“Qual sua relação com o café e como começou?”: experiências de vida de trabalhadores da cidade de Santos através da História Oral (1940 – 1990)

June 3, 2017 | Autor: B. Bortoloto do C... | Categoria: História Oral, História Social do Café, Historia Oral E Memoria, História do Café
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“Qual sua relação com o café e como começou?”: experiências de vida de trabalhadores da cidade de Santos através da História Oral (1940 – 1990) 1

Bruno Bortoloto do Carmo

Qual sua relação com o café e como ela começou? Foi partir dessa pergunta que os pesquisadores do Museu do Café Pietro Marchesini Amorim e Bruno Bortoloto do Carmo conduziram todas as entrevistas dos projetos de História Oral “Memórias do Comércio do Café em Santos” ao longo dos anos de 2011 até 2013. O objetivo desse trabalho, a princípio, foi gerar uma documentação oral através das experiências de trabalhadores ligados ao café; por meio dessa documentação, visou-se verticalizar o tema, a fim de compreender o cotidiano e as relações das profissões através da memória desses trabalhadores. Como depoentes, procurou-se todas as funções que compusessem a cadeia comercial do Porto e Praça de Santos: corretores, ensacadores, estivadores, exportadores, classificadores, catadeiras e diretores sindicais, tanto do patronato quanto da classe trabalhadora. Sabe-se que o mundo do trabalho sempre foi marcado pela tensão, pela disputa, onde os sujeitos históricos coletivamente lutaram e lutam para prevalecer seus direitos e adquirir condições de sobrevivência, por um lado e, por outro, buscam a manutenção de privilégios; isso fica transparente no discurso dos depoentes. Entretanto, essa pergunta fez com que surgissem outros caminhos possíveis. A análise de elementos ligados à afetividade desses trabalhadores fez surgir discursos de trajetórias de vida coletivas, sejam elas familiares ou de classe. Em outras palavras, conforme explica DANTAS (2012): “[...] experiências vividas isoladamente ou de forma coletiva nos ensinam sobre a arte de trabalhar, de ser e se perceber trabalhador, de 2

construir laços de amizade, respeito e reciprocidade entre os seus” . Imigrantes, migrantes, naturais da cidade; alguns de famílias tradicionais do café, outros que trabalharam desde a infância por necessidade. Todos depoentes encontraram no ramo do café seu sustento e construíram sua história profissional. Portanto pretendemos nessa comunicação analisar as experiências de vida no momento de formação desses trabalhadores e relacioná-las com o contexto histórico e social do período.

*Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Pesquisador do Museu do Café, Santos – SP. 2

DANTAS, Pollyana Cardoso. Compreendendo o valor da palavra dada: A importância da História Oral na constituição dos trabalhadores como sujeitos históricos da “Fiação e Tecelagem Arenópolis”, 2012. Disponível em: http://www.encontro2012.historiaoral.org.br/resources/anais/3/1340411334_ARQUIVO_arti gorio.pdf. Acesso em: 19 jun. 2015.

A PRAÇA E O PORTO DE SANTOS E O CAFÉ Em princípio é preciso localizar o território no qual estes trabalhadores atuaram (e alguns ainda atuam). A comunidade comercial e financeira da cidade de Santos é conhecida como Praça de Santos. Nela negociam-se desde o século XVI gêneros produzidos no interior. Por motivo de grande abandono da Capitania de São Paulo durante quase todo o período colonial, a Praça de Santos só começou a ter maior movimentação em fins do século XVIII, com a grande produção de açúcar nas regiões de Campinas e Itu. Isso, obviamente, teve impacto na constituição cidade, que ainda era então uma pequena vila colonial que vivia exclusivamente do movimento de seu porto e mais se ligava à região da Corte do Rio de Janeiro que ao planalto Paulista. O centro urbano da cidade de Santos teve de primeiro impulso de crescimento sistemático no período de 1870 até 1890, que compreende a chega à cidade de diversos empreendimentos e melhorias. Sistema de água e esgotos, canalização dos rios e ribeirões assim como a construção do cais de pedra e da estação da estrada de ferro da São Paulo Railway, duas transformações no transporte de mercadorias e de pessoas que aperfeiçoaram a relação da cidade com o interior e com o exterior. Antes desse crescimento, a cidade guardava seus aspectos coloniais em seus edifícios, assim como em suas relações econômicas. A Praça comercial de Santos ainda era pautada pelo açúcar e, somente na década de 1850 que o café virou o gênero de maior importância nas pautas de exportações do porto da cidade. Nesse ínterim de transformações econômicas, com a cidade de Santos no caminho de saída desse produto para o exterior, havia já diversas discussões sobre o espaço urbano e sua ocupação. Estava incorporada a ideia, ao menos na cabeça dos dirigentes, que a urbanização da cidade devia seguir preceitos lógicos e não mais um crescimento desordenado, baseado na necessidade imediata. Mas foram as transformações que o café trouxe para a cidade em fins do século XIX que evidenciaram esse problema de ocupação espacial urbana, fazendo necessária uma série de intervenções estaduais e municipais para essa readequação. Esse complexo de transformações urbanas e econômicas mostra que são indissociáveis o crescimento da cidade e o comércio dentro da Praça de Santos. O café foi a tônica da cidade durante a virada do século XIX e durante praticamente todo o século XX. Willian Uckers, ao comparar o antigo maior porto de exportação do café – o Rio de Janeiro – com a cidade de Santos em 1922, estabeleceu que:

As the capital of the nation Rio is a metropolitan city statecraft, diplomacy, wealth, and fashion first, while Santos, on the other hand, is a coffee city first, last, and all the time. In Rio it is possible to move about for days and never be reminded of coffee; in Santos at no hour of the day or night is it possible to

escape from the coffee atmosphere. In the daytime some form of coffee activity is always in the picture; at the night coffee is so much a part of the social life of the city that no social function is free from some suggestion of 3 coffee’s supremacy .

Boa parte dos textos a respeito do café na cidade de Santos exploram esse momento de euforia das décadas de 1910 e 1920, mas não acompanham as transformações dessas profissões ao longo do século XX. Como a bibliografia não nos responde tais perguntas se faz necessário observar as pessoas e empresas que negociam e manuseiam o café nos dias de hoje. Corretores, ensacadores, exportadores, estivadores, classificadores e donos de armazém. As instituições e as profissões ligadas ao café que continuam na cidade de Santos nos dão uma pista desse momento histórico.

