brasil and, inside it, we’ll pay attention on subjects positioning to catch how the different subjects are “hailed” to give opinions and conceptions about the issue. Keywords: content analysis; gender television analysis; brazilian culture; television.

Qual é a cara da cultura brasileira apresentada pelo Jornal Nacional

Introdução

Os discursos sociais veiculados pelos media são centrais em nossas sociedades por nos oferecerem um modo de conhecer aspectos de nossa realidade social. Douglas Kellner (2001) considera que os textos produzidos pela cultura da mídia desempenham papel fundamental na reestruturação das identidades, na crítica da cultura contemporânea e na conformação de pensamentos e comportamentos. Esses textos disponibilizariam modelos de comportamento e identificação. O autor afirma que devemos compreendê-los a partir de uma leitura rica de sentidos, ou seja, “ir do produto ao social” e acredita que tais textos se tornam fundamentais se forem lidos como “contexto social a nos dizer coisas sobre a sociedade contemporânea” (p. 307). A partir dessa leitura crítica de textos dos media propomos investigar como um conteúdo específico – a cultura brasileira – é tratado na televisão a partir das grades de escritura próprias deste meio. Para tanto, propomos uma abordagem metodológica que articula a análise de conteúdo (investigação quantitativa)  com análise de gênero televisivo (um viés qualitativo). O objeto empírico pertence ao gênero telejornalismo: o Jornal Nacional, exibido diariamente pela Rede Globo de Televisão, às 20:15, e mais especificamente a série especial de reportagens Identidade Brasil, que foi ao ar entre os dias 01 e 06 de fevereiro de 2004.

1. Cultura e cultura nacional

A ascensão da cultura para o centro da vida política e intelectual – a partir das transformações que tomaram a cena desde o início do século XX – exige novas definições do conceito. Raymond Williams entende cultura como o conjunto de práticas empreendidas por uma sociedade que, pela produção e intercâmbio de sentidos, conforma “todo um modo de vida” (Williams, 1958). Em seu livro Cultura (1992), Williams define explicitamente seu entendimento do conceito como sendo a construção de uma ordem simbólica compartilhada que atribui significado às ações, interações e práticas. Cultura seria, portanto, o modo de compreender e aferir a organização da vida em um determinado momento histórico. O autor também reconhece como partes desse processo as relações sociais entre determinadas formas simbólicas, como a televisão, e os períodos históricos em que são executadas. 66

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Simone Maria Rocha Da mesma forma, também a cultura nacional surge da troca de sentidos. Ela lança mão de símbolos para criar identificação com o modo de vida de um povo, no intuito de promover a coesão de seus membros. Para Anthony Smith (1997, p. 31) a cultura e a identidade nacional definem, posicionam e conferem estabilidade aos sujeitos, ou seja, “é uma cultura única e partilhada que nos permite saber ‘quem somos’ no mundo contemporâneo. Ao redescobrir essa cultura, ‘redescobrimo-nos’ a nós próprios”. O processo de constituição do Estado e dessa identidade é marcado pela negociação entre vários grupos de um determinado território, pela narração da história de um povo original e também pela formação de uma comunidade política, regida por leis e instituições (Anderson, 1991; Hall, 1999). Embora esse processo não esteja livre de contradições e de relações de dominação, o pertencimento a uma nação pode ser considerado fundamental para os sujeitos. Contudo, Hall (1999) lança questionamentos em relação a essa cultura. Um deles seria certo declínio que ela estaria vivendo devido aos processos de transnacionalização e de globalização. Para Hall, esse fenômeno interfere na formação da identidade nacional, já que os fluxos globais permitem trocas constantes, oferecendo aos sujeitos novas filiações culturais e identitárias, provisórias e fragmentadas. O que seria um golpe na cultura nacional. Como entender, então, a cultura nacional no momento em que a comunicação em redes permite a formação de uma cultura cosmopolita? Smith reconhece que fatores como a formação de blocos econômicos, as empresas transnacionais e a telecomunicação poderiam alterar a força da identidade nacional. Mas será que a cultura e a identidade nacional estariam com seus dias contados?

Para Smith, a identidade nacional, ancorada pela cultura nacional é, ainda hoje, a principal forma de identificação coletiva. Quaisquer que sejam os sentimentos dos indivíduos, ela fornece a noção dominante de identidade e pertencimento. A identidade nacional é uma elaboração abstrata e multidimensional, que penetra numa grande variedade de esferas da vida e manifesta muitas permutas e combinações. Um processo de ordem discursiva, cujo objetivo central é o de sustentar a unidade nacional (Anderson, 1991). O desafio é elaborar um discurso complexo que dê conta de gerir uma identidade consistente, não importando as diferenças de classe, gênero e etnia. Uma identidade nacional busca unificar os sujeitos numa mesma família nacional (Hall, 1999). É na esfera cultural que a identidade Mestrado de Comunicação - UFSM

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Qual é a cara da cultura brasileira apresentada pelo Jornal Nacional nacional revela uma variedade de mitos, valores e memórias, por meio da linguagem, das leis, instituições e cerimônias.

Fica a cargo da elite intelectual, das instituições educacionais e dos media construir um discurso que ofereça aos sujeitos possibilidade de desenvolver sentimento de pertença a uma nação, de fixar-se num espaço social específico e de socializar-se em sua cultura. Smith afirma que mesmo que haja outras formas de identidade, elas conjugam-se e convivem com a identidade nacional, mas nunca diminuem seu poder.

Essa definição de cultura – que a considera como a produção de significados e valores, dando relevo à sua dimensão discursiva – reserva à comunicação um lugar central que a nomeia e produz. Nesse cenário, o papel da televisão é inquestionável. Diante de sua presença significativa na estruturação da vida social, das possibilidades que ela oferece aos sujeitos, procuramos investigar em que medida a cultura e a identidade brasileiras[2] são aí apresentadas, a partir de um percurso que nos permita compreender de modo sistemático as características do fazer televisivo, bem como especificidades de sua linguagem.

2. Análise de gênero televisivo e análise de conteúdo: proposta metodológica integrada para a investigação de narrativas televisivas

A relevância da televisão no Brasil é indiscutível. Seja na difusão e criação de quadros de referências e representações, seja influenciando a pauta da agenda coletiva. Eliseo Véron (2001, p. 20), ao entender os meios de comunicação, afirma ser necessário um “conceito sociológico, que não pode ser caracterizado somente a partir de seu suporte tecnológico. A definição de um meio deve ter em conta [...] as condições de produção e as condições de recepção”. O autor aponta também para o fenômeno da midiatização da vida social, que julga central nas sociedades contemporâneas. Véron afirma que “uma sociedade em vias de midiatização é aquela na qual o funcionamento das instituições, das práticas, dos conflitos, da cultura, começa a estruturar-se em relação direta com a existência dos meios” (Idem, p. 15). Isso significa dizer que nossas práticas culturais devem ser analisadas levando-se em conta sua veiculação e difusão pelos media, que têm linguagens e características próprias. Dentre elas, o autor aponta a importância cada vez maior dos modos do dizer, da enunciação[3]. Segundo ele, não é que o conteúdo tenha perdido sua relevância. A enunciação é que 68

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Simone Maria Rocha ganhou privilégio. Acreditamos que as diferentes enunciações podem ser bem entendidas a partir da interpretação oferecida pela chave de leitura dos gêneros televisivos.

Gênero televisivo como chave de leitura

Dentre as análises sobre a linguagem televisiva, destacamos os estudos de François Jost (2004), para quem os produtos televisivos oscilam entre três mundos: real, ficcional e lúdico[4]. Hoje, nenhum produto pode ser tomado como exemplo de um dos mundos. É preciso levar em conta que uma emissora transmite todo tipo de programa, inclusive aqueles que mesclam aspectos ficcionais e não ficcionais. Para abarcar essas emissões e melhor compreender as narrativas televisivas, Jost procurou investir num conceito de gênero televisual que se desenvolve a partir da definição de um campo comum sobre o qual se realiza a comunicação; onde se desdobram as estratégias do realizador e os horizontes de expectativas do receptor, sem afirmar que ambas as perspectivas sejam finamente partilhadas. Elas, na verdade, se assentam no que o autor denominou como “promessa” intrínseca ao gênero, oferecida pelo emissor que conta ou não com a adesão do público[5]. O gênero seria “uma promessa global sobre esta relação que vai propor um quadro de interpretações global aos atores ou aos acontecimentos representados em palavras, em sons ou em imagens” (Idem, p. 35). Elizabeth Duarte, ao denominar os gêneros televisivos como macro-articulações semânticas capazes de abrigar produtos com poucas características em comum, os compreende

Como um feixe de traços de conteúdo da comunicação televisiva que só se atualiza e realiza quando sobre ele se projeta uma forma de conteúdo e de expressão – representada pela articulação entre subgêneros e formatos, esses sim procedimentos de construção discursiva que obedecem a uma série de regras de seleção e combinação (2006, 22).

Segundo a proposta de Duarte, os subgêneros seriam da ordem da atualização e os formatos da ordem da realização, trazendo as especificidades dos programas. Compreender o gênero a partir da promessa permite-nos identificar como significados e acontecimentos são codificados na feitura de um determinado produto cultural, já que a maneira de significar Mestrado de Comunicação - UFSM

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Qual é a cara da cultura brasileira apresentada pelo Jornal Nacional dos programas é estruturada por regras, modos e limites do processo de produção.

As potencialidades da análise de conteúdo

Tendo em vista a questão proposta, “Qual é a ‘cara’ da Cultura Brasileira apresentada pela série ‘Identidade Brasil’ do Jornal Nacional?”, propomos uma análise de conteúdo com vistas a melhor compreensão dos processos de significação do mesmo.

A análise de conteúdo (AC) é definida por Albert Keintz (1973, p. 51) como uma “técnica de pesquisa para a descrição objetiva e rigorosa do conteúdo das comunicações”. A AC passa por uma caracterização do conteúdo e permite, por exemplo, descrever e analisar o que o autor chama de modelos-padrões, ou seja, as representações sobre os sujeitos e o modo como são classificados. Para Martin Bauer (2002) a vantagem da AC é viabilizar a classificação sistemática de uma grande quantidade de material em uma descrição curta de suas características, possibilitando que o contexto que conforma os textos seja analisado. Segundo ele (Idem, p.191), a AC “é uma técnica de produzir inferências de um texto focal para o seu contexto social de uma maneira objetivada”. A representação é reconstruída a partir de duas dimensões principais. A primeira, em relação à sintaxe (freqüência de palavras, vocabulário), e a segunda em relação à semântica (o que é dito em um texto). Os dados da AC propiciam uma descrição geral do texto analisado, através da construção de uma tabela com os índices de freqüência dos operadores descritivos escolhidos. Entretanto, apesar de fundamentar a análise, esse procedimento diz pouco sobre forma de enunciação da cultura. A solução encontra-se num segundo movimento analítico: a interpretação dos dados a partir do escrutínio do gênero televisivo ao qual o programa pertence. Resta esclarecer que o procedimento da AC é comumente utilizado para análise de textos impressos. Porém, nos propomos a adotá-lo para textos televisivos e nos deparamos com um objeto complexo que se insere na lógica do fluxo da televisão. Para dar conta de tal desafio, nos baseamos no trabalho de Diane Rose (2002), que constituiu alguns operadores descritivos para dar conta da dimensão audiovisual da AC: os mapas de codificação dos elementos audiovisuais. 70

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Simone Maria Rocha

Caracterização do corpus e os operadores descritivos

Em exibição há 39 anos na Rede Globo, o Jornal Nacional consolidou-se como o principal telejornal brasileiro. Mesmo com as diversas mudanças que caracterizaram sua evolução – como trocas de apresentadores; modernização dos cenários, vinhetas e recursos de edição e montagem – , o JN “permanece o telejornal de maior audiência do país e é o modelo de referência para o telejornalismo nacional” (Gomes, 2005; p.01). Mantiveramse também, segundo Silva (2002), alguns eixos e temáticas de abordagem que configuram o padrão do JN no cenário televisivo brasileiro: “a inserção no cenário e debate nacional; a prioridade do investimento tecnológico como padrão de qualidade e confiabilidade; e a promoção da identidade nacional.” (Silva, 2002, p.84).

A emissora apresenta a intenção de promoção dessas temáticas. Para apresentar o produto a potenciais anunciantes, a Rede Globo confere ao JN um posto de suma importância também para a população brasileira. “O Jornal Nacional está no topo do telejornalismo brasileiro. (...) O telejornal preferido e o ponto de referência da informação para milhões de pessoas em todo o país.” (www.comercial.redeglobo.com.br, consultado em 20/10/2008). Esporadicamente, o JN produz séries de reportagens especiais para tratar temas variados. As séries vão ao ar durante uma semana, em reportagens de 3 a 6 minutos de duração, com uma estrutura independente do jornal, em que os assuntos podem ser mais aprofundados do que em matérias comuns. As séries ora tratam de assuntos que estão em pauta em determinadas épocas como “Eleições municipais”, ora referem-se a macrotemas, como “Educação no Brasil”. Elas se caracterizam também por ter começo, meio e fim em cada reportagem, sendo desnecessário conhecimento prévio das reportagens anteriores, ainda que isso enriqueça a forma como o telespectador a recebe.

Nesse trabalho, analisamos a primeira edição da série Identidade Brasil, descrita na página do JN na Internet como “Samba, futebol, novelas, feijoada e muito mais nas raízes do povo brasileiro”. As reportagens são intituladas “Um grande negócio”, “Cultura na TV”, “Identidade Cultural”, “Produção Cultural” e “Brasil com S” (o site não disponibiliza a reportagem de introdução, exibida na segunda-feira). Pode-se considerar, dessa forma, a série Identidade Brasil como um formato específico, com um esquema de estruturação característico. Mestrado de Comunicação - UFSM

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Qual é a cara da cultura brasileira apresentada pelo Jornal Nacional Quanto aos operadores, o problema de pesquisa proposto faz menção a dois elementos fundamentais: cultura e cultura brasileira. É nosso propósito também evidenciar qual é o posicionamento dos públicos presentes na série para compreender quais são os atores sociais que forneceram concepções desses elementos. Sendo assim, elaboramos um conjunto de operadores descritivos articulados com os públicos envolvidos, conforme demonstrado abaixo:

1) Mapa de codificação dos elementos verbais: selecionados a partir do tema da cultura. Selecionamos frases que propõem ou argumentam algo acerca da cultura. Além disso, atribuímos a frase ao ator que a emite. Os operadores e os públicos ficaram assim definidos: •  Operadores descritivos:

Concepções de cultura (é/está): frases do texto que contêm qualquer referência, afirmação ou concepção sobre aquilo que se entende por cultura. Usos da cultura: frases do texto que fazem qualquer referência ou menção à consideração da cultura a partir da tese de sua “conveniência”, conforme apresentada por George Yúdice (2004). Para este autor, a emergência de um novo contexto histórico pós-guerra fria possibilitou pensar a cultura em função de sua utilidade, ou seja, considerá-la legítima na medida em que serve a alguma finalidade. Contudo, não se trata da cultura reduzida a um recurso material ou simplesmente instrumental, mas dotada de um papel intrínseco tanto à política quanto à economia, e que não pode ser negligenciada, mas sim, considerada em seus usos estratégicos. Cultura Brasileira/Cultura Nacional é/está: frases que oferecem concepções da cultura brasileira/nacional e de manifestações que a contêm. Veremos que, muitas vezes, concepções de cultura são acionadas sem maiores distinções, como se, ao mencionar onde está a cultura, pudéssemos inferir o que ela é. •  Públicos:

Público anônimo: pessoas que emitem algum ponto de vista, na estrutura de “povo fala”. Seus nomes e profissões não são identificados. Vozes autorizadas: pessoas que emitem algum ponto de vista, na estrutura de entrevistas. Sua imagem é acompanhada de legendas com seus nomes e profissões, donde podemos inferir que elas recebem uma espécie de ‘autorização’ para falar da cultura. Ator midiático: repórteres e âncoras, cuja emissão, quase invariavelmente, 72

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Simone Maria Rocha tem por função arrematar e autorizar as concepções obtidas, conferindo à televisão papel relevante na definição do problema proposto. 2) Mapa de codificação dos elementos audiovisuais: •  Descrição da narrativa:

descrição em detalhes do curso da narrativa: começo, desenvolvimento, fio condutor, momento de clímax, resolução. Examinamos as seqüências principais e as vozes convocadas. Observamos os ambientes de cena preferenciais, movimentos de câmera, planos e trilha sonora, para compreender o quanto elementos audiovisuais contribuem para o entendimento da questão proposta.

3. A ‘enunciação’ da Cultura Brasileira

Ao colocar o JN como “ponto de referência da informação”, percebem-se no discurso da Rede Globo traços característicos da definição do gênero. A referência aos acontecimentos do mundo exterior (alheio ao controle da mídia) revela o comprometimento com a “verdade” dos fatos. O programa reporta-se ao plano de realidade factual, convocando do espectador o regime de crença da veridicção. O subgênero Telejornal apresenta regularidades presentes em outros programas. Podemos destacar aqui o tom de expectativa de seriedade, que confere “efeitos de sentido de verdade, confiabilidade, credibilidade ao que está sendo noticiado.” (Duarte, 2007) Mas a especificidade da promessa do JN se realiza no formato que lhe é característico. Os valores de credibilidade e imparcialidade são aí invocados de forma particular, sobretudo se comparado aos outros noticiários da emissora (Gomes, 2007). Isso pode ser observado, por exemplo, pela atitude dos apresentadores: em postura sisuda, Fátima Bernardes e William Bonner não assumem posições frente aos acontecimentos que relatam e mantêm uma interação sutil entre si. A sobriedade na apresentação das notícias parece, portanto, ser o tom preferencial. A dimensão da vinculação nacional é outro traço marcante no formato do JN. Ainda que suas notícias refiram-se predominantemente ao centro simbólico do país – referente a Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília (Gomes, 2005), o discurso do Telejornal é direcionado a todos os brasileiros, convocando-os a sentirem-se parte do universo da informação nacional.

Para bem fornecer uma abordagem de gênero, é necessário classificar a série de reportagens dentro do JN, já que ela é um de seus subproMestrado de Comunicação - UFSM

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Qual é a cara da cultura brasileira apresentada pelo Jornal Nacional dutos. As reportagens da série atualizam as características de realidade e regime de crença convocadas pelo JN, além de reproduzir sua lógica geral de produção de matérias (convocação de personagens, imagens redundantes, procedimentos tradicionais de edição). Ao mesmo tempo, conferem a elas novas expectativas e regularidades, afins a todas as séries de reportagem que o Jornal apresenta – profundidade no tratamento dos assuntos, relativa liberdade na exploração dos temas.

A série Identidade Brasil tem elementos de organização que lhe são próprios e a diferem das demais, como cenários preferenciais e estrutura narrativa. A própria presença de Maurício Kubrusly confere às reportagens um tom diferente. Apesar do caráter sóbrio do JN, Kubrusly é despojado, e incorpora seu despojamento às reportagens – o que o permite fazer piadas com o Ministro da Cultura, por exemplo. Ao mesmo tempo, essas reportagens realizam o discurso eminentemente nacional do Jornal. Ao dizer de uma cultura brasileira, a série convoca todos os brasileiros a se enxergarem no que ela apresenta. Com a seriedade e a abrangência do Jornal Nacional, mas de uma forma leve e despojada.  A enunciação da cultura brasileira nas reportagens da série Identidade Brasil seguem uma estrutura narrativa que incorpora em si as características do JN e, ao mesmo tempo, as amplia, ao acrescentar aspectos próprios do seu formato. Todas as reportagens da série seguem o mesmo esqueleto: o assunto é recuperado pelos âncoras, que introduzem o tema específico do dia e chamam o repórter responsável. Segue-se a vinheta de abertura, em que aparecem fotos de pessoas ordinárias e anônimas. Ao desvelar-se o reverso das fotos, surgem os inscritos “Identidade Brasil” tendo como fundo um desenho alusivo à bandeira nacional. Podemos inferir que o sentido dessa vinheta é afirmar que a identidade brasileira é formada por todo e qualquer cidadão comum – o que será reafirmado e reiterado ao longo da Série. Na seqüência, são exibidos fragmentos curtíssimos de entrevistas com “populares” numa dinâmica semelhante àquela conhecida como “povo fala”. Esses entrevistados aparecem predominantemente em closes, em vários locais públicos (como praças e ruas), não são identificados por legendas e emitem opiniões acerca do que parece ser (pois a questão é omitida na edição) uma questão sobre cultura brasileira. O que se segue de maneira geral na Série é a convocação do aqui estamos considerando “vozes autorizadas”. Quando especialistas e celebridades aparecem na tela para oferecer uma concepção sobre cultura brasileira, sua participação tem quase sempre uma duração consideravelmente maior do que a dos “populares”, e 74

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Simone Maria Rocha é quase sempre acompanhada por imagens redundantes em relação à fala dos participantes. Um exemplo é a seqüência em que Gilberto Gil, então ministro da Cultura, ao ser questionado sobre o que é cultura brasileira, responde que “Cultura tá nas ruas, cultura tá nas vivências, cultura tá na culinária brasileira, cultura tá nas festas indígenas, tá no design, tá na moda, tá futebol(...)”. Enquanto as concepções são narradas, exibem-se cenas de dança e música indígena, que correspondem literalmente às falas. O encaminhamento final das reportagens segue quase sempre a mesma lógica. Ora com o arremate de vozes autorizadas, ora com a confirmação através das opiniões do público anônimo, o que se quer afirmar é o que parece ser o bordão desta Série, repetido ao final de cinco das seis reportagens, na voz de Maurício Kubrusly: “é a cultura que faz a cara do Brasil”. Afirmamos que a escolha das vozes advém de vários fatores, como a linha editorial do JN, o canal em que ele se apresenta e o enquadramento que se pretende conferir ao tema. Segundo Porto (2007), quanto maior a possibilidade de vozes controversas se apresentarem, mais chances os telespectadores terão para construir um sentido mais complexo sobre aquilo que se lhe apresenta. Por outro lado, o número de vozes que são convocadas não é sinônimo de ampliação das possibilidades de interpretação. É preciso analisar e qualificar essas participações, que muitas vezes se prestam apenas para reiterar o enquadramento do Jornal, criar maior identificação com o público telespectador ou abrir a possibilidade de que aquele tema possa ser visto sob outra perspectiva.

