\"Qual nossa única reivindicação?\" - representatividade e cruzamentos políticos para uma \'criminologia 2.0\'

June 6, 2017 | Autor: Gabriel Divan | Categoria: Direito Penal, Movimentos sociais, Criminología Crítica, Esquerda
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PANÓPTICA “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’1 Gabriel Antinolfi Divan 2 Recebido em 1.10.2015 Aprovado em 17.11.2015

1. Considerações iniciais A primeira metade da década de 2010 foi inegavelmente marcante do ponto de vista político-social global, sumamente pela eclosão de uma série de eventos que simbolizaram (e seguem simbolizando) tanto alterações drásticas em algumas agendas das gestões políticas quanto retomadas de pleitos paradoxalmente complexos em sua simplicidade. Poder-se-ia dizer que a quadra de protestos políticos com a (ou o retorno da) consequente tática de ocupação de espaços públicos e a propagação de notícias e narrativas, mormente sobre a consequente resistência dos descontentes (ou seu ‘triunfo’ ou mesmo ‘derrocada’ – conforme tenham sido as demandas e suas consequências projetadas), não são novidade no cardápio de elementos que compõem o embate entre reivindicações e expectativas sociais das atuações (mormente estatais) no campo político. Há algo, porém, que emerge com um certo frescor e difere esse conjunto de eventos independentes entre si, mas interconectados, de outros (antigos e/ou recentes) tipos de manifestações populares relativas à seara de pleitos (sumamente de descontentamento) políticos.

