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Publicidade: o fazer-valer Maria da Conceição Golobovante1

RESUMO Em busca de uma epistemologia da comunicação publicitária, e em especial da sua ocorrência no espaço urbano, este artigo questiona a visão da publicidade como uma atividade comercial per se, ao problematizar sua construção como discurso valorizante de bens e serviços, ou seja, a validade desta prática está condicionada à sua capacidade de produzir linguagem e, portanto, cultura. Palavras-chave: Publicidade; marketing; mídia; cidade. ABSTRACT This article is looking for an advertising’s epistemology, especially on the outdoor ads presents in the urban space, challenging right the idea of advertising as only a commercial activity. Its valorizing speech connected to the goods and services ratifyes its real value as a cultural production. Keywords: Advertising; marketing; media; city.

Publicitária, professora do curso de Publicidade e Propaganda e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. 1

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racionalidade mercadológica percebe a publicidade como um negócio que visa a objetivos comerciais. Sua constituição como linguagem e, portanto, como cultura seria apenas o reflexo da iniciativa econômica. Questionar essa visão e reivindicar a inversão desse paradigma, ou seja, assumir que é a dimensão cultural da publicidade o que lhe confere a valorização econômica implica pensar historicamente que a troca privada de bens nunca é somente comercial, mas também um ritual fundante da cultura. A invenção da moeda, para retirar a economia de um estágio primitivo no qual imperavam as trocas diretas, ou escambo, não bastou, por si só, para estabelecer o acordo entre os negociantes quanto ao preço entre a oferta e a procura. Fez-se necessário acrescentar um discurso valorizador (Lagneau 1981: 7) sobre os bens, que despertasse nos parceiros o desejo de intercambiá-los. Essa troca simbólica precede a transação comercial efetiva, conferindo-lhe um sentido. As modalidades do fazer-valer multiplicam-se, pois cada cultura inventa e pratica seus próprios ritos de troca. A publicidade coloca-se, numa perspectiva antropológica, como uma forma particular de fazer-valer aplicada especificamente aos intercâmbios mercantis, pois a troca comercial implica, por parte de quem oferece, uma estratégia valorizante do bem aos olhos de quem o compra. Da perspectiva da teoria econômica, Vargas (2001: 52) pontua que, dos três setores básicos da economia, esta teoria sempre percebeu o setor terciário (comércio e serviços, ao qual pertencem o marketing e a comunicação) como o menos nobre em relação ao primário (agricultura e pecuária) e ao secundário (no qual o produto que vem da terra é transformado – a indústria). A velocidade das transformações históricas cria um descompasso entre os paradigmas da análise da teoria econômica e o contexto atual da

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produção do setor. É inegável que o desenvolvimento do capitalismo financeiro, a revolução da informática, a internacionalização da economia e o surgimento das atividades de entretenimento e do turismo como primeira indústria mundial reforçaram o caráter produtivo das atividades ditas terciárias como criadoras de riqueza. Dentre as atividades terciárias, o marketing desponta como a força motriz dessa evolução. Até o início dos anos 1950, o marketing – até então conhecido simplesmente como “vendas” – estava em sua fase embrionária porque muitas empresas das economias mais desenvolvidas do Oeste Europeu e dos Estados Unidos, ao colher os efeitos benéficos da produção de massa possibilitada pela Revolução Industrial, permaneciam orientadas para a produção, uma vez que praticamente tudo o que se fabricava era vendido. Os primeiros abalos se fizeram sentir após a Primeira Guerra Mundial, quando surgiu a preocupação com o escoamento dos excedentes de produção. Uma empresa orientada para as vendas sabia da resistência dos consumidores quanto à compra de bens e serviços que não julgassem essenciais. Para subsidiar o trabalho dos vendedores, as empresas começaram a anunciar seus produtos, na expectativa de que os consumidores abrissem suas portas para receber os vendedores, principalmente os de venda domiciliar. Naquele momento, divulgar e vender eram sinônimos, pois o processo de criar, produzir e veicular revestimentos simbólicos para as intenções mercadológicas das forças produtivas capitalistas davam seus primeiros passos por meio das ações retóricas dos homens de vendas. A intensificação daquelas relações fez o conceito de “vendas” evoluir para uma área do conhecimento das ciências da administração, o marketing, usualmente conceituado como a “planificação e a execução de um conjunto de atividades comerciais que têm como objetivo final a troca

