PUXAR PELA PRÓPRIA BARBA PARA SAIR DO PÂNTANO

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PUXAR PELA PRÓPRIA BARBA PARA SAIR DO PÂNTANO

Comecemos por uma história para discutirmos a independência do jornalismo. É uma narrativa dentro destas breves páginas sobre este conceito muito falado. O escritor basco Joseba Sarrionandia, o único que conheço que fugiu da cadeia dentro das colunas de uma aparelhagem de um concerto, manteve um diário na cadeia em que escrevia algumas reflexões ao longo dos dias que passavam. São provavelmente sobre estes dias no meio das grades este seu poema: “El viagero se aventura a través del labirinto aunque apenas sí recuerda cuándo ni por dónde entró. Supone que el camino ha de ser un laberinto Pues advina en lo nuevo reflejos del ayer. Mas no son reflejos amables, son vástagos del miedo Pues le revelam que cae, que se derrumba hacia el centro. Pero hay un centro acaso? No cae hacia los bordes?” O tradutor de Fernando Pessoa e Jorge de Sena chamou ao seu diário de prisão "Não sou daqui" - profética afirmação que lhe permitiu escapar-se da cadeia (mas essa é outra história). Nesse livro tem um ilustrativo apontamento, misto citação de outras fontes, sobre jornalismo e jornalistas:
 "Napoleão Bonaparte esteve recluso na ilha de Elba desde que abdicou em Fontainebleau em Abril de 1814 até que na Primavera de 1815 juntou-se ao seu exército e decidiu voltar a Paris.
 Os títulos do diário parisiense "Moniteur Universel" durante todo aquele mês de Março são assombrosos, pois oferecem um testemunho sem igual do avanço do ex-imperador:
 9 de Março: "O monstro escapou ao seu desterro". 10 de Março: "O ogre corso desembarcou no cabo Jean". 11 de Março: "O tigre sangrento apareceu na zona de Gap. Para aí dirigem-se os exércitos para terminar com o seu avanço". 12 de Março:"O monstro chegou à cidade de Grenoble". 13 de Março: "O tirano está agora entre a cidade de Grenoble e Lyon". 18 de Março: "O usurpador ousou chegar até a um lugar a 60 horas de marcha da capital". 19 de Março: "Bonaparte aproxima-se em passo veloz, mas é impossível que entre em Paris". 20 de Março: "Napoleão chegará amanhã às muralhas de Paris". 21 de Março: "O Imperador Napoleão está em Fontainebleau". 22 de Março: "Ontem pela tarde sua Majestade o Imperador fez a sua entrada pública no seu palácio. Nada pode superar este regozijo universal". O diário de Sarrionandia não revela se o director do afortunado diário foi fuzilado ou condecorado. Merecia qualquer coisa. Durante muito tempo aqueles que escreviam só podiam opinar nas entrelinhas. Isso acontecia com a informação, como qualquer outra actividade humana. O pintor espanhol Goya era obrigado a retratar, como todos os seus pares, os poderosos mas conseguia inscrever um olhar crítico no espaço confinado de uma arte oficial. A sua forma de expressar a degenerescência moral da nobreza, encontrava-se mais na forma como apareciam as faces destes, e a loucura que exibiam nos olhos, do que na expressão de uma temática livre, num tempo em que isso era praticamente impossível. A historieta que Sarrionandia copia é obviamente um caso

limite, em que a independência do jornalismo é condicionada pela ponta das baionetas de turno. O autor das notícias não é “independente” porque não é livre. Provavelmente fará com o mesmo empenho as notícias favoráveis a Bonaparte, como fez as do anterior senhor que ocupava o trono no palácio. Agora, é preciso ter cuidado quando se faz equivaler independência a liberdade. Para sermos mais claros é necessário colocar em causa a própria existência de uma independência jornalística. Se quisermos, esse conceito está ancorado em concepções ideológicas de uma época, em que a libertação do jugo religioso e político das ciências se fazia através da afirmação da existência de um objecto científico independente das paixões humanas e que podia ser atingido como se fosse um fenómeno natural traduzível em leis matemáticas. O jornalismo é uma forma de produção de conhecimento através de peças jornalísticas, de alguma forma é possível fazer um paralelismo com as discussões que são feitas acerca da produção de conhecimento nas ciências sociais. A única diferença é que sendo o jornalismo uma espécie de poder, ou pelo menos suporte e legitimação de poderes, bastante mais imediata que as ciências