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O presente trabalho foi elaborado para ser base da apresentação como comunicação oral no II Encontro Brasileiro de Criminologia Crítica, na Faculdade de Direito de Vitória-ES, em Julho do corrente ano. Dele, posteriormente, como parte da mesma pesquisa, decorreu a participação no Grupo de Trabalho “Sistema Penal, Controle Social e Sustentabilidade” em meio ao 2º Seminário Internacional Direito, Democracia e Sustentabilidade, promovido pela Faculdade Meridional - IMED, em Passo Fundo-RS. 2 Gabriel Antinolfi Divan. Advogado e pesquisador. Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pós-Graduado (Especialização) em Ciências Penais, pela mesma universidade. Atualmente exerce o cargo de Professor Adjunto da Universidade de Passo Fundo - RS (UPF), credenciado como professor do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Direito - Mestrado, ministrando a disciplina "Estado de Direito e Sistemas de Justiça" e ministrando, na graduação, disciplinas de Processo Penal e Criminologia. Lidera o Grupo de Pesquisa 'Reclame as Ruas: Direito, Política e Sociedade", certificado junto ao CnPQ. E-mail: [email protected]. DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA Cumpre pensar, aliás, com apuro, não apenas na forma e nas motivações epidérmicas dos eventos em cada local de eclosão, mas, especialmente, nesse liame, nesses aspectos de interconexão entre eles. Entretanto, as primeiras aproximações, análises e estudos relativos aos eventos que aqui serão mencionados em destaque mostraram que as tentativas de pauta simplista dos mesmos foram retumbantemente fracassadas, na medida em que se recusaram a visualizar uma abertura ou ponto de corte para novos prismas. Senão que procuraram - com insistência pueril - tratar de catalogar os fatos dentre esquemas e antigas ferramentas teórico-políticas de análise. É incontestável que, afora a dissonância de temáticas, contextos, questões legislativas, econômicas, sociais e mesmo culturais, em si, Cairo, Madrid, Nova Iorque, Istambul (entre o segundo semestre de 2010 e 2012), e dezenas de metrópoles brasileiras nos idos de Junho e Julho de 2013 experimentaram o mesmo que, de forma pulverizada, populações de Grécia e Islândia nos últimos anos têm vivido no que tange à esfera pública e aos atinentes debates políticos nela travados. E a questão passa por várias formas e estratégias de manifesto de insatisfação com igualmente vários (muitos, inclusive, acumulados) aspectos do que é ofertado em termos de ‘soluções’ advindas dos discursos e práticas políticas ‘tradicionais’. O estupor dos atores da politics partidária foi, por isso, semelhante e estéril como o de alguns apressados intelectuais públicos que buscaram em vão as rédeas filosóficas e políticas do fenômeno: menos uma tentativa de captar os elementos em jogo e mais um desespero em domesticá-los dentre parâmetros clássicos que oferecessem pontos interpretativos tranquilizantes. Onde alguns anteviram uma simples nova leva de insatisfações pronta para ser remediada com os mecanismos de sempre – que, aliás, tornariam a questão afogada em um ranço cíclico, em última análise – outros puderam perceber que havia uma notável possibilidade de ponto de partida para o escape ou a voluntária negação a um cenário que combina elementos do desastre capitalista diuturno (justamente aqueles que são ostentados como seus grandes troféus e/ou como efeitos colaterais cogentemente toleráveis e tolerados), com traços redivivos de um discurso de uma certa esquerda que ideologicamente já viu a falência múltipla ao tentar impor seus méritos como fachada para pesadas contradições ideológicas. DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA Diante de fantoches e teorizações sobre o “fim da história” – que vaticinam, a fórceps, que o liberal-contratualismo é a ideia ‘vencedora’ na trajetória humanidade, sendo o território sagrado da verdadeira ‘democracia’ - alardeados, decaídos e sempre prontos para se reerguer no imaginário bizarro do capital e do mal disfarçado domínio privado/economicista dos interesses públicos, não há mais como negacear o acachapante ‘fim’ justamente desse caricato “fim da história” exposto por Zizek (2012, p. 17): ao praticar cotidianamente a versão mais cruel e mais (numericamente) perfeita do capitalismo, o governo ‘comunista’ chinês simplesmente escancara de forma crua e sem polidez que a democracia em verdade nunca esteve tão a perigo – e tão à mercê. Perceber o liberal-contratualismo encarnado em predominância do capital como o desaguadouro final e ‘glorioso’ da história é um misto de engodo com ilusão servil aos arautos, além de traço de arrogância tola, típica, desvelada por Nietzsche quando ironiza os modernos e sua autoproclamada insígnia de “últimos homens” (1947, p. 28). Não se pode apregoar uma teleologia da história (AVELAR, 2014, p. 31) sem estar comprometido político-ideologicamente (tal Francis Fukuyama) e/ou ser credulamente arbitrário (e não simplesmente ingênuo). É um ato de engajamento e vontade dar o “peso da eternidade” para todas as imperfeições do presente (SAFATLE, 2012, p. 47), e não uma constatação historiográfica. É fatal que a teoria crítica do direito como a conhecemos sempre esteve ligada à crítica sócio-política de viés marxista – dada, inclusive a própria inspiração em se (tentar) amalgamar na episteme jurídica um viés de teoria crítica frankfurtiana e sua leitura dos vários espectros do establishment (sobretudo o cultural). Uma teoria crítica do direito (COELHO, 1987, pp. 93-99) tem em sua verve a tradição da crítica ao Direito como aparelho reprodutor de poder e por isso – tal a crítica da sociedade elaborada pela Escola de Frankfurt – reproduz conceitos marxistas (ainda que não se possa dizer que se trata simplesmente de uma transposição integral de Marx para a epistemologia jurídica). Isso (a influência do pensamento “de esquerda”), por exemplo, se faz uma constante mesmo em tradições díspares como o caráter de leftism que permeava os critical legal studies estadunidenses enquanto característica associada à crítica política na aplicação da lei (MANGABEIRA UNGER, 1986, pp. 9-10) e também, de forma sensível (até pelo momento histórico vivenciado então: a ressaca da ditadura militar golpista), o direito alternativo DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA brasileiro a partir da década de 1980 (Cf. CARVALHO, A.B., 1988) – juntamente com as premissas do “direito achado na rua”, expressão de Roberto Lyra Filho que sintetiza toda uma corrente de pensamento e visão jurídica crítica posteriormente aglutinadas em núcleo e linhas de pesquisa na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (as dimensões e influência do “direito achado na rua” são difíceis de ser sintetizadas, mas reflexões tanto introdutórias quanto atualizações e um balanço dessa escola de pensamento, em curso, podem ser lidas em SOUSA JUNIOR, 2011). Sumamente, a crítica jurídico-penal criminológica, por óbvio, sempre se assentou na busca por justiça social (em sentido amplo), fazendo frente aos elementos seletivos e classistas do poder de punir estatal, e nos evidentes desdobramentos desses: elitismo, racismo, e, especialmente, o desnível de bens jurídicos e da clientela visados pelas agências e instrumentos legais, nas criminalizações primárias e secundárias – que para ZAFFARONI, ALAGIA, SLOKAR (2002, pp. 7-9) são efeito de uma eleição mais consciente do que se gostaria de supor. Tanto que os conceitos se confundem na transição da(s) criminologia(s) do autor/delinquente para aquela(s) relativas à reação social (BARATTA, 2002, pp. 112-113): a new criminology (TAYLOR, WALTON, YOUNG, 1990, p. 287) e/ou a criminologia radical na visão de Juarez Cirino dos Santos (afora, logicamente, diferenças estruturais em relação, pode-se pensar, à própria época em que as teses foram concebidas inicialmente Cf. CIRINO DOS SANTOS, 2006, pp. 17-21) têm em seu núcleo destacadamente a incursão de parte da tese marxista no que diz respeito à luta de classes e seus efeitos colaterais, de forma que é difícil classificar com exatidão o que na ‘nova’ criminologia não era simplesmente o leftism transformado em estandarte. Ou seja: a criminologia crítica (aqui, estudada e considerada enquanto parcela de imponente relevância no discurso que poderia ser classificado como a apreciação criminológica de uma teoria – jurídica - crítica) sempre se fortaleceu em uma pauta/agenda de bases eminentemente políticas. Se a maioria elementos ensejadores da crítica em si não desapareceram, o que justifica a criminologia em assim permanecer e manter suas bases tradicionais em larga escala, não se pode, por outro lado, buscar inteiramente resguardo nas dicotomias tradicionais da política como se elas tanto fossem imutáveis como se fossem perenes e não-cambiáveis em seus próprios termos. Enquanto espaço e arma do (ou de um DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA discurso de) contrapoder, a criminologia crítica busca (ou deve buscar) reprogramar as bases onde esse poder se reproduz, na mesma toada em que é preciso reprogramar a política e suas agências (CASTELLS, 2012, pp. 33-34). Prudente, assim, que se busque identificar o quanto o discurso criminológico não precisa igualmente se aparelhar para que não prossiga insistindo puramente em velhas fórmulas – não obstante o fato de que alguns de seus discursos, de fato, se reprisem insistentemente, porque a realidade assim lamentavelmente o impõe, dado o pequeno índice de alterações significativas em alguns elementos e desdobramentos descritos ao longo dos tempos. Mormente em um sistema e em um país como o Brasil, onde a situação de classe e competição social é desde sua base engendrada em mecanismos que ou negam freneticamente sua existência, ou a trabalham em um sentido virtuoso: mito da desigualdade que estimula e não assassina (veja-se as considerações de ALVES e GARCIA, 2001, pp. 6-8, a partir do estudo do conceito de “ralé” no pensamento de Jessé de Souza). Como pode essa nova/velha forma de demandar publicamente, de protestar politicamente, de se posicionar republicanamente influenciar (se é que pode) o discurso criminológico? Que tipo de novas pautas devem necessariamente ser englobadas pela criminologia crítica – se de fato o devem ser? Haveria condição de se desenhar linhas gerais de uma nova criminologia crítica na esteira de uma nova política? É o que se procurará abordar, infra. 2. É de fato possível ‘definir’ uma política 2.0? Decorrências políticas anti-ditatoriais na Cidade do Cairo; demandas laicizadoras da gestão pública em Istambul; protestos contra a recessão, políticas de austeridade (e a transferência de seus ‘custos’ para os menos favorecidos), na Espanha, Grécia e Islândia (sobre o caso islandês, especialmente, análises profícuas de CASTELLS, 2012, pp. 47-57); protestos contra o domínio do grande capital (gerador de distúrbios de distribuição de renda) no quarteirão que funciona como coração do sistema financeiro ocidental na ilha de Manhattan. Protestos contra aumentos abusivos das passagens de ônibus em São Paulo e contra a ausência de qualquer transparência nas licitações relativa à exploração dos serviços de transporte público em Porto Alegre (Cf. SECCO, 2013). DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA A lista poderia prosseguir: não infindável, mas extensa demais para ser escrutinada por inteiro aqui. Alguns dos exemplos de manifestações listadas carregam entre si estopins diversos – e principalmente desfechos ou desenvolvimentos díspares. Basta lembrar que a derrocada ditatorial de Hosni Mubarak, no Egito, como efeito direto dos protestos cognominados então de “Primavera Árabe”, teve como subsequência a ascensão de um poder teocrático-islâmico que, ao ocupar maioria das vagas parlamentares nos pleitos pós-ditadura, elegeu ato contínuo um presidente (Mohammed Morsi – Partido da Liberdade e da Justiça), e tentou uma coalizão para a elaboração e validação via referendo de uma nova Constituição de ares repressores. Mantida a instabilidade política juntamente com o descontentamento popular, mais um arremedo de golpe civil-militar: instadas por parte da população, as forças armadas obrigaram à deposição de Morsi e ‘suspenderam’ a então nova Constituição. Percebe-se que a lógica contra a qual os ocupantes da praça Tahrir se insurgiram corajosamente se manteve acesa, não obstante as trocas de cargos e cadeiras parlamentares e executivas. Por outro lado, na Espanha e na Grécia, por exemplo, tanto a socialdemocracia de centro esquerda quanto a direita de moldes e siglas tradicionais acompanham com estupor o cenário pós-protestos de 2011 e 2012, e a ascensão de popularidade de agremiações e coletivosplataformas políticas compromissados com a auto referida renovação das demandas e policies, bem como do próprio corpo de parlamentares e gestores, tais como o Podemos e a Barcelona em Comú (essa última, que logrou êxito recente com Ada Colau na disputa pela prefeitura de Barcelona). No caso grego, o Syriza (coalizão de movimentos de esquerda radical) obteve no corrente ano a maioria das cadeiras do parlamento helênico e a consequente posse do primeiro ministro Alexis Tsipras com plataforma (ao menos em teoria inicial) diretamente oposta à da austeridade econômica imposta pela União Europeia. Três coisas parecem constantes nas dinâmicas dos vários acontecimentos, e duas delas tem a ver com os eventos em si: a) a radicalização da forma mais simples e primal de manifestação pública/política, que é a tomada (física) de espaços públicos por multidões que preferem gritar palavras de ordem e ostentar slogans do que se fazer valer exclusivamente da representatividade política estruturada (ou orquestrada) para defender suas demandas, e b) a conectividade (preferencialmente internética e sumamente através de alertas e postagens em DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA redes sociais ou ferramentas similares), tanto para a organização rizomática dos eventos, encontros e pautas (ou mesmo dos slogans aglutinados em hashtags), quanto para a distribuição e o pedido de apoio remoto – quando os eventos podem atingir visualmente, ao vivo, várias partes do planeta ao mesmo tempo em que (novamente em cena as hashtags) pleitos e protestos locais ganham a solidariedade (ainda que superficial) de todo planeta. Aliás,