Importante ressaltar a forma como as imagens são usadas neste programa, identificada ao longo de toda a narrativa. Convocadas como mero recurso ilustrativo daquilo que está sendo dito, as imagens sequer ganharam relevância analítica para o escrutínio do problema aqui proposto. Paralelamente a quase todas as falas das vozes autorizadas e do ator midiático, mostravam-se cenas óbvias, que correspondiam exatamente ao que estava sendo anunciado. A relação texto/imagem foi assim transformada num procedimento que poderíamos denominar de “lógica da redundância”[6].

Voltando à enunciação da cultura brasileira, apresentamos o mapa que contém as concepções pronunciadas pelas vozes acima identificadas.

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Qual é a cara da cultura brasileira apresentada pelo Jornal Nacional Mapa de codificação dos elementos verbais PÚBLICOS

Público Anônimo Vozes autorizadas Ator Midiático

Concepções de cultura (é/está)

11

5

16

Usos da cultura

-

1

3

Cultura Brasileira/Cultura Nacional é/está

18

15

15

TOTAL (N=84)

34,52%

25%

40,47%

Uma leitura inicial deste mapa, detida apenas nos dados extraídos da análise de conteúdo, poderia levar-nos a inferir que houve certo equilíbrio no que diz respeito à participação dos diferentes públicos. Os anônimos estão presentes em 34,52% do total de participações, enquanto vozes autorizadas são convocadas em 25% e o ator midiático aparece em 40, 47% das vezes em que a cultura foi enunciada.

Entretanto, se submetermos estes dados à interpretação do subgênero veremos como cada voz ganha ou perde importância na curso da narrativa. No caso do Jornal Nacional, Porto (2007) nos indica que houve uma reestruturação do programa, na direção de uma popularização do produto. Uma das justificativas dos jornalistas para apresentar este tipo de enquadramento é a necessidade de tornar as notícias mais compreensíveis e interessantes para a audiência. Para William Bonner, editor chefe do Jornal Nacional, a sonora “legitima o discurso jornalístico da reportagem (...), é a nossa prova inconteste de que fomos lá e de que demos ouvidos aos personagens daquela estória”. (apud Porto, 2007, p. 164)

É uma prática comum no telejornalismo a convocação de diversas vozes populares para ilustrar, confirmar ou legitimar a visão preferencial da reportagem. No caso da participação dos anônimos na referida Série, não foi possível extrair uma concepção forte de cultura ou de cultura brasileira. São apresentadas concepções vagas, extremamente editadas, e a maioria não chega a 3 segundos: “Cultura é uma coisa assim muito bonita, né?”, “As praias que nós temos muito lindas. Tudo é cultura”. As vozes autorizadas, por sua vez, oferecem concepções mais elaboradas de cultura, o que corrobora com os objetivos da Série. Para isso, essas figuras têm mais tempo de exibição (mais de 8 segundos, em média) e podem desenvolver, em alguns momentos, uma maior argumentação: cultura brasileira é o nosso modo de fazer. O modo de fazer nosso é peculiar. Isso constitui a essência da nossa cultura, seja do ponto de vista de produzir beleza, seja 76

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Simone Maria Rocha do ponto de vista de produzir soluções para o nosso diaa-dia, o que comer, o que vestir, de como fazer (Danilo Miranda, Diretor SESC/SP).

Tanto pela análise de conteúdo, como pela análise de subgênero, pudemos perceber que o ator midiático é quem faz as articulações entre as visões de anônimos e vozes autorizadas, em um amálgama de concepções que não chega a desautorizar nenhuma delas. Na verdade, podemos afirmar que há um predomínio do ator midiático, que usa as vozes convocadas servem para autenticar seu discurso. Quando uma voz anônima diz, por exemplo, que “Pelé... Pelé é cultura do Brasil”, Kubrusly arremata Ela tem toda razão. Os ídolos fazem parte da cultura. Também porque eles se transformam em símbolos do país, inclusive quando estão fora do Brasil. A gente sente orgulho, a gente se identifica com os ídolos, faz parte da cultura. E ainda tem bem mais...”.

Dessa forma, ele confirma a concepção oferecida e abre espaço para as outras que virão. Para melhor avaliar sua posição, é preciso recuperar um pouco da promessa dos telejornais em geral e da Série em particular. O subgênero telejornal convoca ao relato dos fatos ocorridos no mundo real os valores de objetividade, neutralidade e veracidade. Em se tratando do formato JN, essas características são agregadas de modo rigoroso. Por isso o repórter acaba por se isentar da emissão de uma opinião clara. Seu papel se resume a reunir as vozes e traçar um amálgama que contemple todas as possíveis concepções. No caso do formato específico da Série, a promessa de aprofundamento e liberdade no tratamento do tema é evidenciada. Em cada uma das seis reportagens exibidas, são 5 minutos de várias entrevistas, estatísticas, imagens, concepções diversas de cultura. Cabe ao ator midiático justamente reunir esse todo, dentro da estrutura permitida pelo subgênero.    Prevalece, pois, no JN a ausência de concepções fortes de cultura[7]. Se anônimos e vozes autorizadas oferecem concepções diversas, imprecisas e desconectas, cabe ao ator midiático arrematá-las em um todo cujo conteúdo é fundamentalmente elusivo. É possível identificar com clareza as razões pelas quais cultura e cultura brasileira são tratadas de forma tão vaga e abrangente. Tendo em vista o lugar que o Jornal Nacional ocupa no cenário televisivo brasileiro, dada a sua ampla audiência que se encontra espalhada no País inteiro e por todos os segmentos sociais, é se de esperar que tal proMestrado de Comunicação - UFSM

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Qual é a cara da cultura brasileira apresentada pelo Jornal Nacional grama tenha a intenção de promover o entendimento e a identificação de todo e qualquer cidadão. A cara do Brasil que o Jornal nos oferece parece ser uma grande matriz porosa, à qual todos podem se sentir pertencentes.

Uma menção especial deve ser feita ao papel atribuído à televisão no que diz respeito à cultura. Tanto é assim, que uma das reportagens é inteiramente dedicada à relação entre televisão e cultura brasileira. O mote central que confere importância ao lugar da televisão nesse processo abarca as várias possibilidades que a TV oferece: levar a cultura brasileira a outros países; mostrar aos próprios brasileiros toda a diversidade cultural de seu país; dar a ver o Brasil de várias épocas e lugares aos quais não se pode ir. Em destaque, há ainda o argumento de que, ao promover programas que tratam da cultura brasileira, a televisão pode oferecer às pessoas chances de desenvolver sentimento de pertença e identificação. Além de revelar uma televisão que é cada vez mais auto-referenciada, a Série se oferece ao público como um desses espaços de identificação. Qualquer brasileiro pode, assim, sentir-se parte do espaço da televisão, do Jornal Nacional, de uma identidade que é de todos e não é de ninguém: é a cara da cultura brasileira.

Conclusão

Trouxemos neste artigo uma proposta de compreensão dos modos pelos quais a televisão brasileira empreende uma abordagem da cultura nacional, à luz de uma proposta metodológica que cruza análises de conteúdo e de gênero televisivo. Tal empreendimento foi bastante profícuo, uma vez que nos deu a conhecer um modo específico pelo qual a linguagem televisiva narra aspectos da vida social. Por que razões continuam a Cultura Brasileira e a identidade nacional a estar em toda parte, multifacetadas e penetrantes como apresentadas pela série Identidade Brasil? Que funções elas continuam a desempenhar? Se retomarmos as discussões de Smith, certamente entenderemos que a cultura brasileira ainda continua a desempenhar o papel de unificadora de um país heterogêneo, mulculticultural, vivido e experimentado sob perspectivas várias. Como vimos, elas nem sempre se configuram num mesmo discurso. Na verdade, nem sabemos se elas cabem ou querem caber dentro dele. Programas como esse, que pretendem mostrar uma ‘cara’ do Brasil, precisam forjar uma herança cultural comum, formando uma área de 78

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Simone Maria Rocha cultura única. E o fazem por meio de um alargamento dos limites nacionais, e de inter-relações entre as diferentes culturas regionais através de um leque de temas, manifestações e personagens, de modo a ampliar a escala e as possibilidades de identificação do brasileiro com esta identidade. Identidade que acaba por ser uma espécie de “força imaginal” (França, 1998), cuja capacidade estruturante abriga as mais diversas concepções, sem necessidade de hierarquizá-las, ou mesmo estabelecer um critério de validade. A ‘cara’ da cultura brasileira, proposta na série “Identidade Brasil”, é um mosaico de culturas sobrepostas, cujo objetivo é o de criar sentimentos de afinidade e pertencimento.

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Notas

Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no I Colóquio em Imagem e Sociabilidade realizado na UFMG de 12 a 14 de novembro de 2008. [2] Há ampla literatura nas ciências sociais sobre estes temas. Nosso propósito é o de investigar como a TV os apresenta e confere à cultura e à identidade brasileira uma ‘cara’ que possa ser compartilhada. [3] Sabemos que o autor, ao investigar os diferentes modos de emitir um enunciado, o faz a partir da noção de contrato de leitura que oferece pistas para pensar tanto as condições de produção quanto as condições de reconhecimento da mensagem. Já François Jost propõe que não pensemos em termos de contrato, mas, sim de promessa, de uma expectativa de comunicabilidade que os programas, abrigados pelos respectivos subgêneros, oferecem aos telespectadores. A contribuição de Véron aqui diz respeito a este imponderável fenômeno da midiatização da vida social, que muito nos auxilia a compreender o lugar e o papel da cultura numa dada sociedade. [1]

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Simone Maria Rocha Não cabe aqui delinear a discussão entre realidade e ficção. Basta apenas esclarecer que estas formas de apresentação se diferenciam na medida em que a realidade discursiva 1) referencia diretamente o mundo exterior, como no caso do telejornal; 2) é ficcional como nas telenovelas 3) é criada artificialmente não tendo como referência o mundo exterior. Compreendemos que a televisão não mostra a realidade e, sim, apresenta-a de forma própria e acreditamos que o universo ficcional tem possibilidades tão próximas da realidade quanto outras. [5] Não desconhecemos a abordagem dos estudos culturais segundo a qual os gêneros não são propriedades exclusivas do texto. Conforme afirma MartinBarbero (2001) estes são definidos pelos usos que são feitos – mediados por competências, expectativas e modos próprios de ver do espectador – ainda que exista uma intencionalidade por parte do emissor. Nessa medida gênero televisivo seria abordado na perspectiva de uma relação social que reconhece algumas regularidades, mas vê também transitoriedades. O GPTV/PPGCOM/UFBA tem trabalhado sob essa inspiração, uma vez que considera a TV como uma instância midiática que precisa ser abordada também sob os aspectos econômicos, ideológicos etc.(Cf. Gomes, 2002 e 2006). Também não ignoramos a complexidade e hibridação que marca toda produção televisiva. Nossa opção aqui por uma ‘semiótica da produção’ se deu em virtude do interesse de construir em detalhes a promessa de cada gênero ao qual os respectivos programas estão vinculados, ou seja, pretendemos reconhecer as regularidades para a melhor compreensão da questão proposta. [6] Longe de tecer uma crítica rasa a essa lógica, o que nossa abordagem pretende é entendê-la como um aspecto do gênero. A necessidade da imagem é uma característica da televisão de modo geral. Sua subutilização na forma de mera ilustração pode ser entendida como uma fórmula empregada pelo jornalismo tradicional, no qual o JN se encaixa. [7] É plausível que tenhamos uma justificativa para a quase ausência de referências acerca dos “usos da cultura”. Para atribuir à cultura um novo papel, é preciso ir além das concepções tradicionais. Se a Série não confirma nem mesmo estas, como poderia superá-las, conferindo outros lugares e usos para a cultura? [4]

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Publicidade e identidade cultural: nacionalidade e hibridismo na comunicação publicitária da Coca – Cola.[1] Maria Alice de Faria Nogueira Publicitária e jornalista formada pela PUC – Rio, mestranda do Programa de Pós – graduaçãoem Comunicação Social da PUC – Rio e professora da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro. Email: [email protected]

Resumo: A partir de duas ações de comunicação publicitária da Coca – Cola feitas uma na década de 1940 e outra na década de 2000, este trabalho pretende tratar a participação da prática publicitária na formação de um projeto de Nação ao longo dos 60 anos que separam os citados exemplos. Palavras-chave: publicidade global, Coca – Cola, identidade cultural, hibridização, consumo. Resumen: A partir de dos acciones de comunicación publicitaria de Coca – Cola realizadas una en la década de 1940 y otra en la década de 2000, este trabajo pretende tratar sobre como la practica publicitaria fue modificada por los cambios históricos en el escenario de las identidades culturales ocurridas durante los 60 años que separan las referidas campañas. Palabra-clave: publicidad global, Coca – Cola, identidad cultural, hibridización, consumo. Abstract: Considering two Coca Cola’s advertisement campaigns carried out one in the 1940s and the other in the 2000s, this paper intends to discuss the role of advertisement practice in building the project of a Nation in the 60 year period that separates the two examples. Keywords: Global publicity, Coca – Cola, cultural identity, hybridization, consume.

Publicidade e identidade cultural

Introdução

Brasil, anos 1940. Uma campanha publicitária com anúncios de página inteira na edição brasileira da revista Reader’s Digest apresenta ao público uma nova bebida: o refrigerante Coca – Cola. Com o slogan “O convite universal...tome uma Coca – Cola”, a série de anúncios trazia ilustrações de casais vestidos em trajes típicos latino – americanos, desenhados sobre um fundo específico de cada país onde a Coca – Cola estava sendo comercializada na América Latina: o Canal do Panamá, a Catedral de Bogotá, vendedores de flores em Caracas, um monolito arcaico na Guatemala, uma charra mexicana e a Baía de Guanabara. Ao lado do texto, aparece o produto – uma garrafa do refrigerante – e o logotipo da Coca – Cola sobre o mapa das Américas e dos dizeres “Unidas hoje, Unidas sempre”. Com o objetivo de ser um refrigerante com gosto, presença e aceitação universal, a Coca – Cola utiliza em sua publicidade características locais para reforçar a idéia de que a entrada no que seria o “moderno mundo do consumo” se daria, para os brasileiros, através de um reforço de seu enraizamento numa cultura nacional (MIRANDA, 1999:266).

China, anos 2000. O objetivo de aceitação universal tinha sido atingido: líder mundial em venda de refrigerantes, a Coca – Cola, a mais valiosa marca do planeta – US$ 66,667 bilhões em 2008 [2] – , lança uma campanha publicitária no mercado chinês. Através de sua agência de publicidade transnacional, a empresa veiculou uma campanha global que apresentava aos chineses o conceito “Coca – Cola” de ser, de estar, de consumir. Para assinar a propaganda, a agência buscou no mandarim alguns fonemas que sonoramente se aproximassem ao nome original do produto. A escolha da agência foi ke – kou – ke – la por se parecerem, ao serem falados, com co – ca – co – la. Após lançada a campanha, a Coca – Cola verificou que ke – kou – ke – la soava para os chineses como algo parecido com “a égua recheada de cera”[3]. Ao tentar impor localmente uma comunicação global sem considerar as características do país em questão, no caso a China, a Coca – Cola utiliza a noção de homogeneização cultural para penetrar em mercados de consumo emergentes. Neste caso, foi o global se sobrepondo ao local como estratégica de penetração de mercado.

Estas duas ações de comunicação publicitária da Coca – Cola nos servirão com ponto de partida para analisarmos a questão que nos interessa nesse trabalho: a participação da prática publicitária na formação de um projeto de Nação ao longo dos 60 anos que separam os citados exemplos, 84

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Maria Alice de Faria Nogueira principalmente a partir das mudanças no cenário das identidades culturais ocorridas com a intensificação da globalização econômica e homogeneização das culturas que se sobrepuseram às identidades nacionais.

Nação, modernidade e consumo: publicidade na era moderna

Dimensão pública do consumo, a função da publicidade não deve ser reduzida a um instrumento de vendas. Segundo ROCHA (1985, 1994, 2004), a publicidade se coloca para além da venda de bens manufaturados e serviços por ser, seu discurso, um sistema simbólico através do qual é possível se divisar um vasto panorama de estilos de vida da sociedade na qual ela se insere. Esta afirmação deriva do fato da publicidade ser a estrutura que “sustenta o edifício da mídia”, isto é, da comunicação de massa, ao explicar a produção de bens numa ordem cultural e simbólica que a traduz e decodifica. Neste sentido, a publicidade retrata uma série de representações sociais sacralizando momentos do cotidiano que formam, magicamente, uma nova sociedade que reflete um modelo de si mesma dentro das telas da comunicação de massa. (ROCHA, 1994:101). Na era moderna, o Estado – nação mediava este espaço cotidiano para a afirmação de uma identidade cultural nacional, já que era, o Estado, quem organizava a vida em sociedade e regulava as trocas econômicas e culturais dentro suas de fronteiras. Mike Featherstone observa que: As interações cultura local/ cultura de mercado são normalmente mediadas pelo Estado – nação que, no processo de criar uma identidade nacional, educará e empregará seus próprios intermediários e especialistas culturais ou então irá reinventar memórias, tradições e práticas com as quais poderá controlar, canalizar e resistir à penetração do mercado. (FEATHERSTONE apud MIRANDA, 1999:268)

Sobre este processo de se criar uma identidade nacional, ANDERSON (2008) afirma que nações são comunidades imaginadas, limitadas e soberanas. Mas para imaginá – las, todo um repertório simbólico, e, portanto cultural – tais como um passado histórico, hinos, bandeiras e rituais de afirmação de nacionalismo – foi desenvolvido para servir de base para a idéia de Nação como nova maneira de unir simbolicamente a fraMestrado de Comunicação - UFSM

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Publicidade e identidade cultural ternidade, o poder e o tempo. Os meios utilizados na criação, produção e disseminação deste sistema de símbolos nacionais foram, para Anderson, os discursos da literatura e da mídia, jornalismo principalmente, num fenômeno que o autor denomina como capitalismo editorial, que articulou as transformações sociais, políticas e econômicas com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa.

No caso brasileiro, a construção de um discurso identitário nacionalista teve início no período do Estado Novo (1937) com a definição da cultura como “matéria oficial” tendo como objetivo “fundar um novo Brasil, homogêneo e uniforme em seus valores, comportamentos e mentalidades” (MENDONÇA, 1990: 292). O projeto estadonovista de afirmação de uma identidade cultural nacional foi sedimentado em duas bases distintas: 1) pela educação, que tratava de formar uma mentalidade nacionalista comum a todos os jovens através da escola; 2) e pelo patrocínio da “alta cultura”, com o Estado investindo em projetos culturais grandiosos, alicerçados no folclore (cultura popular) e na erudição. Sob esta ótica, os domínios da produção, difusão e preservação de bens culturais da época passaram para a tutela do Estado, já que nacionalismo era sinônimo de homogeneização cultural que prescindia a pluralidade característica do Brasil. Neste modelo estatal de construção da memória da nação – seu caráter produtor de sentido e de símbolos nacionais – e de uma identidade cultural, portanto, era afirmado por um discurso construído pelas instituições do Estado que tratava de um passado nacional glorioso, através de uma narrativa de fundação que constrói a história oficial e enaltece o espírito do povo e da nação. Ao considerarmos a campanha publicitária da Coca – Cola em 1942, é importante observar que a força do Estado estava presente na mensagem publicitária através do slogan “Unidas hoje, unidas sempre”, referência clara a conhecida ‘política da boa vizinhança’ desenvolvida a partir da década de 1930 pelo governo norte – americano nos países da América do Sul, não por acaso, também presentes nos anúncios.