E é interessante que é uma coisa sui generis. Acho que, no mundo inteiro, não existe um mercado que já foi o principal ponto de comércio do café do mundo — porque aqui era comercializado — 80% do café do mundo era na 4 Rua Quinze. Entre quatro ruas . A Rua do Comércio, a Rua Quinze e Rua Frei Gaspar. Nesse pedacinho se comercializava todo o café do Brasil, praticamente. Porque você vendia aqui para entregar em Angra, para entregar no Rio de Janeiro, para entregar em Paranaguá. Mas era feito aqui. Depois, começou a turma a abrir filial em Paranaguá, os compradores — mas, no mais, era tudo feito aqui em Santos. Entre quatro ruazinhas tinha 5 todas as firmas de café que dominavam o mercado internacional do café.

Nesse trecho do depoimento do corretor Álvaro, que atuou na Praça de Santos desde fins da década de 1950, é possível perceber que a relação da cidade de Santos com o café existente na virada do século foi contínua. Além de a cidade abrigar todas as instituições necessárias para a comercialização do produto, consolidou-se como a sede de uma rede de relacionamentos e informações que deu base para uma centralização dos negócios. Dito isso, a relação afetiva desses trabalhadores com a história e a memória do café torna-se ponto chave para compreender suas relações profissionais, mesmo que invisíveis ou inconscientes. Em princípio, a existência de uma grande quantidade de Sindicatos na cidade que foram ou são ligados a movimentação, manipulação e comércio do grão é um dado importantíssimo a ser considerado. Portanto, foram feitos contatos com o Sindicato dos 3

O autor publicou a primeira edicação do livro em 1922, sendo essa a segunda edição. UCKERS, Willian H. All About Coffee. United States of America: Burr Printing House, 1935, 323-333. 4

É interessante notar a referência inconsciente às 4 ruas, sendo que só existem de fato três – Rua XV de Novembro, Frei Gaspar e do Comércio. Isso se dá, pois, antigamente, o principal trecho da rua XV aonde os corretores se encontravam chamava-se Rua Antonina. Os antigos “quatro cantos” como eram chamados a região que compõe o centro de negociações da Praça ainda está presente na memória dessas pessoas, mesmo que inconscientemente. 5

Álvaro Vieira da Cunha (ponto e vírgula) tem 83 anos, nascido em São Paulo – capital em 1928. Atuou como corretor de café em Santos desde 1945, no escritório Santa Rita até 2002, além de ter sido presidente do Sindicato dos Corretores de Café de Santos. Cf. MUSEU do Café. Depoimento do corretor de café Alvaro Vieira da Cunha, 2011, p.. 16-17.

Trabalhadores na Movimentação de Mercadorias em Geral e dos arrumadores de Santos, São Vicente, Guarujá, Cubatão e São Sebastião (Sintrammar), antigo Sindicato dos Carregadores e Ensacadores de Café de Santos e com o Sindicato dos Estivadores. Dentro dessa perspectiva, o contato institucional com o Sindicato dos Estivadores se mostrou pouco proveitoso. Ficou claro que a relação dos estivadores com o café nem sempre era substanciosa, pois estes trabalhadores tratavam com todo tipo de mercadorias, visto que a diversificação de gêneros exportados pela cidade de Santos cresceu ao longo do século XX. Além disso, o café em sacaria que necessitava de trabalho braçal foi substituído por containers movidos por guindastes ao longo da década de 1980, o que distanciou ainda mais esses trabalhadores da manipulação das sacas de café. Ainda sim, foi possível contar com dois depoimentos a respeito da estivagem das sacas de café nos porões dos navios. O contrário aconteceu com o Sindicato dos Ensacadores e Carregadores de Café 6

de Santos, atual SINTRAMMAR . Estes se mostraram bastante abertos a conversa e se sentiam parte dessa memória coletiva do trabalho com o café. Pelo fato de que o Sindicato abrangeu a categoria do trabalho com outro gêneros apenas nas últimas décadas, muitos deles trabalharam quase a vida inteira somente com o café, o que traz uma afetividade positiva ao tratar do tema. Com relação aos negociantes de café – tanto corretores, como exportadores – estas pessoas possuem uma tônica: falar sobre o esvaziamento do centro da cidade e dos profissionais ligados ao café, principalmente a partir das décadas de 1980 e 1990. Antes das grandes transformações tecnológicas, a cidade era apinhada de pessoas que trabalhavam com informação, quando a comunicação com o exterior e interior era escassa e dificultosa. Corretores, comissários, exportadores e classificadores ficavam reunidos na rua XV de Novembro, entre as ruas do Comércio e Frei Gaspar, trocando informações sobre os cafés que estavam chegando ou que ainda estavam sendo produzidos no interior. Com a facilidade de comunicação, uma ordem de compra ou venda podendo ser dada em uma fração de segundo, pouco a pouco, todas essas instituições perderam seu interesse em basear-se na cidade. Hoje em dia, por exemplo, existe apenas uma instituição de Armazéns Gerais em Santos, sendo todas as outras agora se fixaram no interior, próximas da produção e longe de onde seria o “centro de informações”. Entretanto, apesar dessas transformações na comunicação no comércio do café 7

de Santos, o porto continua com 78% das exportações do grão . Essa transformação traz um 6

Sindicato dos Trabalhadores na Movimentação Arrumadores. 7

de

Mercadorias em Geral

e

dos

JORNAL A Tribuna. Exportações de café pelo Porto de Santos têm alta de 22%. Disponível em: http://www.atribuna.com.br/mobile/porto-mar/exporta%C3%A7%C3%B5esde-caf%C3%A9-pelo-porto-de-santos-t%C3%AAm-alta-de-22-1.403504 Acesso em: 28 de fevereiro de 2014.

elemento importante para a análise da memória desses negociantes que ainda estão estabelecidos na cidade, pois adiciona um relação saudosista, além da tentativa de reafirmar tradição e confiabilidade no trato com os poucos clientes no interior que ainda lhes são fiéis.

