Qual é o jogo? Um inventário dos discursos sobre a estrutura socioeconômica da Campanha rio-grandense (resenha do livro de Marco Antônio Medeiros da Silva)

May 26, 2017 | Autor: Rafael Lapuente | Categoria: Historia Regional, História do Rio Grande do Sul, Historia Política
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SILVA, Marco Antônio Medeiros da. QUAL É O JOGO? UM INVENTÁRIO DOS DISCURSOS SOBRE A ESTRUTURA SOCIOECONÔMICA DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE. Porto Alegre: FCM Editora, 2014. 175p. Rafael Saraiva Lapuente

“A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado”. A frase, de Marc Bloch (2001: 65), não está no livro de Marco Antônio Medeiros da Silva. Contudo, se enquadraria perfeitamente em sua análise sobre o declínio daquela que foi a principal força econômica do Rio Grande do Sul no século XIX e nas primeiras décadas do XX. E mantendo, ainda hoje, não apenas força econômica, mas, também, política. Se, atualmente, o Rio Grande do Sul passa por aquela que pode ser considerada como uma das maiores crises econômicas de sua história, essa estagnação passa, também, por um processo histórico de esgotamento da matriz produtiva gaúcha, que foi por muito tempo baseada na produção da região da Campanha. É isso que nos mostra o livro Qual é o Jogo? Um inventário dos discursos sobre a estrutura socioeconômica da campanha rio-grandense, publicado em 2014 pela FCM Editora, uma revisão de sua dissertação de mestrado, defendida na PUCRS. Seu trabalho foi estruturado em sete capítulos de desenvolvimento. A principal menção ao trabalho aqui resenhado, e que não deixa de ser um elogio, é por ele contribuir com a proposição de alternativas para a recuperação da economia sulina em geral e, em particular, da região da Campanha. Também traz novas visões acerca da origem desta estagnação, contrapondo com a bibliografia clássica. Se outros trabalhos, nos anos 19801, já mostravam o declínio da Campanha riograndense2 desde o final do século XIX, destacando que a principal matriz econômica do estado, naquele momento, já dava sinais de obsolescência perante seus concorrentes platinos, o pioneirismo de Marco Antônio Medeiros da Silva se dá por inverter a lógica

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Consulte, entre outros, Pesavento (1980a; 1980b) e Fonseca (1983). “Campanha rio-grandense” é entendida aqui como uma subdivisão territorial do Rio Grande do Sul que abarca, entre outros, os municípios de Uruguaiana, Bagé, Alegrete, Dom Pedrito, Quaraí e Santana do Livramento, sendo uma região fronteiriça ao Uruguai. 2

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QUAL É O JOGO? UM INVENTÁRIO DOS DISCURSOS SOBRE A ESTRUTURA SOCIOECONÔMICA DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE destes trabalhos. Isto é, procurando responder a seguinte pergunta: quais as causas históricas que levaram aos problemas atuais de esvaziamento da região do Pampa riograndense? Além disso, o autor levanta possíveis soluções para a reversão deste problema. Para tal, Silva busca traçar, desde o século XIX, qual foi o perfil da região e de sua matriz econômica, chegando até a análise da atual conjuntura da região. Ele se baseou em dois eixos de apoio: no discurso dos estancieiros e dos sindicatos de classe patronal. Assim, procurou compreender quais argumentos eram utilizados por aqueles que possuíam e representavam os meios de produção na região. Também usou, como fonte de pesquisa, matérias publicadas tanto em periódicos sobre a questão agrária, bem como por meio dos debates realizados no principal veículo de rádio do estado. No capítulo dois, o ponto de partida do autor é procurar entender os aspectos históricos da ocupação e estrutura fundiária da Campanha. Medeiros da Silva é bastante minucioso neste capítulo ao detalhar este processo, subdividindo o texto na análise sobre a construção da tradição e cultura por meio daquela região. O autor valeu-se do fato de que o regionalismo gaúcho se dá, justamente, pela caracterização e estrutura de uma estância. Além disso, analisa o processo de ocupação da terra, o esboço de um traçado geográfico da região e os efeitos da ação humana ao longo do tempo, fechando o capítulo com uma breve análise comparativa com a região da Serra, localizada ao norte do estado. Esse traçado com a zona serrana leva em conta o fato de que a atividade econômica, a ocupação territorial e a força política foram bastante distintas daquelas notadas na Campanha. O autor, dando indícios daquilo que seria um dos fios-condutores de seu trabalho, no capítulo seguinte, Alguns aspectos da questão socioeconômica, começa a demonstrar que, na realidade, o que levou a Campanha a estagnação foi, entre outros fatores, a continuidade da bovinocultura de corte sem métodos que aumentassem a produtividade por hectare. Ou seja, o índice de produção só subia com o incremento de mais terra e gado, traço de um latifundiário pouco empreendedor e empresarial. Parte disso é extraído, por Silva, do clássico de Jean Roche (1969). No trecho, Roche diz: “há, no Rio Grande do Sul, dois grandes sistemas para enriquecer: o primeiro é ter uma estância em bons campos e administrá-la bem; o segundo em possuir uma estância em maus campos e administrá-la mal”.

