Q\'ayturastro (Rastro de linhas). Considerações etnomusicológicas sobre uma vídeo-arte

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Q’ayturastro (Rastro de linhas) Considerações etnomusicológicas sobre uma vídeo-arte1 Bernardo Rozo L.2

Resumo: Esta comunicação científica pretende analisar os resultados da experiência de compor uma trilha sonora para um vídeo que registra a performance intitulada Q’aiturastro (Rastro de linhas). A música combinou sons da paisagem sonora com trechos fortuitamente selecionados de diferentes repertórios musicais, obtidos num laboratório de edição de áudio. A trilha sonora utilizou recursos estéticos e analíticos de composição, tanto da Teoria Crítica (hibridação, heterotopia e Sistema Sonoro Global) quanto da etnomusicologia (improvisação e composição aleatória, repertórios tradicionais e paisagens sonoras). Observa-se, como resultado final, que os trechos musicais utilizados, longe de ter perdido algum valor o sentido cultural, adquiriram outros valores e sentidos, desde que ligados às imagens dispostas no suporte visual, que já carregam um elevado conteúdo cultural. Assim, se sublinha de forma sutil, o caráter itinerante da artista-performer que aparece em cena, cuja trajetória é desenhada pelos rastros de uma multiplicidade de culturas em contato. Nos sons de uma indefinida cultural milenar, que acabam entrelaçados com as convulsões rítmicas das grandes capitais, descobrimos que os sujeitos são capazes de ser universais sem o risco de se perder nas sombras de uma homogeneização cultural muda e anônima. Desta maneira, se consegue escutar o “peso” daquilo que carregamos no caminho que percorremos hoje em dia: o difícil passeio pelo mundo inteiro, cujo deslocamento se depara com paisagens frias e desoladas, mas que, ao mesmo tempo, são magníficas, cálidas e aconchegantes. Esta experiência criativa multidisciplinar destaca as seguintes idéias principais: o papel determinante da música nas obras audiovisuais; a importância dos atos de compor e de escutar com relação à figura do compositor e da composição; o carácter epistemológico e filosófoco do produto sonoro; a compreensão o mundo atual a través da música; a escuta verdadeira do entorno; a relação da música com aspectos extra-musicais (fenômenos socioculturais); a produção de múltiplos significados e significantes, tanto na música quanto no ato de escutar; e a possibilidade de ampliar as possibilidades de criação e difusão da arte. (Esta apresentação se complementa com a exibição da vídeo-arte em questão 5 min.) Palavras chave: Trilha sonora, Vídeo-arte, Composição aleatória, Etnomusicologia, Teoria Crítica

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Introdução

Ultimamente, a tendência de compor música que transcendesse os requisitos da melodia, harmonia e ritmo, está gerando curiosos e inesperados resultados. Hoje em dia, se propõe criar música a partir de uma diversidade de cardápios sonoros: o ruído de motores em funcionamento, os barulhos dos videogames, as cores sonoras da natureza e da fauna silvestre, os tecidos urbanos que soam nas ruas, edifícios, salas, lares e lugares pouco comuns, como os vastos campos aonde

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Trabalho apresentado na Escola de Música da UFBA. No programa Pesquisas em Andamento. Ciclo de debates, 2006. Salvador. 2 Músico boliviano, compositor e multinstrumentista. Mestre em Antropologia e doutorando pela Escola de Música da Universidade Federal de Bahia (bolsista FAPESB, 2006). Pesquisa a produção musical nos contextos urbanos, principalmente para linguagens do audiovisual, com referência às configurações multiculturais das grandes capitais. Contato: [email protected]