RELAÇÕES DE FAMÍLIA Partindo do pressuposto que a memória coletiva pode ser definida como “o que fica do passado no vivido dos grupos 8”, ou a forma como grupos ou indivíduos interpretam o passado, um grupo de negociantes da Praça de Santos (corretores e exportadores) trazem traduzidas em seus discursos uma relação intrínseca entre tradição e suas vidas profissionais. A conexão mais notável entre os trabalhadores do comércio do café, principalmente aqueles ligados à negociação do grão como corretores e exportadores, foi uma relação familiar. Muitos desses profissionais começaram a trabalhar, pois seus pais, tios, avôs já estavam no ramo há muitas gerações. Em princípio, falemos dos corretores. Durante todo o século XIX e XX uma classe de negociantes foi gestada na Praça de Santos com um conhecimento específico na venda do café, em uma época que existia grande dificuldade de comunicação, tanto com o exterior como com o interior do país. Por um lado, uma classe que intermediava as relações fazenda-porto e, de outro, as de transporte e contatos com o mercado consumidor. Com relação a essa primeira classe de negociantes, o papel era desempenhado por personagens denominados comissários de café, “[...] homens de confiança dos fazendeiros, cujas funções se estendiam do financiamento dos produtores à venda do café ao exportador”. Com o crescimento do volume das negociações, surgiram intermediários denominados “zangões”, que negociavam o café disponível 1 e, em geral, trabalhavam sem exclusividade ganhando uma corretagem do montante que conseguisse negociar. Com a transformação e consequente desaparecimento da figura do comissário ao longo das décadas de 1910 e 1920, escritórios de corretagem surgiram e estreitaram laços com o interior, adquirindo para si essa relação direta com o fazendeiro. Com isso surgem duas categorias: os corretores de rua, ainda com a função dos antigos “zangões”, e os donos de escritórios de corretagem9. Em 1902 o escritório de corretagem Santa Rita foi criado pelo imigrante português naturalizado

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Carlos Vieira da Cunha. Veio ao Brasil com apenas 14 anos já empregado em

um estabelecimento de importações e, com o passar do tempo, estabeleceu-se como vendedor 8

NORA apud LE GOFF. História e Memória. Campinas: Unicamp, p.469.

9

Cf. MUSEU do Café. Texto da Exposição Virtual: Memórias da Praça – Corretores de Café, 2015. Disponível em: http://www.museudocafe.org.br/memoriasdapraca/home.htm. Acesso em: 5 jun. 2015. 10

Correio Paulistano, 7 fev. 1919. Acervo Biblioteca Nacional.

de diversos gêneros com contatos na região de Santa Rita do Passa Quatro. Ao longo das décadas de 1910 e 1920 firmou-se como importante corretor de café na Praça de Santos que circulava por um grupo de pessoas ligadas à elite negociante do comércio do café, frequentando espaços em comum. No ano de 2011, seu filho, Álvaro Vieira da Cunha que iniciou suas atividades em fins dos anos 1940, gravou um depoimento para a equipe do Museu do Café, com o objetivo de contar sua trajetória profissional e o cotidiano do trabalho de um corretor de café. Quando perguntado “qual sua relação com o café e como ela começou”, respondeu o seguinte: O meu pai, em 1902, ele fundou o nosso escritório. Como ele era — além de ser corretor de café — ele também representava águas de Santa Rita do Passa Quatro, o pessoal deu o apelido dele de Santa Rita. Então naquele tempo era — o endereço telegráfico — naquele tempo não tinha Internet para fazer, e-mail e essas coisas. Então, o endereço telegráfico dele era “santarita”, tudo junto. E o nome do escritório, era Escritório Santa Rita. Aí, em 39, o meu pai faleceu. O meu irmão, Zé Carlos, que era três anos mais velho do que eu, assumiu o escritório. E isso, em 39. Em 42, eu estava em São Paulo, na Escola de Aviação, durante a Guerra. Em 45, terminou a Guerra, eu voltei para Santos e voltei para o escritório. Aí entrei, junto com o meu irmão, Zé Carlos. E de lá para cá, o nosso escritório, claro, não teve solução de continuidade. Quando o meu irmão faleceu, eu fiquei sozinho, mas trabalhando até 2002. Em 2002, quando fez cem anos, eu resolvi fechar 11 o escritório na Rua quinze .

Sabe-se que as relações entre história e memória são distantes e muitas vezes antagônicas, portanto a problematização desse depoimento parte do seguinte questionamento: ao refletir sobre seu começo dentro do comércio cafeeiro, o que Álvaro decidiu priorizar em seu discurso? Compreende-se que sua intenção foi construir uma cronologia, visando o centenário do escritório, sendo o legado deixado pelo pai parte da sua relação profissional com o café. Como se pôde observar, Carlos Vieira da Cunha tornou-se um profissional de sucesso dentro do meio cafeeiro ao longo das primeiras décadas do século XX, alguns anos após sua chegada à cidade na cidade como imigrante de Portugal. Foi, portanto, o primeiro elo da família Vieira da Cunha com o comércio do grão, mas Álvaro trouxe essa relação a tona, desenlaçando a partir da data de abertura do escritório Santa Rita toda uma cronologia de sua família até o fechamento do escritório em 2002. Nesse trecho, o corretor não deixa passar o fato do nome do telégrafo do escritório do pai: “santarita”. Ao longo do depoimento retornou várias vezes às memórias dos tempos em que seu pai era corretor, quando ainda era uma criança, estabelecendo a relação do trabalho do corretor era também de um informante; lembrava-se dos momentos em que seu pai sentava-se esperando durante longas horas por uma ligação para o exterior ou das cartas que enviava para seus contatos no interior. Essa informação estabelece íntima relação com a

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MUSEU do Café. Depoimento do corretor de café Alvaro Vieira da Cunha, 2011, p. 1.

situação em que vive o corretor de café hoje, em contraste com o papel que o corretor teve durante toda sua vida profissional. Outro depoente, também no ano de 2011, também possui memórias bastante semelhantes a de Álvaro: o corretor Eduardo Hayden Carvalhaes, que iniciou suas atividades em fins dos anos 1940. Para ele, sua relação do café era óbvia, pois sua “[...] família era toda 12

do café, da cafeicultura. Tudo como comércio e não como produtor ”. De fato, a família Carvalhaes possui uma relação um tanto mais profunda no comércio cafeeiro. Em 1888, o tenente-coronel Vicente Ferreira Carvalhaes, fazendeiro das cidades de Monte Santo e Jacuí, Estado de Minas Gerais, iniciou a trajetória do que seria o embrião do Escritório Carvalhaes: juntamente com José Ildefonso Carvalhaes e Gil Alves de Araújo abriu a 13

firma Vicente Carvalhaes & Comp, para comissão de café e outros gêneros do país . A composição da empresa acompanhava a tendência do comissariado paulista a partir da década de 1880, identificado por PEREIRA (1980), quando acontece a passagem do 14

fazendeiro para essa função . Com isso, José Ildefonso, avô de Eduardo Carvalhaes, transferiu-se para de Santos e começa a atuar como representante da comissária na cidade. Não foi possível localizar documentação escrita a respeito da firma sobre seu fechamento; entretanto os dois filhos de José Ildefonso, Álvaro e Nelson continuaram trabalhando com o comércio de café, o primeiro iniciando suas atividades em 1918 e o segundo na sequência, em fins da década de 15

