QUAL A IMPORTÂNCIA DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO NO DESENVOLVIMENTO RURAL DOS PAÍSES DO MERCOSUL?

June 6, 2017 | Autor: Silvia Lilian Ferro | Categoria: Estudos de Gênero (Gender Studies), Desenvolvimento Rural
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QUAL A IMPORTÂNCIA DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO NO DESENVOLVIMENTO RURAL DOS PAÍSES DO MERCOSUL?11 Silvia Lilian Ferro

INTRODUÇÃO

A

s desigualdades de gênero no espaço público dos países que compõem o Mercosul12 têm ganhado destaque por conta das desigualdades de gênero dos modelos de desenvolvimento rural adotados pelos Estados membros e associados dessa instituição de integração regional que é o Mercosul. Nota-se que, no geral, o debate coletivo pelo desenvolvimento rural desejável em nossos países incorporou tardiamente a perspectiva de gênero nas agendas reivindicatórias da igualdade em outras áreas de atividade econômica e das políticas públicas a elas associadas. 11 Artigo original em espanhol, traduzido para esta obra por Cymara Miranda. 12 O Mercado Comum do Sul (Mercosul) surgiu com o Protocolo de Assunção, em 1991. É composto por Argentina, República Federativa do Brasil, República do Paraguai, República Oriental do Uruguai, República Bolivariana da Venezuela e do Estado Plurinacional da Bolívia. Os Estados partes do Mercosul partilham valores comuns que encontram expressão em políticas democráticas, pluralistas, defensoras das liberdades fundamentais, direitos humanos, proteção ambiental e desenvolvimento sustentável e seu compromisso com a consolidação da democracia, a segurança jurídica, o combate à pobreza e o desenvolvimento econômico e social com equidade. Tem como Estados associados: Chile, Colômbia, Peru, Equador, Guiana e Suriname.

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O maior interesse na questão é resultado do crescente espaço conquistado na área das organizações de agricultura familiar e de sua vinculação com a soberania alimentar13 e seus impactos sobre a proposta da necessidade de democratização das relações sociais e econômicas das estruturas agrárias dessa região que, no entanto, é um dos polos agroalimentares mais importantes do mundo. Os países fundadores do Mercosul – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – se caracterizam por possuir uma inclinação eminentemente agroexportadora em suas balanças comerciais e estão na lista dos dez maiores produtores e exportadores mundiais de soja, por exemplo, e de diferentes mercadorias de origem agrícola e de produção de alimentos. Tais semelhanças na orientação de suas políticas comerciais coexistem com uma também marcada estratificação entre os atores socioagrários e relações assimétricas de força estabelecidas historicamente e sustentadas até hoje – apesar de breves intervalos históricos de tentativa de equiparação de oportunidades para os setores subalternos da agricultura em meados do século 20, graças às experiências de governos populares que foram abruptamente segregados na região por processos ditatoriais cívico-militares e por ideologias neoliberais quando a democracia formal foi recuperada. Isso resultou numa grande concentração de recursos agrários, da propriedade e do uso de fatores de produção como a terra, o trabalho, o acesso ao capital e à inovação tecnológica. 13 “O conceito de ‘soberania alimentar’ foi introduzido como um novo paradigma pela Via Campesina, um movimento internacional que engloba organizações camponesas de pequenos e médios agricultores, mulheres rurais, comunidades dos povos indígenas, sem-terra, jovens rurais e trabalhadores agrícolas migrantes de 70 países na Ásia, África, Europa e América, durante a Cúpula Mundial de Alimentação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 1996”. Trecho do Royalty Chair Soberania Alimentar (CLSA) da Universidade Nacional de La Plata (UNLP). Disponível em: .

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A partir dos primeiros anos do século 21, com o retorno à região de governos populares de tendência progressista, os movimentos sociais agrários que representam os setores rurais subalternos encontraram uma conjuntura de legitimação política para incorporar suas agendas reivindicatórias nos âmbitos de decisão das políticas agropecuárias dos Estados e para explicitar em nível coletivo sua visão sobre modelos de desenvolvimento rural baseada em paradigmas de igualdade e sustentabilidade. Essa visão sobre modelos de desenvolvimento rural desejavelmente inclusivos socialmente e sustentáveis ecologicamente também pugna por organizações que representem os setores campesinos, de povos originários e especialmente das organizações de pequenos agricultores familiares, orientando à democratização do acesso, uso e controle dos fatores de produção e delineando objetivos mais amplos da produção agrária do que a mera produtividade e aumento de excedentes exportáveis. Esse último ponto é fonte de contradições que provocam tensões e conflitos, já que a política que se expressa em governos progressistas, os quais deram grande impulso às organizações da agricultura familiar, de povos originários, da afrodescendência em meios rurais e às organizações campesinas, em geral, é a mesma que impulsiona as políticas públicas que promovem metas de produção e de incremento exponencial dos volumes de exportação da produção agrária dos Estados. Isso significa, na prática, que oferecem uma gama de estímulos à agricultura em grande escala (por exemplo, pools de siembra) e à pecuária extensiva (por exemplo, feed lots). Pools de siembra é uma expressão generalizada na Argentina e que se refere a uma modalidade de gestão produtiva baseada na produção em larga escala por meio da combinação de propriedade da terra e arrendamento mercantil, como extensas unidades produtivas geridas exclusivamente como contraDiálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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tos de locação com grande aporte financeiro na figura de fideicomissos ou fundos de inversão que injetam capital financeiro extra na produção agrária em larga escala, com predominância para a soja. Os atores que expandiram essa modalidade desde os anos 80 do século 20 em diante são tanto proprietários de terra que somaram grandes superfícies para arrendamento, que administraram as possibilidades dos fideicomissos orientados à produção agrária, como agentes financeiros extragrários, estes últimos em menor proporção (BASUALDO, 2008). Essa modalidade de gestão é reconhecida em grande parte da região que engloba o Mercosul e que tem grande desenvolvimento de sua produção e exportação de soja, como Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, extendendo-se a outras regiões sul-americanas na atualidade. Esses atores da produção em larga escala são os que disputam, com os anteriormente mencionados, a apropriação do território rural, da água para irrigação e de tudo o que engloba a infraestrutura para a produção agrária financiada pelos Estados ou em consórcios mistos com atores privados – em suma, as vantagens fiscais, creditícias e tecnológicas para incrementar a superfície cultivável, rendimentos por hectare, qualidade de produtos com destino exportável, facilitações do comércio (missões comerciais no exterior, acordos bilaterais etc.), entre outras muitas ferramentas que promovem os Estados, além de uma maior obtenção de divisas em seu saldo comercial. Objetivos comerciais alcançados em detrimento de boas práticas de uso do solo e de preservação de florestas nativas resultam em uma extensa contaminação de ecossistemas por conta de milhões de litros de agrotóxicos despejados em enormes áreas de superfície, assim como a alteração de cursos d’água, conflitos entre empresas agrárias, povos originários e comunidades camponesas por terra e água, dentre outras razões que provocam deslocamentos dos agricultores de pequeGênero, desenvolvimento e território