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2 Segundo o conceito clássico da American Marketing Association (AMA): “Marketing is the process of planning and executing the conception, pricing, promotion, and distribution of ideas, goods, and services to create exchanges that satisfy individual and organizational objectives”. Para saber mais informações, acessar o site: . Acesso em: 12/2/2004. 3 Jimmy Cygler é professor do MBA da ESPM-SP e presidente da Resolve! Global Marketing. Em seu artigo na revista Exame, “O mundo é Matrix?”, o autor analisa o atual momento das estratégias de marketing. Disponível em: http://busca.abril.com.br/exame/result.jhtml?si=exa me&qu=matrix. Acesso em: 8/8/04.

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de produtos, ou serviços, entre produtores e consumidores”2 (Gracioso 1986: 15). Nesse contexto, inverte-se o papel da publicidade, que de protagonista passa a ser apenas uma dessas “atividades comerciais”, e põe em conexão, ou em sintonia, as forças produtivas e os consumidores, por meio de uma estratégia de comunicação em larga escala. O marketing surge à frente da cena. Ao relacioná-lo com as reflexões sobre publicidade e cultura, é viável pensá-lo hoje como o cérebro do sistema produtivo de bens e serviços de consumo de massa. Cabe à publicidade ser sua expressão, ou seja, ser os sentidos da racionalidade mercadológica. Para além da corporeidade do próprio bem, cria-se outra, simbólica e imaginária para ele. Note que esse cérebro deixou de ter como objeto principal apenas o mundo do produto ou do mercado. O mercado não é mais o fim, mas a arena em que os “marqueteiros” travam uma batalha de outra ordem, a batalha da percepção. O desenvolvimento tecnológico que aproximou as características técnicas dos objetos acabou por equipará-los também na mente do consumidor. A paridade técnica deslocou a diferenciação do plano material/real para o simbólico/perceptivo. É a era do “posicionamento”, para usar um termo em voga na área. Procura-se ocupar um lugar preciso na mente do consumidor-espectador para que, sempre que surgir a necessidade X, ele a associe à imagem do objeto Y, e essa imagem seja forte o suficiente para fazê-lo agir e consumir. Pertencendo o marketing, portanto, ao mundo da percepção, e menos ao do produto, é o aparato cognitivo humano que tem precedência sobre o mercado. Cygler3 (2003) defende que a avalanche de marcas não é o único motivo pelo qual somos compelidos a consumir marcas, ou seja, percepções – e não produtos. Outro problema é a absoluta falta de tempo do indivíduo contemporâneo. “A

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vida moderna ampliou brutalmente nossas incumbências. Um estudo recente afirma que 100 anos de vida útil não são suficientes para assimilar o conhecimento gerado na face da Terra num único dia”4. A decisão de compra há muito deixou de ser uma decisão racional e individual. É claro que o produto deve funcionar, ser de boa qualidade, ser durável, ter garantias, assistência técnica etc., mas quem tem tempo para tanta racionalidade? Considerando a influência da mídia na vida cotidiana, o autor calcula que uma criança chega hoje à 1a série com suas sinapses moldadas por 6.000 horas de massacre televisivo, uma realidade que faz com que a cena em que Neo, personagem central de Matrix, aparece plugado diretamente no cérebro transforme-se numa metáfora menor, quase inocente5.

Esse bombardeio midiático moldará a forma como a criança enxerga o mundo, e a publicidade, com suas táticas de sedução e por seu enfoque, ou seja, por ter objetivos bem definidos, cria percepções que pouco têm a ver com o produto em si. “O que é realmente muito complicado de avaliar é o que a mídia não comunica”, afirma Cygler (2003). Ao forjar imagens mentais capazes de simular “realidades”, a publicidade, norteada pelos estudos de marketing, suscita o questionamento do autor: “existe, de fato, a tal da realidade, ou tudo é Matrix? Muito cuidado ao responder. Se sua opção for pela segunda hipótese, você poderá ser desplugado sumariamente deste mundo”6. 1 Publicidade e cultura: desvios e aproximações

Ao realizar uma operação simultaneamente estética e mercadológica, a publicidade extrapola em sua finalidade o

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Idem, ibidem.