Um outro viés muito importante do projeto nacionalista de modernização foi a criação de uma política econômica governamental de industrialização e desenvolvimento do capitalismo no país. Grande parte deste projeto de desenvolvimento econômico foi a abertura dos parques industriais para fabricação de produtos originalmente importados, como automóveis e eletros – domésticos, entre outros bens de consumo final que aqui começaram a ser produzidos e comercializados, como a própria Coca 86

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Maria Alice de Faria Nogueira – Cola. A industrialização brasileira possibilitou o crescente consumo destes produtos no país e fomentou a publicidade local com a forte presença das marcas como patrocinadoras de programas de rádio, em um primeiro momento, e da televisão a partir da década de 1950, intensificando o vínculo entre política, economia, consumo e modernidade.

Como afirma MIRANDA (1999), em 1942 a publicidade também foi ferramenta na construção do projeto de Nação por juntar, em seu discurso, pistas da cultura nacional e do consumo moderno:

A estratégia não deixa de ser curiosa: a inserção do consumidor numa territorialidade mais ampla se dá pelo reforço de seu enraizamento numa cultura nacional. Está armado o palco para o aceleramento dos mecanismos da modernização, que apontam para o projeto de definição do nacional como projeto do moderno. Nação, consumo e modernidade já aparecem aí como termos da mesma equação. (MIRANDA, 1999: 266) A propaganda do “refresco preferido das Américas” (como comunicado no anúncio), leva em consideração acordos políticos firmados pelo EUA com o Estado brasileiro ao mostrar a força do ideal de Nação construído, simbolicamente, pela paisagem da Baia de Guanabara, ícone natural da, então, capital do país. Foi o estereótipo do nacional sendo usado para favorecer a expansão do capital internacional – via acordos políticos e mercadorias – mas sem deixar de reforçar a identidade cultural brasileira.

Política e economia, por um lado, consumo e publicidade, por outro, construindo o ideal simbólico da Nação brasileira. Neste sentido é possível pensar o papel da publicidade como ferramenta na construção da identidade cultural de um povo. Como afirma ROCHA (1994), “o discurso publicitário fala sobre o mundo, sua ideologia é uma forma básica de controle social, categoriza produtos e grupos sociais. Faz do consumo um projeto de vida”. No caso da propaganda da Coca – Cola, também fez parte do projeto do Estado brasileiro moderno.

A globalização dos mercados e a transnacionalização das culturas

Em seu texto The Globalization of the Markets, de 1983, Theodore Levitt preconizava que o futuro das empresas era pensar e agir globalmente. Tendo a tecnologia a seu favor, grandes empresas iriam homogeneizar seus produtos, conceitos de comunicação e suas práticas comerciais, Mestrado de Comunicação - UFSM

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Publicidade e identidade cultural como preço e distribuição, para serem bem sucedidas em escala planetária, desprezando as estratégias que consideravam os mercados locais. Com a frase “a terra é plana”, ele resumiu sua idéia. Diferentes preferências culturais, gostos e padrões nacionais, além de empresas locais, são vestígios do passado. Algumas heranças desaparecem gradualmente, outras prosperam e se expandem em termos de preferências globais. Os chamados mercados étnicos são um bom exemplo. Comida chinesa, pão ‘pita’, música country, pizza e jazz estão em todos os lugares. Eles representam segmentos do mercado que existem em escala mundial. Eles não negam ou contradizem a homogeneização global, ao contrário, a confirmam (LEVITT, 1983:5)[4]

Esta idéia de padronização e homogeneização dos mercados, e conseqüentemente, do perfil dos consumidores, seu estilo de vida e hábitos de consumo, orientou as práticas mercadológicas e ainda orienta em alguns casos, como o da Coca – cola na China já citado. No entanto, segundo ORTIZ (2003), se partimos da idéia da globalização para falarmos de economia é possível mensurar as trocas comerciais e mercadológicas. No entanto, a sociedade global – definida pelo autor como um sistema constituído que integra sistemas menores em tamanho e complexidade – no modelo homogeneizante proposto por Levitt, para funcionar como um todo tão articulado, com uma coesão interna super elevada sem a qual sua funcionalidade estaria comprometida, deveria excluir os atores sociais. Mas é impossível pensar cultura sem considerar às práticas cotidianas desempenhadas pelos atores sociais. Por esta razão, principalmente na esfera da cultura, base de todo o trabalho publicitário, esta homogeneização global teve o efeito diverso ao preconizado. A tendência à formação de uma única identidade a reboque da globalização econômica e especialmente, da criação de um mercado global, não se confirmou. Ao contrário: gerou uma fragmentação cultural e identitária jamais vista. Segundo HALL (2003), uma das principais características da tecnologia da informação é a “compressão do espaço – tempo”. Qualquer evento em um determinado lugar do mundo tem impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância, em função da velocidade como esse evento é difundido. Dessa forma, sentimos o mundo menor e as distâncias mais curtas. A partir do momento que a comunicação nos aborda e nos leva, mesmo que virtualmente para qualquer lugar, a identidade que 88

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Maria Alice de Faria Nogueira liga o homem ao seu local de origem é perdida em meio a essa compressão, porque é dentro dessas coordenadas – tempo e espaço – que se formam a representação simbólica de uma nação e o sentimento de pertencimento de seus cidadãos. A tecnologia, portanto, desenraiza a noção de pertencer aquela terra e transforma seus cidadãos desterritorializados em indivíduos autônomos que buscam hedonisticamente, sua liberdade de vida e escolhas na sociedade pós – informatizada global. Afirma ORTIZ (2002): A dimensão da cultura não escapa a essas transformações. A ‘revolução’ tecnológica permite uma circulação planetária de bens culturais numa escala inteiramente nova. Eles já não mais circunscrevem a esse ou aquele país, transbordando fronteiras nacionais. A cultura tornou – se ainda uma esfera de expressão de conflitos diversos, disputas étnicas, fundamentalismo religioso, afirmação de gêneros, trazendo a discussão de identidades para primeiro plano (ORTIZ, 2002). Com a queda das fronteiras geopolítica das nações, o declínio da Estado – nação como conhecíamos na modernidade é inevitável. Ao deixar de ser o principal mediador da identidade nacional, o Estado dá lugar uma variedade de outras possibilidades pós – modernas de mediação. A identidade ao romper com sua faceta nacional, vive um momento de experimentações e hibridizações, que diversifica suas configurações. ORTIZ afirma que:

O declínio da Estado – nação teria inaugurado uma era de fragmentação social, salutar ou perigosa. O debate oscila desta forma, da totalidade à parte, da integração à diferença, da homogeneização à pluralidade. Tem – se a impressão de se estar diante de um mundo esquizofrênico. Por um lado pós – moderno, multifacetado, por outro uniforme, idêntico em todos os lugares (ORTIZ, 2002). Com a consolidação do mundo global, a partir dos avanços tecnológicos produtivos e principalmente, informacionais, as identidades nacionais estão sendo reconfiguradas em função das trocas simbólicas e das redes de construção de significados dentro das quais as identidades se sustentam. Identidade confundia – se com nacionalidade. Hoje, a nacionalidade, isto é, o “princípio espiritual” (RENAN apud ROUANET, 1997) que faz com que alguém se sinta pertencente a uma nação, não é mais suficiente para localizar àquele povo àquele lugar. Para BHABHA (1998), em conjunto ao ato pedagógico de se narrar a nação, é imprescindível que se pense também a localidade da cultura, construída pelos atos performáticos do cotidiano Mestrado de Comunicação - UFSM

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Publicidade e identidade cultural que constroem a nação pelo viés do cultural – a cultura sendo construída, firmada e disseminada nas práticas cotidianas de uma nação; a construção da identidade nacional no dia – a – dia e não (somente) nas tradições e memória nacional. A globalização da informação, portanto, estimulou o conhecimento e a troca de novos referenciais culturais num fenômeno denominado por ORTIZ (1994) como mundialização das culturas. Segundo o autor, a cultura mundializada, ou transnacionalizada, significa uma civilização cuja territorialidade se globalizou. Mas isso não significa que o traço comum gerado por esta globalização seja sinônimo de homogeneização. Para ORTIZ, a globalização gerou um “fundo partilhado” no qual as escolhas são feitas baseadas num repertório cultural adaptado às práticas cotidianas locais, isto é, hibridizado localmente pelo e no cotidiano.

Hibridismo: O global e o local na publicidade da sociedade moderna contemporânea

Segundo ROCHA (2004), o consumo é um fenômeno que invade de forma avassaladora as práticas cotidianas e o imaginário da sociedade moderna contemporânea e torna – se, em conseqüência, um complexo sistema cultural com poderes classificatórios em relação às atitudes e comportamentos dos sujeitos.

O consumo invade nossas vidas como uma experiência banal – repleta de sentimentos, amplamente conhecida, fortemente compartilhada, cedo valorizada, logo investida de tantas sensações, muito pensada – , como um processo de socialização que, por sua centralidade, permite elaborar, interpretar, projetar e negociar tanto as nossas identidades quanto as outras identidades sociais (ROCHA, 2004:76). Desta forma, o consumo, para ROCHA, é fato social – coisa pública, coletiva, próprio da cultura (1995:35) – no plano de suas práticas e experimentado como um sistema de representações coletivas sistematicamente distribuídas e sustentadas pela comunicação de massa. Neste momento, a mídia, especialmente a publicidade, se faz presente como uma “chave – mestra” para se entender o consumo como sistema cultural e processo de construção de identidades. Por dar ampla visibilidade e experiência ao consumo no cotidiano, a publicidade confere sentido simbólico à produção. Assim, a esfera da produção só se viabiliza quando revestida deste caráter simbólico que vai 90

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Maria Alice de Faria Nogueira lhe dar significado público. E o consumo é a arena onde este significado ocorre.

A produção só cumpre seu destino de ser consumo, por meio de um sistema que lhe atribui significação, permitindo participar de um idioma e ser expressão de uma linguagem. O consumo é, portanto, o sistema que classifica bens e identidades, coisas e pessoas, diferenças e semelhanças na vida social contemporânea (ROCHA, 2004: 87).

Após o erro na tentativa de “traduzir” Coca – Cola para o mandarim sem considerar as características fundamentais da língua (dos 40.000 caracteres do idioma existem cerca de 200 que são pronunciados com sons próximos a co – ca – co – la), a empresa refez sua comunicação e buscou um novo nome para o produto. Sem fugir da questão fonética, mas não fazendo disso o critério principal, a Coca – Cola pesquisou caracteres que no contexto da escrita representassem seu posicionamento mercadológico, isto é, seu “estilo Coca – Cola” de ser, de estar e de consumir. O resultado desta busca recaiu sobre o nome ke – kou – ke – le que, numa versão livre para o português, quer dizer “diversão saborosa”:

Então por que não ke kou ke le? Por que a Coca escolheu uma escrita que muda a pronúncia de seu nome? É aí que está a graça: ke é uma boca. Ke kou significa saboroso. ke é o desenho de um instrumento musical em um suporte de madeira, e significa prazer, felicidade. Ke le significa prazeiroso, divertido. Ou seja, em cada latinha de Coca – Cola está escrito ‘diversão saborosa’. Em cada restaurante, as pessoas pedem por ‘diversão’ (ke le) e recebem Coca – Cola.[5]

A troca da postura mercadológica e comunicacional da Coca – Cola, que abandonou a postura homogeneizante para se a adaptar à cultura local, numa ação hibridizante entre o global e o local, permitiu ao público chinês se identificar com o produto e inseri – lo no seu cotidiano. Para ROCHA, a inserção do produto na esfera da vida real, em contrapartida ao mundo mágico do anúncio, é a proposta fundamental das narrativas da publicidade. Mas para que isso ocorra, a comunicação deve ser baseada no sistema simbólico e cultural local. Somente desta maneira, o estilo de ser “diversão saborosa” da Coca – Cola poderá ser aceito pelo público – alvo chinês. O anúncio, como moldura de acontecimentos mágicos, faz do produto um objeto que convive e intervém no universo humano. O anúncio projeta um estilo de ser, uma realidade, uma imagem das necessidades Mestrado de Comunicação - UFSM

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Publicidade e identidade cultural humanas que encaixa o produto na vida cotidiana. A verdadeira magia da publicidade é incluir o produto nas relações sociais dos receptores. (ROCHA, 1984: 139).

Após alguns anos fechada em suas fronteiras, isolada das trocas comerciais e culturais com outros países, a China hoje se apresenta como a potência do mundo globalizado no que diz respeito à produção e consumo de bens manufaturados. Ter o produto Coca – Cola produzido, comercializado e principalmente divulgado através de uma comunicação hibridizada, que leva em conta as questões culturais locais na sua criação e desenvolvimento, nos mostra o quanto à publicidade pode ser determinante para a construção de um imaginário cultural e simbólico. Neste sentido, mais uma vez, 60 anos depois, temos política, economia e consumo no projeto de afirmação da Nação. E a publicidade se faz presente reforçando a nacionalidade chinesa – com tudo de local que lhe é pertencente – quando utilizada para inserir a China na rede global de consumo.

Conclusão

Durante os 60 anos que separam os dois exemplos de ação publicitária da Coca – Cola citados neste trabalho, a tecnologia se mostrou peça fundamental nas transformações do cenário das identidades culturais. Em primeiro lugar, por ser a infra – estrutura material que assegurou a instauração da modernidade e também do ideal de Nação através do fenômeno denominado por Anderson de capitalismo editorial, do qual fazem parte a mídia – jornalismo especialmente, mas também a publicidade, como vimos – e a literatura. Em segundo lugar, por ter sido a tecnologia protagonista da queda das fronteiras nacionais que ajudou a construir, quando apoiou a intensificação dos fluxos cada vez mais globalizantes de pessoas, valores, bens culturais e mercadorias, ultrapassando fronteiras e desterritorializando produtos e indivíduos.

O enfraquecimento do Estado – nação como conseqüência da globalização econômica e mundialização das culturas, proporcionou a busca de novas identidades culturais, outras que não mais as nacionais, hibridizadas com a cultura local que são firmadas através das práticas sociais cotidianas. Nesta afirmação identitária característica da sociedade moderna contemporânea, o consumo se apresenta como um sistema cultural simbólico de classificação de pessoas e objetos que dá a base para novas configurações do 92

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Maria Alice de Faria Nogueira sujeito. Identidades são firmadas num código que ganha dimensão pública através da comunicação de massa e da publicidade, principalmente.

Os aparatos tecnológicos da comunicação de massa ao veicularem em dimensão global os elementos constitutivos de uma cultura mundializada oferecem padrões de referência para a formação de novas identidades sociais. No entanto, segundo THOMPSON (2005), a globalização da comunicação não eliminou o caráter localizado da apropriação, mas criou um novo eixo de difusão globalizada e apropriação localizada. À medida que a globalização da comunicação se torna mais extensa e intensa, a importância do eixo vai aumentando. Seu crescimento atesta o fato de que independentemente da circulação da informação e da comunicação ser cada dia mais numa escala planetária, o processo de apropriação da informação permanece intrinsecamente contextual e hermenêutico. Desta forma, não haveria um choque entre culturas, mas uma hibridização entre o local e o global, estimulando uma nova configuração identitária cultural na qual a nacionalidade, portanto, a localidade da cultura, é reforçada. Nesta perspectiva, ao considerarmos o consumo um complexo sistema cultural classificatório que na contemporaneidade se firma como um processo de socialização que permite elaborar, projetar e negociar nossas identidades; e a publicidade como o meio no qual o consumo e a produção tem visibilidade pública, é possível afirmar que discurso publicitário teve um papel importante na afirmação do projeto de Nação, assim como o jornalismo e a literatura, porque se constitui como ferramenta de localização do indivíduo naquele espaço de trocas simbólicas e de socialização.

Bibliografia

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Artigos

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Sites

www.gimainchina.blogspot.com. Acessado em 6/10/2008. www.interbrand.com. Acessado em 02/10/2008.

Notas

Uma versão premilinar deste trabalho foi apresentada no V Seminário de Alunos de Pós – graduação em Comunicação da PUC – Rio – V PÓSCOM, em novembro/2008.

[1]

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Maria Alice de Faria Nogueira 100 Best Global Brands. http://www.interbrand.com/best_global_ brands.aspx?langid=1000. Acesso: 02/10/2008. [3] Matéria Perdidas na tradução. Revista Exame. 11/10/2004. [4] Texto original: “Different cultural preferences, national tastes and standards, and business institutions are vestiges of the past. Some inheritances die gradually, others prosper and expand into mainstream global preferences. So – called ethnic markets are a good example. Chinese food, pita bread, country and western music, pizza, and jazz are everywhere. They are market segments that exist in world – wide proportions. They don’t deny or contradict global homogenization but confirm it”. Tradução de responsabilidade da autora. [5] Disponível em www.gimainchina.blogspot.com. [2]

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Do circuito cultural ao circuito da notícia: intersecções teórico-metodológicas Vilso Junior Chierentin Santi Doutorando em Comunicação Social na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Email: [email protected] Márcia Franz Amaral Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), docente do mestrado em Comunicação Midiática, da graduação em Jornalismo e tutora do Programa de Educação Tutorial (PET) do Curso de Comunicação Social na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Email: [email protected] Resumo: No presente artigo, lançamos mão das contribuições teórico-metodológicas dos Estudos Culturais Britânicos, em especial dos postulados Richard Johnson (1999) no que se refere ao “Circuito da Cultura”, a fim de entender e/ou explicar a dinâmica da cultura, dos produtos culturais, e suas intersecções com a prática jornalística. Para tanto aqui trataremos dos estudos culturais e de sua configuração, do “Circuito da Cultura” e de sua aproximação com o “Circuito das Notícias”, numa tentativa de abordagem integral e integradora, que reivindica uma visão global dos processos jornalísticos sustentada na idéia de integração entre produção, textos/ discursos e leituras. Palavras-chave: Teorias do jornalismo; Processos jornalísticos; Circuito das notícias; Metodologia de pesquisa em jornalismo; Estudos culturais. Abstract: In this article, we make use of theoretical and methodological contributions of the British Cultural Studies, in particular of the postulates by Richard Johnson (1999) regarding the ‘Circuit of Culture’, in order to understand and / or explain the dynamics of culture, of cultural products, and their intersections with journalistic practice. This way, we will deal with cultural studies and their configuration and with the “Circuit of Culture” and its reapproach to the “Circuit of news”, in an attempt to reach a full and inclusive approach, which claims an overview of the journalistic processes sustained in the idea of integration between production, text/ speeches and readings. Keywords: Theories of journalism; Journalistic processes; Circuit of news; Research methodology in journalism; Cultural studies. Resumen: En el presente artículo, lanzamos manos de las contribuciones teóricas y metodológicas de los Estudios Culturales Británicos, en especial de los postulados por Richard Johnson (1999) en lo que se refiere al “Circuito de la Cultura”, a fin de comprender y/o explicar la dinámica de la cultura, de los productos culturales, y sus intersecciones con la práctica periodística. Por lo tanto, acá trataremos de los estudios culturales y de su configuración, del “Circuito de la Cultura” y de su acercamiento con el “Circuito de las Noticias”, en un intento del abordaje integral  y de inclusión, que reivindica una visión general de los procesos periodísticos sostenida en la idea de integración entre producción, textos/discursos y lecturas. Palabras-clave: Teorías del periodismo; Procesos periodísticos; Circuito de las noticias; Metodología de la investigación en lo periodismo; Estudios Culturales.

Do circuito cultural ao circuito da notícia

Introdução

Na busca de sinalizadores capazes de, ao menos, balizar nossa incursão acadêmica pelo universo da comunicação em geral e mais especificamente pelo campo do jornalismo, lançamos mão, para esse trabalho, de algumas contribuições teórico-metodológicas que indubitavelmente nos acompanharão ao longo de nosso trajeto. O objetivo primeiro é apresentar alguns conceitos e/ou idéias sobre a comunicação e a prática jornalística, vinculadas à tradição dos Estudos Culturais, sua origem e desenvolvimento, os quais terão importância basal em nossa tarefa posterior. E, assentados nesse paradigma, estruturar nossa abordagem arquitetando as considerações acerca da comunicação e do jornalismo vinculando-as com a cultura e com sua lógica de funcionamento, produção e circulação.

