Qual crise? Normalidade e quebra sistémica na contemporaneidade 1

Share Embed


Descrição do Produto

Qual crise? Normalidade e quebra sistémica na contemporaneidade1

João de Pina Cabral Instituto de Ciências Sociais Universidade de Lisboa

Novembro 2009

De um ponto de vista antropológico é difícil compreender a chamada “crise financeira” a que assistimos como um fenómeno unicamente ligado ao mundo da economia e das finanças. Pelo contrário, se assumirmos uma perspectiva que presume que os fenómenos sociais só podem fazer sentido na medida em que são vistos relacionalmente, a actual crise financeira e económica, afinal, revela-se como o mero assinalar dos muitos processos de desestabilização e alteração sistémica a que temos vindo a assistir na nossa contemporaneidade. Urge, pois, perguntar: “qual crise?” Como se sabe, a palavra “crise” teve a sua origem nas práticas medicinais dos primórdios da Era Moderna para referir o momento de uma doença em que havia uma mudança súbita, geralmente decisiva, para o bem ou para o mal. Em suma, o conceito presume um processo de ruptura da normalidade ou de quebra sistémica. Mais ainda, presume que essa quebra é decisiva: isto é, para simplificar, que “ou cura ou mata”, como se dizia ainda

Texto apresentado no Workshop “Próximo futuro – Respostas à crise”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 12 e 13 de Novembro 2009.

1

há bem pouco tempo de muitas mesinhas. Por outras palavras, em matéria de crise, a saúde, o bem-estar, a vida normal é um pressuposto – isto é, como se costuma dizer em inglês, um background assumption. Acontece que, nos últimos dois séculos, a direcção da metáfora alterou-se, como qualquer dicionário histórico confirmará. Primeiro, falámos de crise na saúde das pessoas e, só depois, como metáfora, de crise na vida das instituições.

Hoje, porém, a metáfora

sociocêntrica tornou-se dominante e a maior parte das pessoas nem pode imaginar que a noção só se aplicava originalmente à saúde humana e nunca às instituições. Quer dizer, fizemos o conceito deslizar de uma aplicação à vida de pessoas individuais (vida essa irremediavelmente sujeita à morte) para uma aplicação à vida das instituições humanas (que, em princípio, não estão sujeitas da mesma forma a terminar abruptamente como os nossos corpos). Ao fazer isto, porém, esquecemo-nos que, no sociocultural, por oposição ao biológico, nada morre, tudo muda. Naturalizámos a noção de que há uma normalidade na vida das instituições que as torna sujeitas a crises – naturalizámos o social e, no caso da actual crise, pior ainda: naturalizámos as nossas background assumptions sobre a normalidade económica. Assim, dois tipos de perguntas imediatamente se levantam. Em primeiro lugar, a necessidade de nos questionarmos sobre que é que poderá estar a esconder-se por detrás do conceito de crise tal como ele se tem vindo a vulgarizar nos meios de comunicação de massa. Se, de facto, definicionalmente, só há crise por relação ao que não é crise – que é que estamos a assumir sobre a normalidade?

Ao procurarmos responder às perguntas sobre a crise,

portanto, teremos sempre que ter consciente que elas assumem que nós fazemos julgamentos sobre a normalidade. Para mim como leitor, este problema é muito patente no jornalismo financeiro especializado recente – já que tudo o que é escrito presume que o actual sistema financeiro global é, na essência, aquilo que tem que ser e que o que está em causa com esta “crise” é curar um desvio da normalidade. Só que, o que constitui essa normalidade nunca chega a ser explicitado e, por aí, passa muita matéria de decisões de cariz humano e político. A segunda grande pergunta que temos de fazer é a seguinte: se o conceito de crise é relacional, qual das crises que actualmente vivemos é a mais determinante ou a mais aguda a médio prazo – isto é, qual aquela que merece mais a nossa atenção? Nos velhos tempos