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na escala, na maioria dos casos, além de outros fatores preocupantes a serem considerados. Os crescentes conflitos entre os atores agrários tão desiguais e com visões de desenvolvimento rural antagônicas são indicativos de que os Estados da região fortalecem ambos os espectros: tanto a produção agrária empresarial de grande escala e com vocação à exportação que produz divisas como as formas de produção agropecuária focadas na alimentação das populações locais, agroecológica, com objetivos de soberania alimentícia, revalorização territorial e do modo de vida rural, no retorno à continuidade dos projetos familiares de vida nos meios rurais com base no estímulo às juventudes rurais, à igualdade de gênero, às políticas de reparação fundiária destinada aos povos originários e à afrodescendência, à preservação de florestas nativas, de umidade e muitos outros itens que produzem legitimidade política na base social. Essa contradição tenta ser salva desde a proposta de coexistência de formas distintas de produção, o que também significa a coexistência de atores rurais muito desiguais e assimétricos – coexistência, afinal, em um mesmo território de visões de modelos de desenvolvimento rural contraditórios. Esse é o cenário real onde a questão da igualdade de gênero começa a surgir com maior força nas organizações que representam os setores subalternos da agricultura. Lamentavelmente não se visualiza sua enorme potencialidade de reconhecer desigualdades em toda a estrutura agrária intersectando-se com outros vetores que a potencializam, como o pertencimento étnico, territorialidade, modo de produção, enfoque geracional etc. Fica reduzida a parte de uma demanda ética por políticas compensatórias destinadas às mulheres rurais, sem possibilidades de dimensionar seu caráter estrutural como enfoque de gênero, e não como sinônimo de mulheres, em respeito à ampla agenda temática agrária debatida no bloco regional e sua capacidade de atravessar verticalmente toda Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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a estrutura agrária, transversalmente a todos os tipos de atores agrários. Esse tipo de reducionismo é causado em primeira instância por insuficiências conceituais e metodológicas de seus promotores/as e, em segunda instância, por resistências de interesses que se expressam primeiramente em atribuir igual conceito aos vocábulos “gênero” e “mulheres”, posicionando erroneamente o denominado “enfoque de gênero” como um satélite adicionado e descontextualizado nas políticas e debates que se implementam no bloco regional e nas políticas agrícolas domésticas dos países que o compõem. Os setores subalternos das estruturas agrárias dos países do Mercosul fortalecidos na conjuntura política regional conflitam com as alianças agrícolas que representam os setores médios e da grande propriedade e produção agrária, que têm sido os interlocutores privilegiados ante o Estado e grande parte da sociedade civil desde a emergência e consolidação dos modelos agroexportadores no século 19 na região. Essa conjuntura de intenso debate entre os distintos atores socioagrários e suas diferentes relações de força, somada à crescente presença na opinião pública, nas organizações civis, nas universidades, sindicatos etc., mostrou-se propícia para incorporar paulatinamente demandas de igualdade de gênero nas agendas reivindicatórias por oportunidades sociais, econômicas, políticas e culturais dos setores subalternos da agricultura, especialmente no que atine à agricultura familiar. As tensões pelos alcances efetivos do conceito de agricultura familiar (AF) mostram claramente as enormes diferenças de atores agrários que disputam a área de reconhecimento público e estatal como sujeitos de políticas de promoção diferenciada e devidas da inclusão da AF a questões institucionais do Mercosul e, nos casos nacionais, por meio da legislação emergente federal e subnacional, além da criação de áreas estatais, nacionais e subnacionais para sua promoção. Gênero, desenvolvimento e território