sociais, as discussões e as críticas às concepções da epistemologia positivista demoram mais tempo a impor-se no campo do jornalismo. No positivismo o axioma da neutralidade valorativa das ciências sociais conduz, logicamente, a negar e a ignorar o condicionamento histórico e social da produção de conhecimento. A própria questão da inserção dessa produção na lógica da conflitualidade social, e luta de classes, não é colocada. A ciência aparece livre de qualquer constrangimento ideológico ou social. Como Michael Löwy defende em “Karl Marx contra o Barão de Münchhausen”, os positivistas tentam fundar a sociologia do conhecimento sobre factos e dados, pretendem lidar com realidades humanas com a mesma isenção e a mesma objectividade com que observariam coisas ou se dispõem a exorcizar os juízos de valor no exame de questões em face das quais nunca podemos ser neutros. Löwy compara os artifícios usados pelos positivistas para saírem dos impasses teóricos em que se vêem com o expediente a que recorreu o protagonista de uma velha história: atolado num pântano, com seu cavalo, e vendo que não contava com a ajuda de ninguém para salvá-lo, o Barão de Münchhausen agarrou os seus próprios cabelos e, por meio deles, puxou-se para cima, saiu da lama, trazendo também o seu cavalo, entre as pernas, tirando-o do atoleiro. Não é preciso ir a Marx para perceber que a produção científica, e sobretudo a produção científica nas ciências sociais, não é independente dos posicionamentos ideológicos. Um dos “pais” da sociologia Max Weber diz-nos que a nossa escolha de objectos de estudo e de hipóteses não é independente dos nossos próprios valores e ideologia, mas que o processo de produção do conhecimento deve, a partir desta escolha subjectiva, produzir juízos de factos que são irredutíveis aos juízos de valor. Paradoxalmente, é o mesmo que se verifica em relação aos jornalistas. É natural que se me preocupam os problemas sociais, a situação dos trabalhadores, eu parta para a produção de uma matéria jornalística tendo em conta estas temáticas, agora no momento de produção de uma peça jornalística eu tenho que respeitar um conjunto de regras, como o cruzamento de fontes e a necessidade de procurar o contraditório em relação aos factos da notícias, que tendem a “neutralizar” as minhas inclinações e a não deixar que juízos de valor se tornem juízos de facto. Se não existe independência dos jornalistas, então tudo se resume a um problema de liberdade para exercer o jornalismo? E sendo assim, nas sociedades democráticas te-

mos o melhor dos jornalismos possíveis? É um facto que em ditadura não temos praticamente jornalismo, mas nas democracias ocidentais o jornalismo encontra-se numa profunda crise. E esta crise é anterior ao esgotamento do modelo de negócio da produção jornalística, devido ao advento da comunicação espectáculo, à entrada da comunicação mediada por computador e à diminuição do papel dos jornalistas como mediadores da produção de informação. A crise do jornalismo e das condições de produção livre de informação começa antes e é consequência directa do próprio sucesso do modelo de negócio anterior, que teve como consequência a restrição dramática do pluralismo das opiniões expressas pela comunicação social. Desde o final do século XIX que o modelo industrial e económico de produção de jornais foi feito no pressuposto que o público pagava um valor diminuto por dezenas de páginas cheias de notícias. Para além do embaratecimento do custo do produto devido às grandes tiragens atingidas, a fatia de leão era suportada pela publicidade. Ao folhearmos o sexto volume da História de Portugal, organizada pelo historiador José Mattoso, deparamo-nos com um facto surpreendente: na passagem do século XIX para o XX, alguns jornais portugueses, como o “Século” e o “Diário de Notícias”, atingiam tiragens próximas dos 100 mil exemplares por dia, cada um dos títulos. Mesmo o jornal “O Povo de Aveiro” dirigido pelo polémico Francisco Homem Cristo vendia 3000 exemplares numa só papelaria no Rossio. Passados mais de 100 anos, a maior parte dos diários portugueses tem vendas que se aproximam mais do jornal regional que dos grandes diários do final do século XIX. Um facto ainda mais gritante se tivermos em consideração o aumento substancial da população alfabetizada e o nível de ensino no último