2

marxianos, quando todos mais ou menos assumíamos “a determinação em última instância do económico”, fazia sentido presumir que a crise económica é a que conta mais, porque as outras estão dela derivadas. Contudo, os tempos passaram e as nossas seguranças modernistas esvaneceram-se e creio que a maioria de vós não tem já a certeza sobre determinações de última instância que tantos de nós tínhamos ainda há uns vinte anos atrás. Resta-nos, pois, compreender que a pergunta sobre qual a crise contemporânea que é mais importante é menos uma questão de observação empírica ou, como se dizia, objectiva e, nos dias que passam, é mais abertamente uma pergunta de valor. Quer dizer, em princípio, como tantas outras, essa é uma pergunta para a resposta da qual temos que tomar em conta com a perspectiva de quem a pergunta. Surge, portanto, um curioso problema de ponto de vista, já que a oposição crise/normalidade convoca inevitavelmente a noção de interesse – isto é, de investimento sobre o mundo. Crise/normalidade para quem? Temos de nos perguntar, portanto, sobre a natureza da primeira pessoa do plural que inevitavelmente emerge deste tipo de discursos. Para simplificar a teia da argumentação: a natureza da minha posição de sujeito afecta o significado que eu possa dar à minha apreciação do mundo em que vivo e à forma como a comunico a vós que me ouvis quando tento endereçar o que eu acho que deve ser normal – isto é, o que é desejável ou indesejável; o que é “bem” ou “mal”, como se dizia no século XVI falando de crises febris. Estamos todos imersos em universos estratificados de crescente abrangência identitária que tendem a alargar-se até atingir a humanidade e, mesmo para além dela, todos os seres que têm sentimentos. Mais ainda, algumas dessas pluralidades em que me insiro cruzam-se em complexos desenhos de sobreposição de interesses.

Não só a identificação do que é a

principal crise tem a ver com a perspectiva que é assumida, como a própria compreensão do que é crise de tal depende. Acontece que, como acima sugerido, as nossas identificações não são unitárias – os nossos interesses são todos limitados por outros interesses.

Realizamos um processo

constante de negociação valorativa de perspectivas. Nessa medida, creio que vale a pena identificar à partida que, por relação ao que eu tenciono dizer, duas perspectivas principais me parecem impor-se. Elas contrastam-se ao mesmo tempo que se conjugam. Por um lado, está

3

claro, a perspectiva humana global impõe-se, tanto mais que hoje em dia vivemos num mundo globalizado de forma premente e quase instantânea. Por outro lado, quando discutimos fenómenos de ordem global, a outra perspectiva que me parece impor-se é o facto de sermos membros de uma elite urbana moderna num país relativamente próspero mas que se situa nas margens económicas do chamado “mundo desenvolvido”. Não optei por definir a questão a partir da nacionalidade portuguesa porque, precisamente, creio que estamos perante uma discussão em que o facto de eu ser catalão, português, brasileiro ou australiano não muda muito a questão. Em suma, a questão da crise apresenta-se-nos na negociação de duas perspectivas absorventes: uma, o melhoramento da nossa condição humana; dois, a nossa condição de elite subalterna num mundo financeira e culturalmente globalizado. Ora, de facto, o conceito de “crise” que tem dominado os debates públicos é caracteristicamente cesurista na sua formulação: quer dizer, ele enfoca uma instância particular de quebra sistémica, atribuindo-lhe maior valor explicativo e, assim, silenciando outras. Na minha comunicação, portanto, por um lado, quero enfatizar que a crise financeira que vivemos não pode ser vista em separado de outros processos de quebra sistémica a que assistimos na contemporaneidade; por outro, quero sublinhar que o discurso de crise esconde um pressuposto de normalidade e o consequente pressuposto de que o futuro será desejavelmente igual ao presente (uma vez “ultrapassada a crise”, como se costuma dizer). Assim, sustento que, a nível global e visto numa perspectiva mais abrangente, o futuro não se desenha realisticamente como parecido com o presente e esta “crise” não aponta unicamente para um desregulamento passageiro do mercado financeiro mas sim para uma alteração mais profunda na ordem global. Um amigo catalão (Ignasi Terrades) escreveu anos atrás um ensaio sobre uma personagem totalmente desconhecida – Eliza Kendall.

Chamou-lhe uma “antibiografia”

porque, diz ele, não estava a escrever sobre a vida dessa jovem escocesa, mas sobre a impossibilidade da vida dela. Foi encontrá-la escondida numa nota de rodapé de um livro de Friedrich Engels onde este a usou para ilustrar como, em certas circunstâncias, a vida de uma pessoa se torna humanamente insustentável.