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1920 . Os dois irmãos dariam sequência no que viria a se tornar o Escritório Carvalhaes , atuante até os dias de hoje na Praça de Santos. Frente a essas informações sobre a história da família Carvalhaes dentro do ramo cafeeiro, como o corretor Eduardo estabeleceu sua relação com o café ao ser questionado? Quais informações vieram de pronto à sua cabeça para responder a pergunta, para construir seu discurso?

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Eduardo Hayden Carvalhaes nasceu em Santos no ano de 1925. É corretor de café do Escritório Carvalhaes desde 1943. Cf. MUSEU do Café. Depoimento do corretor de café Eduardo Hayden Carvalhaes, 2011, p.1. 13

Correio Paulistano, 17 jul. 1888. Acervo Biblioteca Nacional.

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PEIREIRA, Maria Apparecida Franco. O Comissário de Café no Porto de Santos, 18701920. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980, p.192. 15

ESCRITÓRIO Carvalhaes. Nossa Empresa. Disponível em: http://www.carvalhaes.com.br/empresa/nossa-empresa.asp. Acesso em: 22 jun. 2015. 16

A documentação ainda revela que Álvaro Carvalhaes, em 1927 atuava como corretor de café pela firma R. Amaral & Cia e, somente no ano de 1937 que o nome “Escriptorio Carvalhaes” aparecia como firma constituída. Desconhece-se, no entanto, quando a sociedade organizou-se de fato. Cf. Correio Paulistano, 16 jan. 1927, Acervo Biblioteca Nacional; Estado de São Paulo, 22 jan. 1937, Acervo O Estado de São Paulo.

E, de ouvir falar isso muito tempo e por se tratar basicamente o melhor negócio que tinha em Santos — comercializar café — que eu vim para cá. Aprendi com os meus antepassados, que trabalhavam nisso há muito tempo, e fui ficando aqui dentro, fui ficando, fui ficando. Porque café não se aprende tudo em um dia, compreendeu? Café, tem que se ver o desenvolvimento do negócio diariamente, porque mesmo que o mercado seja calmo, sempre acontece alguma coisa que precisa ser citado. E, com isso, a gente vem progredindo dentro do negócio, porque o tempo é que faz. Eu sempre digo para o meu funcionário aí, que ele não pensa que vai aprender tudo de uma vez, porque não vai. As facetas, toda semana, se modificam. Um ano é isso, outro ano é aquilo. Um ano é o governo, o outro é o comércio, que não funciona. Mas o café ainda é um negócio grande. Mas já foi maior. O negócio, no País, já foi maior, porque o café representava praticamente a única fonte de riqueza do País. E, hoje, não. O café está em oitavo, nono lugar, nós temos outros produtos que estão representando muito mais. Mas, de qualquer jeito, é uma riqueza que praticamente só o Brasil tem, em uma escala assim. (CARVALHAES, 2011, p.1)

A análise que faz tanto de sua trajetória quanto de sua família tem seu ponto de partida o presente, mas ainda sim faz um balanço de sua trajetória, consciente ou inconscientemente. A princípio, Eduardo Carvalhaes apresenta um dado relevante: quando começou a atuar, na cidade de Santos não existia melhor ramo que o café. Entretanto ele vai além, dizendo que o café ainda é um negócio grande, apesar de já ter sido maior. É possível, portanto, levantar-se a hipótese de que – além de estar centrado no estado atual do mercado – seu discurso remete ao momento que iniciou sua carreira e a situação da firma de seus tios à época. Em outras palavras, o fato da sociedade do fazendeiro-comissário Vicente Carvalhaes com seu sobrinho, Ildefonso, não ser mencionado como ato contínuo, fazendo com que o filho deste último iniciasse sua carreira no café no ramo de corretagens e não dentro de uma firma própria na família, indicaria a uma possível quebra e perda considerável de capital, o que corrobora com seu discurso de que “aprendi com meus antepassados, que trabalhavam nisso há muito tempo”, mas “café não se aprende em um dia”, apenas. Diversas crises acometeram o mercado do café ao longo do século XX. Obviamente, a mais severa e divulgada foi a de 1929, que iniciou com a quebra da Bolsa de Nova York nos Estados Unidos, maior importador do café brasileiro, fazendo com que a política econômica brasileira visasse uma diversificação para que deixasse de depender dos seus imensos estoques. Entretanto, a característica observada nessa crise foi a que pautou as 17

crises seguintes, entre as décadas de 1960 e 1990 , sendo os armazéns brasileiros abarrotados de café um parâmetro para oferta mundial de café. Essa questão, aliada a um momento de guerra fria fez com que um Acordo Internacional do Café fosse firmado, regulando 18

assim o mercado mundial do grão .

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Não se abordará nesse texto o contexto e profundidade das crises. Para essas informações, ver Paulo ALMEIDA, Paulo Roberto de. As crises financeiras internacionais e o Brasil desde 1929: 80 anos de uma história turbulenta. Disponível em: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/2013CrisesFinancBr1929Plenarium.pdf. Acesso em: 17 jun. 2015. 18

Sobre o Acordo: “Seu objetivo era atingir o equilíbrio entre oferta e demanda, assegurando fornecimento adequado a países consumidores e preço justo a produtores. Pela previsão do consumo mundial para os anos seguintes, o acordo dividia o montante em cotas