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os catadores procuram sobreviver do lixo urbano; tudo isso começou a ser, ainda com mais e mais força, uma poderosa ferramenta da criação musical. Dentre várias alternativas, quero me enfocar na chamada de música aleatória. Diferentes compositores, cunharam o termo para descrever aqueles trabalhos cujos executores3 tinham certas liberdades de interpretação, mas, dentro de uma estrutura relativamente prescritiva que estabelecia a ordem e repetição das partes da obra musical4. Este estilo musical surgiu em torno dos anos 50, aparentemente como reação ao serialismo musical da época que, pelo contrario, procurava o controle total, sistemático e matemático do som. A questão é: como pode se compreender uma composição que, além de utilizar sons que não provêm de instrumentos musicais convencionais, tem elementos probabilísticos e aleatórios? Analisá-la não seria como analisar o lance de uma moeda? Neste trabalho pretendo analisar o processo de criação musical para acompanhar as imagens que registraram um performance site-especific, conformando assim, uma obra de vídeoarte intitulada Q’aiturastro. A trilha sonora combinou os sons da paisagem sonora com trechos fortuitamente selecionados de diferentes repertórios musicais, obtidos num laboratório de edição de áudio. Utilizou também recursos estéticos e analíticos de composição, da etnomusicologia e da Teoria Crítica. O propósito é o de identificar os principais elementos a partir dos quais foi possível esta criação, principalmente a influência do compositor John Cage (1912-1992), e também ressaltar a relação do produto final criado com algumas questões estéticas e éticas que me proponho desenvolver na criação musical.

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A obra Q’aiturastro

Q'aiturastro (que em quíchua significa “Rastro de linhas”), é um vídeo de 5 minutos que registra as imagens de uma performance realizada nas Salinas de Uyuni, nos Andes bolivianos (2007, Ateliê Berdebértigo5). Ali, a artista visual boliviana, Sandra De Berduccy, fez uma

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Neste trabalho falo indiferenciadamente do executor ou do intérprete, para me referir ao instrumentista que geralmente está encarregado da execução de uma peça musical (alheia). Diferencio estes dois do termo performer (emprestado do inglês), que comumente é usado para nomear ao artista visual que através do seu corpo e da ação, toma conta do ato performático, não necessariamente musical, na sua obra. 4 Compositores do gênero são John Cage, Henry Brant, Witold Lutoslawski e Lukas Foss. 5 O Ateliê Berdebértigo é um Coletivo de Produção Artística que começou a trabalhar no ano 2003, no Petén (Guatemala). Sendo um espaço aberto, reúne às pessoas para a combinação experimental de diferentes expressões

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performance inserida na branca paisagem de um imenso deserto natural de sal. A através de uma construção simbólica, o vídeo registra quatro movimentos da performance que relacionam a elaboração tradicional do fio de lã, chamado em quíchua: q'aitu, com as migrações que em geral são praticadas pelos seres humanos. Em cada um dos movimentos, são evocados de forma efêmera, diferentes elementos das culturas andinas, como o fuso (pushka), e os enfeites que são utilizados para o cabelo, chamados tullmas. Estes elementos que podem ser considerados como identitários, vão mudando no processo das migrações das comunidades andinas para as cidades, ou mesmo para outros países, e evocam assim, sinais da existência de espaços complexos, nos quais as diferentes culturas se encontram e dialogam. O vídeo registra assim uma experiência sensível propícia para o encontro de imagens simbólicas, paisagens sonoras e a criação musical.

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A trilha sonora de Q’aiturastro

O tratamento da música inserida em uma narrativa audiovisual pode considerar várias questões: o som, em tanto música, e sua estética sonora (uso de instrumentos e de estilos); também as sonoridades, ou seja, o som cultural (os repertórios, as redes de relações possíveis e necessárias entre os diferentes sons); ou bem, a relação do produto sonoro com outras questões extra-musicais, tais como as identidades, os valores, as práticas e os símbolos. Neste trabalho pretendo analisar brevemente a relação entre o sonoro com algumas das questões extra-musicais acima mencionadas. Vejamos. De início, poder-se-ia pensar que, quando uma composição musical é encomendada para uma obra audiovisual, a trajetória do músico compositor, membro ativo de diferentes agrupações, bandas e orquestras, faria com que as suas escolhas musicais estejam lidadas aos repertórios próprios de certas tradições musicais. Se for um compositor roqueiro, os grooves terão que ser pesados, agressivos e estridentes, próprios do underground urbano contemporâneo. Por isso, geralmente o tipo de obra audiovisual muitas vezes escolhe desde o início, o tipo de compositor que tomará conta da tarefa. Mas, que acontece quando a obra audiovisual não tem um conteúdo facilmente classificável? É dizer, quando seu nível de abstração permite identificar mais do que um tema principal? No meu caso, na composição de uma trilha musical para um vídeo que quer representar questões próprias dos encontros multiculturais, optei por recorrer a diversas fontes. artísticas. Iniciado por Sandra De Berduccy e Bernardo Rozo, realiza diferentes apresentações e produções conjuntas de obras de arte visual, música, dança, teatro e outras linguagens contemporâneas.