Para tanto, tomaremos de empréstimo o modelo concebido por Johnson (1999) a fim explicar a dinâmica da cultura e dos produtos culturais e, através de um exercício teórico, transportá-lo para o campo jornalístico. Visto de outra forma, procuraremos trazer o jornalismo, como resultante e resultado de um processo de construção cultural, via notícias, para dentro dessa sistêmica lógica. O presente trabalho consiste primeiro num esforço para formatação de uma proposta teórica-metodológica relativamente nova, híbrida e ainda em contrução; depois, pretende colaborar para a difusão de uma particular visão sobre o jornalismo, como objeto de pesquisa científica na área de comunicação, enfocando aquilo que lhe dá vida, ou seja, seus processos.

Ao lançarmos mão do “Circuito da Cultura” proposto por Johnson (1999), daquilo que Strelow (2007) chamou de “Análise Global dos Processos Jornalísticos” e/ou do “Protocolo Analítico de Integração da Produção e da Recepção” de Escosteguy (2007) aspiramos despertar a atenção, primeiro à necessidade depois à possibilidade, de combinação entre diferentes técnicas de pesquisa social em comunicação, o que potencialmente pode resultar em estudos que busquem contemplar juntos, e da forma mais integral possível, os principais momentos do processo jornalístico – produção, textos/discursos, leituras junto com seus reflexos nas culturas vividas e nas relações sociais.

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Vilso Junior Chierentin Santi

Os estudos culturais e sua configuração

A Inglaterra, todos sabemos, não produziu e/ou ofereceu ao mundo apenas a Revolução Industrial. Grandes correntes de pensamento, ligadas ao desenvolvimento do saber, também foram gestadas nos domínios britânicos. Uma dessas correntes foi, sem dúvidas, os chamados Estudos Culturais. Os Estudos Culturais Britânicos surgem no final dos anos de 1950 vinculados ao CCCS (Centro de Estudos Culturais Contemporâneos) da Universidade de Birmingham na Inglaterra. Desde o nascimento eles foram pautados pela transdisciplinariedade e fortemente influenciados pelo estruturalismo e pela semiologia materialista. A escola teve seus pressupostos firmados pelos pesquisadores Richard Hoggart, Raymond Willians, Edward Palmer Thompson e, posteriormente, Stuart Hall.

A mercantilização da cultura, bem como a aceleração da organização capitalista dentro do universo cultural, facilitada pela atuação progressiva dos meios de comunicação, está entre os principais fatores que contribuíram para a formatação dos Estudos Culturais como linha de pesquisa e análise no seu nascedouro. Desde então, a corrente tem se caracterizado, principalmente por vincular suas análises às realidades históricas locais, pela variedade de objetos que estuda e analisa e por sua interdisciplinaridade. “Aquele que realiza Estudos Culturais fala a partir de interseções,” ressalta García Canclini (1995, p.27). Nessa breve linha histórico-temporal fica claro, conforme os postulados dos Estudos Culturais, que a cultura não pode ser apreendida como um todo. De acordo com Johnson (1999, p.19) para entendê-la precisamos de uma estratégia particular de definição. Uma estratégia capaz de revisar as abordagens existentes que, além de identificar seus objetos característicos e a abrangência de sua competência, também mostre as suas falhas e os seus limites. Na verdade, diz ele, “não é de uma definição ou de uma codificação que precisamos, mas de ‘sinalizadores’ de novas transformações”.

Com essa finalidade, análises e comparações de problemáticas teóricas podem ser componentes essenciais para uma boa análise cultural. Segundo Johnson (1999, p.23), porém, “sua dificuldade principal é que as formas abstratas de discurso desvinculam as idéias das complexidades sociais que as produziram ou às quais elas, originalmente, se referiam”. Mestrado de Comunicação - UFSM

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Do circuito cultural ao circuito da notícia Em Johnson, portanto, o termo ‘cultura’ tem valor apenas como um lembrete, não como uma categoria precisa. Conforme ele falar de cultura é falar de polissemia. Por isso, na tentativa de emprestar maior precisão ao fenômeno cultural, Johnson (1999, p.25) prefere falar da relação entre ‘consciência’ e ‘subjetividade’ para melhor defini-la. Para o autor os problemas centrais dos Estudos Culturais estão situados nalgum ponto entre esses dois termos: Para mim, os Estudos Culturais dizem respeito às formas históricas da consciência ou da subjetividade, ou às formas subjetivas pelas quais nós vivemos ou, ainda, em uma síntese bastante perigosa, talvez uma redução, os Estudos Culturais dizem respeito ao lado subjetivo das relações sociais.

Convergê tecnológi Assim, conforme o autor, as abstrações simples que têm sido usadas até o momento não podem nos levar muito longe. Em acordo com cruzamen sua definição de cultura Johnson (1999), não mais limita o campo cultural a entre cine práticas especializadas, a gêneros particulares ou a atividades popularestelevisão de lazer. Segundo ele, todas as práticas sociais podem ser examinadas de um ponto de vista cultural, ou seja, podem e devem ser examinadas pelo trabalho que elas fazem subjetivamente. O que vale também para a mídia, o jornalismo e seus modos de consumo e operação.

O circuito da cultura e o circuito das notícias

Com vistas as explicar a complexificação das questões, bem como suas ricas categorias intermediárias, Johnson (1999, p.31-32) propõe um modelo de análise mais estratificado do que as teorias gerais existentes. Um modelo que, idealmente, ambiciona ver os diferentes lados de um mesmo e complexo processo.

Para tanto, faz-se necessária uma descrição, ao menos provisória, dos diferentes aspectos ou momentos dos processos culturais, aos quais poderiam ser relacionadas diferentes problemáticas teóricas – como a do “Circuito das Notícias” por exemplo. O resultado desse exercício é, porém, um modelo não acabado, “um guia que aponta para as orientações desejáveis de abordagens futuras ou de que forma elas poderiam ser modificadas ou combinadas” ( JOHNSON, 1999, p.33).

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Vilso Junior Chierentin Santi Na busca de um melhor entendimento de sua proposta Johnson (1999, p.33-34) procura apresentar seu modelo de forma diagramática. O diagrama, segundo ele: Tem por objetivo representar o circuito da produção, circulação e consumo dos produtos culturais. Cada quadro representa um momento nesse circuito. Cada momento depende dos outros e é indispensável para o todo. Cada um deles, entretanto, é distinto e envolve mudanças características de forma. Segue-se que se estamos colocados em um ponto do circuito, não vemos, necessariamente, o que está acontecendo nos outros. As formas que tem mais importância para nós, em um determinado ponto, podem parecer bastante diferentes para outras pessoas, localizadas em outro ponto.

Esse diagrama proposto por Johnson (1999, p.34) baseia-se, em sua forma geral, numa leitura da descrição que Marx fez do circuito do capital e suas metamorfoses, onde, os processos sempre acabam por desaparecer nos produtos. Para Johnson: Todos os produtos culturais, por exemplo, exigem ser produzidos, mas as condições de sua produção não podem ser inferidas simplesmente examinando-os como ‘textos’. De forma similar, os produtos culturais não são ‘lidos’ apenas por analistas profissionais, mas pelo público em geral. Por isso, nós não podemos predizer essas leituras a partir de nossa própria análise ou, na verdade, a partir das condições de produção.

Johnson (1999, p.34) alerta ainda, que devido à circularidade do sistema as comunicações tendem a ser transformadas ao longo de seu percurso, principalmente em seu caminho de retorno. Segundo ele, para compreender adequadamente essas transformações, temos de compreender “as condições específicas do consumo e da leitura”, estas por sua vez incluem as “simetrias de recursos e de poder” tanto materiais quanto culturais. Também acabam por incluir os elementos culturais já ativos no interior de contextos particulares, as culturas vividas, e as relações sociais das quais essas combinações dependem. “Esses reservatórios de discursos e significados constituem, por sua vez, material bruto para uma nova proMestrado de Comunicação - UFSM

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Do circuito cultural ao circuito da notícia dução cultural. Eles estão na verdade entre as condições especificamente culturais de produção” ( JOHNSON, 1999, p.34).

Outro ponto importante assinalado por Johnson (1999, p.35) diz respeito ao fato de que em nossas sociedades, muitas formas de produção cultural assumem também a forma de mercadorias capitalistas. Assim sendo, conforme o autor, temos de prever tanto condições especificamente capitalistas de produção, quanto condições especificamente capitalistas de consumo. “É por isso que nesses casos o circuito é a um só tempo, um circuito de capital e um circuito de produção e circulação de formas subjetivas”.

Dessa forma é através da notícia que podemos viabilizar aquela aproximação antes proposta para com o jornalismo. Notícias como mercadorias que carregam uma acumulação particularmente rica de significados. Isso, conforme Johnson (1999), levanta questões interessantes sobre o que constitui o texto e evidencia que nunca será suficiente analisar apenas o “design” das notícias e suas formas exteriores.

Portanto, tomaremos de empréstimo o “Circuito da Cultura” proposto por Johnson (1999) na tentativa de detalhar aquilo que Strelow (2007) convencionou chamar de “Análise Global dos Processos Jornalísticos” e que Escosteguy (2007) qualificou como um novo “Protocolo Analítico de Integração da Produção e da Recepção”. Nessa lógica, o “Circuito da Cultura” proposto por Johnson (1999) é basilar para o entendimento da notícia como produto e ao mesmo tempo produtora de cultura, a qual percorre todo o circuito perpassando, através das disputas em torno da construção imagética do real, as instâncias de produção, textos e leituras e suas diferentes fases.

A análise global dos processos jornalísticos

Neste esaio procuramos detalhar uma estratégia de investigação em comunicação que possibilita a análise de cada uma das etapas apresentadas por Johnson (1999), destacando o inter-relacionamento das mesmas, à luz dos estudos de jornalismo. Ou seja, estudar o jornalismo tendo como diretriz o circuito comunicacional ou o “Cicuito das Notícias”, analisando os momentos desse processo e seus pontos de intersecção com as teorias e conceitos da área. Este olhar global sobre os produtos jornalísticos, tem como premissa colocar em perspectiva conceitos e inferências que ficariam prejudicados se ancorados em um único ponto do circuito. 102

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Vilso Junior Chierentin Santi A “Análise Global de Processos Jornalísticos” (AGPJ), segundo Strelow (2007), trata-se de uma estratégia de pesquisa que permite o emprego de diferentes técnicas, desde que voltadas ao estudo da produção, do texto, da leitura e das relações sociais no “Circuito das Notícias”. Ela compreende quatro momentos: 1) análise sócio-histórico-cultural; 2) análise de produção; 3) análise de textos; 4) análise de leituras e retornos. Embora esses momentos não sejam estanques, não obedeçam a uma seqüência rígida, podemos, para fins de sistematização, analisá-los em separado o que possibilita um melhor entendimento de suas peculiaridades. No entanto, é necessário ter em mente os entrecruzamentos que acompanham esse processo que é contínuo e sem limites definidos.

Cabe enfatizar, como aponta Johnson (1999, p.106) que o circuito não foi apresentado como uma descrição adequada de processo culturais ou mesmo de forma culturais elementares; não se trata de um conjunto completo de abstrações em relação a qual toda a abordagem parcial possa ser julgada; e não constitui, portanto, uma estratégia adequada para o futuro se for tomado como a adição dos três grandes conjuntos de abordagens – produção, textos e leituras – usando-as cada uma em seu respectivo momento. “Isso não funcionaria sem que houvesse transformações em cada abordagem e talvez em nosso pensamento sobre momentos”. Diz ele: É importante reconhecer que cada aspecto tem uma vida própria a fim de evitar reduções, mas, depois disso, pode ser mais transformativo repensar cada momento a luz dos outros, importando – para outro momento – objetos e métodos de estudo comumente desenvolvidos em relação a um determinado momento ( JOHNSON 1999, p.106).

1) A análise contextual sócio-histórica

Seguindo à proposição de Strelow (2007), adicionamos ao diagrama proposto por Johnson (1999) uma contextualização sócio-históricocultural na qual nosso objeto de estudo possa estar inserido. Compreendemos que agregar tal contexto é fundamental para a compreensão dos processos comunicacionais que se estabelecem, bem como as suas realidades de produção e de leitura.

Tal agregação parece particularmente importante quando se procura estudar, por exemplo, a relação entre periódicos impressos represenMestrado de Comunicação - UFSM

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Do circuito cultural ao circuito da notícia tantes do campo do jornalismo e por conseqüência do campo das mídias; e atores, organizações ou movimentos sociais integrantes do campo político. Assim, pode ser necessário retomar a história de ambos os agentes e seus campos de atuação, bem como, a própria teoria dos campos sociais a fim de posicioná-los nesse universo palco de sua atuação. Neste momento a aplicação de técnicas como pesquisas bibliográficas, consulta a documentos e diferentes tipos de entrevistas pode ser fundamental. A noção de campo, emprestada de Bourdieu, vem ao encontro da necessidade de relacionar o lugar da produção social com o lugar da produção simbólica. Para o autor (1990, p.171), “com a noção de campo obtém-se para apreender a particularidade na generalidade, a generalidade na particularidade”.

O território de um campo constitui-se a partir da existência de um capital e se organiza na medida em que seus componentes têm um interesse irredutível e lutam por ele. Capital, conceito chave no modelo proposto por Bourdieu, só é definível a partir do campo. Na descrição do autor acerca dos capitais, aparece um em especial – o capital simbólico – como superior aos demais, por dar sentido ao mundo e transitar por todos os campos.

Conforme Bourdieu (1989, p.14) o poder simbólico, ligado ao capital de mesma ordem, refere-se ao poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer crêr e de fazer ver, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo. Ele é um poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização. O mesmo só se exerce se for reconhecido, quer dizer, se for ignorado/ tomado como arbitrário.

2) A produção e a publicação das notícias

O primeiro momento do processo jornalístico no circuito comunicacional proposto por Johnson (1999) é a produção. Trata-se da construção da notícia, do produto jornalístico em si, e tudo o que está envolvido neste trabalho, ou seja, as condições de produção. O autor aponta como definidores dessas condições as representações públicas e a vida privada dos agentes, no caso, dos jornalistas.

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Vilso Junior Chierentin Santi Aqui podemos adotar, para a análise deste ponto do processo, o paradigma do newsmaking, hipótese contemporânea de pesquisa em comunicação que se debruça sobre as rotinas de produção no jornalismo. É um estudo ligado à sociologia do jornalismo e tem ênfase na produção de informações, ou melhor, na potencial transformação dos acontecimentos cotidianos em notícia (HOHLFELDT, 2001). Porém é importante observar que a abordagem do newsmaking articula-se, principalmente, dentro de dois limites: a cultura profissional dos jornalistas e a organização do trabalho e dos seus processos produtivos. De acordo com Wolf (2001, p.188), são as conexões e as relações existentes entre os dois aspectos que constituem o ponto central deste tipo de pesquisa. Através desta análise, é possível, também, compreender as culturas vividas e as relações sociais que se estabelecem, neste momento do circuito, e que o ligam aos demais. Mas não é só isso, precisamos também deslindar o lugar de produção dos acontecimentos e não somente o lugar de produção das notícias. Já que, como aponta Bourdieu (1989, p.23), faz parte do dever do jornalista preencher sua obra com significações aparentemente opostas. Pois, para o autor, ao mesmo tempo em que o profissional satisfaz um compromisso realista, que carrega um valor de atestação, ele vale-se inegavelmente do simbolismo.

Ainda segundo o autor, se o enquadramento jornalístico seleciona os objetos, o que é correto, ele também elimina tudo aquilo que não diz respeito a significação pretendida em seu uso. Pois a notícia tem um sentido no contexto histórico, que pode evocar uma força performativa que varia também na história, isto é, atualiza-se de acordo com a posição ocupada pelo agente que a lê e o sistema simbólico de referência.

Dessa forma, conforme Miranda (2000, p.168), para constituir as notícias em um objeto autônomo de estudo, precisamos considerá-la como obra da cultura e operar-lhe o sistema das normas que presidem a sua fabricação. Assim junto com a análise de conteúdo das notícias, que tem valor documental e que pode esclarecer acerca de certos aspectos da vida social, devemos buscar uma análise estrutural das significações nas notícias a fim de possibilitar o reconhecimento das normas específicas e explicitamente conhecidas como normas pelos profissionais de imprensa. Portanto, naturalmente, devemos examinar as formas culturais do ponto de vista da produção mas não podemos esquecer que essa análise deve incluir as condições e os meios de produção, especialmente em Mestrado de Comunicação - UFSM

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Do circuito cultural ao circuito da notícia seus aspectos subjetivos e culturais. “Em minha opinião, devemos incluir descrições e análises também do momento real da própria produção – o trabalho de produção e seus aspectos subjetivos e objetivos. Não podemos estar perpetuamente discutindo as condições, sem nunca discutir os atos”, enfatiza Johnson (1999, p.63).

3) O texto e seu descentramento

A análise dos textos no circuito comunicativo de Johnson (1999) corresponde no “Circuito das Notícias” ao estudo do conteúdo ou do discurso jornalístico. Descoladas de uma pesquisa mais ampla, estas técnicas costumam apontar para resultados discutíveis em relação ao objeto analisado. No entanto, quando cruzadas com outros olhares e combinadas com outras ferramentas, elas contribuem para a compreensão do jornalismo, especialmente porque permitem a observação do produto final que será consumido pelos leitores, o texto. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de admitir que um estudo que pretende se basear numa conjuntura histórica e sazonal, deve ter como premissa a crença que o contexto é crucial na produção de significado. Assim, de forma mais geral, precisamos “descentrar o texto” como um objeto de estudo. Nessa fase do “Circuito das Notícias” o texto não pode mais ser estudado por ele próprio, nem pelos efeitos sociais que se pensa que ele produz, mas, em vez disso, pelas “formas subjetivas ou culturais que ele efetiva e torna disponíveis” ( JOHNSON, 1999, p.75). Diferentes técnicas podem ser empregadas neste momento, dentre elas: análise de discurso, de conteúdo, estudos semiológicos, de lingüística, etc. Tomamos, porém, para este recorte teórico-metodológico os recursos da análise do discurso por julgá-la mais conveninete. Como trata da “prática da linguagem” e “da construção de sentidos através da língua”, a análise do discurso permite um mergulho no funcionamento do texto jornalístico, do qual se depreendem características das posições de sujeito, do contexto no qual ele o discurso está inscrito e, mesmo, do leitor imaginado da referida mensagem (ORLANDI, 2001, p.15).

Dessa forma, ao invés da mensagem, o que se propõe é pensar o discurso (ORLANDI, 2001, p.21). “Não se trata de transmissão da informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não mera106

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Vilso Junior Chierentin Santi mente transmissão de informação”. O “discurso é o efeito de sentidos entre locutores”, aponta a autora.

É dessa forma que sustentamos que análise de discurso oferece um ponto de vista conveniente, pois entende a linguagem não como um simples suporte para a transmissão de informações, mas como o que permite construir e modificar as relações entre os interlocutores, seus enunciados e seus referentes (MAINGUENEAU, 2002, p.20). Nesta medida a linguagem constitui e não simplesmente descreve aquilo que é por ela representado. Assim, também os discursos não podem ser considerados como objetivos. Efetivamente, eles fornecem apenas representações da realidade baseadas sobre idéias preconcebidas.

O discurso também é uma forma de representar o conhecimento acerca de determinado tópico em determinado momento histórico. O discurso tem a ver com a produção de conhecimento através da língua, mas uma vez que todas as práticas sociais transmitem significados, e os significados moldam e influenciam o que fazemos, todas as práticas tem um aspecto discursivo (HALL, 2003, p.44).

Ainda no plano dos conceitos, para se refletir o jornalismo, há que se ter presente que: na relação de sentido todo discurso nasce em outro e aponta para outro; todo processo de produção discursiva é ao mesmo tempo um processo de recepção e que todo o processo de recepção implica, por sua vez, o começo de “uma nova cadeia de construção de significantes ou de semiose” (BERGER, 2003, p.25). Assim sendo o discurso jornalístico, ao inscrever o modo de produção da linguagem na produção social geral, permite situar a notícia no interior de uma complexa rede produtiva. Neste momenteo do “Circuito das Notícias” propomos portanto estudar as condições em que se dá a produção do emissor e do receptor em momentos separados, mas que se encontram em um ponto comum, o texto. Esse contato entre jornalistas e leitores, no entanto, se dá também através de outras instâncias. Quer dizer, embora o texto seja o lugar oficial para esse encontro, o contato se dá também fora dele, e essa interação deve ser observada.