4

A jovem Eliza Kendall tornou-se momentaneamente conhecida na Escócia da sua época por se ter suicidado, saltando de uma ponte, quando perdeu o emprego na fábrica onde trabalhava.

Para ela, a miséria a que estaria votada a partir desse momento teria sido

incompatível com a sua ideia de si mesma enquanto uma “boa rapariga cristã” – possivelmente a única saída imediata para se sustentar seria a adopção de um qualquer tipo de actividade, tal como a prostituição ou a mendicidade, que lhe era moralmente inaceitável. A sua opção, portanto, foi interromper a vida. A pequena notícia que saiu nos jornais da época preocupou alguns espíritos mais trabalhistas tais como Engels, mas logo o suicídio da pobre rapariga foi esquecido por todos. O próprio Engels não nos deixa mais do que uma curta nota de rodapé. A razão porque Terrades reanima a pobre Eliza é que Engels a usa para exemplificar o facto de que é quando um sistema deixa de funcionar que nós podemos perceber o que é que o fazia funcionar antes. Ao suicidar-se, Eliza tinha ilustrado quais os limites para além dos quais era impossível levar uma pessoa naquele contexto social – ela demonstrava a existência de uma “crise”. No início da década de 90, face à queda do Muro de Berlim, cujos vinte anos acabamos de celebrar, e ainda à revolução informática, muitos chegaram a pensar que teríamos entrado num círculo virtuoso que permitiria uma nova negociação da ordem global no sentido de uma maior humanização e que crises como aquela perante a qual Eliza se tinha encontrado nos meados do século XIX poderiam ter chegado ao fim. Afinal, esse sonho perdeu-se. Caiu o muro em Berlim, mas montou-se outro entre Israel e a Palestina e outro entre o México e a restante América do Norte e ainda outro que é, afinal, o Mediterrâneo. Vale a pena, de facto, referir aqui mais um aniversário recente: há pouco menos de um mês comemoraram-se os dez anos do aparecimento do primeiro cadáver que deu à costa nas Ilhas Canárias – um jovem africano morto durante o esforço desesperado de chegar ao emprego, de poder ganhar a vida honradamente. Acontece que, infelizmente, nem sequer o fim do ciclo político neo-liberal nos EUA, anunciado pela surpreendente vitória de Barack Obama, nos pode dar muita esperança. Não há como esquecer que, para além do aniversário da queda do Muro de Berlim, estamos agora também a celebrar um outro aniversário, também ele prenhe de significado: há duas semanas

5

fez precisamente 80 anos que ocorreu o crash bolsista de 1929 em Wall Street. Ora, hoje, estamos outra vez no meio de mais uma “crise” financeira global. Nos últimos meses, e apesar de só agora começarmos a sair dessa nova e gravíssima crise, verificámos que, mais uma vez, não serviram para nada as lições do passado; no rescaldo da crise financeira não foram tomadas quaisquer das medidas que todos unanimemente consideram necessárias para controlar no futuro a ganância desenfreada do grande capital internacional. Os comentadores financeiros falam a uma só voz: evitou-se, de facto, o colapso do sistema financeiro mundial mas nada de essencial foi mudado. Aliás, ainda a crise estava a revelar-se e já se tornava por demais evidente que, nos financeiros, não havia como confiar. A sua ganância é verdadeiramente suicidária – a primeira reacção dos banqueiros de Wall Street às tentativas do governo americano de impedir o colapso financeiro que eles tinham ocasionado foi distribuir em salários descomunais e em dividendos chorudos o dinheiro que lhes estava a ser entregue e que iria ter que ser pago pelos restantes cidadãos – se bem que, nesse contexto, podemos legitimamente perguntar-nos se o conceito de cidadania chega sequer a fazer sentido. A noção de que pudessem ter-se preocupado em tentar impedir os previsíveis despedimentos em massa que, entretanto, sobrevieram parece-lhes até irracional. Para nós, pelo contrário, meros mortais que vivemos naquilo que eles chamam com suspeita “a economia real”, o que se revela incompreensível é a fé que eles afirmam ter nesse tal Mercado com M maiúsculo que é suposto controlar inconscientemente os interesses deles para o bem de todos nós. Para dar só um exemplo de como a paralisia perante a ganância desmedida é quase total, ainda este mês, foi publicitado pelos principais jornais económicos que as práticas corruptas e chantagistas do sector dos cartões de crédito nos EUA não foram sequer minimamente coarctadas nem há previsão de que venham a ser. Ao mesmo tempo, parece ser possível adivinhar uma incapacidade, por parte da maior economia do mundo, de se re-estruturar internamente. Situações de crescente descalabro da coisa pública como as que estamos a assistir em estados americanos como a Califórnia, parecem ter passado para além da simples cura. Mais ainda, nem a situação político-militar no Médio Oriente promete resolver-se a curto prazo, nem a invasão do Afeganistão promete