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No que diz respeito à parte técnica, cabe comentar simplesmente que diferentes editores digitais de áudio (Home Studio) me forneceram o suporte para mexer com registros já gravados (e fazem parte de uma coleção pessoal digital) ou daqueles que tive que gravar de forma direta no computador. Então, seguindo o formato quadripartido da narração, a trilha sonora dividiu-se também em diferentes partes que facilmente poderiam ser colocadas em diferentes ordens. Desde a mera introdução, um primeiro recurso utilizado no processo foi o som particular do vento, o qual permanece praticamente em todo o vídeo, junto com o som de uma campainha aguda, típica do repertorio budista, que anuncia o começo de cada uma das partes do vídeo. Já na primeira parte (Orqo, ou “Montanha”), surge o som de um tambor chamado Wanq’ara, cujo ressoador lhe proporciona um timbre misterioso. Este tambor é acompanhado pelo som de canas de bambu (tacuara) que, com muita facilidade acompanha os movimentos da performer. Logo depois, um bumbo grave e profundo aparece também junto â sonoridade aguda de um triângulo; este dois últimos, evocando a típica introdução que se faz nas sessões musicais andinas, chamadas kantus, quando as batidas repetitivas da percussão chamam às pessoas para celebrar diferentes festividades andinas através do repertório tradicional. O registro analógico deste timbres permite a evocação tanto dos materiais nobres com que são construídos muitos dos instrumentos ditos “tradicionais” (madeira e couro, principalmente), mas também de um conjunto de valores e significados que são compartilhados nos contextos andinos, tais como a religiosidade (não ocidental, por certo), a imensidade, o mistério e o oculto. Mas, a música não nos conduz para festa andina nenhuma. Em lugar disso, aparece um trecho instrumental de uma canção intitulada Ota6, em que se escuta o som inconfundível de uma kalimba africana, e cuja melodia pula lentamente entre dois acordes menores de Mi e La. Para este trecho, que finaliza a primeira parte, decidi utilizar o primeiro recurso aleatório da composição: primeiro, no programa de edição de áudio, desfiz a melodia original, obtendo várias frases curtas e distintas. Assim, sem ouvir as frases e guiando-me apenas pela sua aparência gráfica na barra de amplitude de onda (audio wave), as organizei de forma intuitiva, até conseguir uma nova disposição melódica. No resultado final, pode-se observar que, se bem se manteve a afinação de notas menores, a melodia original mudou, não apenas de estrutura, mas também de intenção.

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Akosh Szelevenyi, 2001. Ota. Unit+. Kebelen. Akosh Szelevenyi & The Akosh Szelevenyi.

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Na segunda parte (Ripuy ou “Ir”) e para acompanhar fielmente o “peso” que a performer aparece carregando consigo, rapidamente aparece outro dos trechos instrumentais da canção Ota, interpretado pelo flautista Akosh Szelevenyi7, acompanhado esta vez por células percussivas que estranhamente evocam uma música chinesa. Pareceria que, nos 30 segundos que esta melodia tem de duração, o som ronco, mas ao mesmo tempo delicado da clarineta, caminha junto à performer como se fosse uma procissão lenta e pesada que parece não ter fim naquele mar de sal. Sobrepus a esta melodia (em fade in) o rasgado constante de um quarteto de violões, com dois únicos acordes que permanecem até o fim desta parte, como querendo prover de harmonia ao barulho do vento na imensa solidão; que é quando a carga que carrega a performer, parece ser ainda mais pesada, por tanto, se fez necessária uma maior dramatização. Já na terceira parte (Q'aiturastro ou “Rastro de linhas”), a profundidade sonora da segunda parte, que se tornou quase que uma paisagem sonora, é interrompida abruptamente pelo som contemporâneo, dinâmico e até dramático de um Dj que, com sons particularmente eletrônicos, introduze a cadência enfática e sedutora de uma percussão árabe contemporânea. Foi assim que provoquei uma ruptura de significados: emprestei-me uma parte da introdução de uma das mais recentes re-leituras da histórica canção I put a Spell on You, interpretada pela cantora Natacha Atlas8. Aqui aparece a segunda experiência de composição aleatória que têm a ver com o acaso extra-musical. Conheci esta canção na versão do Marilyn Manson, achando que o estilo provocativo desta versão era próprio apenas deste artista. No entanto, logo depois, um conhecido que mora ilegalmente nos Estados Unidos me passou os arquivos de áudio do álbum onde foi publicada a versão de Natasha Atlas, os mesmos que o dito amigo recebeu de um colega seu, que vendia aparelhos de celular na Índia. Em comparação ao músico estadunidense, não é difícil perceber quão diferente é a nova versão na interpretação de uma cantora belga, filha de mãe inglesa e pai egípcio (de ascendência judaica), e casada um músico sírio. Este fato me fez procurar em diversas fontes mais informação sobre o tema. Descobri o fato surpreendente que a música foi interpretada por uma enorme quantidade de grupos e músicos solistas pertencentes a