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Idem, ibidem.

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âmbito estrito do mercado, para orientar, antecipar ou produzir valores e modelos de comportamento, configurandose numa instituição social. Veículo de informação coletiva, a publicidade, assim como a família, a escola e os mass media, revela-se um agente de transmissão e de reforço de modelos culturais, para além de sua atividade comercial primeira. Ela influencia o indivíduo-consumidor a ter certa imagem dele mesmo; a ter certo modelo de conduta, que ela estimula a modificar ou a reforçar, conforme as mudanças do ambiente e as intencionalidades em questão (Cathelat 2001: 278). Ao destacar o fenômeno da ampla estetização do cotidiano que ocorreu no mundo ocidental, a partir da segunda metade do século XX, a comunicação publicitária produz-se mediante a elaboração de narrativas que afetam os modos de apreensão do mundo, como orientadores – não normativos, mas sugestivos – das condutas. A eficácia dessa comunicação não ocorre com base no argumento convincente, mas numa retórica que, postulando realidades, opera de modo performativo. A operação publicitária realiza-se esteticamente: dirige-se à recepção sensorial e relaciona-se, simultaneamente, com a experiência do belo (Alves 1998: 10). A retórica publicitária distancia-se da referencialidade ao produto, tornando-se cada vez mais sugestiva, icônica e até metalingüística, quanto mais se intensificam dois fatores: a multiplicação da oferta de produtos e marcas, equivalentes em tecnologia, e o desenvolvimento dos modos de produção midiáticos, principalmente no que tange às tecnologias de impressão e processamento de imagens fotográficas e audiovisuais. O sucesso mercadológico da publicidade reside em sua eficácia ao convocar um universo determinado de signos que, metaforicamente ligados à mercadoria anunciada, insira a mercadoria-signo em um universo de práticas e valo-

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res pertinentes a determinado grupo de receptores, supostos consumidores potenciais (Alves 1998: 1). A eficácia da peça publicitária será avaliada pela correspondência entre o desejo provocado e o consumo efetivo. A publicidade, ao exponenciar o traço “comunicador” dos bens, ao fornecer os dispositivos simbólicos de individuação desses objetos, contribui para a ritualização do consumo. Sabe-se que, por meio de rituais, os grupos selecionam e fixam – graças a acordos coletivos – os significados que regulam a sua vida (García Canclini 1997: 58). Apesar de poder expressar-se em códigos, o ritual é mais eficaz quando surge aliado a bens materiais. Sob essa perspectiva, os bens são complementos ou acessórios dos rituais: o consumo é um processo ritualístico cuja função primeira consiste em dar sentido ao fluxo intenso dos acontecimentos e das informações cotidianas (Jhally 1995: 21). A mediação publicitária implica o conhecimento profundo do consumidor. Por não ser possível calcular o efeito independente da publicidade no processo de consumo é que Schudson (1984: 13) afirma que a “publicidade é bem menos poderosa do que clamam os publicitários e seus críticos”7. Note-se que esse poder de produzir e disseminar padrões simbólicos e de comportamento não é específico da publicidade, mas do conjunto de estratégias de comunicação midiáticas engendradas pela lógica do capital. Contudo, a publicidade ambiciona a totalidade da cultura quando engendra “modelos de desejo” cuja produção (sistemática) viabilizase no processo pelo qual “o gosto atribuível a um universo de receptores (o público-alvo) é transferido à mercadoria, como sua propriedade intrínseca” (Alves 1998: 10). Isso não significa afirmar que a publicidade seja a cultura, porque a cultura é anterior ao mercado. Os bens podem ter funções econômicas e publicitárias, mas eles têm também outras dimensões, nem sempre funcionais, nem sempre es-

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Do original em inglês: “advertising is much less powerful than advertisers and critics of advertising claim”. 7

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Em seu Ensaio sobre o dom, Marcel Mauss (1950: 275) estuda os fatos sociais totais ao forjar a equação concreto = completo. Os fatos sociais são, ao mesmo tempo, religiosos, econômicos, estéticos e morfológicos, quando são levados em consideração os sentimentos que desenvolvem os homens em grupo: “[...] podemos perceber o essencial, o movimento do todo, o aspecto vivaz, o instante fugidio quando a sociedade e os homens tomam consciência sentimental deles mesmos e de sua situação somente na relação com o outro”.