6

aproximar-se de uma qualquer solução satisfatória num futuro previsível. E mais: como resultado da guerra no Iraque, o endividamento nacional americano atingiu níveis que nunca anteriormente tinham sido sequer imagináveis. Torna-se claro que, a médio prazo, novos agentes se afirmarão na cena internacional cujas intenções não são já formuladas em termos imperiais – como era o projecto político anglo-americano pós-Segunda Guerra Mundial – mas novamente em termos nacionais. Estou a pensar em actores como a União Europeia, a Rússia, a China, a Índia ou o Brasil. Quem profetizava há uns anos o fim das lógicas nacionalistas em nome do transnacionalismo ou do cosmopolitanismo estava a ver mal a coisa. Seria até possível para alguns ver com bons olhos a dissolução do poder do mediador imperial que dirigiu solitariamente a ordem mundial nos últimos vinte anos. No entanto, é fácil perceber que existem também fortes perigos nas alternativas. Como exemplo temos aí o comportamento das novas elites russas nas suas antigas áreas de influência colonial ou das renovadas elites chineses nas suas fronteiras que, tais como as dos russos, não são só geográficas como também étnicas (isto é, raciais, religiosas e culturais). Mais ainda, os meios de informação mais fidedignos asseguram-nos que há uma transformação do conflito afegão numa narco-guerra (em muito semelhante à que assistimos aterrados há anos na Colômbia, no México ou no Rio de Janeiro). Tal mostra bem como o nosso mundo, afinal, é mais integrado do que parecia e que os problemas do proibicionismo não se resolvem com uma atitude só um pouco menos absurda face ao consumo da canabis – como felizmente é a linha de acção do novo governo dos Estados Unidos. Considero especialmente dramático aquilo para que Eliza Kendall nos alertava quando saltou da ponte na Escócia dos finais do século XIX: a crise contemporânea que constitui a crescente dificuldade posta a um vastíssimo número de seres humanos em todo o mundo de ganhar a vida decentemente como resultado do engajamento em formas formais de trabalho. Quero dizer, parece-me (a mim pelo menos) que seria importante lutar contra o desemprego estrutural de longo prazo e a crescente utilização das fronteiras nacionais para manipular o acesso ao emprego transformando-o num bem raro – é isso, afinal, que o conceito de “migração económica” serve para esconder. Outros poderão falar de forma mais informada

7

sobre os efeitos da deslocalização do emprego e do recurso a mão-de-obra clandestina ou semi-clandestina como forma de erodir os direitos estabelecidos dos trabalhadores. Nada disto é novo ou sequer ignorado por seja quem for. À luz do que sabemos hoje, tanto de um ponto de vista demográfico como de um ponto de vista ambiental, não é racional pensar que possa existir uma alternativa às formas de vida urbanas que caracterizam crescentemente a contemporaneidade. Não haverá também nunca mais uma alternativa para uma vida humana minimamente satisfatória fora da sociedade de consumo, pois não há caminhos para trás na história humana e a nossa dependência da técnica veio para ficar.