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Ibid. Natacha Atlas, 2001. I put a Spell on You. Ayeshteni (Mantra). Trata-se de uma canção de Rock and Roll antigo, composta em 1957 pelo músico Screamin' Jay Hawkins, para o album At Home (Okeh, 1957)

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várias e diferentes tradições musicais9, e utilizada como recurso musical para vários outros propósitos10. Temos assim, uma canção que recebeu inúmeras releituras, reinterpretações e ressignificações, a tal ponto que converteu-se em um excelente exemplo daquilo que o vídeo Q’aiturastro se propõe falar-nos. Assim sendo, embora conhecendo o caráter multicultural da canção (sobrecarregada de diferentes significações culturais), decidi não utilizar mais do que a sua introdução, mantendo assim apenas a evocação da sonoridade de uma sorte de “tradição árabe contemporânea”. E, para transformar esta curta introdução em uma peça que tem começo e fim, gravei um canto feminino agudo o qual, ao mesmo tempo em que me era útil para manter a intenção dramática, ajudou a produzir um encerramento que propiciaria um bom contraste com o que vinha por diante. Já no final desta parte, tal como acontece no cotidiano urbano dos encontros interculturais, a tal intensidade “arábica” quase que acaba derrubada de forma igualmente abrupta, pela segunda e última aparição da mesma melodia interpretada por Szelevenyi, mas desta vez editada de tal maneira que apareça como um cânone original. A construção do cânone - que bem poderia considerar-se como um terceiro recurso aleatório de composição-, foi lograda também na edição digital. Já que qualquer um poderia contar as pulsações e inserir o segundo trecho do cânone em um tempo simetricamente calculado (em compassos, por exemplo), optei por me guiar novamente pelo recurso gráfico da amplitude de onda: inseri a segunda linha melódica do cânone de forma aleatória. O resultado deste último recurso de edição acabou sendo muito útil na evocação sonora de uma espécie de momento reflexivo que surge depois de uma intensidade que, a final de contas, acaba sendo efêmera. Finalmente, na quarta e última parte do vídeo (Kutimuy ou “Volver”), o som da paisagem sonora acaba-se impondo sobre tudo o que aconteceu antes, como para dar passo a o encerramento. Uma idéia concluinte parece ser proposta, quando se vê como o objeto presente

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Temos por exemplo: Dr. John, Alice Cooper, Warren Zevon, Arthur Brown, Black Sabbath, Ted Nugent, George Clinton, Nina Simone, The Butthole Surfers, Audience, Batmobile, Creedence Clearwater Revival (no Woodstock), Them, Sonique, Arthur Brown, The Animals, Leslie West, Tim Curry, Alan Price (que foi o primeiro tecladista do The Animals), Joe Cocker, Nick Cave, Ray Charles, Bryan Ferry, Queen Latifah, Eels, Julien Doré, Kim Nalley, Buddy Guy (junto com Carlos Santana), Marilyn Manson; por mencionar só alguns. 10 A canção já foi sampleada para acompanhar outras canções, como é o caso de Notorious B.I.G. (em Kick In The Door) e LL Cool J (em LL Cool J). Foi também usada em diferentes trilhas sonoras, até com letras diferentes (em Natural Born Killers, de Oliver Stone, e The Ballad of Jack and Rose, de Rebecca Miller). Também foi usada em séries de tevê, como Os Simpsons.