século. É óbvio que a população retira a informação de uma miríade de órgãos de comunicação social que não se restringem ao papel impresso rádio, televisão e internet fazem toda a diferença. Esta proliferação de plataformas de informação deveriam indiciar uma importância crescente da importância da profissão jornalística e um aumento da sua valorização social, estatuto remuneratório e diversificação da pluralidade dos órgãos de comunicação social. Infelizmente, nada disso aconteceu: as condições para o exercício livre do jornalismo têm-se degradado. Para a explicação desse fenómeno podemos analisar três processos diferentes, mas que têm impactos grandes nas condições de produção jornalística. O primeiro é que as crescentes necessidades de investimentos para produzir informação, o modelo de negócio alicerçado na diminuição constante da fatia de custos que paga o público em troca dos produtos jornalísticos, levou à concentração da posse dos órgãos de comunicação social. Hoje em Portugal, um conjunto muito diminuto de operadores controla a quase totalidade do mercado, com realce para a Cofina, Prisa e Impresa. O segundo é a degradação económica do estatuto do jornalista, hoje nas redacções a quase totalidade dos profissionais é mal paga e grande parte tem um estatuto precário de trabalho, e encontram-se no desemprego um número crescente de profissionais, enquanto todos os anos as universidades despejam no mercado de trabalho milhares de licenciados em jornalismo e comunicação social. Acresce que para reforçar esta diminuição de poder dos jornalistas, no quadro do seu trabalho, verifica-se o crescimento das desigualdades sociais nas empresas de comunicação social: nos últimos 30 anos a diferença de salários entre jornalistas e chefes e destes em relação aos directores e destes últimos ainda em comparação aos administradores tem crescido exponencialmente.

Estas duas alterações que diminuem, por um lado, a pluralidade da propriedade e a possibilidade de grupos de cidadãos não ligados a grandes empresas criarem órgãos de comunicação social e, por outro, a capacidade dos jornalistas serem economicamente independentes reduzem a liberdade dos jornalistas e são aceleradas por uma alteração do quadro tecnológico - a revolução do digital e da internet. A internet é um instrumento que tem potencialidades contraditórias. Enquanto democratiza a produção de informação e permite que cada um de nós possa comunicar, ao esbater as fronteiras entre produtor e espectador da informação diminui o papel de mediação do jornalista na produção de notícias. O público não distingue, na maior parte das vezes, entre comunicação e jornalismo. Este último, mais que a produção de alguma coisa, implica um método específico de apuramento dos factos jornalísticos, cingido a um código deontológico. Ora, a internet é um espaço muito mais vasto que o do jornalismo e a produção jornalística aparece nele como mais um conteúdo gratuito. Essa característica da aparente gratuitidade de grande parte dos conteúdos produzidos na rede faz com que aos olhos do público o valor do trabalho jornalístico seja reduzido: é algo com um grande valor de uso e um reduzido valor de troca. Para quê comprar jornais ou pagar acesso a sites de informação, se podemos ter acesso a um conjunto de notícias de borla na rádio, TV e internet? Esta mudança radical agrava as características do modelo industrial de produção de informação - o público não paga o conteúdo, é a publicidade que o paga. Isto tem uma agravante naquilo que recebemos por computador, smartphone e tablet, a publicidade ganha um carácter de ruído intrusivo. Estamos numa situação de crise, em que ainda não se tem nenhum modelo de negócio viável a nível da internet. A reacção das empresas de comunicação a este cenário foi cortar os investimentos no jornalismo, na qualidade dos seus conteúdos e embaratecer os seus custos de produção. Isso conduziu a uma perda de qualidade que tornou aquilo que é produzido profissionalmente cada vez mais parecido com aquilo que circula na rede de uma forma gratuita e reproduzida por não profissionais. Os cortes nas redacções são desastrosos para a qualidade do trabalho e ainda mais graves do ponto de vista da manutenção da liberdade dos seus profissionais: os jornalistas produzem uma mercadoria com características muito