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Assim, o empresariado agrário que gere familiarmente uma combinação de propriedade familiar pequena e média com locação de grandes extensões, que produz orientado a mercados externos, são proprietários de fatores produtivos e têm acesso a créditos significativos, denominados nos estudos agrários como de agricultura familiar capitalizada (AFC). Pugnam por serem incluídos em uma definição que necessita se ajustar melhor para que os fundos e vantagens que ali se destinam cheguem efetivamente aos setores socioagrários subalternos que impulsionaram o reconhecimento público da AF como protagonista da soberania alimentar de seus países e que correspondem com as definições de agricultura familiar de subsistência (AFS) ou pequena agricultura familiar (PAF), integradas pelos setores rurais do campesinato, povos originários e afrodescendência. Esses últimos são os que exigem ser protagonistas em uma redistribuição de oportunidades e reparação histórica por haverem sido historicamente prejudicados por ações ou omissões de políticas públicas comerciais, agrícolas e econômicas por parte de seus países, desde as campanhas militares de extermínio dos povos originários do século 19, para destinar as terras férteis à agricultura e pecuária a cargo dos imigrantes de origem europeia, até a subordinação da população crioula e afrodescendente a condições de exploração em favor dos recém-chegados da Europa, pobres e analfabetos em sua maioria, para que lograssem adaptação à produção agrária em contextos agroecológicos tão distintos de suas regiões de origem, e que se tornaram ao longo de quatro ou cinco gerações seguintes nos atores agrários privilegiados pelas políticas públicas e agrárias dos Estados nacionais. É nessa sinergia de processos sociais e políticos que levam à renovação da equidade de gênero em todos os aspectos de interesses produtivos que este estudo se encontra. Considerando pontualmente o sistema produtivo agrário, se faz evidente Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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a necessidade de inovação das ferramentas epistemológicas e metodológicas para que esse tema deixe de ser uma extensão reduzida a seus aspectos éticos reivindicatórios, que é assumido em forma mais “politicamente correta” do que efetivamente operativa na discussão regional institucional dos grandes temas de desenvolvimento rural de uma região. Chegando a esse ponto e tendo em vista a situação presente na região, cabe perguntar-se: Quanto importa a igualdade de gênero na discussão pelo desenvolvimento rural desejável e em seus instrumentos de realização como são as políticas agropecuárias nacionais? Este artigo tentará clarear os elementos que conformam esse questionamento para apresentar as respostas possíveis em seus cenários atuais e prospectivos.

CONTEXTUALIZANDO O DEBATE

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Para começar a elaborar uma resposta às interrogações propostas, impõe-se a necessidade de abordar um diagnóstico baseado em metodologias quantitativas, num quadro de variáveis com indicadores que permitam medir as disparidades de gênero (gender gap) nos fatores produtivos agrários (terra, capital, trabalho e tecnologia). É pertinente, do mesmo modo, medir as disparidades em termos quantitativos considerando as articulações fundamentais da produção alimentícia: produção, distribuição, comercialização e consumo, porque a satisfação alimentar da população de cada país é – ou deveria ser – o primeiro objetivo soberano de qualquer política agrária nacional. Por desse enfoque, também é possível examinar as distintas fases do despejo do excesso da produção agrária nos mercados alimentícios internacionais por meio da análise do impacto das políticas comerciais nessas lacunas. Gênero, desenvolvimento e território

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Lamentavelmente, os estudos de gênero no desenvolvimento rural têm mostrado um viés majoritário das abordagens qualitativas, identificando eixos de análise desde as demandas éticas e reivindicatórias – o que conduz muitas vezes a obter, por parte das decisões públicas e privadas, respostas “politicamente corretas” também baseadas na dimensão ética e reivindicatória. Algumas menções à questão de gênero nos discursos de responsáveis por ministérios de agricultura trazem algum componente secundário na legislação agrária, como a criação e manutenção de tipos cerimoniais de “áreas mulher”, sem muitos recursos, endossos políticos e por conta de âmbitos consultivos e de realização de diagnósticos e estudos especializados, no melhor dos casos, mas sem possibilidades de transversalização do enfoque de gênero no desenho e instrumentalização principal (mainstreaming) das políticas agrárias nacionais. É um discreto avanço para três ou quatro décadas, segundo cada caso nacional de existência em áreas estatais especializadas na promoção de direitos à igualdade entre mulheres e homens, dada a vitalidade, persistência e qualidade de liderança dos movimentos sociais e dos movimentos de mulheres desde a década de 1960 nessa região. Eles inseriram paulatinamente, com crescente intensidade, as demandas de igualdade de gênero no espaço da opinião pública, fazendo conhecer suas agendas reivindicatórias e também, mesmo que tardiamente, suas visões sobre o benefício coletivo de incorporar a igualdade de gênero como variante e indicativo de modelos de desenvolvimento rural com uma base social mais ampla e, por fim, mais sustentável nos meios rurais. Portanto, por essa visão é que se exige a adoção de estratégias mais eficazes para inserir o enfoque da igualdade de gênero em cada aspecto do desenho das políticas agrárias dos países da região do Mercosul, assim como na avaliação de seus impactos e no monitoramento de sua implementação, não só Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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como meras extensões de frases que incluam a palavra gênero e que dificilmente se operacionam de forma universalizada como o conjunto de normas gerais ou ao programa do qual derivam. Mas apelar somente aos Estados, por intermédio de suas políticas específicas para a atividade agrária, e a sua extensão normativa não é suficiente: é necessário começar a estudar como o mercado de ativos patrimoniais agrários e seu principal âmbito de mobilidade e intercâmbio é um protagonista decisivo no aprofundamento das desigualdades de gênero no acesso, uso e controle dos insumos agrícolas. Seguindo em importância no modo de produção de assimetrias e desigualdades de gênero está a organização sexual do trabalho agrário familiar – variável transversal a toda a estrutura socioagrária mas que, especialmente nos setores médios (AFC) e altos do âmbito rural, são os menos estudados na perspectiva de gênero, de onde podemos evidenciar que são motores de produção, transmissão e sustentação de desigualdades baseadas na ordem de gênero de tipo patriarcal. O mercado de fatores produtivos agrários também é o maior responsável pela produção, sustentação e transmissão de desigualdades baseadas no pertencimento étnico, na escala produtiva, na orientação da perspectiva geracional, entre outros indicadores que se intersectam e interatuam. Por isso, deveria ser um âmbito de estudo pelos cientistas sociais preocupados em analisar e sistematizar desigualdades.