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em toda a narração, o novelo de lã, é lançado pela performer ao desconhecido: logo depois, se escuta (em off) o som profundo do peso deste objeto, quando bate o solo branquicento. O vídeo é assim finalizado com uma última irrupção sonora em sobreposição: a canção To Tragoudi Tis Vroxis11, que também é interpretada desde seu início com o timbre ronco de uma clarineta, mas que este timbre nos leva imediatamente em direção de outros sentidos, quiçá para outras estradas. É assim que os créditos finais da obra aparecem na tela. Foi assim que, sobre a base da audição e edição apurada dos trechos, timbres, instrumentação e demais elementos de diferentes peças musicais, fui encontrando uma cúmplice afinidade entre as imagens e as sonoridades, dando por resultado uma rede sonora em que todos os trechos –não necessariamente os sons- aparecem sobrepostos, uns sobre os outros: cada um deles é parte fundamental do outro, como acontece com os moradores multiculturais, anônimos ou bem conhecidos, que se deslocam nas grandes capitais.

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Aprendizados a partir da criação de uma trilha sonora

O processo criativo musical abriu mão de alguns elementos que foram já desenvolvidos e discutidos na Teoria Crítica, a etnomusicologia e a antropologia sonora; elementos como paisagens sonoras, evocação cultural, heterotopia, composição aleatória, repertórios tradicionais e timbres que, a seguir, serão analisados por separado. i.

Paisagens Sonoras. Em 1977, Murray Schafer cunhou o termo para fazer referência ao

meio ambiente sonoro dos seres humanos12. Tiago Oliveira propõe distinguir entre dois tipos de paisagens sonoras: a natural e a cultural. Segundo este autor, as paisagens sonoras naturais são os sons que provêm das atividades ou ações físicas dos fenômenos naturais, e as paisagens sonoras culturais resultam de todo tipo de atividade humana, que evidencia o potencial comunicativo, emocional e expressivo do som13. As paisagens sonoras também se caracterizam por ser muito variadas e variáveis com relação aos diversos ambientes que as produzem, constituindo configurações tímbricas e

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Goran Bregovic. 1997. To Tragoudi Tis Vroxis. Em parceria com o cantor Giorgos Ntalaras. Tiago Oliveira, 2001. Pp. 221-286. 13 Ibid. 12

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acústicas simples e/ou complexas, que geralmente aparece no primeiro contato com seu contexto. Daí que se pode falar de “imagens sonoras”14. Uma das principais idéias que surgem da análise de paisagens sonoras, é a consideração das diversas fontes geradoras de som e sua conseguinte utilização e valoração na sociedade. É possível analisar uma paisagem sonora na soma total dos elementos que a constituem, mas, também pode se analisar cada um destes elementos por separado, para sempre reconhecer a “musicalidade” de todos e qualquer destes elementos. Existem diversas formas de relação entre as paisagens sonoras e o que comumente é considerado musical. A música pode surgir das paisagens sonoras, mas também pode influenciar e caracterizar estas. Como resultado, é comum encontrar perspectivas muito mais abertas e livres nas valorações musicais, em comparação daquilo que as pessoas estão acostumadas a considerar como “som musical”. Isto acontece porque muitas vezes, o que é considerado como som especificamente musical, pode ou não ser facilmente reconhecível dentro do contexto sonoro onde é gerado, podendo ocorrer certa “impossibilidade cultural” na sua distinção, com relação aos outros aspectos que conformam a mesma paisagem sonora. No caso de Q’aiturastro, a intenção foi a de destacar este último aspecto, fazendo com que o contexto e a tonalidade harmônica (quarteto de violões) acabaram confundindo-se. ii.

A(s) Heterotopia(s). A definição de heterotopia, não é assunto fácil. Foucault, quem

propus o termo, a definia da seguinte maneira: “Há [...] em todas as culturas, em todas as civilizações, espaços reais [...] que existem e que são formados na própria fundação da sociedade - que são algo como contra-sítios, espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos [...] Este tipo de lugares está fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição geográfica na realidade. Devido a estes lugares serem totalmente diferentes de quaisquer outros sítios, que eles refletem e discutem, chamálos-ei, por contraste às utopias, heterotopias. [São] lugares-outros [...] uma contestação do espaço que vivemos simultaneamente mítica e real [...]” “Os bordéis e as colônias são dois tipos extremos de heterotopias. [Mas, o navio] é a heterotopia por excelência: um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que existe por si só, que é fechado sobre si mesmo e que ao mesmo tempo é dado à infinitude do mar. [...] o navio tem sido, na nossa civilização, desde o século dezesseis até aos nossos dias, o maior instrumento de desenvolvimento econômico e simultaneamente o grande escape da imaginação.”15

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Ibid. Michel Foucault, 1984. “De outros Espaços”. Conferência proferida no Cercle d'Études Architecturales, em 14 de Março de 1967. Publicado também em Architecture, Movement, Continuité, 5, de 1984.