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truturais ou fisiológicas a uma estrutura social. Os bens não são apenas produtos de uma sociedade de consumo, porque eles a precedem. Os bens estão para o homem como todas as outras dimensões da vida, já que não é senão “totalmente” (como propõe Mauss8) que a cultura se expressa. Quanto à homogeneidade do sistema publicitário e sua redundância discursiva, a relação entre a publicidade e a opinião pública movimenta-se em outra direção. As pesquisas de mercado ditas “qualitativas” são mecanismos extremamente sofisticados de mapeamento e aferição das tendências desse “corpo social”. O que se vê como tendência desse conhecimento é um direcionamento, uma especificação da forma argumentativa das campanhas, que restringe o espaço e a utilização das estratégias retóricas. Reduz-se o foco da comunicação a um elemento estético único que será amplificado pela repetição, pelo volume de inserções da campanha, ou seja, conquista-se a adesão do auditório pela via quantitativa (seja numérica, seja pela diversidade das mídias utilizadas). Nesse sentido, a opinião pública é hoje a fonte e o alvo do sistema publicitário. Cabe a ele o processamento e a transformação dos desejos e tendências, ainda não elaborados dos públicos, em conteúdos estéticos capazes de espelhar e, ao mesmo tempo, moldar esses desejos. O hábito de “escutar” essa alteridade chamada auditório e o esforço em atender às solicitações desejantes dos sujeitos, ainda que esse esforço se restrinja aos bens consumíveis, geram uma cumplicidade que fortalece a relação entre a publicidade e a opinião pública. O público-alvo circunscreve as possibilidades de um modelo de comportamento que se atualiza no domínio da recepção, e como a recepção da publicidade ocorre com uma larga margem de independência do consumo efetivo dos produtos que ela anuncia, seu papel de difusora de mo-

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delos interpretativos do mundo torna-se ainda mais relevante (Alves 1998: 2). A precedência do cultural confirma-se quando as imagens publicitárias globalmente difundidas geram um consumo mais imaginário que material. No Brasil, o discurso dominante não esconde que o usufruto de qualquer bem de mercado no país é privilégio de uma elite econômica. Para a maioria, que não tem acesso aos bens e serviços anunciados pela publicidade, esta se mostra uma entidade autocentrada e misteriosa, que não se refere a outra coisa senão a si mesma. Uma espécie de publicidade intransitiva, pois “no Brasil há apenas um produto cujo consumo seja provavelmente mais generalizado do que em qualquer outra parte do mundo: a própria publicidade” (Ascher 1999: 11)9. 2 A homogeneidade de um sistema de comunicação

Se é preciso ressaltar a ambigüidade do fenômeno publicitário, objetivos comerciais e efeitos culturais, deve-se também insistir em sua unidade. A publicidade não é uma coleção aleatória de anúncios: para além da heterogeneidade dos produtos, dos públicos, dos argumentos, existe a homogeneidade de um sistema de comunicação de massa (Cathelat 2001: 273). A publicidade é uma técnica que expressa códigos internacionais de elaboração simbólica. Os veículos de comunicação são meios tecnológicos de uma cultura, assim como os meios de transporte, os instrumentos de produção, os circuitos de distribuição, as formas de habitação e urbanismo. A sociedade, graças às mídias, torna-se uma caixa de ressonância, em que os ecos amplificam ao infinito a

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9 Nelson Ascher, em matéria intitulada “O paradoxo da propaganda intransitiva”, publicada na Folha de S.Paulo, caderno Mais!, em 17/11/ 1996.