Sabendo isso, temos que nos tornar conscientes de como o

desemprego estrutural de longo prazo tem efeitos especialmente desumanizantes. Não há alternativas de fuga: nunca mais haverá margem para a exploração espontânea do meio ambiente em economias de subsistência. Mais ainda, o desemprego estrutural de longo prazo é acompanhado por processos de marginalização de partes inteiras da população com efeitos muito deletérios sobre os níveis gerais de escolaridade e, mediada mas directamente, sobre o futuro sucesso económico relativo na ordem global dos países em causa. Confrontados com estes três aniversários: o da queda do Muro de Berlim – que nos lembra que a Segunda Guerra Mundial só acabou com o fim da Guerra Fria; o da Grande Depressão – que nos lembra que, estando nós mais uma vez a viver uma grave depressão económica, nada voltou a ser feito no sentido de proteger os seres humanos da rapina do grande capital; e o do pobre rapazito que terá sido atirado morto às ondas pelos seus companheiros num barco à deriva após ter sucumbido à inanição nessa grande aventura africana de chegar ao trabalho … face a esses três monumentos, por assim dizer, que observações se nos impõem? Se a nossa perspectiva de interesse for, por um lado, o da condição humana e, por outro, a de pessoas modernas relativamente subalternas dentro da ordem global, penso que podemos identificar três eixos principais por relação aos quais a actual situação mundial se apresenta como crisogénica: isto é, como pondo em causa a sustentação do sistema social e cultural que valoramos.

8

Em primeiro lugar, existe uma crise ambiental – isto é, hoje em dia está em causa a sobrevivência do mundo material que tem sustentado a espécie humana e que tem permitido uma constante melhoria nas condições de vida de populações como a nossa. Sobre esta crise muito se tem falado e, apesar de pouco se ter feito, há muito quem disso se preocupe. Já quanto ao segundo ponto que identifico a partir desta minha dupla perspectiva valorativa tem-se falado muito menos ultimamente. O tema parece ter mesmo saído de moda apesar das guerras urbanas nas grandes metrópoles não terem diminuído e de guerras que se apresentavam à partida como sendo de natureza religiosa ou política terem derivado para narco-guerras – tal como na Colômbia, onde acabamos de assistir a um ressurgimento militar americano nas últimas semanas ou no Afeganistão. Sugiro, pois, que a segunda grande crise que estamos a viver a nível global é uma crise de violência, particularmente de violência focalizada nos centros metropolitanos onde vive hoje a maioria da humanidade e onde viverá no futuro uma ainda maior percentagem. Esta crise está ligada a três fenómenos principais que se conjugam: (i) o negócio internacional estatalmente protegido mas teoricamente clandestino de armas de pequeno e médio porte, (ii) o proibicionismo que sustenta o negócio das drogas e da escravatura sexual e (iii) a exploração militar do radicalismo religioso. Não me compete aqui prolongar-me sobre estas questões. Penso, no entanto, ser necessário explicitar alguns aspectos, de forma a pôr de lado alguns dos preconceitos que, normalmente, tornam a discussão destas questões improcedente. Pior ainda, esses mesmos preconceitos impedem-nos de ver como todos estes aspectos estão, de facto, interligados. A primeira questão a limpar da mesa é retirar o ónus do argumento da coisa proibida – seja ela uma “droga” ou um tipo de actividade sexual. Pelo contrário, parece ser necessário focar sobre a forma como a suposta proibição dá azo a processos de erosão institucional a nível urbano, a nível internacional e a nível humano global. De facto, há que estabelecer dois aspectos em particular: o primeiro é que “droga” é uma categoria que reúne uma série de substâncias que, para além da proibição, nada de comum têm entre si que as identifique face a outras substâncias consumíveis. Este argumento tem sido feito com muito detalhe há muito tempo, pelo que não penso que mereça grande desenvolvimento aqui.