Dentro desse contexto, compreende-se a fala de Eduardo Carvalhaes ao estabelecer uma relação de cautela sobre sua trajetória: sua família sempre esteve presente e a tradição faz com que exista confiança do cliente, mas sua experiência também deveria ser levada em conta. O aspecto de crises do século XX fez manter a tendência de outras relações familiares, que também perpassam a trajetória de famílias de imigrantes da classe de negociantes. Em seu depoimento prestado ao Museu do Café em 2012, Jorge Esteve Jorge disse que veio da Espanha para o Brasil na década de 1980 para trabalhar na firma de sua família, a antiga Esteves S/A e Esteves Irmãos, que atualmente se chama Companhia Interagrícola. A firma exportadora com filial aberta no Brasil desde 1888 atuou durante muito tempo apenas no ramo do algodão, tendo aberto seu departamento de café em fins da década de 1940. A relação é a empresa Interagrícola, antiga Esteves SA, Esteves e Irmãos, uma empresa familiar, tem aproximadamente 175 anos no mundo e está presente em bastante origens. Originalmente foi uma trading de algodão, cafeeiro posteriormente, veio 53 anos atrás e também foi se estabelecendo diversa solidez. Dentro das origens, na época que eu acabei exército, estudos, tudo [...] sai da Espanha, que lá não é origem, não é produtora de nenhuma dessas matérias primas e morar em um país que produzisse, exportasse essas matérias primas. Aí escolhi como opção o Brasil, e dentro do Brasil tinha duas opções que era algodão, que é controlado desde São Paulo, ou café, que já existia em Santos essa filial, digamos, de São Paulo. Aí escolhi café, no Brasil.

É possível perceber uma centralidade também com relação às companhias exportadoras na decisão de estabelecimento de uma filial na cidade de Santos, que sempre possuiu essa característica de aglutinar pessoas de diversos locais e setores para a venda do café e outros gêneros.

O estabelecimento de imigrantes como representantes de países

exportadores é algo que acompanha a história do café desde o século XIX, em um momento que ainda não existiam grandes incentivos do governo para a imigração. Esse fato se deu pela centralidade da cidade de Santos na exportação do café e, portanto, importância que os mercados consumidores davam ao seu porto por considerarem ponto estratégico para 19

realização de negócios . As principais firmas estrangeiras a exportar café que se estabeleceram na cidade de Santos ao longo dos séculos XIX e XX foram: 

Theodor Wille e Zerrenner & Bullow (alemãs);

entre países produtores, de acordo com sua fatia no mercado. A Organização Internacional de Café foi constituída, em 1963, para administrar as cláusulas e supervisionar as operações balizadas pelo acordo. O peso de cada país nas decisões era baseado em suas participações no mercado, sendo o Brasil e os Estados Unidos os principais votantes”. Cf. MUSEU do Café. Catálogo da Exposição “50 anos de Organização Internacional do Café”, 2015, p.47.

19

Cf. MUSEU do Café. Texto da Exposição Virtual: Memórias da Praça – Exportação de Café, 2015. Disponível em: http://www.museudocafe.org.br/memoriasdapraca/Exportacao/home.htm. Acesso em: 5 jun. 2015.



E. Johnston e Naumann Gepp (inglesas);



American Coffee, Leon Israel e Hard Rand (americanas).

Algumas dessas firmas abriram filiais no interior, atuaram como casas comissárias, financiando produtores, armazenando e vendendo seus cafés, adquirindo fazendas cujos proprietários não conseguiam quitar suas dívidas. O número de firmas nacionais cresceu durante as primeiras décadas do século XX, porém com volume menor de 20

exportação, com relação às estrangeiras . O depoimento de Jorge Esteve Jorge estava, portanto, dentro desse bojo de tradição do estabelecimento de famílias imigrantes de origem comerciante na cidade de Santos e, por mais que sua família tenha começado a negociar café muito depois de ter entrado no mercado de algodão, seu discurso faz relações com esse lugar comum, o que converge com a fala dos corretores dentro do aspecto da ancestralidade. Entretanto, se esses personagens em suas memórias trazem aspectos familiares como elemento aglutinador, outros trabalhadores – muitos inclusive não muito próximos em suas áreas de atuação – possuem outros pontos de partida para construção de seu discurso, fazendo necessária uma abordagem diferente para análise dessas memórias.

RELAÇÕES SOCIAIS DE TRABALHO A cidade de Santos durante as décadas de 1940 e 1970 possuía uma relação muito mais íntima com o seu centro e seu porto e, por mais que se diversificassem as relações exportação, o café ainda era nessa época grande chamariz de pessoas a procura de um emprego confiável. O classificador de café Ayrton Ferreira que iniciou sua carreira na década de 1940 na área de documentação e despacho e depois passou para a classificação de café em exportadoras, constrói seu discurso nessa perspectiva: Então a tendência era mesmo o comércio cafeeiro, eu tive a felicidade, comecei na parte de despacho do Cais, fiquei relativamente pouco tempo, uns três anos, e depois passei pro café. Só que eu entrei na parte de firma exportadora na parte de documentação, porque eu vinha de despacho, conhecia já a Alfândega, e quando você trabalha na Alfândega você conhece Docas, Ministério da Agricultura, você conhece Recebedoria de Rendas enfim, você tem então um conhecimento e me ajudou depois quando eu 21 entrei no café. Isso foi meu início no café...

Além desses trabalhos, existiam opções como o trabalho no porto ou seções aduaneiras ou bancárias que também renderiam futuro promissor para quem não tivesse nenhuma relação familiar para dar o “pontapé inicial”. “Então, a turma que precisava trabalhar,

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Cf. MUSEU do Café. Texto da Exposição Virtual: Memórias da Praça – Exportação de Café, 2015. Disponível em: http://www.museudocafe.org.br/memoriasdapraca/Exportacao/home.htm. Acesso em: 5 jun. 2015. 21

Ayrton Souza Ferreira atuou como classificador de diversas firmas exportadoras, entre elas a Leon Israel. Depoimento cedido ao Museu do Café em 2012. Cf. MUSEU do Café. Depoimento do classificador de café Ayrton Souza Ferreira, 2012, p.1.

não tinha outra alternativa, não existia ainda Cubatão, não é? Que veio depois dar muito 22

emprego na Cosipa” . Obviamente, os laços familiares nesse caso também tinham sua participação, mas nesses casos os discursos dos depoentes são construídos de uma forma a demonstrar que não eram relações preponderantes para a conquista do primeiro emprego. Foi o caso do começo da vida profissional do ensacador de café Carlos Roberto de Lima, que começou a trabalhar na década de 1980: Veja bem, a minha relação com o café começou numa época que eu tava desempregado, na época, e a melhor oportunidade que eu vi que o meu pai, ele foi ensacador – hoje ele é falecido – eu vi a oportunidade de eu ter um desempenho e uma prospecção melhor de vida, na época, num armazém de café. Por quê? Por quê o ganho era suficiente pra você ter condições de sustentar uma família. Então, eu vi, tinha a época do desemprego. Eu vi que não tinha muita chance nos setores empregatício, e eu vi a única oportunidade – e boa oportunidade – ingressar no caminho do carregamento de café, ou seja, ser um ensacador de café. E aí, então, através do meu pai, eu tive essa oportunidade e muito boa, até hoje. Ainda tô no ramo até hoje, embora seja atualmente dirigente sindical, o meu passado foi no armazém de 23 café como carregador e ensacador de café .