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mensagem e as reações que suscita. Essa redundância não implica a sinonímia das mensagens, mas a sua coerência (Cathelat 2001: 94-95). Parte do poder da mensagem publicitária advém do fator redundância, ou seja, por mais que os conteúdos de todos os anúncios do mundo sejam diferentes, a mensagem de fundo é única: consiste em glorificar os prazeres e as vantagens da liberdade de escolha, defendendo as virtudes da vida privada e da ambição material (Schudson 1984: 19). Ela idealiza o consumidor e o consumo. A essa redundância junta-se a pressão publicitária global e seu impacto repetitivo. A simplicidade dessa mensagem, sua ubiqüidade e sua repetição acabam por marcar profundamente os receptores em sua mediação cotidiana com a publicidade. Assim, a publicidade assume a sua dimensão imaginária, para além das dimensões funcional e simbólica. Emprestando ao produto uma dimensão especular, pela qual o sujeito vê sua própria imagem, o produto incorpora as motivações mais profundas e irracionais de evasão, de metamorfose, de idealização e de alheamento de si. À sofisticação das recentes estratégias de marketing que visam mapear a “percepção” dos sujeitos, a publicidade a replica ao produzir uma linguagem espetacular, quebrando seus códigos habituais da demonstração técnica, para fazer o objeto transmutar-se numa parte do sonho do consumidor (Cathelat 2001: 39). 3 A publicidade transforma o urbano em espetáculo

As cidades são, neste contexto, o palco privilegiado das mensagens publicitárias, que, inseridas no meio urbano, modificam a paisagem e fazem o passante reagir a elas de formas (in)diferentes. Um olhar diurno capta uma imagem

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diferente daquela de um olhar noturno. A luz e o néon têm a capacidade de transformar a paisagem, e neles podem fundirse cores e texturas. A cidade contemporânea é um suporte de signos apreendidos instantaneamente, em que o seqüencial cede lugar ao simultâneo, em que forma e função chegam a ser unidades. “Como nos vídeos, a cidade se fez de imagens saqueadas de todas as partes, em qualquer ordem.” Para ser um bom leitor da vida urbana, “há que se dobrar ao ritmo e gozar as visões efêmeras” (García Canclini 1997: 133). A mídia oferece estruturas para o dia, pontos de referência, pontos de parada, pontos para olhar de relance e para a contemplação, pontos de engajamento e oportunidades de desengajamento. “A mídia é do cotidiano e, ao mesmo tempo, uma alternativa a ele” (Silverstone 2002: 24-25). Se as novas tecnologias aplicadas ao processo de produção em escala igualaram os produtos entre si, e provocaram a distância entre o objeto produzido e o produtor, as instituições capitalistas deslocaram esse diferencial para o momento do consumo, ritualizando-o. Portanto, quando os objetos chegam ao ponto-de-venda, eles são individualizados, ganham singularidade e até uma certa aura em função da espetacularização. Trata-se de um modo particular de reprodução da diversidade. As marcas utilizam cada vez mais a publicidade e a comunicação visual como distintivos simbólicos. Nessa dinâmica, o espaço urbano deixa de ser apenas o lugar da produção da mensagem para se constituir no lugar da sua veiculação. E é necessário examinar a cidade como uma soma de imagens, apenas parte delas publicitárias, mas sobretudo como o lugar da relação entre os sujeitos e essas imagens, pois Debord (1997: 14) já atentava que o “espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. Ou, como afirma Argan (1998: 232):

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é evidente que, se nove décimos da nossa existência acontecem na cidade, a cidade é a fonte de nove décimos das imagens sedimentadas nos diferentes níveis de nossa memória. Essas imagens podem ser visuais ou auditivas e, como todas as imagens, podem ser mnemônicas e perceptivas. Há muito a cidade deixou de ser um lugar de abrigo, proteção e refúgio, para se transformar num aparato de comunicação, no sentido das relações e fluxos.

MINAMI, Issao. “Paisagem urbana de São Paulo: publicidade externa e poluição visual”, jun. 2001. Disponível no site Vitruvius: http:// www.arquitextos.com. br/arquitextos/arq000/ esp074.asp. Acesso em: 15/10/2001.