4) A leitura como ato de produção

No “Circuito das Notícias” a leitura ou recepção não é um momento isolado do processo comunicativo, mas integra a dinâmica da rede. Mestrado de Comunicação - UFSM

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Do circuito cultural ao circuito da notícia Todos os momentos do circuito comunicativo estão interligados. A leitura, como define Johnson (1999), não pode ser tratada como assimilação, mas, como um ato produtivo. Aliada aos estudos de produção e texto a investigação nessa linha permite o conveniente desenho do processo comunicacional de uma organização ou veículo, por exemplo. Cabe de imediato lembrar que, de acordo com Berger (2003, p.85) os leitores nos textos são sempre leitores na sociedade. Tal assertiva permite através da semiologia pensar uma teoria da produção de sujeitos. Nela, as narrativas ou as imagens sempre implicam ou constroem uma posição ou posições a partir das quais elas devem ser lidas ou vistas. Nessa ótica, o jornalismo não se limita apenas a nos apresentar um objeto, ele na verdade nos posiciona relativamente a este objeto.

Se acrescentarmos a isso o argumento de que certos tipos de textos naturalizam os meios pelos quais este posicionamento é atingido, podemos fazer uma conexão entre, de um lado, a análise das formas textuais e, de outro, a exploração das intersecções com as subjetividades dos leitores. Para Berger (2003, p.86) isso é possível, mais adequadamente, através das posições de leitura oferecidas em um texto. A autora ainda argumenta que o objeto legítimo de uma identificação de posições é constituído pelas pressões ou tendências das formas subjetivas, pelas direções nas quais elas nos movem, ou seja, por sua força – uma vez ocupadas às posições. “Mas, passar do leitor no texto para o leitor na sociedade é passar do momento mais abstrato (a análise de formas) para o objeto mais concreto (os leitores reais, tais como eles são constituídos socialmente, historicamente, culturalmente)”, diz Berger (2003, p.87). É por isso que devemos então, tratar a leitura não como recepção ou assimilação, mas como sendo, ela própria, um ato de produção.

Cabe ainda considerar que em nosso dia-a-dia nos deparamos com os textos de uma forma bastante promiscua. Na vida cotidiana os materiais textuais são mais complexos, múltiplos, sobrepostos, coexistentes, justapostos; em uma palavra “intertextuais”. Portanto, se usarmos uma categoria mais ágil como discurso, para indicar elementos que atravessam diferentes textos, podemos dizer que todas as leituras são também “interdiscursivas”. Ou seja, nenhuma forma subjetiva atua, jamais, por conta própria. Como já dissemos será o contexto quem vai determinar o significado, as transformações ou a saliência de uma forma subjetiva particular, tanto quanto a própria forma. O contexto, porém, inclui não só o contexto 108

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Vilso Junior Chierentin Santi das situações imediatas, mas também, o contexto ou a conjuntura histórica mais ampla.

Berger (2003, p.90) ainda alerta: “qualquer análise ficaria incompleta sem alguma atenção ao próprio ato de leitura e sem uma tentativa de teorizar seus produtos” e aponta que uma ausência comum nessas análises é uma tentativa de descrever mais elaboradamente as formas superficiais – os fluxos de fala no interior das narrativas – que são o aspecto mais empiricamente óbvio da subjetividade.

Por isso mesmo ela recomenda uma análise daquilo que chama de “aspectos subjetivos de luta”. Ou seja uma análise que contemple o “fluxo subjetivo no qual os sujeitos sociais (individuais ou coletivos) produzem narrativas sobre quem eles são como agentes políticos conscientes, isto é, como eles se constituem a si mesmos politicamente” (BERGER, 2003, p.94). Cabe ainda aqui agregar outras contribuições. A visão apresentada por Martín-Barbero (1995, p.40) também parece oportuna no que se refere a leitura e/ou a recepção:

A recepção não é somente uma etapa no interior do processo de comunicação, um momento separável, em termos de disciplina, de metodologia, mas uma espécie de outro lugar, o de rever e repensar o processo inteiro da comunicação. Isto significa uma pesquisa de recepção que leve à explosão do modelo mecânico, que, apesar da era eletrônica, continua sendo o modelo hegemônico dos estudos de comunicação.

A proposta do autor é de um estudo, não dos efeitos dos meios de comunicação na vida das pessoas, mas do que as pessoas fazem com os meios, a sua leitura de todo este processo, desde o ponto onde ela se coloca no circuito. Para Thompson (2001), a recepção é uma atividade, um tipo de prática pela qual o indivíduo percebe e trabalha o material simbólico que recebe. No processo de recepção, os indivíduos usam as formas simbólicas para suas próprias finalidades, de maneiras extremamente variadas e relativamente ocultadas, uma vez que essas práticas não estão circunscritas a lugares particulares. Mestrado de Comunicação - UFSM

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Do circuito cultural ao circuito da notícia Além disso, os usos que os receptores fazem das matérias simbólicas podem divergir consideravelmente daqueles (se é que houve) objetivos pensados ou desejados pelos produtores. Mesmo que os indivíduos tenham pequeno ou quase nenhum controle sobre os conteúdos das matérias simbólicas que lhes são oferecidas, eles os podem usar, trabalhar e reelaborar de maneiras totalmente alheias às intenções ou aos objetivos dos produtores.

Conforme o autor, a recepção é um processo situado, porque acontece com indivíduos em determinado contexto sócio-histórico; rotineiro, porque é parte integrante das atividades da vida diária; especializado, porque exige conhecimentos específicos (referentes à técnica, ao conteúdo, etc.); e hermenêutico, pois envolve interpretação, através da qual os produtos adquirem sentido. Diferentes ferramentas podem ser empregadas para o estudo da leitura: grupos focais, pesquisa participante, pesquisa-ação, entrevista, história oral, etc. Nesta etapa ouvir os leitores pode permitir a inserção, nos limites do possível, nas culturas vividas e nas relações sociais, restritas, ao campo jornalístico e cultural, além de representar também, uma estratégia para entender suas rotinas de leitura.

Considerações finais

Nós, em sintonia com Escosteguy (2007) e assim como Strelow (2007), acreditamos que olhar o jornalismo através das lentes da “Análise Global dos Processos Jornalísticos” e/ou através de um “Protocolo de Analítico de Integração da Produção e da Recepção” é comprometer-se com uma visão globalizante dos processos comunicativos. Tal escolha estratégica visa melhor compreender o “Circuito das Notícias” em seus principais momentos – produção, textos/ discursos e leituras – além de dedicar especial atenção às relações estabelecidas entre eles e aos desdobramentos daí decorrentes.

Embora carregue pretenções sistematizadoras, tal poposta de arranjo teórico-metodológico não pretende, de nenhuma forma, apresentarse como uma receita única e total. Pensamos que a estratégia mais adequada para um determinado trabalho sempre diz respeito não somente ao objeto escolhido e a problemática a ser estudada, mas também ao perfil do próprio pesquisador, à sua relação com os estudo na área e fundamentalmente às suas escolhas. 110

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Vilso Junior Chierentin Santi Assim, ao lançarmos mão do “Circuito da Cultura” como sustentáculo desse novo protocolo de análise no “Circuito das Notícias”, escolhemos combinar diferentes técnicas de pesquisa social em comunicação num estudo catalizador afim de tentar suprir, da maneira mais integral possível, a ausência de estudos com esse caráter dentro do campo da comunicação e do jornalismo. Dessa forma, entendemos esta proposta como uma diretriz a ser problematizada a cada nova pesquisa que possa vir a utilizá-la.

Bibliografia

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Estetização do mundo da vida: ameaça ou redenção do processo formativo? [1]

Amarildo Luiz Trevisan Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE/CE/UFSM.

Resumo: O artigo busca extrair alguns elementos ligados ao conceito marxista de reificação para viabilizar uma leitura dos processos de estetização do mundo da vida. É nesse sentido que a crítica de Lukács aos jornalistas chama a atenção, porque exemplifica o ponto de alcance atingido pela reificação na sociedade contemporânea: ela se apropria até das faculdades psíquicas e sensoriais do indivíduo. Com isso, o sujeito reificado passa a apreender o conhecimento de maneira neutra e objetivada (Honneth), com prejuízo da diferenciação (Adorno), ou tomando a imagem pelo objeto (Jameson). Cabe avaliar se a realização de uma leitura desses processos do ponto de vista dessa categoria é incompatível com a interpretação hermenêutica, ou, pelo contrário, elas podem se complementar. Palavras-chave: estetização, reificação, hermenêutica.

Do circuito cultural ao circuito da notícia Qualquer  pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação. (Hannah Arendt)

Considerações iniciais

O texto em epígrafe, de Hannah Arendt, chama  atenção para a necessidade da adoção de um compromisso coletivo com o mundo, caso realmente quisermos educar. Pretendo pensar tal idéia neste artigo a partir da discussão sobre os processos de estetização do mundo da vida. Essa nova realidade está sendo levada em consideração atualmente pelos filósofos e educadores na produção de suas teorias, após as viradas da filosofia da linguagem, da semiótica e da hermenêutica,  que contribuíram para validar a idéia de que os conhecimentos devem confluir para o mundo da vida, e não o contrário. No entanto, ao voltar-se para o existente, o conhecimento sistematizado se depara com a realidade de um mundo da vida saturado de sons e imagens, isto é, um ambiente ocupado ou dominado por uma saturação de informações de todos os tipos, formas e cores. Diante disso, surgem algumas questões: 1) como fazer a transição do conhecimento elaborado para o cotidiano, se tal ambiente já se encontra completamente impregnado de meias informações e verdades sobre todos os tipos de assuntos? 2) É possível que essa demanda não fique restrita aos simples mecanismos de alfabetização visual? 3) Enfim, os processos de estetização representam uma ameaça ou possibilidade de redenção do elemento formativo da cultura?

O objetivo é discutir esses questionamentos a partir do ângulo de análise da categoria de reificação, notadamente para auxiliar nos procedimentos de leitura e decodificação dessa cultura. O tratamento do assunto vai ocorrer,  de forma geral, contra o pano de fundo da dialética da formação cultural ( Bildung ) hegeliana. Porém, assim como procede Gadamer (1996) com relação à hermenêutica do conceito de formação, ao romper com o absoluto hegeliano, paulatinamente também a idéia da reificação  vai se afastando dos seus vínculos de base, para se tornar um auxílio efetivo no entendimento dos processos de reprodução da cultura. A intenção do trabalho é enfocar o tema na perspectiva hermenêutica, promovendo inicialmente uma breve exposição sobre o contexto da cultura atual para  nele situar o diagnóstico da reificação. A seguir, retomar sucintamente a sua origem no marxismo, em contraposição ao movimento da formação cultural ( Bildung ) hegeliana. E, por último, extrair algumas  pistas deixadas 114

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Amarildo Luiz Trevisan no tratamento do assunto para repensar a interpretação do cultural. Cabe então averiguar, através da racionalidade discursiva, se existe possibilidade de redenção da idéia de formatividade no contexto de estetização vivido.

A reificação na etapa de apropriação do cultural

Por influência da avançada tecnologia da informação e das telecomunicações, o conceito de estetização do cotidiano vivido surge no  contemporâneo, abrindo um pano de fundo cultural distinto daquele experimentado pelos pioneiros da discussão sobre o mundo da vida: Husserl, Schütz e Wittgenstein. O elemento imaginativo e desiderativo, antes circunscrito ao campo das ações pré-reflexivas, foi extrapolado por apelos consumistas da propaganda e da publicidade, do jornalismo e mesmo da dramaturgia de nossa época. Assim sendo, o diagnóstico gerado desse estado de coisas – com o apagamento das fronteiras entre arte e vida e a transformação da realidade em imagens -  aponta para o fato de que vivemos hoje um processo, para alguns de caráter irrevogável, de estetização do mundo da vida ou do cotidiano (WELSCH, 1993 e 1995 e FEATHERSTONE, 2003).

A  mudança da cultura escrita para a imagem configura uma nova atmosfera cultural, em que é proposta  a tarefa da alfabetização visual para que se tenha um distanciamento crítico, de modo a não aceitar de forma passiva a situação dominante. Essa nova forma de conhecimento não está presa na alta cultura, mas mesclada nos valores do cotidiano, os quais são intensificados pelos meios de comunicação e difundidos nos produtos mercadológicos. Os signos são libertos por inteiro de sua função de referir-se ao mundo, o que produz a expansão do poder do capital no domínio, não apenas do signo, mas da representação e da cultura. De acordo com Evangelista, essa situação surge num contexto mais amplo de esvaziamento da sociedade moderna: A capacidade de representação da razão humana estaria se esvaziando. Estaríamos diante do predomínio de um princípio esvaziador que atuaria em todas as esferas do mundo e da sociedade moderna, envolvendo suas instituições e suas formas simbólicas e imaginárias. Assim, por exemplo, estariam se processando a desreferencialização do real, a desmaterialização da economia, a desestetização da arte, a desconstrução da filosofia, a despolitização Mestrado de Comunicação - UFSM

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Do circuito cultural ao circuito da notícia da sociedade e a dessubstancialização do sujeito. Ou seja, tudo o que existe estaria marcado pela efemeridade, pela fragmentação, pelo descentramento, pela indeterminação, pela descontinuidade, pelo ecletismo das diferenças e pelo caos paradoxal. (2001, p. 2)

De acordo com Welsh, o esvaziamento do elemento racional vai ocorrer em função da necessidade de criação de espaços para o surgimento de uma sociedade das emoções. Neste sentido, acredita que, em nome das emoções, as sociedades industriais avançadas tentam criar um “cenário hiperestético”, que altera a percepção sensorial do indivíduo frente à realidade. E, se essa tentativa fosse bem sucedida, no limite: “O mundo então se transformaria num espaço de emoções, e a sociedade numa sociedade de emoções” (WELSH, 1995, p. 08).

O sentido do termo estetização que pretendo desenvolver nesta reflexão é definido por Featherstone na obra Cultura de consumo e pósmodernismo , em que o autor distingue três formas específicas de entendimento destes processos: o projeto das subculturas artísticas, produtor dos movimentos dadaísta, surrealista e da vanguarda histórica; o projeto de transformação da vida numa obra de arte, que fascinou muitos aspirantes e os próprios artistas e intelectuais como Oscar Wilde, Richard Rorty e Foucault; e, por último, a preocupação com o fluxo veloz de signos e imagens que produzem a saturação do cotidiano, seguindo a análise da teoria do fetichismo da mercadoria de Marx, desenvolvida por Lukács, a Escola de Frankfurt e Jameson, entre outros.

Para levar adiante esta última definição, é preciso antes, porém, dizer que o fetichismo prepara de certo modo, na obra de Marx, o surgimento da categoria de reificação. Em princípio, ambos os conceitos estão muito próximos, pois o fetichismo seria o ocultamento das relações humanas numa relação entre coisas, enquanto que, de acordo com Bottomore, reificação significa “a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas. A reificação é um ‘caso especial’ de alienação, sua forma mais radical e generalizada, característica da moderna sociedade capitalista” (1988, p. 314). Já no seu livro Reificación: un estudio en la teoría del reconocimiento (2007), Axel Honneth  busca uma reatualização desse conceito. Ele retoma Lukács para dizer que essa categoria fora transformada pelo capitalismo 116

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Amarildo Luiz Trevisan numa “segunda natureza” (p. 27). Além disso, que ela se caracterizaria por ser uma “conduta simplesmente observadora”, uma “maneira indolente e desapaixonada” com “qualidade de coisa” (p. 30), enfim uma atitude neutra frente à vida em geral, o ser humano, o entorno e seus problemas.  Para trazer a lume alguns elementos analíticos com o intuito de auxiliar na sua compreensão, é preciso agora traçar um pequeno esboço histórico de sua origem.

Embora Hegel já falava em seus escritos de uma “razão observadora” (BOTTOMORE, 1988, p. 314), o aparecimento desse conceito se deu mais precisamente a partir da inversão dialética da fenomenologia do espírito hegeliana por Karl Marx. Como é sabido, em traços largos no giro da formação cultural, a dialética colocara o indivíduo, ou o em si,  em contraposição com o mundo, ou o para outro, num processo de alienação e estranhamento que resultava, ao fim e ao cabo, no retorno ao para si. Essa ascese conduzia à progressão gradativa do espírito em direção a um reino de mais liberdade. Porém, Marx subverte essa relação,  dizendo que a dialética em Hegel estava de ponta-cabeça e que seria necessário, para dar conta da análise do real, colocá-la novamente em pé. Assim, enquanto na fenomenologia do espírito o sujeito se lança no real e, contropondo-se à objetividade, acaba recuperando a si mesmo nesse processo, na reificação ou coisificação quem tem o controle são as condições sociais objetivas que se impõem à subjetividade. A dialética da formação cultural ocorre no nível progressivo, “espiritual”, de engrandecimento do espírito ou da consciência, enquanto a reificação vai ocorrer no sentido contrário, isto é, na materialidade do trabalho alienado que transforma regressivamente o sujeito em objeto, em coisa. Talvez seja por esse motivo que,  no Manifesto comunista, Marx & Engels vão demonstrar toda sua desconfiança com a formação cultural, ao dizer: “A cultura ( Bildung ) cuja perda o burguês tanto lastima é para a imensa maioria apenas um adestramento para agir como máquina” (1993, p.83). Em síntese, embora nascida no seio da formação cultural alemã, a teoria da reificação se opõe dialeticamente a ela na famosa inversão produzida por Karl Marx no pensamento de Hegel. É justamente essa inversão entre os elementos “vivo” e “morto” que se tornará o elemento-chave para entender o fenômeno da coisificação. Contudo, mesmo surgindo em contradição à manifestação cultural do espírito, é precisamente nesse terreno que, aos poucos, a categoria da reificação vai-se fazendo valer como metodologia produtiva de análise. Em História e Consciência de Classe , Lukács estende essa lógica para a Mestrado de Comunicação - UFSM

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Do circuito cultural ao circuito da notícia compreensão de algumas manifestações desse gênero, como a  profissão do jornalista: E o virtuose especialista, o vendedor de suas faculdades espirituais objetivas e coisificadas, não somente se torna um espectador do devir social (não é possível indicar aqui, mesmo que alusivamente, o quanto a administração e a jurisprudência modernas revestem, em oposição ao artesanato os caracteres já evocados da fábrica), mas também assume uma atitude contemplativa em relação ao funcionamento de suas próprias faculdades objetivadas e coisificadas. Essa estrutura mostra-se em seus traços mais grotescos no jornalismo, em que justamente a própria subjetividade, o saber, o temperamento e a faculdade de expressão tornam-se um mecanismo abstrato, independente tanto da personalidade do “proprietário” como da essência material e concreta dos objetos em questão, e que é colocado em movimento segundo leis próprias. A ‘ausência de convicção’ dos jornalistas, a prostituição de suas experiências e convicções só podem ser compreendidas como ponto culminante da reificação capitalista (2003, p. 222).

O jogo de linguagem das categorias mortas não é casual nesta citação: expectador, contemplativo, mecanismo abstrato, independente, ausência de convicção, prostituição e reificação querem traduzir o cotidiano massificado ou mortificado de uma profissão afeita à produção cultural. O jornalismo paga uma dívida constante, desse modo, com o funcionamento da racionalidade dominante no sistema, ao abrir mão de suas convicções e inclinações pessoais, e também da infinita diversidade do real que descreve, repassando ao leitor uma visão padronizada ou uniformizada de sociedade e do mundo. É evidente que aqui também se afirma, em certo sentido, a imagem de que essa situação contraria a idéia da formação cultural, como se o relógio da história andasse de forma invertida. Se a formação cultural eleva o espírito humano para transcender as suas limitações, a reificação seria o movimento que o diminui, absorvendo-lhe a moeda de troca da mercadoria, que acaba degradando  as suas  qualidades. A coisificação se impõe de fora para dentro e molda o indivíduo, inclusive as suas faculdades psíquicas e espirituais, limitando a sua compreensão do existente.[2] Lukács 118

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Amarildo Luiz Trevisan chega a essas conclusões influenciado pela obra de Marx e amparado nas análises da burocracia e da racionalização de Weber e Simmel.