Entretanto, que relação existiria entre um profissional que trabalhava em uma firma exportadora e aquele que trabalhava com a manipulação do café, seja em um Armazém 24

Geral , ou no porão de um navio na estivagem de sacas? A princípio a origem pessoal e profissional: o fato do depoente ter sido indicado por alguma pessoa que fizesse parte do grupo era tão importante quanto a indicação pessoal familiar, como foi o caso de Beto. Entretanto, as trajetórias profissionais são absolutamente descoladas do ponto de vista familiar e muito mais relacionadas à função em si, sendo uma relação mais voltada a necessidade de trabalho com profissionais entrando na profissão bastante jovens em – em geral – faziam suas carreiras até a aposentadoria.

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MUSEU do Café. Depoimento do classificador de café Ayrton Souza Ferreira, 2012, p.1. 23

Carlos Roberto Fernandes de Lima é ensacador desde a década de 1980 e atualmente é Diretor do SINTRAMMAR. Depoimento cedido ao Museu do Café em 2012. MUSEU do Café. Depoimento do ensacador de café Carlos Roberto Fernandes de Lima, 2012, p.1. 24

“Regulados pelo decreto 1.102, de 21 novembro de 1903, e fiscalizados pelas Juntas Comerciais, os Armazéns Gerais eram responsáveis pela guarda, conservação, pronta – em 24 horas - e fiel entrega da mercadorias recebidas, sendo responsabilizados por qualquer avaria, furto ou outra eventualidade. Não podiam exercer a atividade da qual se propõem receber mercadorias, ou seja, armazéns gerais que recebem café, não poderiam negociar café. Outro papel importante dos Armazéns Gerais era a emissão de dois títulos unidos, mas separados à vontade, que eram o conhecimento de depósito e o warrant. Eles registravam o tipo, qualidade, quantidade de outras informações da mercadorias e eram utilizados principalmente pelos produtores para buscar financiamento nos bancos.” Cf. MUSEU do Café. Texto da Exposição Virtual: Memórias da Praça – Armazéns de Café, 2015. Disponível em: http://www.museudocafe.org.br/memoriasdapraca/Exportacao. Acesso em: 5 jun. 2015.

Dentro dessa perspectiva, o arranjo interno de cada uma dessas profissões fazia com que existisse uma hierarquia baseada no aprendizado, que acontecia dentro do decorrer do desenvolvimento do profissional dentro da função. O ensacador de café e fiel de armazém Alexandre Rodrigues deixou em seu depoimento registrado as funções pelas quais passou ao longo dos 60 anos que trabalhou em um armazém: Comecei garoto, 14 anos − eu não tinha 14 anos de idade. Isso, em junho de 55. Dentro de armazém, como varredor, costurador e sempre armazém. Daí, eu fui furador, maquinista, fiz tudo o que foi possível. Fui fiel de armazém, peguei minha carta de fiel de armazém em 1959. Eu acho que, hoje, há 25 algum tempo, eu sou o fiel mais velho do Brasil, em atividade .

É possível perceber no discurso de Alexandre que sua explicação sobre “qual sua relação com o café” é dentro da profissão, em um desenvolvimento que foi desde varredor de corredor, costurador, furador e “tudo mais que foi possível”. Não existem outras referências senão aquilo que foi aprendido dentro da sua vida profissional. O classificador de café Joe Prado, que iniciou sua vida profissional na década de 1940 também tem um discurso semelhante de trajetória até chegar a posição de classificador de café em uma firma exportadora: A relação começou com a minha entrada em uma firma de café, de propriedade de um tio meu. Eu comecei como − naquela época, todo mundo começava como office-boy. Começava limpando o chão, limpando as borras das provas de café dos seus classificadores chefes. E, ali, eu fiz carreira, aprendi a classificação, aprendi todo o serviço de armazém − que eu fiquei muito tempo dentro de um armazém, vendo toda a movimentação de café, 26 para ser formado para a exportação .

É prudente notar que o discurso de Joe Prado assemelha-se ao dos outros profissionais, apesar do depoente deixar claro no trecho que a firma era de um familiar, o que possivelmente lhe traria uma perspectiva diferente no que tange seu desenvolvimento profissional nessa e em outras firmas que trabalhou. Todavia, como já foi dito, a relação familiar não era inexistente: ela apenas não era ressaltada e valorizada dentro desses discursos. No porto não era diferente, quanto a dinâmica de contratação: o desenvolvimento dos profissionais iniciava-se pelo novato, conhecido como “bagrinho”, que tinha menos privilégios e facilidades dentro da profissão que um sindicalizado com carteira. O estivador José Lopes Cunha, que começou a trabalhar em fins da década de 1960, traz esse discurso ao deixar registrada sua experiência. 25

Alexandre Rodrigues trabalha desde o final da década de 1950 até os dias de hoje como fiel de armazém. Depoimento cedido ao Museu do Café em 2013. MUSEU do Café. Depoimento do ensacador de café e fiel de armazém Alexandre Rodrigues, 2013, p.1. 26

Joe Ferraz Prado trabalhou como classificador de café em diversas firmas exportadoras, tendo inclusive começado o setor de café na empresa Esteve Irmãos. Depoimento cedido ao Museu do Café em 2012. MUSEU do Café. Depoimento do classificador de café Joe Ferraz Prado, 2012, p.1.