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É assim que o contexto, a materialização espacial, geográfica e, ao mesmo tempo, abstrata, do encontro multicultural, é o espaço heterotópico urbano. Com o passo do tempo, as cidades passaram a ser todos os lugares, todos sim, mas depois, um enorme não-lugar; parecia não haver lugar ou ponto fora dela desde o qual se a pudesse ver e compreender na sua totalidade16. Estas idéias nos mostram que a cidades foram constituindo-se em formas diversas de espaços heterotópicos, em cujos contextos ainda hoje são requeridas novas formas de interação cultural nos jogos do poder, nas tensões sociais da aceitação e rejeição, na construção de identidades e na invenção interminável de tradições. Neste caso, a evocação cultural, é uma de essas formas novas de interação cultural. É assim que o conceito de Heterotopia acompanha e propicia a minha idéia de evocação cultural na música. iii.

As Evocações culturais musicais. Desde o século XIX, as cidades começaram a

transformar-se em entidades misteriosas e ubíquas, incognoscíveis e inevitáveis, capazes de abrigar o passado e determinar –ou destruir- o futuro. A geração do sentido já não era atribuição da igreja, da corte ou do Estado, mas se produzia –e reproduzia- nas cidades17. A meu ver, a experiência de viver em qualquer capital, em todas elas ao redor do mundo, hoje em dia é similar à analogia que Foucault fazia entre a utopia, a heterotopia e o espelho. Foucault nos dizia: “o espelho... é um lugar sem lugar algum.” No espelho, as pessoas vêm-se ali onde não estão, num “espaço irreal, virtual” onde as pessoas estão além, ali onde não estão, elas são a sombra que lhes dá visibilidade de si mesmas, que lhes permite ver-se ali onde são ausentes. O espelho “existe na realidade, e exerce um tipo de contra-acção à posição que as pessoas ocupam. Do sítio em que as pessoas se encontram no espelho, elas apercebem-se da ausência no sítio onde estão, uma vez que podem ver-se ali. A partir deste olhar dirigido a si mesmas, as pessoas voltam a si mesmas e começam a reconstituir-se ali onde estão. “O espelho funciona como uma heterotopia: transforma este lugar...” 18. Como descobrir através da música, as anatomias urbanas e as misérias das multidões de estranhos? Produzir-se-ia nas modernas metrópoles novos tipos de experiências, novos sujeitos. Formam-se novas relações sociais, econômicas e culturais, junto com comunicações interculturais enriquecidas e facilitadas pelas novas sofisticações tecnológicas. Ezra Pound assinalou que “...as impressões visuais [da vida nas cidades] se sucedem uma a outra, se 16

Tony Tanner, 2002. Pp.85-87. Tony Tanner, op cit. 18 Michel Foucault, op cit. 17

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sobrepõem, se cruzam; são cinematográficas”19; em coincidência justamente com a idéia de “imagens sonoras”. Isto nos leva a considerar a existência de novos produtos contemporâneos, predominantemente urbanos, justamente porque dentre outros agentes, os artistas sem dúvida criam suas próprias cidades, porque eles sempre a vêm de diferentes maneiras. “Depois da cidade, já não podemos olhar o mundo com olhos pre-urbanos”20. Enquanto isso, a cidade moderna, amorfa e incoerente, uma metrópole de constante fluir e expansão, vem criando quase que permanentemente novos problemas de representação. Daí a importância do conceito de evocação cultural na analise da força da música nos contextos urbanos. A antropologia sonora sustenta que a música passa a ser de difícil tradução quando apresentada fora de seu contexto ou de seu meio cultural21. Esta afirmação deve ser repensada ao considerarmos o fenômeno das populações itinerantes, e as suas trocas culturais que geram hibridações e ressignificações culturais. Se tal afirmação da antropologia sonora for a regra geral, nos contextos urbanos não caberia a possibilidade da consumo, troca e fluxo dos repertórios culturais, justamente porque assim sendo, as linguagens culturais que fluem nestes lugares –ou seja, fora de seu contexto original- não seriam do domínio público. Evocar é trazer algo à memória ou à imaginação. Antigamente, com a evocação, se chamava aos espíritos e aos mortos, achando que eles eram capazes de acudir aos conjuros e invocações. Por isso, quando se trata da linguagem musical, as evocações permitem uma sorte de tradução intercultural entre os tempos culturais nas capitais. Nas formas sonoras de evocação cultural, as músicas, ou apenas trechos delas, não têm a intenção de representar –ou gerar identificações diretas com- uma cultura em particular. A evocação pretende falar de uma coisa, quase que de forma etérea; não para trazê-la ao presente senão para entrar em conexão com outras coisas; neste caso, outras culturas com as quais passaria a conformar uma outra coisa: a Cosmópolis. Isso me leva a considerar a evocação cultural como uma das ferramentas de interação urbana, que permite aos cidadãos multiculturais a sustentação do cotidiano sem explodir na agressão descontrolada.