Comentando essa mesma passagem do livro de Lukács,  Adorno vai dizer no aforisma 147, do Mínima moralia , que a reificação opera como perda progressiva da diferenciação. Para ele, a formação adquire um sentido mais amplo do que o puro giro do espírito sobre si mesmo, conforme previa o sistema hegelinao. Ela está cristalizada numa formação social determinada que, para sua autoconservação, acaba se impondo sobre a vida, danificando-a. Por isso, “a autoconservação anula a vida na subjetividade”, sendo possível entender aqui os esforços de “adaptação” e “conformismo” da psicologia social e da antropologia cultural como “epifenômenos” (ADORNO, 1993, p. 201). Mesmo o que se distingue da técnica, e a própria diferenciação psicológica surgida com a especialização do trabalho, não conseguem fugir dessa lógica, mas passam a “lubrificar” e alimentar o modo de produção. E é nesse quadro que ele vai entender a crítica de Lukács aos jornalistas, concluindo esse raciocínio dizendo que “a conservação de si perde seu si” (Ibid. p. 202). Em outras palavras, perder “seu si” significa que o caminho do conhecimento e da racionalidade que, em princípio, poderia captar a realidade de maneira plural, rica de significados, acaba se perdendo em prol de uma visão voltada para “o mercado da moda” (CHAUI, 2006). Com a imposição da realidade social objetiva, a formação social acaba “formando” ou moldando a subjetividade, tornando o plano da racionalidade não mais uma instância confiável. A saída para ele então vai estar na arte, pois ela não é simples conhecimento,  identidade com a coisa, mas “ mímesis ” ou transfiguração do real. A mímesis representa o locus em que as energias emancipatórias de promessa de uma sociedade liberada se alojaram, evidenciando que a motivação utópica não está suspensa, mesmo no predomínio da universalização dos valores de troca. Em seu livro Reificación , Honneth defende uma posição um pouco diferente da  de Adorno sobre essa mesma passagem de Lukács. Na sua acepção, Lukács estaria querendo minimamente dar um exemplo  mais preciso de como está estruturada tal auto-reificação, isto é, como autoconhecimento, visto na tentativa do jornalista de adaptar sua própria subjetividade, temperamento e habilidade de expressão aos interesses do suposto leitor em cada caso. Nesse sentido, ele interpreta a tese da reificação, de Lukács, dentro da perspectiva intersubjetiva, a qual este autor teria deixado de lado logo de saída em sua obra. As relações fraternas, intersubjetivas ou autênticas, isto é, o terreno da práxis , foi deixada de lado pelo teórico

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Do circuito cultural ao circuito da notícia marxista em prol das relações imediatas, que estão acontecendo na reificação   cotidiana. É esse projeto, abandonado por Lukács, que serve de mote para Honneth retomar a perspectiva da reificação como ponto de partida interpretativo. Juntamente com o tratamento dessa categoria marxista, Honneth leva adiante também  a idéia de reconhecimento do outro, presente embrionariamente na dialética do senhor e do escravo, de Hegel. Busca ainda evidências em diversos autores (além de Lukács, também Dewey, Heidegger e Adorno) e mesmo na prática existencial,  para mostrar que existem saídas para o comportamento alienado, pois reificação seria, na sua interpretação,  nada mais do que o “esquecimento do reconhecimento” (2005, p. 126). É o reconhecimento prévio, subjacente ao plano do conhecimento, que determina a implicação mútua. E, como procura deixar claro a partir de Heidegger, ela pode estar muito mais ao “alcance da mão” do que “diante dos olhos” (Ibid. p. 45-46). Essa outra perspectiva contraria o espírito de vazio e pessimismo deixados no rastro do tratamento dessa categoria por diversos autores. “Nesse sentido,” como Honneth mesmo afirma,

no plano elementar, o conceito de ‘reconhecimento’ compartilha – não só com o ‘compromisso prático’ de Dewey, mas sim também com o ‘cuidado’ de Heidegger e com a ‘implicação’ de Lukács – a mesma idéia fundamental da precedência de um interesse existencial pelo mundo, que se nutre da experiência de caráter valioso deste. Portanto, uma postura de reconhecimento é expressão da valoração do significado qualitativo que possuem outras pessoas ou coisas para a realização de nossa existência (Ibid., p. 5556).

Ao transportar tal idéia para o plano da relação do indivíduo consigo mesmo, Honneth vai perceber que essa atitude “não pode ser apenas a do conhecer, tampouco a relação consigo mesmo não pode se ater a estados mentais” (Ibid., p. 115). Na dimensão da auto-reificação, conforme exposto no caso do jornalismo, teríamos um típico exemplo de esquecimento de si mesmo ou de desatenção consigo próprio. Reificação seria também uma atitude detetivesca ou construtivista consigo mesmo, na qual se substitui a atitude do reconhecimento por um conhecer objetivador. A crítica de Honneth a Lukács é que a categoria da reificação ainda ficou restrita  à dimensão econômica, presa,  portanto, ao funcionamen120

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Amarildo Luiz Trevisan to das ‘leis de mercado’. Não foi percebida por ele, “uma série de intentos de explicação do racismo ou da representação pornográfica das mulheres em conformidade com um padrão de este desenho” (2007, p. 141). O formato de tal desenho, conforme assinalado há pouco, estaria situado no nível não epistêmico, não no plano do conhecimento, mas do reconhecimento, portanto, no nível ontológico.

Se para Lukács o nível mais elevado de reificação se encontra no jornalismo, Jameson vai dizer, no artigo Reificação e utopia na cultura de massas , concordando com Debord, que a imagem se tornou a forma última da mercadoria. Ele promove  aí uma análise das manifestações culturais reificadas da sociedade capitalista em sua etapa multinacional.  Os indivíduos se relacionam nesse contexto primeiro com o universo das imagens, o qual, para ele, é o universo do cultural, para só depois tomar contato propriamente com o produto. Esse relacionamento com a imagem é que prende o sujeito à teia do consumo, tornando-o incapaz de transcender esse nível de objetividade. Embora não tenha desenvolvido sua investigação no rastro de Lukács, Jameson compartilha no entanto com as análises marxistas, inclusive com as de Adorno. Ele vai dizer que “a reificação ou a materialização constituem um traço estrutural chave tanto do modernismo como da cultura de massa” (1995, p. 17). Afinal, o modernismo passa por essa mesma situação na medida em que, segundo sua leitura de Adorno, a reificação adentrou a estrutura da obra de arte, enquanto a cultura de massas já está, pela sua própria dependência absoluta do mercado, completamente administrada. Decifrar esse traço passa por uma tentativa de ler a materialização que está oculta ou adormecida nos produtos da cultura. Jameson conclui pela necessidade de não separar alta e baixa cultura: “Tal aproximação exige que se leia a alta cultura e a cultura de massa interdependentes, como formas gêmeas e inseparáveis da fissão da produção estética sob o capitalismo” (1995, p. 14).  Tentando exemplificar esta tese, ele analisa, nesse mesmo artigo, os filmes Tubarão , de Steven Spielberg (1975), e as duas partes de   O Poderoso Chefão , de Francis Ford Coppola (1972 e 1974). Procura mostrar aí que mesmo a cultura de massa consegue a suspensão das noções de tempo e espaço, produzindo assim a sensação de utopia, algo que se julgava privilégio apenas  da grande obra de arte. Concluo, a partir destas breves considerações, que a reificação não só acaba com as idéias de diferenciação ou de identidade própria (Adorno),  de atenção com respeito a si mesmo, de implicação ou reconhecimento do outro e do mundo circundante  (Honneth), mas ela também é uma fonte Mestrado de Comunicação - UFSM

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Do circuito cultural ao circuito da notícia privilegiada de leitura do cultural ( Jameson). Nela encontramos boas pistas para auxiliar de certo modo a leitura da alta e da baixa cultura, como formas interligadas pela reificação. A transformação da própria mercadoria em imagem, no momento que o dado espiritual se adapta aos impulsos econômicos, paradoxalmente coloca novamente em contato as duas pontas da dialética, antes rompida com a crítica de Marx a Hegel. Com isso, se fecha provisoriamente o círculo hermenêutico da compreensão, permitindo perceber que o giro da reificação não é incompatível com a leitura da formação hermenêutica, mas talvez o seu avesso.  No próximo item, pretendo averiguar até de que ponto a reificação se aproxima das exigências de uma investigação hermenêutica, dado que esta última deu mais atenção historicamente ao modo de pensar da formação cultural, enquanto Paidéia ou Bildung .

Hermenêutica e reificação do cultural

Algumas obras classificam a filosofia de Marx como uma hermenêutica do social. Esse é o caso do livro De l’Interpretation, em que Paul Ricoeur situa Marx ao lado de Nietzsche e Freud como  mestres da suspeita e da desmitificação. Segundo o testemunho de Palmer: “Cada um dos três interpreta como falsa a superfície da realidade e avança com um sistema de pensamento que destrói essa realidade. (...) Cada um defende uma transformação de pontos de vista, um sistema interpretativo do conteúdo manifesto dos nossos mundos – uma nova hermenêutica” (1996, p. 53). Não irei entretanto operar em tal campo de análise neste momento, buscando aproximar as correntes teóricas do marxismo e da hermenêutica. Antes tratarei de evidenciar, ou procurar nexos mais específicos entre o diagnóstico proposto pela categoria da reificação e a perspectiva da abordagem hermenêutica, no intuito de encontrar pontos de contato entre ambas.

Para Gadamer, toda interpretação hermenêutica deve iniciar com a explicitação da expectativa de sentido: “A antecipação de sentido, que envolve o todo, se faz compreensão explícita quando as partes que se definem desde o todo acabam também definindo esse mesmo todo” (1994, p. 63). Essa expectativa de proximidade entre reificação e formação hermenêutica, por exemplo, é um traço importante para compreender os processos de interpretação, mas ela deve ser posta em xeque pelo próprio movimento compreensivo, seguindo cinco passos básicos. No livro Verdade e método II , mais precisamente no item Sobre o círculo da compreensão , é que Gadamer fragmentou a dialética do espírito na imanência. Depois de desprender da 122

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Amarildo Luiz Trevisan idéia do absoluto hegeliano,[3] ele situa a interpretação na dependência do intérprete, na sua capacidade de fazer a costura entre cada um dos seus elementos constitutivos. A retomada dessas subdivisões de maneira sintética aqui visa servir aos propósitos desta reflexão, procurando relacionar esses mesmos passos com o que foi realizado até o presente.

Em linhas gerais, a hermenêutica procura, então, (1) fazer a relação da parte com o todo de maneira interdependente , o que implica colocar o texto dentro do contexto e vice-versa. Nesse ponto, a teoria da reificação, como possibilidade de leitura dos processos de estetização, já demonstra a sua produtividade porque ela permite não apenas uma leitura instrucional das imagens. Embora possamos discordar de seu exame crítico do real, não se pode negar que ela atende à expectativa ontológica de tomada de posição frente ao mundo, isto é, ela possibilita uma visão de conjunto ou de totalidade. Nesse sentido posso responder afirmativamente à questão colocada no início deste artigo, pois existe a possibilidade de reversão desse estado de coisas para além do auxílio dos mecanismos didáticos de leitura da cultura visual. Caso contrário, ficaríamos aprisionados no nível do conhecimento empírico, exposto à obrigatoriedade de decifrar signo por signo,  imagem por imagem, numa busca frenética de explicação dos processos de estetização de maneira singularizada, sem referenciais mais amplos de análise.

A seguir, a hermenêutica propõe em sua abordagem  (2)   encontrar um ponto médio , ou seja,  buscar um ponto desencadeador da interpretação. No caso dessa análise, creio que esse item ficou explícito no momento em que Luckács critica a linguagem utilizada no jornalismo. O ponto médio pode ser percebido aí no sentido de que o caminho do conhecimento ou da racionalidade cognitivo-instrumental está fechado e de que é necessário buscar novas saídas, conforme demonstram as análises de autores como Adorno, Honneth e Jameson. O próximo elemento proposto pela hermenêutica requer a (3) revisão dos preconceitos . E isso quer dizer: avaliar as opiniões prévias já consolidadas sobre o assunto, a fim de torná-las explícitas, para não desvirtuar o processo interpretativo. É preciso esclarecer que a hermenêutica de Gadamer admite que o preconceito é uma instância pré-reflexiva anterior ao plano racional, e que ele também determina em geral a nossa pré-compreensão das coisas. O que podemos fazer nesse caso é distinguir os preconceitos legítimos dos ilegítimos, colocando-os à prova. O elemento reificado se aproxima dos preconceitos ilegítimos, na medida em que se restringe ou se limita àquilo que perdeu o vínculo com o fluxo Mestrado de Comunicação - UFSM

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Do circuito cultural ao circuito da notícia da vida. Como bem demonstrou Honneth, essa poderia ser uma atitude observadora, neutra ou desapaixonada frente ao real.

O passo seguinte da interpretação hermenêutica visa (4) a buscar o “acordo na coisa” . Essa atitude significa confrontar a visão do que se tem a partir dos preconceitos com o que está posto no objeto interpretado. Esse ponto pode ser relacionado ao próprio diagnóstico da reificação, cuidando até que ponto, conforme será exposto no exemplo mais adiante, o intérprete se guia pela ótica do consumo na análise de um produto da publicidade. Por último, a hermenêutica procura expressar a idéia da necessidade de (5) deixar que o texto diga algo , o que implica  abdicar do que é sabido, para se colocar na posição de escuta ou de reconhecimento do sentido comunicado  no saber do outro. A confirmação ou não da expectativa inicial de sentido se faz presente nessa ocasião, em que tudo deve confluir para compreender a “fala” do objeto analisado. É claro que isso vai depender da apropriação dos pressupostos de base da abordagem utilizada, dos instrumentos ou técnicas disponíveis e da competência do intérprete na sua utilização. Concluindo, é possível dizer que a interpretação hermenêutica não é conflitante com a leitura proposta pela categoria da reificação. De outra maneira, esse conceito pode servir, inclusive, de chave de leitura ou porta de entrada importante para a hermenêutica definir melhor o seu próprio campo de atuação. Afinal, como abordagem metodológica corretiva dos rumos da racionalidade moderna, a hermenêutica guarda, em princípio, forte semelhança com a preocupação expressa nessa categoria, enquanto postura crítica do modo de produção dominante na modernidade. Poder-se-ia dizer que essa relação entre uma e outra tangencia a necessária simbiose entre conteúdo e forma, tal é o grau de afinidade entre ambas as propostas.

Reificação como estratégia de leitura de imagens

Dado que a reificação atende as exigências estruturais da hermenêutica, é possível agora investigar o modo como o diagnóstico por ela proposto pode auxiliar na leitura dos processos de estetização  A questão exposta no início do texto serve de guia neste ponto, na medida em que indagava como é possível fazer a transição do conhecimento elaborado para o cotidiano, se tal ambiente já se encontra dominado de meias informações sobre todos os tipos de assunto. Sendo que o caminho para o conhecimento está fechado pela reificação, como procurei deixar claro na análise do caso 124

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Amarildo Luiz Trevisan do jornalismo, trazido à tona por Lukács, melhor perseguir então as saídas propostas pelos diversos autores que pensam essa questão posteriormente. Para eles, não é mais possível buscar a utopia ou reconciliação no âmbito do puro conhecimento, restando uma investigação no campo da práxis (Honneth), da arte (Adorno) ou do consumo cultural ( Jameson). Em todos há uma clara tentativa de fugir do puro âmbito de tratamento da racionalidade cognitivista, pois a coisificação, na etapa de universalização dos valores de troca da mercadoria, transformou os padrões sociais para os de uma sociedade de consumidores. Assim sendo, se o conhecimento está reificado na contraposição entre sujeito e objeto, é preciso então buscar elementos para a decodificação do cultural em nível mais profundo. Se o melhor caminho para avaliar os processos de estetização não é este, também não o será adotando-se uma leitura meramente neutra, de indiferença ou, ao contrário, de simples crítica, pois tais iniciativas ainda estão vinculadas ao campo epistêmico. O presente estado do campo “cultural” pode representar uma ameaça à “formação autêntica,” se ele for lido exclusivamente com os óculos do conhecimento ou do posicionamento crítico, por um lado. Para o indivíduo viver num mundo estetizado ou espetacularizado, ou seja, reificado, ele não precisa, por outro lado, permanecer sob a tutela desses processos, ou cultivar relações neutras, desapaixonadas ou desinteressadas para nele conseguir sobreviver. De maneira bem diferente, como procurei deixar claro até o momento, a redenção desse processo pode se encontrar no nível da implicação mútua, na atitude de reconhecimento que serve de base a todo conhecimento. Tornou-se possível aqui então encontrar uma via de resposta à questão central deste artigo, isto é, se os processos de estetização do mundo da vida representam uma ameaça ou possibilidade de redenção do processo formativo.

Para melhor ilustrar essa outra situação, vou tomar um caso não exatamente do campo do jornalismo, mas do âmbito da publicidade, em que proponho esboçar a leitura, do ponto de vista da reificação, de alguns elementos de uma peça publicitária[4], isto é, de um produto cultural facilmente encontrado nos processos de estetização atualmente.  Cabe perguntar inicialmente:  como se manifesta a reificação nesta imagem? Uma hermenêutica da reificação se preocupa em encontrar um ponto médio de onde pode se desencadear a interpretação. Cabe advertir que não basta a leitura de imagens simplesmente, mas é necessária uma tomada de posição mais abrangente, isto é, cultivar uma preocupação mais ampla com os destinos do mundo, relacionando a parte com o todo. Mestrado de Comunicação - UFSM

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Disponível em http://blog.estadao.com.br/blog/media/cerveja.jpg Encontrada em 22/09/2008.

Nessa propaganda chama a atenção o posicionamento da mão segurando o objeto de consumo,  neste caso, a cerveja. Conforme se pode observar, está em destaque um desvio de atenção para o objeto, há uma exclusão da atenção do ‘elemento vivo’ para direcioná-la para um ‘produto morto’, lembrando um comportamento típico do contexto mercadológico. Há uma clara inversão de perspectiva, pois no ímpeto do consumo, de “administração” do mecanismo psíquico ilusório, o indivíduo acaba tomando a coisa como se ela tivesse vida. Em conseqüência de tal análise, torna-se possível  questionar o papel da ‘mulher’ e do próprio ‘corpo’ exposto na peça publicitária: até que ponto esse é o modelo de mulher disseminado na sociedade atual? Retomo aqui a idéia defendida por Honneth, de que é preciso se colocar frente à reificação, caso quisermos pleitear a sua reversão, não de acordo com a atitude de conhecimento, mas de reconhecimento. Nesse sentido, pergunto: que tipos de valores são disseminados a esse respeito no plano da publicidade? Que espécie de reconhecimento é esquecida nessa imagem? E ainda, é possível olhar esse objeto fora da dimensão do consumo? Ora, como foi dito anteriormente, não é possível encontrar saídas  no que está ‘diante dos olhos’, pois esses já estão manipulados pela sociedade do consumo. Se  a saída, como apontava Honneth, pode acontecer no plano da 126

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Amarildo Luiz Trevisan práxis, da interação, compete concentrar a atenção no que está ao alcance da mão, manifesto claramente na imagem. Afinal, a reificação transformou o campo epistêmico num beco sem saída. Portanto, essa interpretação possibilita não apenas a leitura do aspecto didático das imagens, embora isso seja importante, mas permite  também  uma tomada de posição frente aos processos de estetização do cotidiano como um todo.

Notas conclusivas

Neste texto busco extrair alguns elementos reflexivos na categoria marxista da reificação, avaliada no sentido hermenêutico, para viabilizar uma leitura dos processos de estetização do mundo da vida. A crítica de Lukács aos jornalistas chama a atenção tanto de Adorno quanto de Honneth, porque exemplifica o ponto atingido pela materialidade na sociedade contemporânea: ela tomou conta até das faculdades subjetivas do indivíduo. Com isso, o sujeito alienado passa a apreender o conhecimento de maneira neutra e objetivada (Honneth), com prejuízo da diferenciação (Adorno), ou tomando a imagem pelo objeto ( Jameson). Logo, se o caminho do conhecimento está vedado, a busca de novas perspectivas pode se dar no plano ontológico, isto é, na atitude de reconhecimento (no caso de Honneth), no plano da arte e da estética (em Adorno) ou no universo de leitura do consumo cultural (para Jameson).