O PESO DA ATIVIDADE AGRÍCOLA NA REGIÃO A matriz agroexportadora comum dos Estados membros do Mercosul e em grande parte de seus associados14 mostra, em

14 A incorporação recente da Venezuela ao Mercosul – primeiramente a do Chile de maneira associada – e a introdução pendente de ratificação do Estado Pluri-

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sua persistência, quão dificultoso é desprimarizar as balanças comerciais das economias da região, apesar das lideranças políticas progressivas e neodesenvolvimentistas que predominam nos países signatários nessa etapa particular. Esses perfis são consequência de políticas comerciais comuns que, desde a década de 70 do século 20, relançaram, em muitos casos mediante golpes de Estado cívico-militares, os modelos primário-exportadores anteriores à etapa de industrialização por substituição de importações em meados do século 20, os quais haviam delineado, no século 19, a inserção desses Estados aos mercados internacionais recém-consolidados em seus processos de independência. A modernização agrária chegou à região entre as décadas de 1940 e 1960 como pedagogia política da Revolução Verde originada nos países centrais em consequência da transferência de maior invisibilidade dada às mulheres em seu protagonismo no desenvolvimento rural, por considerá-las parte inseparável das famílias e da mera reprodução da população nos meios rurais. O paradigma de ação da extensão rural chega até nossos dias, tendo a “família” como um local de interesses diferenciados que se expressam por meio do chefe de família, destinatário quase exclusivo de todas as prestações oriundas das políticas e programas governamentais, especialmente aqueles orientados à assistência técnica e extensão rural. nacional da Bolívia são as economias nacionais que irão colorir a predominância de economias agrícolas de exportação como características comuns dos Estados fundadores do Mercosul e também considerada nesta análise os seus associados. Embora ambos os produtos combustíveis agrícolas e minerais permaneçam dominantes, em todos os casos a característica comum da balança comercial é fortemente ponderada para mercadorias, ou seja, mesmo que a economia seja primária em alguns setores, nos últimos anos o Brasil e a Argentina alcançaram os artigos de origem industrial (MOI), por vezes, amarrados nos percentuais de origem agrícola (MOA) exportados, mas não em preços obtidos (forex) nos volumes.

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A extensão rural é o “catecismo” da Revolução Verde, processo desenvolvido desde meados do século 20 no Ocidente e, por sua vez, como produto histórico, foi e é a possibilidade de adoção do pacote tecnológico e especialmente da transformação de mentalidades e identidades, buscando erradicar a identidade do agricultor familiar, substituindo-a pela de empresário agrário. A mudança de identidade é necessária para substituir uma concepção da atividade agrária como projeto geracional de vida familiar e, portanto, com uma relação mais próxima da preservação do solo e das formas de produção mais amigáveis com o entorno ecológico por uma concepção da atividade agrária como negócio (business) e nas zonas rurais como um âmbito de obtenção de rentabilidade, como poderia acontecer com uma fábrica ou qualquer outro espaço físico. Sua difusão até o sul global foi promovida por agências agrotecnológicas dos EUA, e sua chegada coincidiu, em alguns casos, com governos que chegaram ao poder de fato por via autoritária e por golpes de Estado que, no entusiasmo, adotaram a missão de promover a modernização agrária, especialmente como essa tarefa era auxiliada por linhas de financiamento internacional, convênios de colaboração técnica e científica com os EUA. Assim se criaram institucionalidades estatais nessa etapa, condenada à tarefa da transferência de conhecimentos e tecnologia agropecuária e à extensão rural. As ideias dominantes nos estudos rurais e nas políticas agropecuárias consideravam as mulheres (e continuam fazendo em grande medida) integrantes exclusivas dos núcleos familiares que, com exceção de alguns casos, desenvolviam tarefas prediais tanto na pecuária como na agricultura propriamente dita, fazendo-o em caráter de “ajuda familiar”, e não em sua dimensão de produtoras e trabalhadoras rurais. As instituições de assistência técnica e extensão rural do Brasil e da Argentina refletem nessa etapa essa concepção, imGênero, desenvolvimento e território