Coincidentemente, o meu primeiro trabalho na estiva, quando em vim para a estiva, no ano de 66 — 66 — foi um embarque de café. E eu nunca sabia nem como é que funcionava a situação — bem molecão, “verde”. Totalmente “verde”. E eu me apaixonei, sinceramente, pelo trabalho do café. Como ele era embarcado. Era um trabalho limpo, uma sacaria limpa e tal. E eu comecei a me apaixonar pelo café. Antes, eu trabalhava em um setor totalmente diferente. Até os meus 17,18 anos, eu trabalhei como serralheiro. Depois, eu fui para a estiva e fiquei lá até 27 o dia da minha aposentadoria .

Entretanto essas profissões se distanciam em alguns pontos e aproximam-se em outros. Ao analisar os discursos de cada depoente, a forma como esses trabalhadores se relacionavam no dia-a-dia, é possível notar uma dinâmica cotidiana semelhante entre ensacadores e estivadores, pois, em sua maioria, seus serviços eram por jornada e a distribuição deles ficava a cargo dos sindicatos. O ensacador Antônio Ermida, que iniciou suas atividades na década de 1950 trazia em seu discurso a presença do “ponto” ou “parede”: [...] Aí, eu fui para o ponto [...] Já estava no ponto, quando era escalado elo trabalhador, pelo caixeiro do ponto. E saía, o diretor do ponto distribuía o trabalhador para ir para os armazéns. Falava “eu quero tantos homens aqui.” 28 [...] todos os armazéns que pediam .

Esses eram os locais nos quais eram escolhidos os trabalhadores para o trabalho no Armazém ou no Porto. Para muitos ensacadores avulsos

29

ou estivadores, a parede

simbolizava a distribuição de todo e qualquer serviço disponível no dia. No caso dos ensacadores, a ligação afetiva com o local – a Rua Viscondessa do Embaré, a “Viscondessa” como os próprios se referiam – é tão clara que, na fala de cada um deles não parecia necessária apresentação. Trata-se de uma rua de movimentação puramente portuária, de caminhões e trânsito de carros, mas o “ponto” continua lá com grande significação simbólica, aonde ainda são distribuídos trabalhos. Além disso, tanto ensacadores como estivadores possuíam dentro de seus sindicatos o esquema de “carteiras” para sorteio dos trabalhos, valorizando os trabalhadores com mais tempo de sindicato, além da divisão dos melhores serviços serem balizada pelo 30

sistema de Cambio, Avançado e Dobra . Não se sabe exatamente qual a origem dessa semelhança, já que autores como o italiano B. Belli (1910) notaram a ausência da profissão do ensacador de café na cidade de Santos: 27

José Lopes Cunha trabalhou como estivador desde 1966, onde teve o contato com diversos carregamentos de café. Depoimento cedido ao Museu do Café em 2011. Cf. MUSEU do Café. Depoimento do estivador José Lopes Cunha, 2013, p.1 28

Antonio dos Santos Ermida trabalhou como ensacador de café desde 1953 e atualmente é aposentado pelo Sintrammar. Depoimento cedido ao Museu do Café em 2011. MUSEU do Café. Depoimento do ensacador de café Antonio dos Santos Ermida, 2011, p.2. 29

Existiam ensacadores que eram contratados diretos de Armazéns Gerais, entretanto todos eles seguiam normas e diretrizes do antigo Sindicato dos Ensacadores de Café. 30

O “Cambio, Avançado e Dobra” são formas de rotação dos trabalhos. A cada turno, o trabalhador estaria em uma das fases, fazendo com que os melhores trabalhos fossem divididos de forma igualitária. Tanto Estiva quanto Ensacadores trabalham com esse sistema.

Nella piaza di Rio de Janeiro, la culla del commercio del caffè del Brasile, esiste una classe intermediaria importante, che non esiste nella piazza di Santos, dove il mercato del caffè è più di tre volte superiore: quella degli insaccatori. Sono questi intermediari fra i commissionari e gli esportatori la cui funzione è espressamente quella di fare le miscele del caffè, formando i vari tipi ed in 31 prevalenza quello N. 7, secondo la classificazione americana .

Uma informação crucial aparece nesse trecho: na década de 1910 inexistia essa função na cidade de Santos. Entretanto, o “insacatori” dentro da visão de Belli está muito mais próximo da visão do que conheceríamos depois pelo dono do Armazém Geral, pois o autor deixa claro que é um intermediário entre o comissário e exportador. Mas não podemos perder de vista que uma divisão de tarefas aconteceria no comércio do café na cidade de Santos nas décadas seguintes. Até então comissários acumulavam funções que iam da armazenagem do café de seus clientes fazendeiros até o próprio financiamento das lavouras, conforme já foi dito 32

anteriormente . Essa fragmentação de funções fez com que se dividissem funcionários que antes estavam ligados a firmas específicas, fazendo surgir funções autônomas. Acredita-se que até então o ensacador tinha a função de arrumador, movimentador e formador de ligas para o próprio comissário. Existem hipóteses de que alguns 33

desses trabalhadores procuravam por trabalhos por jornadas, entre porto e armazéns , variando entre estivadores e arrumadores de armazéns. Na década de 1930, com a organização dos “sindicatos oficiais” que estavam dentro do projeto de Getúlio Vargas de 34

“controlar o conflito entre as classes da sociedade ”, tais profissionais afastaram-se o serem setorizados entre Porto, Docas e Armazéns. Isso explicaria a grande semelhança da organização interna do sindicato dos ensacadores e estivadores, além do afastamento das duas categorias ao longo das décadas que se seguiram. Dito isso, o processo de desenvolvimento da profissão do ensacador braçal nas décadas seguintes passa a estar condicionado aos conhecimentos técnicos do classificador de 31

BELLI, B. Ill Caffè. Milano: Editore – Libraio Della Real Casa, p.154

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PEREIRA (1980) afirma que duas instituições mudaram permanentemente a divisão dos trabalhos na cidade de Santos: os Armazéns Gerais e a Bolsa Oficial de Café. A primeira, a partir da década de 1930 passa a atuar como instituição autônoma de armazenamento e formação de lotes para exportação; a segunda, ao tentar organizar e inibir as especulações fazem surgir um termo para negociações futuras fora dos pregões e da liquidação oficial, com a palavra das partes como única comprovação da venda, a Entrega Direta. Com um isso o comissariado perdeu poder por dois lados: tanto no armazenamento e manipulação dos lotes e, por outro, para corretores que tomaram para si a clientela do interior além daqueles que formaram escritórios de sucesso terem se apropriado da lógica de memória de tradição familiar. PEREIRA, Maria Apparecida Franco. O Comissário de Café no Porto de Santos (1870 – 1920). 33