A incumbência agora é averiguar, por intermédio da racionalidade discursiva, se existe possibilidade de redenção da idéia de formatividade no contexto de estetização vivido. Penso que a saída não está situada na preocupação exclusiva com a idéia de formação ou de reificação. Jameson auxilia a entender a necessidade de mudança dessa mentalidade, porque não se trata de ficar na contraposição entre um formato e outro de expressão do campo cultural, pois eles são modelos inseparáveis de comunicação. Afinal, estas culturas estão presas pelo mesmo traço da materialização que penetrou ambas as formas de expressão em profundidade. Nesse sentido, por um lado, uma teoria do cultural ( Bildung ) volta à cena novamente, mas não para ficar aprisionada à interpretação dos grandes clássicos humanistas exclusivamente. Por outro lado, a idéia da coisificação, retomada na perspectiva hermenêutica, oferece ainda uma vantagem, desde que essa categoria não seja tencionada fora dos seus limites, isto é, como via única de acesso ao real.[5]

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Do circuito cultural ao circuito da notícia Em conseqüência, embora admitindo os progressos da hermenêutica gadameriana, frente aos processos de estetização do mundo da vida atualmente não basta a defesa intransigente de uma postura elitista, conceitual, em prol de uma formação autêntica. Menos ainda a virada populista da imagem, no sentido de contemplar somente os preceitos de industrialização da cultura, enquanto cultura popular, das celebridades ou de massa, com a justificativa de que esse fenômeno está disseminado em nosso cotidiano. Ambas são posições que ainda permanecem no campo meramente epistêmico, isto é, na idéia de classificação, separação ou contradição entre sujeito e objeto, alta e baixa cultura, conhecimento crítico ou alienado, formação ou coisificação. No contexto do pensamento pós-metafísico, não há mais garantias absolutas em termos do que realmente representa avanço ou retrocesso da humanidade, na medida em que essa visão ainda ficaria aprisionada a uma concepção linear de filosofia da história. Se não temos garantias objetivas, podemos também diluir estas ambigüidades dizendo que a reificação e a formação   são dois lados da mesma moeda, ou melhor, elas estão particularmente imbricadas. Uma atitude pura, portanto, estaria fora de propósito, pois não ocorre desenvolvimento de potencialidades humanas sem alguma dose de alienação ou de objetivação do espírito, como tentei deixar claro a partir de Hegel. Assim também nenhum processo de reificação é absoluto, a ponto de cancelar a possibilidade de redenção ou de utopia de uma sociedade liberada, conforme expõe Adorno a partir da arte, e como bem demonstra a reflexão de Jameson através das análises de produções da cultura de massa. Cruzando essa preocupação com o que foi assinalado na epígrafe do texto, talvez esse caminho auxilie a evitar o equívoco apontado por Hannah Arendt, a saber,  que a recusa em assumir uma posição ética pelos destinos do mundo comum seja indício de influência da própria reificação.

Bibliografia

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Notas

Texto apresentado no XIII Encontro Nacional de Filosofia, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), realizado de 6 a 10 de outubro de 2008 em Canela/RS.

[1]

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Do circuito cultural ao circuito da notícia No caso do jornalismo,  a necessidade de contemplar o “elemento morto” não se restringe obviamente às páginas do obituário, ela se dirige para o conjunto da obra, em nome do que está sendo denominado atualmente de “estética da barbárie”. Segundo Costa, “A estética da barbárie, exteriorizada nas manchetes e nos títulos bombásticos, na exclusão de temas socialmente necessários, na exploração do grotesco e do incomum, próprios da cobertura jornalística, difunde-se imperceptivelmente nas técnicas de produção da notícia, em sua conformação aos meios de comunicação e suas linguagens (2002,  p. 6). Desse modo, ela opera na espetacularização do cotidiano com notícias seletivamente recortadas, dando ênfase a assaltos, mortes, seqüestros e, ao estimular o grotesco, promove o embrutecimento e  a regressão do espírito, não a sua emancipação. [3] Cf. o texto, “Porém, reconhecer que a formação é como um elemento do espírito não obriga a vincular-se à filosofia hegeliana do espírito absoluto, do mesmo modo que a percepção da historicidade da consciência não se vincula tampouco à sua própria filosofia da história do mundo” (GADAMER, 1996,  p. 44). [4] A propaganda da cerveja schincariol foi encontrada no site http://blog. estadao.com.br/blog/media/cerveja.jpg.   No entanto, não é apresentada nenhuma informação adicional sobre seu “conteúdo”, época da campanha publicitária ou mesmo do local  de sua divulgação. [5] O equívoco dessa idéia foi originado provavelmente a partir do tratamento do assunto pelo próprio Lukács, em seu artigo O fenômeno da reificação , do livro História e consciência de classe . Do ponto de vista hermenêutico, seria mais aconselhável talvez falar em idéia, conceito ou categoria da reificação, uma vez que o termo “fenômeno” traz um peso cientificista muito grande, dando a impressão de que isso já está posto na realidade e não de que haja aí uma interpretação de algo designado por este conceito. [2]

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A recepção e produção de sentido sobre os espaços urbanos: olhares dos acadêmicos de cinema da UFPel Fábio Souza da Cruz Doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.Docente da Universidade Católica de Pelotas (ECOS/ UCPel) Email: [email protected] Guilherme Carvalho da Rosa Mestrando em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do SulDocente da Universidade Federal de Pelotas (IAD/UFPel) Email: [email protected]

Resumo: A pesquisa apresentada está em andamento e traz como objeto a observação das circunstâncias de recepção e produção de um documentário sobre espaços urbanos produzido por acadêmicos de cinema da Universidade Federal de Pelotas/RS (UFPel). O olhar teórico-metodológico está voltado para dois momentos. O primeiro é o da recepção destes espaços sobre a ótica das interculturalidades (García Canclini, 2006) e da reconfiguração dos sentidos da vida urbana (Martín-Barbero, 2005). O segundo é o da produção do documentário, por meio das estruturas de sentido dos estudantes interpeladas por suas experiências urbanas cotidianas. O objetivo central é observar como as práticas culturais estão articuladas com os espaços urbanos, a partir da vivência de temporalidades agonísticas na América Latina. Palavras-chave: recepção e produção, espaços urbanos, estudos culturais.

A recepção e produção de sentido sobre os espaços urbanos

Apresentação

A investigação que propomos aqui acompanha uma das preocupações centrais de determinadas agendas de pesquisa em comunicação, sobretudo as que se dedicam a observar as relações de comunicação e cultura. Trata-se do desafio de pensar a circulação da cultura e a produção de sentidos sobre a cidade em um tempo de crise da modernidade. O espaço urbano torna-se um grande palco de conflito das estruturas da modernidade com suas próprias certezas: mudam-se os modos de estar na cidade e as maneiras de se produzir sentido sobre ela. Tal como uma das grandes narrativas do moderno, a cidade também sofre um processo de deslegitimação (Lyotard, 2004) e esfalecimento de suas certezas. Este panorama agonístico se complexifica ainda mais quando procuramos pensar as cidades no espaço cultural latino-americano por conta de considerarmos o descompasso temporal historicamente construído e que exime a considerar desajustes e lapsos do passado ao mesmo tempo em que se dialoga com a condição pósmoderna. Esta breve preocupação teórica está presente como motivação do trabalho que se destina a observar as circunstâncias de recepção e produção de sentido a partir de um documentário produzido por alunos do curso de cinema e animação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) no Rio Grande do Sul. O documentário, chamado Olhares, é resultado de um projeto de extensão realizado com os alunos e a primeira produção audiovisual do curso que foi inaugurado em 2007. A produção é composta de recortes sobre os espaços urbanos de Pelotas a partir da perspectiva dos próprios estudantes. Foram 13 relatos e cada acadêmico pôde escolher um espaço específico da cidade e retratá-lo com um depoimento e imagens. Mesmo considerando o próprio documentário como motivador deste estudo, nosso interesse de pesquisa não residirá na observação do texto midiático. Para esta definição, faremos uso da trajetória dos estudos culturais, especialmente a partir da contribuição de Richard Johnson (2004, p. 35) que considera a perspectiva de produção, circulação e consumo de produtos culturais e estabelece quatro momentos interconectados para esta dinâmica: produção, texto, recepção e culturas vividas. Mesmo pensando especificidades para cada um dos momentos, Johnson pensa o diagrama de circulação da cultura como uma relação de interdependência: Cada momento depende dos outros e é indispensável para o todo. Cada um deles, entretanto, é distinto e envolve mudanças características de forma.  (...) Todos os 132

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Fábio Souza da Cruz produtos culturais, por exemplo, exigem ser produzidos, mas as condições de sua produção não podem ser inferidas simplesmente examinando-os como “textos”. (...) Para compreender as transformações, pois, nós temos que entender as condições específicas do consumo e da leitura. Essas incluem simetrias de recursos e de poder – materiais e culturais. Também incluem os ensembles existentes de elementos culturais já ativos no interior de milieux sociais particulares (“culturas vividas”, no diagrama) e as relações sociais das quais essas combinações dependem ( Johnson, 2004 p. 33 e 34).

Tendo isto como um ponto de partida, localizamos o interesse desta pesquisa em dois momentos específicos, interconectados pelas relações culturais: (1) o momento da recepção dos espaços urbanos e a partir daí a problematização da experiência sobre a cidade, levando em conta tanto o panorama agonístico do pós-moderno quanto à perspectiva das interculturalidades e (2) o momento de produção do texto midiático e imagens sobre os espaços urbanos, interpelado a partir das estruturas de sentido e repertórios culturais e estéticos dos acadêmicos. A idéia de estruturas de significado é recuperada a partir de Stuart Hall e a proposição de seu modelo codificação/decodificação (Hall, 2003 p. 391), onde estas estruturas, de certa forma, simbolizam as referências identitárias e os repertórios culturais/estéticos dos envolvidos. A grande questão deste momento seria perceber como as mensagens sobre os espaços urbanos são reelaboradas desde o momento da recepção até o momento da produção de sentidos. Algo que é constituitivo desta ponte, a partir do olhar teórico de Jesús MartínBarbero, são as mediações desta relação: as formas com que as mensagens são recebidas, relacionadas com a vivência dos indivíduos e reapropriadas na forma de outras mensagens.

Questões metodológicas

A opção metodológica central neste trabalho é o desenvolvimento de uma dialética histórico-estrutural que nos permite uma análise historicizada e ao mesmo tempo não distante das circunstâncias estruturais do objeto. Esta relação histórico-estrutural teve um papel constituinte nas opções metodológicas dos estudos culturais, desde sua fase de formação e desenvolvimento, a partir do trabalho de pensadores como Edward Palmer Thompson, Raymond Williams e Stuart Hall. Houve um trânsito entre os Mestrado de Comunicação - UFSM

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A recepção e produção de sentido sobre os espaços urbanos dois paradigmas teóricos: um estruturalismo herdado do pensamento marxista, apropriado por E.P. Thompson e um culturalismo com uma característica fortemente historicizada a partir das reflexões de Williams. Estas duas posições estiveram em uma constante dialética (Hall 2003, p. 148) e, de certa forma, foram moldando os caminhos teórico-metodológicos utilizados pela tradição britânica dos estudos da cultura, apropriada, em parte, pelo pensamento comunicacional latino-americano. Atrelado a este modelo teórico-metodológico, opta-se pela realização de uma aproximação com o objeto a partir da combinação de algumas técnicas de pesquisa relacionadas com este foco específico. Nosso plano de trabalho será composto por dois momentos: (1) uma primeira observação com os estudantes a partir da realização de enquetes e o cruzamento destes dados com outros repertórios empíricos presentes e (2) a realização de entrevistas em profundidade com o grupo de estudantes para uma análise de maior fôlego teórico. A escolha deste procedimento não está dissociada desta trajetória teórico-metodológica dos estudos da comunicação e cultura e procura apropriar práticas com uma clivagem antropológica a partir de uma intenção etnográfica para com o objeto de pesquisa. Observando as tensões presentes entre a discussão da prática etnográfica a partir de outras áreas que não a antropologia tradicional, deixamos clara nossa opção pela compreensão de uma antropologia interpretativa, fundada a partir do pensamento de Clifford Geertz que a partir da interpretação das culturas, coloca o pesquisador em uma posição mais dialógica e decididamente específica de compreender a impossibilidade de fornecer grandes relatos sobre uma determinada sociedade, mas possibilitar a compreensão de seus conflitos a partir de suas fronteiras, tensionamentos e deslocamentos. Esta posição é ressaltada por García Canclini (2006a, p.142) como necessária para compreensão das sociedades contemporâneas, sobretudo quando nos referimos aos descompassos latino-americanos. Como tratamos aqui de um relato parcial de pesquisa, neste texto, faremos referência aos resultados do primeiro momento de pesquisa com a realização das enquetes com os alunos e o cruzamento destas falas com outros repertórios empíricos. Estes repertórios são formados pelas experiências de um dos pesquisadores que é docente do grupo de alunos e são compreendidos como elementos de pesquisa a partir da relação de participação/observação colocada pela etnografia de caráter interpretativo. De modo que as falas dos estudantes, focadas a partir dos instantes de recepção dos espaços urbanos e produção das mensagens, serão interpeladas, a 134

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Fábio Souza da Cruz medida do necessário por estas experiências empíricas. A estrutura deste texto será composta pela enunciação de duas revisões teóricas necessárias ao empreendimento destes estudos: a questão dos espaços urbanos como problemática e a perspectiva das mediações para compreensão do processo a ser observado. Em um momento final traremos alguns resultados parciais que têm aqui o objetivo de nortear o desenvolvimento desta pesquisa enquanto resultados preliminares.

Espaço urbano como palco de conflito

As noções de tempo se alteram. As dinâmicas de trabalho e lazer nas grandes cidades assumem ritmos frenéticos e descentrados. O trânsito reconfigura-se em uma impressão de contínuo caos e contínua ordem. As praças e parques não têm o mesmo uso de antigamente, não são referenciados pelas pessoas com a mesma “centralidade” que ocupavam há pouco tempo. Há dificuldade em construir meta-relatos em torno de monumentos e obeliscos. Alguns dizem que o centro das cidades está morrendo. Estes sinais empíricos, de certa forma, demonstram um panorama de crise consensual entre aqueles que se dedicam a observar as percepções do moderno. Desde o poeta Baudelaire e a figura de seu flâneur parisiense até os dias de hoje, observamos os espaços urbanos como sinais visíveis desta crise das narrativas do progresso e da utopia tecnológica. É um fato que as estruturas que legitimavam e ordenavam o mundo estão em profundo descrédito e declínio, como nos demonstra Jean François Lyotard ao postular uma condição pós-moderna (2004). Esta condição ocorre não apenas como a supressão do antigo pelo novo, mas a partir de uma profunda problematização do presente e uma perspectiva “pluralista que aceita a fragmentação e as combinações múltiplas entre tradições, modernidade, pós-modernidade, é indispensável para considerar a conjuntura latino-americana” (García Canclini, 2006 p. 352). Tal como um dos maiores símbolos do moderno, a cidade é um destes grandes relatos que sofre uma profunda reconfiguração em suas funcionalidades e sua organização simbólica. O espaço urbano torna-se um grande palco do conflito das estruturas da modernidade com suas próprias certezas: passamos de um local de participação pública à participação mediada pela tecnologia que muda nossa maneira de nos relacionar e de produzir sentidos sobre o mundo. A trajetória das sociedades ocidentais para a modernidade, sobretudo a dos grandes centros econômicos do hemisfério norte, obedeceu, de certo modo, um caminho bem delimitado, pois era possível perceber uma Mestrado de Comunicação - UFSM

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A recepção e produção de sentido sobre os espaços urbanos fase sucedida por outra fase, a partir das viradas simbólicas e do advento do novo e do progresso. Isso era visível para os agentes sociais que acompanharam a formação dos grandes centros urbanos a partir das inferências da técnica no cotidiano. O automóvel, o rádio, o telefone e outros inventos do século XX foram alguns exemplos destas viradas simbólicas do novo como algo incontestável e realizador de uma utopia tecnológica. As mudanças espaço-temporais, causadas por estas grandes viradas, foram vivenciadas por um contingente significativo das sociedades. Como demonstra Zygmunt Bauman (2005, p. 28), a trajetória para a formação do estado-nação passou justamente por esta via. Houve tempo para a formação dos grandes discursos como o do estado-nação, o da divisão do trabalho e o do espaço urbano como ápice deste tempo e materialização de grandes promessas. Este discurso sobreviveu quase incontestável a mais de um século e forneceu uma identidade nacional indelével, que segundo Bauman “não reconhecia competidores, muito menos opositores”. O próprio poeta Baudelaire, no século XIX, é uma prova da vivência radical do moderno quando seu lirismo descreve o descentramento e o deslumbramento na multidão como um “imenso reservatório de eletricidade”: O amante da vida universal entra assim na multidão como um imenso reservatório de eletricidade. Pode-se compará-lo, ele mesmo, a um espelho tão imenso quanto esta multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência que, em cada um dos seus movimentos, representa a vida múltipla e a graça móvel de todos os seus elementos. É um eu insaciável do não-eu que, a cada instante, o manifesta e o exprime em imagens  mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia. (Baudelaire, 1993 p. 18)

Essa experiência do Pintor da Vida Moderna, nada mais é do que uma preconização da experiência urbana que viria a ser problematizada durante todo o século XX. Jorge Larrain associa esta imagem do flâneur a vivência vital da modernidade como uma experiência de fragmentação, mobilidade e mudança social que “não apenas rompeu com o modelo do passado, mas também foi caraterizada por um processo permanente de rupturas internas e fragmentação” (Larrain, 2000 p. 16). O relato literário traz uma experiência conectada com o que vivemos hoje no cotidiano das cidades: uma sensibilidade estética sobre as coisas e diretamente relacionada com a questão das identidades que assumem um caráter descentrado e “insaciável”. Este episódio seria problematizado mais tarde a partir de Wal136

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Fábio Souza da Cruz ter Benjamin (1989 p. 54), que escreveu sobre Baudelaire, na mesma condição que se colocou como um dos “primeiros a falar da metamorfose da percepção em virtude do impacto da tecnologia moderna” (Santos, 2003 p. 153). De forma que houve a possibilidade da percepção e mapeamento dos conflitos decorrentes da segunda metade do século XX que paulatinamente modificaram paisagens urbanas a partir das novas compreensões de tempo e espaço. Conforme descreve Beatriz Sarlo (2000 p. 14) e Martín-Barbero (2005 p. 289), as grandes vias de tráfego, por exemplo, que mudam as paisagens das cidades e reconfiguram a experiência urbana, nada mais são do que a emergência de um espaço de fluxos imediatos que muda a experiência no sentido não apenas de permitir o acesso rápido, mas de permitir outra experiência de cidade por resumi-la apenas aos espaços de uso pragmático dos públicos e não interpelar seus habitantes a outros espaços de diferença e não-uso. Criam-se a partir daí múltiplas cidades e múltiplas noções do espaço desde a daquele que utiliza o sistema de transporte coletivo ao que pode ter seu próprio veículo. Tendo em vista este quadro agonístico de insatisfação com as narrativas do presente, ao situarmos a questão a partir do espaço cultural latino-americano, precisamos compreender a questão dos espaços urbanos de uma forma ainda mais problemática. Isto porque os processos de urbanização na América Latina obedeceram uma dinâmica diferente dos processos do hemisfério norte por circustâncias históricas e caminhos diferentes. Não foi possível estabelecer uma temporalidade comum em vista de os processos de urbanização acontecerem de uma forma absolutamente descompassada. Esta perspectiva e definida como a vivência de uma modernidade tardia pelos países latinos expressa a partir do trabalho como Jorge Larraín e José Joaquín Brunner, dois autores chilenos que contribuíram para o pensar das sociedades latino-americanas a partir de uma trajetória particular, que considerasse os inúmeros descompassos de temporalidade e processos sociais a que os países foram e são submetidos. O primeiro deles, Larrain, além de ter sido um dos diretores do Centre of Contemporany Cultural Studies (CCCS) na cidade de Birmingham, Reino Unido, desenvolveu uma pesquisa sobre identidade cultural na América Latina através de seu livro Identity e Modernity in America Latina (2000). Neste ensaio o autor propõe uma trajetória específica dos países latinos para a vivência do tempo moderno, evidentemente apoiada em fotos históricos politicamente comuns e também os diálogos entre as diferenças.  Larrain desdobra este processo em cinco fases: (1) da independência até 1900 com a modernidaMestrado de Comunicação - UFSM

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A recepção e produção de sentido sobre os espaços urbanos de oligárquica, atrelada aos colonizadores, (2) de 1900 até 1950 com a crise da modernidade oligárquica e a insurgência da modernização populista, (3) do pós-guerra até 1970 com a expansão das indústrias, (4) de 1970 até 1990 com o período das ditaduras e (5) de 1990 até os dias de hoje com o neo-liberalismo e a vivência de uma modernidade tardia.  O que de mais importante há nesta trajetória é justamente o fato de o autor identificá-la como específica, diferente, sobretudo na temporalidade, da narrativa moderna européia e americana. A partir desta idéia a modernidade latinoamericana foi vivenciada em um período de tempo diferente do modelo europeu. Absolutamente não houve o mesmo tempo para vivência do moderno e a introdução das sociedades neste paradigma ainda está acontecendo. Os processos de independência dos países aconteceram de forma tardia e, no caso do Brasil, a transição de sociedade rural para organização urbana e industrial efetiva, na sua totalidade, em curto espaço de tempo, a partir da segunda metade do século XX. Apesar desta grande diferença temporal a mesma concepção do moderno ocidental foi utilizada como paradigma político pelos países quando este modelo oligárquico entra em crise. Como ressalta o autor, esta crise acontece em concomitância com a primeira crise da modernidade européia e o crash na bolsa de valores de Nova Iorque em 1929: But the consequences of the crisis are specific to Latin America: the oligarchic power begins to crumble, the socalled ‘social question’ comes to the fore, new populist regimes emerge wich widen the franchise and incoroporate the midle classes into government, and process of import-substituting industrialization are initiated. Thus, while in Europe a crisis of liberal is experienced, in Latin America it is the prevailing oligarchic and aristocratic export-oriented system that enters into its terminal phase, and incipient industralization process start whit some success. (Larrain, 2000 p. 22)

O que se pode observar neste contexto é um grande choque entre o tradicional das sociedades latino-americanas com a narrativa do moderno ocorrido em um curto espaço de tempo. Esta análise do tensionamento entre tradicional e moderno é complementada através da contribuição do segundo autor chileno, José Joaquín Brunner, que propôs através de seu trabalho uma cartografia da modernidade na América Latina. Um dos primeiros pressupostos de Brunner é justamente o tensionamento entre o 138

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Fábio Souza da Cruz tradicional e o moderno não como oposição, mas como temporalidades que coabitam (Brunner, 1994 p. 25).