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pulsionando a criação de programas como Hogar Rural do Inta e Clube de Mães, surgidos na etapa da Associação de Crédito e Assistência Rural (Acar) e continuadas nas etapas iniciais da Emater (1971) e pelos projetos Bem-Estar Social da Embrater a partir de 1975, que tiveram como objetivo a capacitação vinculada à domesticidade da atividade das mulheres, cuidado dos filhos e filhas, cuidado dos homens da família por meio de cursos de cozinha, tecelagem e fiação, produção de conservas de alimentos, cuidados com animais de granja etc. O relançamento do projeto político e econômico regional de inserção nos mercados mundiais, antes provedores de matérias-primas entre as décadas de 1960 e 1970, que poderíamos sintetizar na expressão “celeiro do mundo”, teve o protagonismo das elites proprietárias, que veicularam seu programa de desenvolvimento por seus encarregados de negócios implantados no poder político e institucional dos Estados, apesar de nem sempre estarem graças ao violentamento das instituições democráticas. Também nessa etapa se produz um acesso significativo das mulheres de setores médios da agricultura, dada a difusão das tecnologias químicas de controle de fertilidade e as conquistas sobre reconhecimento de direitos no espaço público, a educação superior, o trabalho qualificado – em suma, um projeto de vida para as mulheres, além da maternidade e constituição de uma família. Se bem que nas universidades os estereótipos de gênero se reproduziram na “escolha” de carreiras seguidas pelos homens (ciências exatas, aplicadas, tecnológicas, engenharias etc.) e mulheres (ciências e disciplinas vinculadas ao cuidado dos outros, pedagogia, comunicação, humanidades, artes etc.). As que, em sua minoria, chegam às ciências agrárias vão impugnando, apesar de timidamente, essa visão hierárquica e dual baseada em estereótipos de gênero de ordem patriarcal sobre os quais se baseiam os pressupostos desses campos de conhecimento. Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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No processo de recuperação da democracia formal em nossos países, foi significativa, especialmente na década de 1980, a visão política que orientou uma visão comum do desenvolvimento econômico: foi a que conhecemos como neoliberalismo, fortemente consolidado nos anos 1990 e que aprofundou um modelo de desenvolvimento rural orientado para fora e focando suas ações promocionais nos parques tecnológicos que possibilitam uma agricultura de tipo empresarial de grande escala fortemente baseada na inovação biotecnológica, maquinário de ponta, acesso de capitais, insumos químicos e na alta qualificação de gestores que se organizam em redes associativas de negócios verticais e horizontais que conhecemos sob o termo de agronegócios agribusiness (GRAS; HERNANDEZ, 2013).

GRAVIDADE DO PARADIGMA ANDROCENTRISTA LIBERAL DO MARXISMO GENDER BLIND NAS POLÍTICAS PÚBLICAS E NOS DEBATES DAS ORGANIZAÇÕES RURAIS

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Embora muito do paradigma neoliberal de desenvolvimento agrário permaneça vigente na visão não só das decisões políticas, mas especialmente nas agremiações que representam o setor privado de média e grande escala da produção agrária, o que se destaca é que ele está bem presente em muitos acadêmicos/as, investigadores/as e técnicos/as que continuam nutrindo-se de categorias epistemológicas arcaicas e androcêntricas. Como exemplo, temos as teorias econômicas neoclássicas para produzir conhecimento técnico especializado, especialmente evidente nas entidades estatais autárquicas orientadas à transferência, investigação e inovação em matéria de produção agrária, que são referência essencial para as decisões relativas à extensão rural às políticas agrárias de diferentes jurisdições, Estados nacionais e subnacionais. Gênero, desenvolvimento e território

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Esse último ponto é importante em relação às assimetrias de gênero, já que a teoria econômica neoclássica,15 de enorme influência nas carreiras universitárias de ciências agrárias na região, é um marco de ideias que tendem a naturalizar as diferenças entre homens e mulheres como agentes econômicos, sejam ou não do âmbito rural. Nessa perspectiva, homens e mulheres simplesmente “pactuariam”, ou seja, escolheriam se desenvolver em mundos distintos – o público remunerado e reconhecido e o doméstico de trabalho não remunerado e não reconhecido –, especializando-se naquilo em que suas diferenças biológicas lhes permitiriam obter vantagens comparativas. “As inversões especializadas e a alocação do tempo, assim como as vantagens comparativas, devidas a diferenças biológicas, implicam que os homens casados se especializem no mercado e as mulheres casadas com o lar” (BECKER, 1981, p. 43). Mas essa especialização em diferentes trabalhos, em esferas produtivas separadas para homens e mulheres, implica vantagens e desvantagens para uns e outros. A desvantagem mais evidente é que, quando termina o contrato conjugal ou mesmo o convívio, os homens continuam no mercado de trabalho assalariado ou produtivo no geral, e muitas mulheres se vêm no cenário de empobrecimento abrupto, com a responsabilidade econômica adicional de sustentar os filhos e filhas. Essa explicação na eleição “natural” das mulheres em investir no capital humano doméstico, desinteressando-se no investimento no capital humano para o mercado, está errada, já que 15 No livro Treatise on the Family (1981), um dos líderes dessa escola importante de pensamento, Gary Becker, argumenta que a divisão sexual do trabalho histórico responde a “diferenças biológicas, em parte, à diversidade de experiências, diferem porque diferentes investimentos em capital humano” (BECKER, 1987, p. 30). Esse seria o resultado de um acordo voluntário entre homens e mulheres e que “As mulheres tradicionalmente delegam aos homens que fornecem alimentos, abrigo e proteção, enquanto os homens geralmente delegam às mulheres nutrir e cuidar dos filhos e manter a casa” (BECKER, 1981, p. 46).