o

papel

da

interação

internética

(tanto

efetivamente

quanto

simbólico/paradigmaticamente falando) que ao mesmo tempo sintetiza e permite, de fato, o alcance discursivo e a conexão (literal ou metafórica) ajuda a batizar e conceituar a verve dessa série de movimentos e pleitos: muitos tem classificado as novas formas de interação rizomática de ativismo utilizando o epíteto de “2.0” para falar de uma nova seara política já impassível de classificação entre os clássicos esquemas e que procuraria distância consciente de algumas idiossincrasias habitantes das oposições tradicionais (por todos, Cf. COCCO; ALBAGLI, 2012). Fala-se de um mundo de interações sociais e políticas que – vivenciados a partir da hiperconectividade internética – passam a ter esse grau de horizontalidade na construção de conceitos como premissa inegociável e imprescindível. Igualmente o numeral indica (bem como na nova fase da internet a partir da massificação de conexões, inclusão digital e novas plataformas de conjugação) a superação de um modelo inicial (tanto literalmente de programação e uso das ferramentas internéticas quanto das práticas e modelos de ativismo e comunicação políticas anteriores). O terceiro elemento é fruto da análise crítica (e por vezes rançosa) dos eventos em questão e diz respeito às várias sentenças que apontam para a suposta ‘inconsistência’ ou ‘vazio’ de demandas legítimas - ou mesmo identificáveis – de alguns dos movimentos em foco. Uma das constantes em jogo é a corriqueira ‘constatação’ de que os eventos estariam ‘viralizando’ (ou se disseminando por tendência cultural ou modismo), mas que não trariam em seu bojo a possibilidade crível de câmbios efetivos se não tivesse uma listagem de demandas planificada. Tome-se por base o Occupy Wall Street, que levou milhares de pessoas a, em meados de 2011, acampar ‘irregularmente’ em uma praça pública (Zuccotti Park) nos arredores do distrito financeiro que catalisa os investimentos nas Bolsas de Valores especulativas mais significativas do mundo, para protestar genericamente contra a desigualdade social e a associação entre a política estadunidense e os interesses do grande capital. A revista Adbusters em sua linha DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA editorial e seus articulistas de um modo geral atuaram como pedra de toque e disseminadores iniciais do #OWS (uma das hashtags que permearam das redes sociais indicando postagens e informações temáticas ligadas ao evento), inclusive elaborando cartazes que incitavam a ‘ocupação’ trazendo alusões imagéticas (como a bailarina dançando sobre o lombo da estátua do touro que se localiza em Wall Street – entre outros ‘protestos gráficos’ que podem ser vistos ao longo da obra/coletânea “Meme Wars” – LASN et. al, 2012) e a tagline “what is our one demand?”, que procurava tanto sintetizar quanto generalizar a reivindicação essencial de desatrelar a política estadunidense dos interesses exclusivos das instituições financeiras (CASTELLS, 2012, pp. 160-161). O caráter genérico aludido pode ser facilmente compreendido em relação a uma recusa (ou princípio de) igualmente genérica à participação em um jogo – sendo que muitas das análises desesperadas pró-establishment (e não apenas reacionárias ou conservadoras) faziam a acusação de que só havia um horizonte possível de discussão e esse não previa o boicote ao jogo, mas sim a mera contradita a algumas de suas regras (ZIZEK, 2013, pp. 104-105). Por incapacidade total em perceber a simplicidade e a paradoxal grandiosidade da demanda mais básica, ou por visível má-fé, muitos analistas suscitaram que o ‘movimento’ (se é que assim se pode chamar) não existia de fato. No entanto, Castells (2012, p. 147), Avelar (2014, pp. 31-36; 91-96), Safatle (2012, pp. 45-55) e Davis (2012, pp. 39-43) – entre tantos outros – conseguiram captar que a análise minimizadora na verdade oculta em si mais uma tentativa de justaposição ou contra-ataque desnorteado do que incredulidade em si. A ‘demanda’ primal (one demand) só não foi compreendida por quem deliberadamente não quis aceitar seu caráter radical e nuclear: os estamentos da democracia em sua forma e desenvolvimentos atuais estão sufocados por interesses e deliberações que, ao cabo, dizem sempre o mesmo e geram vantagens sempre aos mesmos, em macro escala. Fazer uma opção por não perceber um momento de profunda crise do caráter ficcional do panorama democrático como o conhecemos (ou como nos acostumamos a aceita-lo passivamente) e pensar em uma oportunidade a partir disso é desonestidade pura e simples. Contudo, não parece desonesta (por mais que ausente de timing) a errônea premissa que congela no tempo aparelhos teóricos (tais como o marxismo e o liberalismo clássicos) e crê neles fonte de soluções utilizáveis para toda e qualquer problemática. DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA Nesse ponto, um corte interessante se verifica na esquerda brasileira, corte esse que, nesse aspecto, teve seu ápice em Junho de 2013: a primeira leva brasileira de movimentos e protestos de rua desse naipe (nos moldes: ocupação de espaço público, pluralidade de demandas, negação genérica da ‘representatividade’ do sistema político, uso horizontalizante das plataforma internéticas, repercussão plurilocal através das redes sociais, etc.) escancarou as contradições há muito notáveis. De um lado um partido de tendência técnica e originariamente socialista que, no exercício do governo federal há mais de dez anos, já dava sinais de que suas nuances incômodas de realpolitik seriam cada vez mais bruscamente substituídas por acordos e concessões que visavam a instituição no poder e o ‘governismo’ puro e simples: isso levou à união em alguns casos - e à indiferenciação, em outros – com o que seriam agendas públicas de partidos e atores de centro ou mesmo de direita (movimentação de neutralização do debate político e tentativa de domesticação do próprio conceito de esquerda, bastante criticados por, entre outros, SAFATLE, 2013, pp 14-16). De outro lado, uma ‘nova’ leva de movimentos sociais, agremiações e coletivos que – unidos à esquerda mais radical e clássica nesse contexto – pugnavam por retomadas e por implementos verdadeiramente contra paradigmáticos por parte do poder. Enquanto a oposição de direita procurava tomar para si o flanco aberto pela insatisfação popular (o que de certa forma conseguiu em 2015 com uma série de protestos públicos contra o Governo Federal, mas que pouco detinham de espontaneidade e muito exibiam de um conservadorismo redigitado em relação aos eventos aqui estudados), o discurso governista procurava desmontar alguns setores e discursos críticos se arvorando na condição de (suposta) legitimidade ‘de esquerda’, e enfocando os discursos críticos na mesma ‘ausência de plausibilidade’ e ‘falta de razoabilidade’ que já atingiram os eventos anteriores em outros países. O corte – e suas consequências – são chocantes: se, logicamente, muitos dos novos opositores de esquerda simplificam sua demanda contra a realpolitik farsante que procura dar nome de pragmatismo à adesão ‘conciliadora’ e ao dito ‘governismo’ com pleitos de retorno ou retomada dos termos antológicos do marxismo, outros acabaram por fundir as bases do que podemos (admitidamente de forma apressada) chamar de ‘nova esquerda’.

DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA Elementos que fazem demandas socioculturais ganharem relevo notável (‘surgindo’ ou ‘ressurgindo’ em alguns casos) e se coloquem ao lado da questão da exploração do trabalho pelo capital como a base de reformas que se quer ver: emancipação feminina, combate ao preconceito (sobretudo nos quesitos de etnia ou orientação sexual), valorização das demandas oriundas de movimentos sociais e extraídas da sociedade civil em si, modificação das metodologias de representação legislativa, alteração dos eixos de democracia e legislatura para que se promovam (ou se possam promover) mudanças estruturais necessárias, maior abertura de mecanismos afiliados à ideia de democracia direta (como consultas populares e participativas) e, fundamentalmente, as noções de economias solidária e/ou colaborativa, reflexo da grande plataforma/método que reside no quesito horizontal. A democracia exercida no âmbito da estrutura política que se tem hoje é a glorificação (de certa forma, hobbesiana) da premissa de que, mais do que racionalizadas, as demandas sociais devem ser ‘filtradas’, quando não explicitamente ‘contidas’. E o paradigma da horizontalidade pode ser uma inversão interessante de ser estudada, para a construção de alicerces para um discurso criminológico-crítico que considere essas premissas. 3. “...Não me representa...” – horizontalidade e discurso criminológico Uma injeção de horizontalidade parece ser um dos antídotos, senão corretos, ao menos plausíveis para aplacar parte do cerne da crise: a oxigenação da ‘nova política’ passa ou deve passar a olhar para os lados mais do que para um polo superior gerador de vaticínios. O nível da ‘desordem’ que o paradigma da horizontalidade pode causar nas mecânicas políticas tradicionais pode ser mensurado na forma como, segundo Castells (2012, p. 133) os meios de comunicação ficaram “loucos” com a falta de perspectiva de uma liderança individual ou colegiada que “respondesse” pelos atos dos indignados das praças espanholas: não havia uma demanda estritamente unívoca emanada por algum tipo de junta de comando ou presidente/condutor específico. Episódios como esses se reproduziram em larga escala pelo mundo (e também no Brasil): a falta de condições de verticalizar estritamente um movimento gera inclusive incompreensões por parte de órgãos oficiais como a Polícia ou o Ministério Público que não tem exatamente quem ‘citar’ (judicialmente) ou mesmo ‘prender’ na condição de ‘chefe’ ou ‘porta voz’ oficial. DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA Se parece difícil passar a adotar irrestritamente no cenário organizacional da política atual uma horizontalidade em todo seu cerne e simplesmente abandonar a lógica representativa vertical, é fato que rescaldos da (ao menos) valorização da horizontalidade são passíveis de adoção. E igualmente seu caráter de câmbio verdadeiro na estrutura pode ser medido pelo assombro que causa a proposta. O bloqueio a todo e qualquer tipo de modificação no establishment e o ardor desse próprio bloqueio parece denotar o caminho correto no qual as demandas se encontram: a resposta negativa, do Congresso e de parte da opinião pública mais conservadora a – por exemplo – um Decreto como o de n. 8.243/14 (que visava instituir a Política Nacional de Participação Social e o consequente Sistema Nacional de Participação Social) parece dar o tom do desafio a ser enfrentado. Como salienta Corralo (2015, pp. 301-303), a constante mutação e recuperação do próprio conceito de democracia não poderia, senão, ser abertura franqueada para um incremento da participação popular e social nas agendas e demandas político-legislativas, mormente numa década onde o principal “grito de guerra” de muitos manifestantes em diversas áreas e temáticas é o de que (o sistema estatal-jurídico-legal e seus mecanismos e atores atuais) “...não me representam”. Mais do que um brado usual contra um foco específico, a ‘nova política’ (que na realidade muito tem de resgate dos alicerces ‘políticos’ e ‘democráticos’ mais básicos, nesse quesito) parece mirar um câmbio nas proposituras do próprio sistema. E eis porque sua difícil compreensão (por alguns) e a ríspida rejeição (por outros). O desafio aqui é pensar como esse giro pode colaborar, e no que ele carrega acessoriamente os discursos e pautas criminológicas. E parece claro que (1) o combate ao verticalismo ensimesmado sempre foi uma bandeira tradicional da criminologia crítica (desde o próprio questionamento das estruturas básicas de poder criminalizador); (2) a horizontalidade (enquanto conceito) sempre esteve na berlinda dada a multiplicidade de análises (mormente sociais e antropológicas) que se pode fazer do fenômeno criminal e dos contra discursos que desse panorama advêm, negando o monismo legalista estatal na análise do crime e suas circunstâncias. O que não é tão claro, mas que não é menos lógico, é que (3) podemos pensar o brado da “ausência de representação” como algo a ser aglutinado no cerne da criminologia crítica: se considerada a carência ou déficit de DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA horizontalidade e excesso de verticalidade abrupta enquanto modus operante do sistema jurídico-penal – fazendo com que as penalizações e (raras) descriminalizações sejam fruto não de discursos e contextos sócio-políticos, mas sim de alarmes