particulares, em que a garantia da sua qualidade depende da auto-regulação dos próprios e da manutenção das suas normas profissionais e deontológicas. As redacções, ao cortarem nos profissionais mais bem pagos, ao precarizarem os vínculos laborais, estão a impedir que os profissionais tenham margem de manobra perante as administrações de dizerem “não” a produtos que firam as normas da sua profissão. O modelo económico da produção de informação ao tornar-se cada vez mais dependente da publicidade, e na ausência desta, dos investimentos dos proprietários e do financiamento dos bancos, deixa de ser encarado como um negócio directamente rentável, para passar a ser visto como um negócio de influência que serve para persuadir os decisores políticos e económicos a favorecerem os interesses dos grupos económicos e financeiros ligados aos proprietários dos media. Na sua genial biografia do magnate de imprensa Assis Chateaubriand, mais conhecido por Chatô, o jornalista brasileiro Fernando Morais descreve uma cena de antologia: Chatô organizava uma lucrativa entrega de aviões à força aérea brasileira, em que embolsava parte do dinheiro. Numa delas foi agredido por um oficial, que era irmão do namorado de uma ex-amante do industrial da comunicação, esse oficial estava far-

to dos insultos à família que os jornais de Chatô publicavam desde que a amante, do magnate, tinha fugido com o seu irmão. Quando o oficial lhe deu uns tabefes, Chatô puxou do revólver e em queda disparou vários tiros: feriu de raspão o oficial, tendo atingido à bala várias pessoas, entre as quais membros do governo e, salvo erro (estou a citar de memória), um bispo. Dado o poder mediático do empresário, nada lhe sucedeu. Obviamente que os tempos são diferentes, e as sociedades evoluíram, mas uma comunicação social totalmente nas mãos de grandes grupos privados não é garante de uma informação democrática para todos os cidadãos. Em Portugal, há um caso recente que revela os perigos que uma sociedade com uma comunicação social amarrada pelos interesses pode custar a um país. Durante anos, a esmagadora maioria da comunicação social não investigou devidamente os negócios do grupo Espírito Santo devido ao seu poderio económico e ao seu financiamento a grupos de comunicação social. Na véspera da descoberta de buracos financeiros de milhares de milhões de euros, em Julho de 2014, os principais editorialistas da imprensa económica faziam panegíricos ao líder do grupo Espírito Santo, tendo o responsável pela área económica de uma das principais estações televisivas privadas declarado que se tivesse dinheiro investia-o todo no Banco Espírito Santo. Passado uns dias, o escândalo rebentou e o banco foi literalmente ao fundo. Tal como no caso do início deste texto, não houve director de jornal económico ou comentador de televisão que não criticasse à posteriori o homem que elogiaram na véspera. Como entender esta empatia das chefias jornalísticas, dos académicos e dessa nova forma do intelectual público, que são os comentadores de televisão, com as elites e as suas dores? No seu livro “Os Últimos Intelectuais”, datado de 1987, Russel Jacoby defende que os intelectuais, categoria em que se incluem os jornalistas, mudaram desde o início do século XX: mudaram de visão do mundo, porque se alteraram as condições sociais onde viviam. Há uma espécie de liquidação da boémia e institucionalização dos intelectuais na academia. “O declínio da boémia pode ter como consequência não apenas o declínio dos intelectuais urbanos e da sua audiência, mas também o declínio da inteligência urbana. Modificando uma antiga proposição, a sociedade dos cafés deu origem ao aforismo e ao ensaio; o campos universitário produz monografias e a conferência – e o pedido de subvenção”, defende Jacoby. A especialização do conhecimento é um dobre de finados da figura do intelectual público. Sobram os comentadores televisivos para esse papel, o que é pouco. Isso tem inegavelmente consequências do ponto de vista da sua liberdade de posicionamento político. Como escrevia o ensaísta Isaac Dosenfeld, citado por Jacoby na obra citada, a vida de privações e boémia dos intelectuais era coisa do passado, “muito raramente um escritor se coloca contra o mundo como costumava fazer e quando o faz há o perigo que possa apenas estar a fazer pose”. A essa ascensão