Uma das questões centrais deste olhar são as relações entre tradição e modernidade que estão presentes de forma contundente na questão urbana e influem na forma como a cidade é imaginada. Há uma imensa narrativa da cidade como legado inconteste e centro das tradições e relatos de sutura que dialoga com outras posições modernas e pós-modernas. Esta relação longe de ser algo resolvido com a supressão de um tempo pelo outro significa uma constante negociação entre modernidade e tradição. Isso se torna visível a partir da paisagem urbana dos grandes centros que conjuga construções do século XIX, nas cidades mais antigas, com grandes plantas arquitetônicas que vão modificando a paisagem simbólica de alguns bairros e impondo estilos de vida destoantes com o mapa das cidades como um imenso labirinto para o mero encontro e desencontro. Casas com telhas de barro estão lado-a-lado com edifícios, prédios históricos são convertidos em modernos centros econômicos e tecno-igrejas e os novos planos urbanos de construção de vias para comportar o tráfego sufocante que entram em conflito com a desordem dos espaços de lazer publicamente constituídos são alguns dos exemplos desta relação. Há uma constante negociação entre as tradições como narrativas e os desafios do moderno e também várias concepções de tradição a partir da vivência de uma temporalidade específica na América Latina. García Canclini coloca esta idéia quando fala sobre o desdobramento do popular no moderno, no sentido de rejeitar sua simples oposição e complexificar esta assimetria: O conflito entre tradição e modernidade não aparece como o sufocamento exercido pelos modernizadores sobre os tradicionalistas, nem como a resistência direta e constante de setores populares empenhados em fazer valer suas tradições. (...) Ante essa necessidade recíproca, ambos  se vinculam mediante um jogo de usos do outro nas duas direções (García Canclini, 2006 p. 277).

Não se trata apenas do fim desta grande narrativa, mas sua constante problematização a partir da vivência da condição pós-moderna. Esta perspectiva é colocada nesta pesquisa a partir desta sua condição complexificadora do cotidiano, a partir do caminho que oferecem autores como David Harvey e Frederic Jameson que permite pensar o pós-moderno no sentido de problematizar e não suplantar o tempo moderrno. A partir da sensibilidade de Martín-Barbero para este tema, compreendemos que a ciMestrado de Comunicação - UFSM

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A recepção e produção de sentido sobre os espaços urbanos dade, tal como uma grande narrativa do moderno, é lugar onde esta problematização é visível em todos os seus desajustes. Historicamente constituída a cidade concretiza as idéias de desenvolvimento que as diferentes sociedades comportam e com isso faz com que suas fraturas fiquem mais expostas. A marginalização, os conflitos, a impressão de caos e ordem, o comércio informal e a circulação de produtos culturais nestes contextos são sinais de fratura social que apresentam mais complexificação do que as políticas públicas alcançariam. Neste sentido, por exemplo, a idéia de medo presente no imaginário das cidades é apresentada por Martín-Barbero como algo que vai além da existência das ameaças da rua e está ligada a narrativa simbólica da cidade e aos pontos de coesão identitária, muito mais do que a iminência do perigo: Medos que provém secretamente da perda do sentido de pertencer, em cidades nas quais a racionalidade formal e comercial foi acabando com a paisagem na qual se apoiava a memória coletiva, nas quais a normalização das condutas, tanto quanto a dos edifícios; levam a erosão das identidades, e essa erosão acaba roubando-nos o piso cultural, arrojando-nos ao vazio. Medos, enfim, que provêm de uma ordem constituída sobre a incerteza e a desconfiança que produz no outro, qualquer outro – étnico, social, sexual – que se aproxima de nós na rua e é compulsivamente percebido como ameaça (Martín-Barbero, 2005 p. 295).

Então, o tema espaços urbanos precisa ser compreendido a partir desta complexidade do simbólico e do não-aparente. Boa parte dos problemas urbanos costuma ser compreendido a partir de um encadeamento aparentemente lógico: há violência porque não há emprego. No entanto, pouco estão consideradas as possibilidades da violência também sustentar motivações culturais e simbólicas que vão desde a necessidade de socialização até o acesso a espaços de expressão e prática cultural dos sujeitos. Mesmo não sendo este o foco deste ensaio, o que queremos dizer é que nossa compreensão da questão dos espaços urbanos acontece a partir da consideração deste jogo de relações simbólicas nas maneiras de se narrar e imaginar a cidade.

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Fábio Souza da Cruz

A perspectiva das mediações

Responsável pela obra “Dos Meios às Mediações”, originalmente lançada em 1987, na qual se percebe o desenvolvimento da pioneira perspectiva das mediações, Martín-Barbero é referência indiscutível em estudos de recepção na América Latina. Depois de passar por uma análise crítica de alguns modelos de comunicação clássicos, do reducionismo ideológico de Lasswell às concepções limitadas – embora mais consistentes – de Shannon e Weaver, e com forte ênfase na cultura e na política, o autor estabelece um deslocamento “dos meios para as mediações”.

A proposta remete aos lugares de fala de cada pessoa, os quais demarcam uma forma particular de observar, interpretar e produzir sentido. Conforme afirma Martín-Barbero, “(...) na leitura – como no consumo – não existe apenas reprodução, mas também produção, uma produção que questiona a centralidade atribuída ao texto-rei e à mensagem entendida como lugar de verdade que circularia na comunicação” (1997, p.291).

É importante averiguar, portanto, em que condições as falas estão sendo constituídas e construídas. Estas “posições de enunciação” (HALL, 1996) são individuais e baseiam-se em um contexto particular e, ao mesmo tempo, público, ou seja, referem-se à identidade cultural de cada pessoa a qual, cabe ressaltar, consiste em um processo sempre em construção, pois interage com o social.

Sob essa perspectiva, Martín-Barbero estabelece três lugares de mediação, a saber: “a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural” (1997, p.292). Para o autor, com relação ao primeiro caso, na América latina, as pessoas se reconhecem na televisão e, no Brasil, isso não é diferente. No entanto, para que essa situação possa ser entendida, faz-se necessário estudar o cotidiano dessas famílias.

O segundo caso aborda a ligação entre os tempos de produção e as rotinas cotidianas de recepção. Já o último aspecto refere-se às mais variadas bagagens culturais dos componentes da esfera receptiva (particulares, individuais), o que corrobora para um modo específico de ver/ler, interpretar e usar os produtos da cultura midiática. Contribuindo para o desenvolvimento desta pesquisa, Orozco Gómez (2000) sinaliza cinco correntes de investigação, a saber: Efeitos, usos e gratificações, criticismo literário, estudos culturais e análise crítica Mestrado de Comunicação - UFSM

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A recepção e produção de sentido sobre os espaços urbanos de audiência. Enquanto as duas primeiras identificam-se com o paradigma positivista, as três restantes têm ligações com o hermenêutico.

No cerne de seus questionamentos, a corrente dos efeitos apresenta a preocupação em saber o que acontece com os receptores expostos a uma determinada mensagem.  “Que fazem os meios (ou a mensagem) com a audiência?” Conforme Orozco Gómez (2000, p.53), “se admite que haja efeitos a curto, médio e longo prazo (...) há efeitos muito importantes e menos importantes (...) e uma vez que se manifestam permanecem, são irreversíveis e, outros, são momentâneos”.

A corrente dos usos e gratificações inverte a questão anterior. Agora, interessa saber o quê as pessoas fazem com o meio, como se apropriam deste, o que deixa clara a noção de receptor ativo. Este possui necessidades e expectativas, que são individuais, variam de indivíduo para indivíduo.

Por sua vez, o criticismo literário relaciona “os estudos sobre semiótica, temática sintática e as novas correntes alemãs e francesas da estética da recepção” (OROZCO GÓMEZ, 2000, p.56). Esse modelo tem como objetivo saber o que é produzido a partir do contato entre um leitor e um texto. Já os estudos culturais indaga qual a função da cultura na interação meio-mensagem-audiência (OROZCO GÓMEZ, 2000). A cultura é o centro, o lugar onde perpassam as relações de poder. A comunicação não se entende fora da cultura. Logo, pretende-se saber como intervém a cultura na interação mídia/receptor.

Portanto, sendo ativo e dono de uma cultura particular, o receptor produz códigos culturais: a reprodução, em que aceita tudo o que recebe, o que o constitui em uma espécie de cúmplice do pensar hegemônico; a negociação, quando aceita algumas partes daquilo a que está exposto e outras não; e a resistência, processo em que não há aceite de propostas de sentido oriundas da mídia, o que acarreta uma produção alternativa ou contraproposta. Para Orozco Gómez, a possibilidade reinante no processo de recepção dos meios é a negociação (2003) [1].

Esta categorização do sujeito receptor assemelha-se muito àquela desenvolvida por Hall (1980). No entanto, ao invés de “reprodutor”, Hall utiliza “dominante”; no lugar de resistência, este usa o termo “oposição”. O termo “negociação” é trabalhado pelos dois autores. A última corrente – a análise crítica de audiência – implica estudar os meios culturalmente. É 142

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Fábio Souza da Cruz feita uma abordagem completa da audiência. O receptor é o elemento principal. A interação com o meio consiste em um processo muito complexo onde interagem diversos elementos como o meio, a mensagem, a interação, o receptor, a cultura, o sistema social, o discurso do receptor etc. (2000; 2003).

Na concepção de Orozco Gómez, a perspectiva das mediações implica levar em conta toda uma soma de fatores, que pode causar influência no processo de produção de sentido dos receptores, tais como a identidade particular de cada um, a família, a escola, o grupo de amigos, o bairro, o trabalho, a cidade, os meios de comunicação e a disposição dos indivíduos frente a estes, o nível de instrução, sexo, idade, etnia, religião, salário, classe social, ideologia etc. Assim, através dessa identidade construída – e jamais acabada – , o receptor produzirá significados próprios, particulares e individuais. A total apropriação, a negociação ou até mesmo a resistência plena das mensagens são decorrentes diretamente das diferentes mediações anteriormente citadas. Nessa realidade complexa, onde atuam diferentes fontes e origens, a cultura é eleita “a grande mediadora de todo processo de produção comunicativa” (OROZCO GÓMEZ, 2000, p.114). Portanto, a comunicação vai além dos meios. Desloca-se para as mediações, que, por sua vez, são permeadas pela cultura. Assim, todos os processos sociais são perpassados pela cultura. Ela é o agente de mediação. Essas mediações concretizam-se em três práticas: a sociabilidade (formas de negociação, de contato com os outros; práticas cotidianas de interação), a ritualidade (ligada às rotinas – “repetição de certas práticas”) e a tecnicidade (cada meio possui uma singularidade que se remete ao suporte técnico) (OROZCO GÓMEZ, 1993; 2000).

Em sintonia com a proposta metodológica desta pesquisa, segundo Orozco Gómez (2000, p.83), a investigação qualitativa “é um processo de indagação de um objeto ao qual o investigador alcança através de interpretações sucessivas com a ajuda de instrumentos e técnicas, que lhe permitem envolver-se com o objeto para interpretá-lo da forma mais integral possível”. Ao contrário de antes, quando o instrumento de trabalho e a(s) técnica(s) utilizada(s) guiavam a trajetória da pesquisa, agora há decisões que vão sendo tomadas durante o período de investigação. O líder é o sujeito investigador. Afirma-se, então, que a presente pesquisa não possui a Mestrado de Comunicação - UFSM

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A recepção e produção de sentido sobre os espaços urbanos pretensão de ser uma estrutura fechada, acabada. Pelo contrário, está aberta a eventuais mudanças de rumo ao longo de sua caminhada.

Com relação ao tamanho da amostra, por experiência própria embasada em anos de pesquisa, Orozco Gómez (2000) afirma não ser necessário entrevistar mais do que 25 pessoas, pois, além desse número, as informações novas obtidas são mínimas. Para o autor, um número entre 10 e 20 entrevistados pode ser suficiente para que se obtenha conhecimento. Não interessa a quantidade, mas, sim, como se desenvolve o processo crítico dos receptores.  Pretendendo detectar posicionamentos, a proposta desta pesquisa ganha força na metodologia qualitativa de investigação de Orozco Gómez (2000; 2003). Não há o interesse, aqui, de generalizar os resultados, mas, sim, verificar (não no sentido quantitativo) possibilidades e anseios com base em uma amostra limitada.

Considerações parciais e vetores de pesquisa

Nesta parte, iremos fornecer algumas considerações parciais sobre a pesquisa sobre recepção de espaços urbanos com os alunos do curso de cinema e animação da UFPel. É digno de nota que estes direcionamentos têm o caráter exclusivo de apontar vetores para o seguimento deste estudo e são resultado de uma primeira aproximação com o objeto de estudos tal como explicamos nos procedimentos metodológicos. Não existe a intenção de oferecer uma análise aprofundada. Nossa preocupação neste momento é fornecer direções para a pesquisa mais do que propriamente materializar reflexões. O repertório empírico que compõe esta parte é composto pela realização de enquetes com seis estudantes participantes do projeto e o cruzamento com algumas experiências do empírico, conforme especificado no início do texto. O foco das enquetes com os estudantes foram os momentos de recepção dos espaços urbanos e produção das mensagens com relação à produção de sentidos sobre a cidade de Pelotas. Cabe ressaltar também que o contato prévio com a discussão do tema permitiu certa sensibilidade teórica para percepção de alguns vetores potenciais, que procuramos elencar a partir deste momento.

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O referencial do passado e o diálogo entre tradicional e moderno

Algo que é recorrente na observação dos relatos dos estudantes são os referenciais com passado para descrição do espaço urbano. Esta consideração não pode ser vista como ocasional se observarmos empiricamente o contexto da cidade de Pelotas. Com mais de 200 anos de história, a cidade foi uma das primeiras do Estado e possui um grande conjunto arquitetônico de prédios históricos que caracterizam seu espaço urbano. Historicamente, especialmente durante o ciclo do charque que perdurou até o início do século XX, o município foi um dos principais centros econômicos da região sul. Esta dinâmica influenciou boa parte da organização do espaço urbano e da arquitetura dos prédios de estética erudita em vista da influência européia. Mesmo sem uma observação mais aprofundada sobre este tema, é oportuno observar que a atenção à questão histórica foi recorrente em quase todas as falas dos estudantes. E esta questão, em boa parte das falas, não se encontra essencializada: está sempre posta em conflito com outros posicionamentos ligados à interpelação do moderno. Temos avenidas inacabadas ou com trajeto alterado por conveniências alheias ao bem público. As quais poderiam liberar o centro histórico da cidade para que este pudesse ser desenvolvido. Temos atividades comerciais, aqui cito os camelôs, inadequadas para qualquer cidade grande, dia a pós dia matando os poucos empresários locais que ainda investem na cidade. (Wagner Oliveira) A cidade e Pelotas é um local no qual um passado importante impera, ao passo de que as pessoas que nela vivem acabam perdendo-se no sentido de que não sabem o que fazer primeiro, valorizar a história, ou tentar construir o futuro. (Leonardo Peixoto)

Nestes dois casos é possível ver como se materializa esta problemática do diálogo entre tradição e modernidade. Sobretudo a noção de García Canclini para esta questão como um “jogo de usos” (2006, p. 277), uma assimetria que continua existindo entre as duas posições, mas de maneira mais intricada e complexa. Este jogo de usos não coloca as duas posições como uma simples oposição binária, mas compreende certo dialogismo entre as duas posições. Ambas estão em constante conflito, mas precisam negociar uma com a outra, compartilhar a mesma temporalidade

A recepção e produção de sentido sobre os espaços urbanos e encontrar uma lógica de desenvolvimento. Com a intenção de traçar possibilidades, percebemos que estas questões históricas encontram-se sempre em conflito por conta desta relação intricada entre tradicional e moderno que exime que sejam compreendidos sobre o mesmo tempo e não como a supressão de um tempo pelo outro. No relato do estudante Wagner Oliveira é possível perceber alguns indícios de uma das principais fraturas da modernidade tardia vivenciada pelos países da América Latina, a partir do comércio informal em negociação com o espaço urbano. Como demonstra Jorge Larrain (2000, p. 199), o comércio informal é um dos sinais para compreensão da trajetória específica latino-americana no momento em que tem raiz na não-existência de um estado-nação capaz de regular o sistema econômico que comporte os trabalhadores. Já no segundo relato, do estudante Leonardo Peixoto, o conflito entre o tradicional e o moderno está explícito e relacionado pelo próprio estudante à necessidade de se pensar o futuro a partir do passado. E o espaço urbano é o lugar onde estes desajustes são materializados e percebidos pelos agentes sociais. Aí reside o interesse deste estudo.

Espaços urbanos e mediações

Outro indício que pode apontar um caminho para o desenvolvimento da pesquisa é a questão das mediações no espaço urbano a partir do relato dos estudantes. Esta perspectiva abriu-se, especialmente, a partir da circunstância de produção de sentidos sobre os espaços, quando os estudantes perceberam que era possível fornecer seus próprios relatos e suas próprias vivências sobre determinados espaços urbanos. O projeto “olhares” foi compreendido por alguns sobre esta perspectiva de oferecer diferentes formas de leituras dos espaços e uma das experiências mais agradáveis apontadas por eles, foi a de observar a percepção dos outros colegas sobre espaços comuns. A história contada de cada local esquece, invariavelmente, dos detalhes e das histórias particulares vividas enquanto tal ou tal período econômico acontecia ou quando algum prefeito construia uma ponte. Este documentário busca mostrar de forma mais natural o que a cidade de Pelotas é hoje, o que ela instiga nos seus cidadãos. (Leonardo Peixoto).

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Fábio Souza da Cruz Em um documentário no formato do olhares é interessante ver que há diversos modos de ver as coisas, que  cada um tem seu modo único de interpretar o lugar retratado (Diego Souza). Mesmo sendo uma visão particular de cada um dos participantes, as imagens ali contidas representam a cidade de Pelotas e são um documento, contendo a visão e opinião de estudantes, sobre partes da cidade onde moram (Fábio Sinoti).

O que se pode perceber a priori é que a prática de registrar o espaço urbano permite que este seja codificado a partir de uma parcialidade, e que esta, ao invés de restringir seu sentido, fornece várias parcialidades sobre um mesmo espaço que é partilhado pelos estudantes. Cada percepção faz com que haja pequenos olhares sobre uma determinada coisa, ao invés de um grande meta-relato. Estes pequenos relatos são importantes se oferecidos como uma forma de narrar a cidade “de uma forma mais natural” como coloca o estudante Leonardo Peixoto. Esta perspectiva deve ser melhor problematizada e o aporte teórico das mediações, fornecido por Jesús Martín-Barbero, pode fornecer uma sensibilidade teórica adequada ao desenvolvimento deste vetor de pesquisa.

Bibliografia

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Notas

Esta categorização do sujeito receptor assemelha-se muito àquela desenvolvida por Hall (1980). No entanto, ao invés de “reprodutor”, Hall utiliza “dominante”; no lugar de resistência, este usa o termo “oposição”. O termo “negociação” é trabalhado pelos dois autores.

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