reacionários e midiáticos, as plataformas dos “indignados” das ruas e praças por “democracia real” e por falta de “representatividade” estão em jogo. A luta por “democracia real” também é uma luta criminológico-crítica no instante em que a temática da contenção do poder punitivo se alicerça em muitos casos em um esquema que busca uma efetiva democratização ‘material’ dos sistemas operacionais sociais e no barômetro da atividade/retração do sistema punitivo. Seja no mister da ‘luta de classes’ quando se cobra medidas atinentes à “esquerda punitiva” e o atingimento de classes privilegiadas pelo espectro criminal, seja como bandeira, por vezes de reconhecimento quando se pugna pela criminalização de homo e demais fobias preconceituosas, seja no clássico discurso de contexto social e econômico para denunciar uma criminalização injusta. Se existem pessoas que são atingidas de forma desigual e sobretudo violenta pelo sistema jurídico-penal, a questão da democracia direta é mais do que nunca atinente: a questão é a de cada vez menos efetividade de “representação” por um sistema que, em larga monta, já nasceu (e não simplesmente se tornou) ‘falido’. Talvez a função da criminologia crítica tenha encontrado um nome agregador e uma bandeira definitiva: a luta contra o desvario vertical e o baixo índice verdadeiramente democrático da democracia (formal) que rege o núcleo do sistema. Do ponto de vista da identidade das pautas, os – na definição utilizada por Carvalho (2015, pp. 69 e seguintes) – novos movimentos sociais (referindo acertadamente, com esse termo, ainda que impreciso, os movimentos que tomaram impulso no Brasil desde a segunda metade da prmeira década deste século), além de trazerem alguns standards criminológicos (como é evidente no caso da luta pela descriminalização da venda e consumo da cannabis sativa e seus derivados na “Marcha da Maconha”), ajudam a oxigenar algumas das demandas e ainda por cima situar linhas de frente em pontos que não são exatamente principais no menu do discurso criminológico: A “Massa Critica”, por exemplo, evento/movimento horizontal por excelência pode parecer à primeira vista uma reunião de entusiastas indiretamente voltada à causa ecológica DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA quando promove “engarrafamentos” planejados em grandes centros urbanos pela aglomeração de ciclistas nas vias públicas. A tarefa e a premissa aqui passam longe de apenas promover o uso da bicicleta enquanto meio de transporte: o questionamento do uso coerente e mais democrático dos espaços públicos é não apenas um elemento estudado criminologicamente desde a Escola de Chicago (Cf. TANGERINO, 2007, p. 157) como é uma das mais candentes questões de debate político-criminal. Obras clássicas de referência em urbanismo acabam adentrando e retroalimentando a discussão criminológica sobre vigilância, cerceamento, contato social, convívio – vida em sociedade, em última análise (Cf. JACOBS, 2011; CALDEIRA, 2000). Com esse caldo teórico-prático, a pauta se presta tanto a um questionamento social e filosófico da vida contemporânea em si (e uma postura crítica frente ao seu amorfismo – Cf. CARLSSON, 2014, pp. 168-171) quanto a um discurso que também identifica na criminalização e na ampliação da esfera punitiva (e suas formas escamoteadas) inimigos comuns materializados na própria forma determinada com a qual culturalmente somos levados a pensar a comunidade (ou a falta de) e o estilo de vida. Ao questionar os dogmas centrais conservadores ou a mitologia branca do estilo de vida tido por ‘natural’, os discursos dos novos movimentos sociais introduzem vida nova ao próprio linguajar criminológico: há sensíveis questões político-criminais unidas nesse tipo de prática e é visível que a “ocupação do espaço público” (CASTELLS, 2012, p. 168) traz temas relevantes: em uma sociedade onde a questão do espaço é cada vez mais sitiada por privatizações, os vários prismas de confinamentos reverberam e é também contra isso que se luta – contra o total cerceamento e a total coordenação do ‘eventual’ (BAUMAN, 1999, p. 51): após controlar (abstratamente) a política, alguns querem predispor (abstratamente) qual o nível de encontro e qual o nível de acaso estão ‘permitidos’. Não é à toa que o grande mote do discurso da Prefeitura de Nova Iorque contra o movimento de hortelões urbanos (que plantava hortas e pomares comunitários e de colheita e uso gratuitos em terrenos urbanos abandonados) não foi exclusivamente de combate ao uso popular de áreas alvo de especulação imobiliária: segundo Carlsson (2014, pp. 123-124), havia um combate mais profundo, ideológico, ali. Na década em que Rudolph Giuliani popularizou a odiosa política criminal de tolerância zero e onde discursos de broken windows afloraram, a antipatia gerada com os hortelões era (também) de cunho político engajado. Em um primeiro DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA momento poder-se-ia pensar que a questão era a ira contra aqueles que pretendiam dar destinação comunal a lotes de áreas que poderiam ser exploradas economicamente por grandes empreiteiros, em uma associação óbvia com a finalidade lucrativa dos terrenos. Mas os hortelões representavam algo a mais, nas entrelinhas. Sua ousadia: resgatar um senso comunitário de “uso público” (e gratuito) dos espaços urbanos e tentar implodir a lógica de trabalho-produção-mercado