social de parte dos fazedores de opinião acrescem dois fenómenos, um deles já referido, que colocam em causa a liberdade e a qualidade do jornalismo. A concorrência associada à precarização do trabalho transforma o exercício do jornalismo num exercício de sensacionalismo sem permitir a auto-regulação dos próprios profissionais. Só podem discutir, em redacção, o exercício quotidiano do seu ofício os profissionais que não têm sob a cabeça a espada do despedimento. Num estudo de 2009 realizado pela Sonda Central de Informação, da publicação “Meios & Publicidade”, inquiriram-se 103 jornalistas em cargos de chefia, editores, chefes de redacção

e directores. Os resultados são elucidativos: 91% admite que a precariedade laboral no exercício da profissão poderá levar com maior facilidade a cedências editoriais; 67% considera que a situação, de precariedade na classe, têm-se vindo a agravar; e 69% , das chefias, está preocupada com as cedências editoriais motivadas pela degradação das condições de trabalho nas redacções. Esta pulsão para o sensacionalismo, aditivada pela ausência de regulação própria e agravada por um conjunto de preconceitos ideológicos e uma colagem a orientações políticas dominantes, é bem visível no papel que os órgãos de comunicação social britânicos tiveram na estigmatização do movimento operário e das classes populares no Reino Unido durante o consolado de Margaret Thatcher. Num recente ensaio de Owen Jones, “Chavs – The demonization of the working class” são dados vários exemplos desse processo. O autor faz análises comparativas das notícias produzidas pelos vários órgãos de comunicação social em casos que estão envolvidas pessoas das classes baixas, em relação a quando estão envolvidos outros segmentos da população. Compara a cobertura do desaparecimento de Maddie na aldeia da Luz, com o alegado desaparecimento de uma criança dos subúrbios na Grã-Bretanha. Denúncia a invenção de factos por parte dos jornais “populares” em relação à tragédia de Hillborough, em 1989, durante um jogo de futebol entre o Liverpool e o Nottingham Forest, em que os media transformaram sucessivos erros na actuação da polícia, perante um estádio cheio, numa consequência de luta entre claques violentas. A polícia divulgou, com a cumplicidade objectiva dos media, informação falsa sobre o sucedido para escamotear a sua gestão incompetente, numa tragédia que custou quase 100 mortos. Tudo isto revela a total falta de “independência” do jornalismo a este respeito, que é como quem diz a total ausência de vozes que procurem a verdade dos factos e defendam parte da população. “O problema não é só a escassez de gente da classe trabalhadora no jornalismo. A maioria dos jornais desfizeram-se dos jornalistas que antigamente cobriam as relações laborais à medida que o poder dos sindicatos diminuía vertiginosamente”, escreve Owen Jones, acrescentando que a classe operária deixou de existir por completo no que respeita aos órgãos de comunicação, cultura popular e políticos. A única coisa que lhes importa é a mítica classe média, por momentos parecia como por milagre o destino de toda a sociedade. Tudo deve julgar-se segundo esses supostos critérios da classe média. O alfa e ómega que todos devemos aspirar, de fora ficam apenas alguns elementos residuais compostos por marginais, racistas e sem ambições, uma espécie de escória da sociedade. O ódio aos chavs (palavra de calão para descrever elementos de uma alegada escória social) justifica a manutenção da ordem estabelecida, e das suas desigualdades inerentes, baseada na ficção que ela traduz a justa diferença de valor das pessoas. A imprensa, segundo Owen, martela a ideia das fraudes com os subsídios da Segurança Social dos mais pobres, esquecendo-se que no Reino Unido eles são mais de 70 vezes inferiores aos valores imputados à fraude fiscal dos mais ricos. Esta criminalização mediática das classes mais baixas e afirmação das virtudes de uma classe média virtuosa, não significam, de facto, a liquidação total das classes: «Thatcher não tinha a menor intenção de acabar com as classes sociais, simplesmente não queria que nos apercebêssemos que fazíamos parte de uma, como confirma um documento do Partido Conservador. ‘Não é a existência de classes que ameaça a unidade da nação, é apenas a existência de consciência de classe’».