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a população economicamente ativa de nossos países mostra que a maior qualificação média é possuída pelo setor feminino.16 Isso tem suas raízes na economia política clássica, onde Adam Smith, no século 18, considerava completamente inútil instruir as mulheres nas coisas que não fossem úteis à administração da casa e ao desempenho de seu rol exclusivamente doméstico. Toda essa harmonia entre homens e mulheres nos núcleos de convivência que utilizam sabiamente as vantagens comparativas, afirmando que suas diferenças biológicas lhes concedem “complementariedade”, pactuando-os como iguais – harmonia que seria racional e altruísta –, Becker a transporta como analogia desde a organização sexual do trabalho familiar à divisão internacional do trabalho quando afirma, no mesmo livro fundamental para a teoria neoclássica, Nova economia da família, que é o mesmo modo como o norte global se “especializa” em produzir bens industriais tecnológicos com alto valor agregado por suas vantagens comparativas de capital científico e técnico, enquanto o sul global se “especializa” em vender commodities de baixo valor agregado às “vantagens comparativas” de seus recursos naturais. Nunca foi tão explícita a contradição entre a ideia que propõe a escola neoclássica de “complementariedade” pactuada entre iguais e a profunda assimetria, hierarquia e desigualdade que expressam em suas implicações diretas. As metáforas de gênero finalmente são poderosas porque constituem uma pedagogia da desigualdade a toda a estrutura 16 Na verdade, no Uruguai e na Argentina, a maioria das matrículas nas universidades é do sexo feminino, considerando-as como um todo; mas dentro das “escolhas” de carreira, preconceitos de gênero dominam e as mulheres se sobrerrepresentam nas disciplinas de cuidados, comunicação, arte e ensino, enquanto estão sub-representadas em tecnologia, nas ciências exatas e até mesmo com um intervalo menor e são uma minoria nas ciências naturais, especialmente em ciências agrárias.

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social e à ordem hegemônica global, que exerce largamente a aceitação aos locais domésticos de onde se nutrem. Sul, natureza, povos de pele escura, pobres e mulheres são igualmente vistos como dependentes, passivos e desvalidos em oposição binária ao norte como gerador e líder de bens tecnológicos e industriais, povos ricos, homens brancos igualmente vistos como competitivos, predominantes, autônomos e de alto valor social. Para os neoclássicos, a família está inserida especificamente no nível de microeconomia, tem uma função de utilidade conjunta e um chefe de família altruísta que tomaria as decisões em nome do grupo familiar de maneira que maximizaria o rendimento da atividade concorrente dos membros. Em termos agrários, isso se expressa na simultaneidade e superposição das figuras de produtor/chefe da exploração/chefe de família rural incorporadas no homem adulto do núcleo familiar de forma individual e hierárquica. É evidente o arcaísmo e a inadequação dessas teorias para serem aplicadas nas estruturas agrárias da região que, além de considerar em sua visão só as mulheres casadas, e estas como passivas e dependentes perpétuas, se baseiam em um só modelo conjugal biparental e familiar nuclear que deixa de fora todas as demais formas de família, como aquelas encabeçadas por mulheres, atualmente em crescente expansão em todo o Ocidente, como também as famílias polifuncionais e de “montagem”, em crescimento em todos os setores sociais e típicas dos setores populares. Sem dúvida, essas teorias seguem como base epistemológica da formação profissional agrária em todos os níveis em nossos países, especialmente quando se concentram na organização familiar da produção e trabalho agrário, forma predominante em termos quantitativos em toda a região do Mercosul, assim como na economia agrária e muito especialmente no extensionismo rural, o que explica em grande parte as dificulDiálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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dades para reconhecer a contribuição de homens e mulheres como atores agrários e de igual valor e interesse no conjunto social, político e institucional. Nas correntes críticas, como a institucionalista da teoria econômica, aparece com mais clareza o peso da vida social, pondo em destaque como as construções sociais e as formas criadas pelas instituições localizam as pessoas em diferentes posições de poder, dando-lhes vantagens segundo condições de sexo, classe e etnia para tomar decisões. Põem em evidência, ainda, que não há um nível estritamente privado nem para a família, nem estritamente público para o mercado e para o Estado. Ou seja, questionam de plano a caracterização neoclássica dos indivíduos como agentes econômicos que realizam escolhas livres e condicionadas só por suas preferências (NANCY FOLBRE, 1986; NAYLA KABEER, 1994; BINA AGARWAL, 1994), incorporando as variáveis contextuais que determinam em grande parte essas escolhas “individuais” com base em estereótipos, preconceitos, discursos normativos, religiosos, culturais, jurídicos etc. e em particular com base em uma ordem de gênero em que sujeitos homens e mulheres são socializados desde que nascem. Se bem que a maioria das críticas – não feministas – à análise neoclássica assume as diferenças de gênero em nível micro e não logra incluí-las nos níveis médio e macro, pois lhes parece inconcebível esse tipo de análise em campos em que não se veem as pessoas concretas (TODARO, 2006). Esse é mais um problema de insuficiência teórica, metodológica, epistemológica ou operativa para incorporar o enfoque de gênero como variável, como indicador, como “fotografia” mais aproximada em âmbitos que se mostram como pretendidamente neutros ou abstratos, mas que não o são em absoluto, como mostram os censos e estatísticas agrárias. Todo tipo de amostragem é elaborada com base em questionários de seleção de informação a ser coletada, pelo que também estão forGênero, desenvolvimento e território