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A percepção visual da cidade tem sido uma caótica e profusa organização dos sinais públicos e privados; das dualidades, dos confrontos e das diferenças físicas e visuais entre os diversos elementos que compõem a paisagem urbana (equipamentos e mobiliários, tais como bancas, cabines, postes, lixeiras etc.); da ausência de planos e projetos integrados e sistêmicos; da legislação genérica e permissiva e da incapacidade do poder público de gerir e de, conforme o caso, viabilizar ações corretivas (Minami 2001)10. Se cada produção organiza o espaço segundo uma modalidade própria, a produção imagética voltada para o consumo – publicitária – vai sugerir uma modalidade própria de arranjo demográfico, profissional, social e econômico. A lógica dessa produção, devido à concorrência, jamais será igualitária e pacífica. Mesmo que os atores do processo se associem, sempre haverá conflitos, inclusive pelo uso do espaço, exceto se a associação, além de econômica, for também técnico-jurídica. No conflito pelo uso e controle do espaço, torna-se essencial o domínio das técnicas, pois o que há em determinado lugar é a operação simultânea de várias técnicas, como, por exemplo, as agrícolas, industriais, de transporte, comércio ou marketing, que são manejadas por grupos sociais portadores de heranças socioculturais diversas e ocorrem em um território também diverso.

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A publicidade é uma técnica, geralmente subordinada ao marketing, que participa do movimento do capital global, responsável pela legitimação das organizações que o produzem, notadamente as corporações multinacionais. Essas empresas apresentam-se também como instituições, uma vez que impõem regras internas de funcionamento, intervêm na criação de normas sociais de fora de sua amplitude e tornam-se concorrentes das instituições da sociedade civil, e até mesmo do Estado. Cabe, portanto, examinar a publicidade como uma experiência no cotidiano espacial da cidade, como o locus da atuação de quem produz e veicula uma técnica específica, chamada mídia exterior, que não pode ser desvinculada de uma tríplice relação que lhe é intrínseca, ou seja, espaço urbano, infra-estrutura de transporte e de comunicações (Deák 1991: 114). Antes de ser uma representação do imaginário coletivo citadino, os suportes publicitários urbanos refletem a formação e a relação daqueles mecanismos e das categorias correspondentes a eles: localização, deslocamento e informação. A tridimensionalidade retórica e estética dos conteúdos publicitários explora os recursos técnicos oferecidos pelos suportes e veículos nos quais eles serão alocados. Os conteúdos direcionados à dita mídia exterior serão marcadamente sucintos, justamente pela limitação da “atenção” que o suporte da mídia exterior é capaz de gerar. Seu impacto é inversamente proporcional à manutenção da atenção do sujeito em fluxo por conta das contingências de recepção. A paisagem publicitária urbana – e a de São Paulo em particular – não é produto de elaborações ou tramas maquiavélicas de capitalistas insensíveis que visam apenas ao lucro e à exploração do consumidor. Tipos de capitalismo e de capitalistas e estratégias de investimento são fatores ligados à formação e à transformação das redes urbanas e dos

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espaços econômicos da cidade. Por trás delas – pelo menos nas economias de tipo liberal –, encontram-se os agentes reais, elites mais ou menos enraizadas, detentoras do capital, do conhecimento ou capazes de inovações técnicas. É na estrutura social das cidades, mais que na soma das suas funções, que se deveria procurar a base da organização territorial, por meio da observação histórica, desde a acumulação de renda ligada à posse da terra até à constituição dos territórios de sistemas simbólicos, como a publicidade urbana. Os processos que a produzem geram um espaço controverso de interesses dos anunciantes, das agências, das exibidoras, dos fornecedores, enfim, dos implicados no processo de produção. Uma rede infinita de conflitos convive diariamente com a pressão pela sobrevivência, dada a imprevisibilidade dos fatores que norteiam a atividade. É bom lembrar que o lançamento de uma campanha publicitária é sempre uma incógnita, sujeita a sucessos e fracassos. Ao mesmo tempo, é preciso pensar que o consumidor não é mais um mero número estatístico de uma massa inqualificável e amorfa, mas um sujeito com capacidade crítica para dar outros significados aos estímulos midiáticos, com base em seu uso e em sua experiência cotidiana. Um olhar crítico às imagens publicitárias das ruas implica historicizá-las como um apêndice imagético do modo de produção capitalista e perceber o mercado como uma construção social que imprime um valor cultural a um produto ou serviço. E as condicionantes para perceber que a publicidade não é somente uma atividade comercial, mas também um discurso ideológico, pressupõem pensar no consumidor/espectador como um sujeito ativo e crítico, no publicitário como um ator social e na mensagem comercial como um produto cultural.

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