que

redunda

em

aquisição-consumo-lucro

que

sustenta

ideologicamente o grande capital estadunidense desde o ponto de vista político e filosófico liberal-contratualista. A esquematização de ação economicista somada aos dogmas dos “empresários morais” e ao aparato repressor administrativo gera influxos das mais variadas ordens. O contra-ataque precisa seguir na mesma linha. Se a mesma ideologia – posta em prática pelos mesmos atores – se bota em combate tanto aos discursos humanistas em matéria penal quanto à ótica comunitária e de ocupação do espaço público, é possível perceber que há aqui mais do que uma reles coincidência. Há uma identidade de lógicas que uma mesma fonte material (grandes players do capital no primeiro mundo) e um mesmo discurso e plataforma querem combater, por talvez serem oriundas (ou almejarem) fatores e objetivos identificados. Nunca a criminologia crítica teve tanto a tarefa de escolher um lado e aqui uma extrema politização da criminologia crítica parece drástica. Porém, mais do que agendas de esquerda (ou elementos assim considerados), a criminologia crítica pode se encontrar em um horizonte ainda mais radical (de raiz): a pauta da democratização, da horizontalidade e da denúncia de baixa ou ausente representatividade democrática. Afinal, é mais do que necessário ideologizar, tanto o panorama criminológico quanto a visão que se tem do sistema penal, como forma de expor e principalmente combater a falácia propagada de sua não-ideologização e seus recursos e consequências nocivas (DIVAN, 2015, p. 509) Não parece mais possível concordar com o fato de que a criminologia crítica pode se dar ao luxo de definir seu teto na propositura de pautas e denúncias ao(s) modelo(s) vigente(s) sem qualquer compromisso de formular absolutamente nada de concreto. Em que pese haja, sim, legitimidade (e necessidade) de se estabelecer academicamente miradas possíveis (ou não) e questões relativas ao estado da arte da pesquisa, é desperdiçar potencial fazer criminologia que não se pretenda política (criminal) futura. E isso não significa limitar a criminologia crítica a DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA uma fábrica ou simples geradora de propostas legais, mas sim admitir que há algum sentido efetivo em se produzir e firmar crítica. (LARRAURI, 2000, pp. 238-239; ALBRECHT, 2010, pp. 131-136) Talvez haja um ‘retorno’ ainda que ‘esclarecido’ – e jamais integral – da criminologia à renegada seara do Direito e da legislação, de onde ela, em sua versão crítica e em seus aparelhos conceituais, se ‘retirou’ para que não houvesse mais averbação ou cooptação: a crítica tanto à moral heteronormativa e classista, ao capital e a ‘mercadologização’ da ética e da vida humana e ao discurso raivoso em matéria criminal, é mais do que nunca, uma crítica a uma “democracia” que ostenta esse nome sem merecer, enquanto na verdade é mais um aparelho de fachada portentosa, porém vazio. A pauta criminológica por excelência é a pauta por mais “democracia direta” e a luta contra tudo o que na democracia “indireta” ou falsária, “não nos representa”. 4. Reflexões e proposituras finais Diante da abordagem realizada aqui, mister que sejam colocados alguns apontamentos propositivos e conclusivos para sintetizar as propostas teóricas aqui descritas. Uma ironia permeia esse trecho do presente texto, uma vez que muito se discorreu, se leu e se sabe sobre os perigos e ardis de se procurar estabelecer ‘definitivamente’ o que a criminologia crítica é ou deve ser. Em realidade, aqui se pretende menos uma revelação redentora, e mais um evitar tremendo de se perder o rumo histórico e as necessidades de seu momento atual. Como ciência de múltiplos vértices e transdisciplinar (o que gera um desconforto no seu próprio status científico e/ou no próprio conceito de ciência de um modo geral – CARVALHO, 2013, pp. 43 e seguintes), nada impede esse saber mutante e antropofágico (Cf. PINTO NETO, 2012) de se redesenhar quantas vezes for necessário. a) A criminologia critica deveria, como seus discursos opositores o são (maquiada ou admitidamente), ser engajada politicamente. Mais do que isso: é na atual conjuntura, uma necessidade – a pauta da luta contra a desigualdade em sentido amplo oriunda dos influxos do grande capital segue viva: proposição que deve ser entendida em um dado contexto histórico que ainda não se modificou: a luta social de inspiração do que se DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA convencionou como pautas ‘esquerdistas’ desde Marx sobrevive – mesmo a alguns declínios e refutações que outros aspectos e elementos da contribuição do autor tenham sofrido ao longo dos tempos. Nesse contexto, a identificação ‘partidária’ é menos importante do que a identificação da agenda de denúncia e enfrentamento aos rumos políticos, sociais e teóricos de um suplantar da base política por coordenadas ditadas pelo grande capital, e sua clara influência nos mecanismos jurídicos (sobretudo jurídico-penais); b) A criminologia crítica, se for de fato “de esquerda” deve militar até a exata fronteira onde o argumento de realpolitik se transforma em pura verve adesista – uma vez que não se trata apenas de verificar quais demandas e pautas atingem de forma direta ou mediata a questão da expansão conservadora e pan-penalista e se colocar a enfrentalas, mas sim a de tentar identificar quais demandas (epidermicamente ligadas ao sistema jurídico-penal ou não) carregam um discurso que as empresas moralistas e antidemocráticas antagonizam, e procurar extrair dessa identificação seu extrato de pauta comum. O combate é contra rescaldos de discursos e ideários, então que se busque neles o vértice de crítica. O bojo vai muito além da crítica voltada exclusivamente para a luta de classes e sim transcende para toda e qualquer ideologia que – antidemocraticamente – seja inimiga da autoafirmação. c) A criminologia crítica deveria olhar com atenção para os (assim denominados aqui) novos movimentos sociais e suas táticas e práticas – o discurso arejado de alguns movimentos sociais e pautas que a princípio não possuem relação direta com a teoria criminológica é muito mais do que um modelo de adereços discursivos interessantes. Pode ser a base para uma reformulação. Ademais, os objetivos díspares se tornam comuns quando se percebe (como no caso do uso e ocupação dos espaços públicos enquanto tática) que as estratégias e fontes discursivas de enfrentamento são as mesmas e com o mesmo objetivo de sustentar os establishments de cada seara como ele se encontra e sufocar quaisquer tentativas de real busca de equilíbrio e – em última análise – justiça.

DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA d) A criminologia crítica, como alguns dos ‘protestos’ recentes ao redor do planeta, foi, é e será acusada de não ter uma pauta genuína quando assim se colocar – a tentativa de desmoralização que foi promovida (por ignorância, má-fé ou a união de ambas) em relação a eventos sociais de alta magnitude – como o Occupy Wall Street – é ou pode ser a mesma que vai se obstar contra uma criminologia crítica “2.0” nesse quesito: a da falta de polarização ou de incidência extrema que vai fazê-la perder o foco. Em verdade, nunca se teve tamanho foco: ao pugnar (na área que abrange o sistema jurídico-penal e suas adjacências) por mais “democracia real”, a criminologia crítica se filia a um feixe de discursos, ideias e práticas que, cada qual ao seu modo, combate a injustiça ‘material’ e ao verticalismo sedutor que ostenta capacidade de regulação e solidez, mas serve inegavelmente a poucos ideais quando se pretende forçosamente a ‘representar’ muitos. Não é preciso abandonar as pautas clássicas (tais como luta contra a expansão punitiva, a violência estatal-policial ou o descaso humano do sistema penitenciário), apenas compreender que elas não são exclusividade do discurso atinente às questões política e criminal e, sim, as questões política e criminal são como (inter)faces de uma série muito maior de enfrentamentos de um combate muito mais amplo. e) A criminologia crítica precisa, sim querer se efetivar em políticas (criminais) – a proposta de criticar a baixa horizontalidade de nosso simulacro de democracia e de combater (na esfera teórica e prática criminal) a ausência e os embustes à democracia real não pode comportar um exclusivo ramo teorético de atuação. Torna-se a repetir: há uma diferença crucial em se deixar coordenar pela ideia de ser um mero auxiliar empírico da política e do direito criminal e em querer (e lutar por) a efetivação política de suas bases, conceitos e objetivos. Se tanto a criminologia quanto a estratégia ‘occupy’ se resignar em ser não a plataforma para a verificação (inconstante e infinita) de mudanças na direção de uma democracia real e sim um mero grito instantâneo contra “o estado das coisas” ou “tudo o que está aí”, se tornará, além de esforço inútil, alvo travestido e assumido das anedotas dos intolerantes.

DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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PANÓPTICA A tarefa é posta com a propriedade irônica do que, segundo Galeano (1991, p. 99), dizem as paredes de Bogotá: “Proletários do todos os países, uni-vos”, e, embaixo, com outra letra: “(Último aviso)”.

DIVAN, Gabriel Antinolfi. “Qual nossa única reivindicação?” – representatividade e cruzamentos políticos para a construção de uma ‘criminologia 2.0’. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 158-175.

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