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Citado por Tony Tanner, op cit. Tony Tanner, op cit. 21 Oliveira, op cit. 20

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iv.

As idéias de John Cage. Devido à falta de espaço, não poderei ir além de uma breve

enumeração daquelas idéias desenvolvidas pelo compositor e pensador da música, John Cage, que inspiraram o trabalho para Q’aiturastro. A idéia principal desta menção é o fato de que uma evocação cultural musical, pode (deve) partir da probabilidade com que os elementos dos repertórios musicais aparecem no cotidiano dos indivíduos. Este princípio coincidiu em grande medida com as idéias de Cage. O foco do trabalho de Cage estava na estrutura dentro da qual a probabilidade é operada22. Desde o ano 1951, Cage começou a usar operações de probabilidade no curso de sua composição, a partir do qual decidiu-se por remover todo o traço de sua personalidade no trabalho composto. No seu trabalho, ele praticava a indeterminação no sentido de desenvolver a liberdade dos sons para serem eles mesmos, o que resulta na estética da interpenetração de uma composição com seu entorno23. Em várias de suas obras24, o compositor trabalho sobre composições já existentes, sobre quais se propôs uma estranha tarefa: manter o “sabor” das versões originais e, entretanto, fazer com que elas perdessem o que mais aborrecia delas: a sua tonalidade harmônica. O conseguiu fazendo que cada som vibre por si mesmo, não desde (ou graças a) uma teoria. No tratamento do silêncio, vários trechos ou notas de algumas das obras por ele compostas, acabaram cercados pelo silêncio, evidenciando os sons exatamente como eles são. Convencido de que o silêncio realmente não existe, Cage defendeu a idéia de que este não é silencioso: é um som que murmura a acústica do que pode ser ouvido25. Daí que escutar o entorno requer de um ouvido aprimorado: trata-se da maravilhosa idéia de abrir os nossos ouvidos ao mundo circundante. Aqui, uma coleção de registros sonoros é a materialização da conceição do som e do silêncio: tudo o que pode ser ouvido, pode ser registrado. A finalidade é a de capturar e controlar os sons, para usá-los não como efeitos sonoros, mas como instrumentos

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Nas obras em que trabalhou usando o conhecido “livro das mudanças”, o I Ching, como método, o processo composicional partia de perguntas que ele fazia para gerar idéias concretas (caminhos a percorrer). Assim, Cage deixou em claro que algumas perguntas são melhores do que outras, ou seja, produzem melhor música (cf. Music of Changes, de 1951, e 44 Harmonies From Apartment House 1776, de 1976). 23 James Pritchett, 1993. 24 O melhor exemplo, quiçá seja o 44 Harmonies From Apartment House 1776. 25 Cage, 1995. p. 109. Citado por Charles Baldwin, 1997.