Ele é, contudo,

9

relevante para que compreendamos que a discussão não tem nada a ver com as características intrínsecas dos produtos proibidos mas sim com a suposta proibição. O segundo aspecto a estabelecer – e mais uma vez trata-se de um lugar comum e amplamente reconhecido – é que a proibição veiculada pelos poderes imperiais angloamericanos por todo o mundo no último meio século, em nada tem impedido o acesso quotidiano a estas substâncias ou aos serviços sexuais mediados por prostituição. Quer dizer, trata-se de uma criminalização e não de uma proibição strictu sensu, já que só se pode falar em proibição na medida em que seja possível proibir. Ora isso, tanto na questão da prostituição como das supostas “drogas”, tem sido espectacularmente impossível de realizar; ao ponto de ser o próprio Presidente do México que se vê obrigado a vir a público explicar que, se não houvesse um tão vastíssimo mercado para “droga” nos Estados Unidos, o México não estaria hoje no que, em termos reais, é uma espécie de guerra civil com terríveis efeitos de destruição económica e de sofrimento humano. Curiosamente, só sentiu que podia fazê-lo após a eleição de Barack Obama para a presidência norte-americana. O erro central aqui, na minha opinião, é a polarização da questão no gesto modernista de acreditar que é possível proibir. Esse erro está patentemente visível nos editais que, na semana passada, o Estado de São Paulo, dedicava à questão. Havia um artigo a favor da proibição, dizendo que, se não se proibir, as pessoas vão consumir, o que é mau para elas e, logo de seguida, havia um outro artigo dizendo que não se devia proibir porque os efeitos são profundamente perversos em termos de violência civil. Essa polarização em torno ao suposto da proibição em nada tem ajudado a melhorar a situação. Trata-se, tipicamente, de uma falácia do tudo-ou-nada. Sumariando, o erro está em presumir que o acesso a substâncias altamente tóxicas e eventualmente perturbantes para o estado de espírito das pessoas possa ser (a) simplesmente proibido ou (b) simplesmente permitido. Já sabemos há muito tempo que nem a proibição do consumo, nem da produção, nem do comércio destas substâncias são de alguma forma exequíveis. Mas, por outro lado, sabemos também que a tecnologia moderna é de tal forma complexa e os seus efeitos de tal forma violentos que urge guiar os modos de consumo dos cidadãos de maneira a protegê-los. Se é assim com o urânio, a aspirina, os automóveis, o jogo

10

em casinos, o álcool e o tabaco ou, em certos países (e está mais que provado que são países onde a vida urbana é muito mais fácil e agradável), com o uso de armas de fogo; porque é que não há-de ser com o comércio do sexo ou o acesso à canabis, às substâncias opiácias ou ao ecstasy? A mesma atitude, porém, devia ser assumida para toda uma gama de formas de afirmação pessoal que necessitam de ser geridas mais do que proibidas – tais como tradições religiosas, regionais ou étnicas que possam chocar outras religiões, regiões ou sensibilidades étnicas. Se o que se passa no Rio de Janeiro, na Colômbia, no México, no Afeganistão ou no Paquistão fossem questões de ordem local, nós que, aqui em Portugal, não nos sentimos muito afectados pelo flagelo, podíamos até tratar de tentar geri-lo localmente com CATs ou com campanhas de outreach, como aliás se tem vindo a fazer com tanto sucesso entre nós. O problema, porém, liga-se com o comércio das armas de pequeno e médio porte e com a forma humanisticamente trágica como populações inteiras têm sido sujeitas a violência militar quotidiana, a insegurança civil e ao colapso dos estados que seriam os únicos garantes dos seus direitos como cidadãos. Mais ainda, é essa mesma proibição que, impedindo o regulamento e policiamento das formas de comércio sexual, tem dado azo a algumas das situações mais graves de escravatura na contemporaneidade. Parece-me, pois, importante perceber que a filosofia dominante do tudo-ou-nada proibicionista que sustenta a violência urbana um pouco por todo o mundo é uma das mais graves crises da contemporaneidade. A terceira grande crise, então, é aquela que nos levou a reunirmo-nos aqui: a crise nas instituições de regulamento económico e financeiro de cariz global. Para ela somos alertados pelo rapazito que, há dez anos a esta parte, foi deitado ao mar pelos seus colegas por não ter podido sobreviver ao sofrimento da navegação de alto mar em barcos de pequeno porte ou pelo salto para o rio de Eliza Kendall. Quando nos recusarmos a ver que o que está em causa é um fenómeno de ordem global, que acompanha a total gobalização do mercado financeiro e a liberalização das formas de exploração da mão-de-obra, estamos simplesmente a fugir ao evidente. Nenhum mercado com M grande jamais contralará, como jamais controlou, o deslize silencioso do empreendedorismo na exploração desumana. Tal como com as drogas ou os meios poderosos da técnica moderna (carros, armas, remédios), nenhum mundo humano futuro pode sustentar a sua humanidade se não houverem instâncias de negociação dos direitos