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temente caracterizados por seus desenhos de instrumentos construídos baseados em fontes que representam o conjunto real de pessoas, insumos e energias valoradas no tempo e que implicam funcionamento e sustentação de um sistema produtivo agrário nacional. É necessário construir um marco conceitual que supere a mera extensão de um conhecimento construído sobre pilares androcentristas, abrangendo mais que uma mudança conceitual a camponesas, produtoras, chacareiras, empresárias rurais, de forma estendida, como geralmente ocorre quando o assunto é discutido em nível regional sobre o tema com propostas por ativistas e especialistas “de gênero”, assim como o eco das lideranças de movimentos e decisões estatais, especialmente na institucionalidade do Mercosul, que oferece uma ampla visão regional inapreciável para a observação comparativa e sistêmica. Isso é facilmente verificável na leitura sistematizada de documentos, estudos e legislação dos países da região, quando se aborda o tema “gênero” como se fosse equivalente a “mulher/es”, como essência da identidade feminina estereotipada, uniformizada, igualando todas as mulheres que habitam e produzem no meio rural, desconhecendo que nesse âmbito há mulheres com diferentes interesses, perspectivas e identidades e em distintos estratos socioagrários, e que por isso estão inseridas de forma também diferenciada na produção agrária. Que interesses e perspectivas comuns podem ter uma camponesa e uma produtora de uma grande escala produtiva? Ter órgãos sexuais femininos não torna idênticas as mulheres e muito menos uniformizam suas expectativas e interesses. Outro reforço à subalternação que é usada habitualmente é o reforço da identidade sexuada nas denominações das categorias ocupacionais e de status produtivo agrário no geral, quando se trata de mulheres, pondo-as como “mulher/es camponesa/s”, “mulher/es produtora/s”, mulher/es rurais”, reforDiálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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çando que o principal a ser tratado é a identidade sexuada, e em segundo plano a identidade ocupacional. Não ocorre o inverso, ou seja, tratando-se de homens não se utilizam as expressões homem/ns rural/is, homem camponês, homem produtor, homem assalariado etc.; nessa ordem de coisas, o masculino se identificaria como a norma (produtor, camponês, chacareiro etc.), e o feminino como a exceção a esta (GÁLVEZ, 2004, p. 77). No entanto, é incipiente a incorporação de matrizes de pensamento da economia institucionalista crítica e de outras correntes heterodoxas que superem o binômio teoria clássica/teoria marxista, em que se repartem influências as quais se correspondem nas ciências agrárias e nos estudos de desenvolvimento rural, compartilhando ambos sua resistência ao incorporar o enfoque de gênero em sua vertente epistemológica e metodológica. O fator comum entre os paradigmas liberais, neoliberais e marxistas – muito influentes na formação profissional agrária e sua projeção nas decisões e ações de funcionários/as e técnicos/as dos ministérios e instituições públicas agrárias – é que possuem um traço comum de não poder ver os desequilíbrios que originam as desigualdades e injustiças de gênero, os quais atravessam a toda a estrutura agrária nos sistemas produtivos agrários da região. Sua cegueira para a questão de gênero aprofunda o traço androcêntrico no reconhecimento dos atores agrários e de suas contribuições. Para Lourdes Beneria (2003), “a transformação é difícil por mexer com prejuízos fortemente instalados e desafiar formas arraigadas de gerar conhecimento, de teorizar e fazer ciência”. As políticas agropecuárias da história agrária contemporânea regional têm construído os homens dos meios rurais, especialmente aqueles descendentes da imigração europeia desde a segunda metade do século 19, como os atores agrários protagonistas, tendo por defeito a sua dependência em relação Gênero, desenvolvimento e território

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à sua localização nos núcleos familiares que subalterniza as mulheres rurais. Por fim, “o produtor e sua família” são a denominação usual nas normas e políticas agrárias dos países da região, obviamente subsumindo as mulheres à categoria de habitante das zonas rurais e integrante de núcleos familiares rurais e, em proporções bem minoritárias, reconhecendo-as somente por defeito como produtoras, camponesas, chacareiras ou empresárias rurais quando esse status não pode ser concebido, prima facie, a um homem do núcleo familiar ou empresarial.