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musicais. O arquivo sonoro, assim concebido, é um sistema sonoro global onde se destaca de forma natural, a interligação dos sons em tecidos e redes complexas26. Com isso Cage quis transformar o papel tradicional do compositor, do intérprete, e das audiências, para inserir neles uma visão de “liberdade” e de “praticidade [e estética]” da anarquia27. Os procedimentos probabilísticos ajudaram a Cage a deslocar a voz autoral do compositor e dos intérpretes para as audiências, fazendo com que a arte desapareça na performance, onde arte e meio ambiente se desvanecem, e acabam indistinguíveis. Assim, Cage redefiniu a natureza da composição, a partir da idéia de compor para parâmetros musicais individuais, de modo que os parâmetros pudessem ser integrados em combinações diferentes28. Com isso, a composição não era um objeto acabado nem estático, ou executado perante uma audiência de ouvintes passivos. Pelo contrário, devia ser uma experiência acústica mutável e subjetiva em cada indivíduo (intérprete e audiência). Então, tratou a composição como uma ação, um processo29, no qual, a forma como as notas são tocadas importa muito mais do que o que elas são30. Uma obra musical que não tenha nenhuma ordem discernível de eventos é uma de composição como processo que permite muitas e diferentes recepções e críticas por parte das audiências31. Roland Barthes reconheceu a ruptura: a diferença da música “clássica” –que exige que os ouvintes decifrarem a construção de um tema a partir de um código- a música exemplificada por Cage oferecia aos ouvintes um “cardápio de significantes”. Esta heterogeneidade dos códigos com seus significados e referentes mutáveis afetou o processo da escuta, que Barthes comparou com a experiência de ler um texto moderno32.

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Charles A. Baldwin, op cit. Cage, 1997, p. 81. Citado por Nancy Perloff, 2002. 28 Cage quis se afastar da harmonia européia ocidental e da definição do som como um agregado do timbre, freqüência, ataque e duração. Na sua rejeição da harmonia ocidental procurava substituir a idéia de uma harmonia funcional com um contraponto disciplinado em que um som não implica o seguinte. 29 Pritchett, 1993, pp. 139; 146. Citado por Nancy Perloff, op.cit. 30 Greg Sandow, 1996. 31 Entrevista com Roger Reynolds. 1962. Catálogo da Imprensa Henmar de composições de Cage durante esse ano. Citado por Nancy Perloff, op.cit. 32 Barthes, 1985, pp. 259; 265. Citado por Nancy Perloff, op.cit. 27

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Conclusão

Na música composta para Q’aiturastro, longe de ter perdido algum valor o sentido cultural, os trechos musicais utilizados, adquiriram outros valores e sentidos, desde que ligados às imagens que já carregam um elevado conteúdo cultural. O resultado final destaca de forma sutil, o caráter itinerante da performer que aparece em cena, cuja trajetória é desenhada pelos rastros de uma multiplicidade de culturas em contato. Nos sons de uma indefinida cultural milenar, que acabam entrelaçados com as convulsões rítmicas das grandes capitais, descobrimos que os sujeitos são capazes de ser universais sem o risco de se perder nas sombras de uma homogeneização cultural muda e anônima. Assim, consegue-se escutar o “peso” daquilo que carregamos no caminho que percorremos hoje em dia: o difícil passeio pelo mundo inteiro, cujo deslocamento se depara com paisagens frias e desoladas, mas que, ao mesmo tempo, são magníficas, cálidas e aconchegantes. Desta experiência criativa multidisciplinar quero destacar as seguintes idéias: a) A música tem muito mais do que um papel secundário nas obras audiovisuais, ela se constitui em um ato criativo que não se pode divorciar do pensamento filosófico e da vida cotidiana; b) Os atos de compor e de escutar podem (devem) ser mais importantes do que a figura do compositor ou da composição; por tanto, é possível apreciar a música não pela maneira como é composta (o produto razoável duma teoria), e sim pelo que nos diz estética e semanticamente: um produto sonoro importa mais por ser um ato que obedece a múltiplas determinantes (em tanto conjunto de relações e processos), antes do que ser um cálculo matemático; d) No ato de compreender o mundo atual a través da música, o músico também deve assumir a responsabilidade de poder mudá-lo com sua arte; e) Será enriquecedor disciplinar-se para poder escutar verdadeiramente o entorno, e apreciá-lo esteticamente, isto é: maximizar o fenômeno sonoro como um princípio de responsabilidade mínima com relação ao que recebemos e comunicamos na música; f) O diálogo das imagens de vídeo registradas com a composição musical se vincula de maneira profunda com aspectos extra-musicais, ao revelar fenômenos socioculturais atuais que acontecem nas grandes capitais; g) A idéia de uma produção incessante de múltiplos significados e significantes, tanto na música quanto no ato de escutar, cristaliza a multiculturalidade dos sujeitos que se encontram, seja na música, seja no audiovisual; h) Esta experiência permite ampliar as possibilidades de criação e difusão da arte, promovendo coletivos de artistas que trabalham com diferentes

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linguagens, e criando obras multidisciplinares que diluem os limites autorais e espaciais, sim perder por isto as suas identidades e particularidades culturais.

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Bibliografia

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