11

de todos nós. A construção de instâncias políticas explicitamente globais de protecção dos nossos interesses comuns é condição incontornável da sobrevivência da humanidade assim como da valoração da nossa diversidade mútua. Face aos dislates das duas Guerras Mundiais no início do século passado, muitas pessoas perceberam que era necessário contemplar o mundo como uma unidade política e ultrapassar os interesses sectários que criavam espaço para as piores violências à nossa humanidade comum. Durante os anos 80 e 90, falsos profetas levaram uma geração inteira a pretender que os seus interesses privados seriam, afinal, os interesses comuns de toda a humanidade. A falsidade de tal egoísmo foi finalmente revelada, mais uma vez. Vivemos hoje, outra vez, num mundo onde as crises ambiental, da violência e das finanças nos mostram bem que é necessário voltar à mesa de trabalho com a finalidade de reconstruir explicitamente um discurso ecumenista que nos proteja mutuamente uns dos outros e que permita alguma salvaguarda política para a nossa humanidade que é, afinal, crescentemente global. A concepção multiculturalista do mundo, como quebrado em universos ontológicos estanques e não comunicantes (com todas as implicações políticas de uma tal visão), não só é incorrecta como é profundamente perversa. Queiramos ou não, os nossos mundos humanos são intercomunicantes e, como insiste correctamente Johannes Fabian, somos crescentemente coevos uns dos outros. A linguagem unitarista do sociocentrismo modernista dividia os humanos em sociedades e culturas que eram supostas bastarem-se a si mesmas. Essa visão, porém, tem que ser abandonada face ao que se passa no nosso mundo actual e também face ao que, cada vez mais, sabemos sobre o passado. Os seres humanos vivem sim dentro de espaços contínuos de intercomunicação humana – mas não em espaços fechados. Em vez de falarmos de sociedades e culturas unitárias, talvez possamos começar a inventar uma linguagem do estilo da que Tolkien usa na sua ficção quando fala do middle-earth ou que os gregos usavam quando falavam em oikômene – o espaço de interacção humana. Nos dias que correm não existe uma ecumene, existem ecumenes dentro de ecumenes, porque não existem fronteiras à comunicação humana do tipo que era constituído pelos oceanos Atlântico ou Pacífico nas eras anteriores à Moderna. O nosso mundo é uma ecumene de ecumenes – um network of networks, como lhe chama Ulf

12

Hannerz – por muito que, no seu interior, sejam identificáveis outras ecumenes; isto é, espaços de maior densidade humana. Nestes vinte anos desde a queda do Muro de Berlim, observámos o colapso do discurso ecumenista – tanto o religioso como o político – por obra e graça de uma série de radicais particularistas. Tanto às mãos de Ratzinger e Bin Laden como de Dick Cheney e os economistas neoliberais, fomos obrigados a assistir de mãos baixadas à destruição e deslegitimação dos esforços de constituição das pontes de entendimento humano de cariz global que tinham caracterizado a resposta horrorizada aos horrores da Segunda Guerra Mundial. As últimas duas décadas da humanidade foram lideradas por uma geração que não entendeu que há riscos que não devem ser corridos – uma geração que se desinteressou do facto de que há limites para a robustez do mundo e da humanidade. Hoje, volta a ser possível simpatizar com o sentimento que movia os homens que quiseram reconstruir o mundo após as duas horríveis Guerras Mundiais. Como cientistas do social, temos que fazer a nossa parte e trabalhar no sentido de reconstruir os instrumentos intelectuais que nos permitam comunicar esse projecto. Para tal, há que alertar que, mais do que uma simples crise financeira, estamos perante um complexo processo de crise civilizacional.

Referências Terradas, Ignasi (1992) Eliza Kendal. Reflexiones sobre una antibiografia. Bellaterra, Universidad Autónoma de Barcelona. Pina Cabral, João de (2005) “Aprender a representar: a democracia como prática local” in

Novos Estudos CEBRAP 71, São Paulo, pp. 145-162.

13

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.