CONCLUSÕES Que lições podem ser extraídas desses processos institucionais, políticos, econômicos e seu impacto na produção teórica que os expressa? A produção agrária nacional, seja voltada ao mercado interno ou externo, tem uma razão de ser primordial desde os tempos do neolítico superior: a alimentação humana. Sem consumo alimentício não existiria a atividade agrária, mesmo que nas últimas décadas cresça a sua utilização sucedânea com combustíveis alternativos como o biodiesel e o combustível à base de álcool de cana-de-açúcar na região do Mercosul. No entanto, a alimentação de milhões de pessoas não é um ato meramente privativo no interior das famílias, semelhante a um gesto amoroso cuja responsabilidade e exigência é geralmente esperável das mulheres na perspectiva da provisão e consumo; nem redutível à ação estatal de uma pasta ministerial na perspectiva da produção agroalimentícia; nem livre do jogo de forças do mercado em nenhuma de suas quatro fases: produção, distribuição, comercialização e consumo. A alimentação diária, permanente, ótima, saudável e de acordo com as pautas culinárias de cada lugar para milhões Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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de cidadãos em um espaço nacional ou regional – nesse caso, de mais de 300 milhões de pessoas, considerando o Mercosul ampliado – é a primeira condição material e cotidiana da existência de um país, já que se trata da existência biológica de sua população. E esse objetivo é primordial para a existência de um Estado e de um mercado. Em alguns momentos da história universal, onde se apresenta o paradoxo de que nunca se produziu tanto alimento com os avanços na produtividade e tolerância às adversidades climáticas graças à incorporação de avanços tecnológicos de terceira geração na atividade agrícola de grande parte do mundo, e também se verifica uma maior quantidade de seres humanos padecendo de déficits alimentares e importantes parcelas da população sofrendo de fome enquanto a dissenso se mantêm cifras mundiais espetaculares de produção agrícola (FAO, 2013), constata-se que os poderes públicos devem interferir nos desajustes que produzem as desigualdades em toda a cadeia, desde a produção agrária até o acesso à população. E todas as desigualdades produzem desequilíbrios. Contemplar desigualdades transversais como as de gênero é um vetor de muita importância por sua capacidade de atravessar vertical e horizontalmente regiões, estruturas e atividades. A visão neoliberal sobre a questão alimentícia se centra na ideia de “segurança alimentar” basicamente com estímulos monetários, de transferência tecnológica e de promoção fiscal aos agricultores pelas transferências estatais e em nível de ingresso da população consumidora em relação à estabilidade desejada dos preços dos alimentos, que também devem ser inócuos. As restrições para esse enfoque reducionista e neoclássico estariam dadas, fundamentalmente, pelo ingresso dos indivíduos, os preços das mercadorias e o tempo disponível. Essa visão própria dos organismos internacionais do multilateralismo, com ingerência nas políticas agrícolas dos países membros do Sistema de Nações Unidas, deixa de fora uma Gênero, desenvolvimento e território

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complexidade tão grande de fatores e de variáveis que demorou a ser contrastada precisamente desde as organizações rurais que representam os setores agrários subalternos até a chamada soberania alimentar. Nas palavras das organizações promotoras, A Soberania Alimentar defende o direito dos povos a

alimentos nutritivos e culturalmente adequados, aces-

síveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e o direito de decidir seu próprio sistema alimentar e produtivo. Situa os que produzem, distribuem e consumem alimentos no coração dos sistemas e das políticas

alimentares, acima das exigências dos mercados e das

empresas. Defende os interesses deles e inclui as futuras gerações. Oferece uma estratégia para resistir e desarticular o comércio livre e corporativo e o regime alimentar

atual, para englobar os sistemas alimentares, agrícolas,

pastoris e de pesca até sua gestão por produtores e produtoras locais. A Soberania Alimentar dá prioridade às

economias locais e aos mercados locais e nacionais, outorga o poder aos camponeses e à agricultura familiar,

à pesca artesanal e ao pastoreio tradicional e coloca a

produção alimentária, a distribuição e o consumo sobre a base de sustentabilidade ambiental, social e econômica. A Soberania Alimentar promove o comércio transpa-

rente, que garanta ingressos dignos para todos os povos, e direitos aos consumidores para controlar sua própria

alimentação e nutrição. Garante que os direitos de aces-

so e gestão da nossa terra, de nossos territórios, nossas

águas, nossas sementes, nosso gado e a biodiversidade estejam nas mãos daqueles que produzem alimentos. A Soberania Alimentar pressupõe novas relações sociais

livres de opressão e desigualdades entre os homens e Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento

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mulheres, povos, grupos étnicos, classes sociais e gerações.17

A soberania alimentária é uma ideia, um programa político e uma visão do desenvolvimento rural que gravita entre as organizações que representam os setores subalternos da agricultura da região e que participam plenamente da atividade institucional do Mercosul, mas não é uma visão desejável pelo resto das estruturas agrárias no caso nacional da região. No geral, os setores médio e grande da atividade rural seguem o agrobusiness como o modelo de produção agrária desejável, e as economias exportadoras como modelos nacionais de desenvolvimento econômico. Assim como se constata nos debates e políticas agrárias dos países da região, há uma sorte de desdobramentos da conotação “políticas agropecuárias”, como aquelas destinadas à melhoria da produtividade, da escala, da inovação tecnológica, da comercialização em grandes ciclos e da rentabilidade, em desdobramento com “políticas para o desenvolvimento rural” focadas no alívio da pobreza rural e subsistência de comunidades rurais carentes, comercialização assistida pelo Estado e de pequeno ciclo, pequena agricultura familiar, agroecológica e também incipientemente “juventudes” e “mulheres rurais”. Essa dupla lógica implica uma assimetria hierarquizada e é pertinente refletir, já que permite que enfoques como o de gênero se restrinjam à pobreza rural, como se as desigualdades entre homens e mulheres fossem só um problema verificável em setores subalternos e não estivessem presente nos setores médios e altos – mesmo se reconhecendo, em alguns casos, que o enfoque de gênero é transversal a toda a estrutura e atividade agrária e econômica no geral, mas põe a resguardo os setores 17 Excerto do Livre Presidente da Soberania Alimentar (CLSA) da Universidade Nacional de La Plata (UNLP). Disponível em: .

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médio e grande da agricultura de qualquer demanda pela igualdade, seja ela de gênero, etnia, territorialidade, sustentabilidade ecológica, sustentabilidade geracional, entre outras.

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