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RAFAEL SARAIVA LAPUENTE Mencionando um pecuarista, Délio Assis Brasil, fica claro o pouco interesse em técnicas modernizantes. Especialmente, quando Assis Brasil cita que, até a década de 1980, as margens de lucro eram grandes, permitindo ineficiências, distorções e até administrar a distância. Contudo, o pecuarista admite que a situação se alterou com a redução da margem de lucro nos últimos anos. Dentre a diversidade de questões levantadas no capítulo 3, certamente o dado que mais chama a atenção é a comparação feita com a Nova Zelândia. Isso porque, assim como no Rio Grande do Sul, aquele país é dotado de clima semelhante ao gaúcho e produz cerca de mil quilos por hectare ao ano. Já no Rio Grande do Sul, os dados apontam para 75 quilos por hectare ao ano, os mesmos do século XIX. Isso explicaria a falta de oportunidade da região, que teria “expulsado” cerca de 60 mil pessoas entre 2000 e 2007. Algo que não era novidade, pois o autor demonstra que nos anos 1950 o Rio Grande do Sul já era o estado que mais fornecia emigrante e que menos brasileiros recebia. O tratamento do tema nos meios de comunicação é analisado no capítulo quatro. O tom crítico com a grande mídia é evidente já na primeira frase. Silva afirma que “chama a atenção o silêncio no discurso da imprensa sobre a estrutura fundiária e produtiva gaúcha” (SILVA, 2014: 89), destacando que os índices de produtividade jamais foram debatidos em perspectiva comparada com índices internacionais. Assim como nem se questiona a prática de arrendamento de terra, que onera a produção. A unidade encontrada, na análise discursiva de pecuaristas e entidades que representam o setor foi a da desqualificação do outro. Isto é, daqueles que se opunham a este setor ou que criticavam o papel dos estanceiros nesta conjuntura. Ilustrativo disto é a fala de um presidente de sindicato patronal. Em um debate promovido na Rádio Gaúcha, maior veículo do setor no Rio Grande do Sul, foi taxativo ao afirmar que o problema da produção na Campanha era “da porteira para fora” (SILVA, 2014: 100). O que o autor pode concluir, por meio de uma série de entrevistas na Rádio Gaúcha, foi a terceirização das entidades patronais ao estado pela estagnação da Campanha. Como consequência, a isenção dos grupos patronais, não assumindo para si nenhuma parcela de culpa. No entanto, infelizmente o autor não se ateve a comparar com outros veículos de comunicação. Isso, certamente, traria um contraponto mais enriquecedor para este capítulo.

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QUAL É O JOGO? UM INVENTÁRIO DOS DISCURSOS SOBRE A ESTRUTURA SOCIOECONÔMICA DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE Por mais que o título do capítulo seja “a questão agrária em alguns meios de comunicação”, na prática, a análise se deu apenas em um: a Rádio Gaúcha3. O capítulo cinco é, talvez, o mais interessante do livro. Isso porque o autor faz seu relato pessoal sobre entrevistas que realizou pessoalmente com estanceiros e especialistas. Um deles, professor-doutor em Zootecnia, confirmava as hipóteses do autor que, na entrevista, afirmava que o perfil do estancieiro não era empresarial. Além disso, o latifundiário era relutante em admitir que havia problemas “da estância para dentro”. Para o professor, o Rio Grande do Sul teria condições de atingir índices de produtividade similares aos dos países líderes no setor da bovinocultura. Isso porque dispõe de conhecimento técnico e condições naturais até mesmo melhores do que, por exemplo, a Nova Zelândia, sendo as pastagens da Campanha uma das melhores do mundo. Mantida, ironicamente, justamente pelo “conservadorismo” do estancieiro, que evitou com que, na região, houvesse uma produção mais intensiva. Isso protegeu a Campanha de uma ação agressiva ao meio ambiente. Já nas entrevistas com os estancieiros, a descrição da experiência do autor pela região é muito minuciosa. Ele visitou in locu as estâncias na Campanha, mencionando e analisando não apenas as entrevistas, mas, também, o local de visita e suas impressões. O autor, no entanto, não encontrou distinções significativas daquilo que veio traçando nos capítulos anteriores. Um ponto positivo deste traçado é que ele, encontrando uma estância que destoava daquilo que o trabalho chegou à conclusão de que era a “regra” entre os latifúndios da Campanha, acabou merecendo um tópico a parte. Com o título “as exceções que confirmam a regra”, ele mostra que, naquele caso em específico, o estancieiro tinha uma produção de 273 kg/ha – muito acima dos 75 kg/ha de média no Rio Grande do Sul. Este empresário não só participava em grupos de estudos sobre a genética animal, como possuía um alto número de peões empregados (o dobro da média), entre outros pontos. A isso, o autor chama a atenção pelo aspecto empresarial encontrado em sua pesquisa de campo. Isto é, um “modelo” bastante raro de se encontrar na Campanha gaúcha.