Grande parte da expressão deste desvio ideológico não necessita de estrutura de comando centralizada. Não existe um centro difusor dos preconceitos de classe, nem uma ordem de comando diária para esta acção. As coisas fazem-se de uma outra forma e contam mais com o nosso consentimento do que com ordens de comando. Como nota Negri, no seu “Império”, usando o contributo de Michael Foucault, há uma passagem de uma sociedade da disciplina, em que os mecanismos se fazem por instituições como a escola, prisão, fábrica, para uma sociedade do controlo: “devemos compreender que a sociedade do controlo como a sociedade que aparece no final da modernidade e se desenvolve na pós-modernidade é aquela que os mecanismos de comando são mais “democráticos”, sempre mais imanentes ao campo social, difundidos pelo cérebro e os corpos dos cidadãos”. Neste contexto, a concorrência e as formas que ela assume são a expressão exterior desse mecanismo de controlo disfarçado de livre arbítrio. Uma história contada no livro de “O Enviado Especial”, de Evelyn Waugh, um grande repórter é enviado para cobrir um conflito nos Balcãs. Na época, as deslocações eram feitas de comboio. O admirável jornalista adormece e sai na estação errada, o que no meio da confusão da região significa que desembarcou na capital de uma outra república. Já que lá está começa a enviar telexes sobre uma crise, um conflito que se vai transformar numa guerra civil. Perante a publicação destas notícias, outros jornais mandam jornalistas. Ao entrarem no país não vêem nada disso, mas como o grande repórter continuava a enviar textos sobre a guerra civil que avançava, para não perderam perante a concorrência, fazem o mesmo e enviam um conjunto de notícias cada vez mais graves. Perante as peças dos jornais, a bolsa despenha-se, o governo desse país demite-se e o país entra finalmente em guerra civil. A passagem de Evelyn Waugh é irónica, mas não deixa de explicar fenómenos recentes na cobertura de guerras e conflitos. Se o leitor não acredita basta recordar-se da invenção pelos jornais franceses de dezenas milhar de mortos na insurreição romena e do caso das falsas valas comuns de Timisoara. Ou para irmos a um caso mais recente, as notícias de armas de destruição em massa na posse da ditadura de Saddam Hussein. Em todos os conflitos recentes a concorrência desbragada, entre órgãos de comunicação social com a mesma orientação política de fundo, é a forma como este tipo de desvio ideológico se expressa. A diversidade de títulos e meios camufla a falta de pluralidade real. Este tipo de desvios ideológicos é ainda mais agravado em momentos de crise que, como vemos, põem ainda mais em causa a liberdade dos jornalistas, dificultando a sua capacidade crítica para regularem eles próprios a sua profissão. Para responder a esta situação, vários jornalistas portugueses deram a público um Manifesto pelo jornalismo e pela democracia que defendia o seguinte: “A crise que abala a maioria dos órgãos de informação em Portugal pode parecer aos mais desprevenidos uma mera questão laboral ou mesmo empresarial. Trata-se, contudo, de um problema mais largo e mais profundo, e que, ao afectar um sector estratégico, se reflecte de forma negativa e preocupante na organização da sociedade democrática. O jornalismo não se resume à produção de notícias e muito menos à reprodução de informações que chegam à redacção. Assenta na verificação e na validação da informação, na atribuição de relevância às fontes e acontecimentos, na fiscalização dos diferentes poderes e na oferta de uma pluralidade de olhares e de pontos de vista que dêem aos cidadãos um conhecimento informado do que é do interesse público, estimulem o debate e o confronto de

ideias e permitam a multiplicidade de escolhas que caracteriza as democracias. O exercício destas funções centrais exige competências, recursos, tempo e condições de independência e de autonomia dos jornalistas. E não se pode fazer sem jornalistas ou com redacções reduzidas à sua ínfima expressão.”

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