3 Conversei com o autor sobre isso. Sua justificativa é o fato de que a Rádio Gaúcha era a estação de maior audiência naquele momento. Claro que, no trabalho, ele utiliza de outras fontes. Mas no capítulo, acabou focando apenas nesta rádio.

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RAFAEL SARAIVA LAPUENTE O capítulo que antecede a conclusão é o mais curto dentre todos do livro. O título dele induz o leitor a pensar ser este o supra sumo da obra, isso por ser homônimo ao livro. Nele, inicia constatando a divergência entre o discurso hegemônico, representado pelo sindicato patronal (FARSUL), que ia na contramão de vários discursos historiográficos, sociopolíticos, de técnicos e intelectuais que defendem mudanças mais radicais na estrutura produtiva da pecuária. Mas afirma que estes últimos estão restritos a poucas instituições, não possuindo o mesmo espaço que aqueles possuem na mídia, nem a mesma influência política (SILVA, 2014: 131). A tônica principal levantada por este conflito concerniu no movimento “Vistoria Zero”. Ele ocorreu devido ao projeto do INCRA, que previa analisar a estrutura fundiária gaúcha, visando fazer um levantamento das famílias atendidas pela Reforma Agrária e mapear áreas produtivas (ou não), identificando aquelas passíveis de desapropriação por não atingir os índices estabelecidos pelo órgão fiscalizador. Essa questão esteve muito presente nos jornais, como o autor aponta. Em uma delas, ele analisa o uso “sutil” dos latifundiários contra a vistoria, como uma faixa publicada no maior jornal do Rio Grande do Sul. Nela, o INCRA era acusado de ser ligado ao MST. Também explorava imagens que aguçavam o tradicionalismo, como a de um homem “defendendo” sua terra a cavalo no meio do campo com bandeiras do estado. No entanto, a omissão do principal é notado pelo autor: a falta de abordagem do tema índices de produtividade do campo, o que acabava soando como uma manifestação do tradicionalismo contra o INCRA. O espaço cedido pelo periódico é ressaltado. Silva menciona a presença de um retângulo em uma das páginas, destacando os títulos dos cartazes levados no protesto patronal, quase todos associando o INCRA ao MST. Neste capítulo, também, há uma breve análise da comissão do INCRA, e o estudo do discurso ecologista, que teve pouca penetração nestes debates. Silva acaba concluindo com um desfecho a respeito do Método Voisin, defendido desde a introdução pelo autor como uma possível saída para a melhoria da produtividade kg/ha, consistindo especialmente no pastejo rotativo. Constatando, portanto, a obsolescência do modelo produtivo presente hoje, que é, segundo o autor, ainda muito semelhante daquele do século XIX, Marco Antônio Medeiros da Silva contribui com uma obra importante. Seu livro suscita questões atuais e importantes, sobretudo, para um estado que vê sua economia estrangulada e com poucos

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QUAL É O JOGO? UM INVENTÁRIO DOS DISCURSOS SOBRE A ESTRUTURA SOCIOECONÔMICA DA CAMPANHA RIO-GRANDENSE projetos de reversão desta conjuntura. Um dado que o autor traz ainda na introdução, e que pode servir como guisa de conclusão, é um estudo da Coordenação e Planejamento do Rio Grande do Sul. Neste, o órgão conclui que, pela matriz insumo-consumo, a adição de R$ 1,00 à cadeia agropecuária teria como resultado o retorno de R$ 1,37 no PIB do estado. Isto é, um retorno de quase 40%. Um dado bastante provocador para se pensar alternativas à economia gaúcha. Aliás, a maior contribuição do livro é essa: provocar o debate para este tema no Rio Grande do Sul e apontar possíveis soluções. Sem abandonar, no caso, a perspectiva histórica para se compreender como a Campanha rio-grandense chegou ao declínio. Marco Antônio Medeiros da Silva demonstra que há alternativas para a recuperação da produção pecuária sulina.

Bibliografia BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. São Paulo: Zahar, 2001. FONSECA, Pedro C. D. RS: economia e conflitos políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. PESAVENTO, Sandra J. RS: a economia e o poder nos anos 1930. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980a. Idem. República Velha Gaúcha: charqueadas, frigoríficos, criadores. São Paulo: Movimento, 1980b. ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora do Globo, 1969, v. I e II. SILVA, Marco A. M. da. Qual é o jogo? Um inventário dos discursos sobre a estrutura socioeconômica da campanha rio-grandense. Porto Alegre: FCM Editora, 2014.

Data de recebimento: 05/05/2016 Data de aceite: 28/07/2016

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