Para mais informações sobre os trabalhadores de jornada do porto e sua organização, ver GITHAY, Lúcia Caira. Ventos Do Mar: Trabalhadores Do Porto, Movimento Operario E Cultura Urbana Em Santos, 1889-1914. São Paulo: Unesp, 1992. 34

RODRIGUES, Leôncio Martins. Corporativismo no Brasil, 1930-1945. Disponível em: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/16279/16279_4.PDF. Acesso em: 19 jun. 2015.

café, profissional que também ganha certa importância e estava diretamente ligado à firma exportadora; Belli dizia que o “insacatori” do Rio de Janeiro trabalhava na década de 1910 com os “vários tipos [...] fazendo prevalecer o nº 7, de acordo com a classificação americana”. Durante os primeiros anos do século XX existiam muitas divergências com relação à qualidade do café vendido e a qualidade do café embarcado. Aos poucos, diversas firmas começaram a adotar o “método americano” de classificação que era, em outras palavras, aquele aceito pelas cotações da Bolsa de Nova York e os tipos de classificação do grão de 35

café, com base nos “tipos de Nova York” foram incorporados a realidade da Praça de Santos . Esse foi um conhecimento que se disseminou pela Praça de Santos, principalmente na década de 1930, quando as políticas ligadas à valorização do café exigiam 36

um maior rigor do café exportado ; teriam, portanto, que compartilhar desse conhecimento tanto os classificadores através das latinhas de amostra de 300 gramas, até os ensacadores por meio dos lotes que poderiam ser compostos por centenas e centenas de sacas. Nesse ponto retorna-se à fala do ensacador Antônio dos Santos Ermida que, ao responder a pergunta “como sua relação com o café começou”, não conseguiu dissociar sua trajetória profissional da divisão do trabalho dentro do armazém, local onde o mesmo trabalhador poderia desempenhar diversas funções na formação dos lotes para embarcação através da ordem da exportadora. [...] eu comecei a trabalhar em 51, [...] entrei de associado e estou de associado hoje, que a minha matrícula, hoje, é 75. Então, aí comecei a trabalhar em todos os armazéns. Antigamente, tinha muito trabalho de café de ensaque a mão. Que tinha pouco maquinário, tinha poucos armazéns com maquinário. Aí, só ensaca a mão na gamela, despejava o café no monte, batia a pá. E ensacava com a gamela, tinha o boca de sapo, jogava na balança — que era balança romana. E o balanceiro pesava. E o rabelo, que a gente dava o nome, puxava o saco e costurava o saco à mão, com agulha.

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O ano de 1907 foi bastante emblemático para essa mudança, já que diversas firmas exportadoras começaram a movimentação em vista de padronizar os tipos de cafés que compraria com aqueles utilizados em Nova York. Em carta enviada pela firma Theodor Wille ao Centro de Comércio de Café em janeiro daquele ano, “com o intuito de evitar reclamações quanto á classificação daquelle producto, communica que resolveu admittir que os discordantes nomeiem um corretor, para, juntamente com o sr. Manuel Gusmão, julgar da classificação”; em março do mesmo ano a Associação Comercial de Santos comunicou ao presidente do Estado de São Paulo que também tinha “adoptado os typos de Nova York para a classificação do café”. Correio Paulistano. 8 jan. 1907 e 2 mar. 1907, Acervo Biblioteca Nacional. 36

As famosas “queimas de café” iniciadas a crise que se instalou no mercado cafeeiro brasileiro após a crise de 1929 eram motivadas, por parte de mecanismos do governo, de se autorizar a venda de cafés apenas acima do “tipo 7” de Nova York. Caso tentassem burlar tal norma, os cafés seriam confiscados pelo governo e queimados. Por esse motivo, uma das recomendações de técnicos colombianos conhecidos e invejados pela qualidade do café daquele país – eram que “[...] todos os paizes productores que ainda não o tenham feito, o estabelecimento de armazens geraes, de deposito para o financiamento e classificação do café destinado á exportação”. Cf. Correio Paulistano, 7 jan. 1930, Acervo Biblioteca Nacional.

Aí, jogava e punha na pilha, ou embarcava. E foi assim que, quando eu 37 comecei.

Ermida retorna ao tema posteriormente, complementando seu raciocínio e estabelecendo relação direta do conhecimento do classificador com o do ensacador: O furador era furador, só. Porque tinha o caixeiro, tinha assim, quando você ia descarregar o café do Interior, o armazém tinha um furador, que era — aí, o fulano. Quer dizer, nós tínhamos o Valdemar, tinha o Manuel Neca, hoje, que ainda está vivo. O Valdemar já faleceu. Aí, o Valdemar era o furador número um, sempre ele ia furava, ele já tinha um furador e tal. Então, eles furavam o saco que o ensacador passava. Olha aí, peneira 14. A peneira para o 14 era miudinha. Peneira 15, era um pouquinho maior; peneira 16, era um pouquinho. Ele precisava saber. Às vezes, eles tinham uma peneirinha assim, aquilo só passava — o 14 ficava. Está entendendo? Eles tinham — aqui, só passava a 18, embaixo era 17, 16, 15 e 14. Então, ele punha e o que passava direto ele via. O que ficava no 14, ele [...] peneira 14. Peneira 14,15, 16, 17, 18. E o moca. O moca é o redondinho. Então, ele cantava: “Moca.” Aí, o cara escrevia no chão. Tinha um cara que só ficava — ele cantava lá: “Vai começar o caminhão. Peneira 14. Esse aqui, 14, vai dar muito?”— “Vai.”— “Então, põe no bloco.” Aí, punha no bloco. “A peneira 15. Esse vai dar pouco, [...].” Aí, marcava. Ficava 10. Peneira 16, vai dar pouco. Peneira 17, vai dar muito, põe no bloco. Aí, então, tinha um marcador, um trabalhador, só para isso. [...] Porque moca, punha no chão. Escrevia moca. MK, era moca. Então, 38 era assim.

Juntando os dois momentos, Ermida traz à luz toda a estrutura de trabalho que o acompanhou durante sua vida profissional: o balanceiro, o “boca de sapo”, o balanceiro, o furador, o caixeiro e o classificador do Armazém. Também deixa bem claro e registra seu conhecimento a respeito do tamanho grão, das peneiras. O classificador Davi, que iniciou sua vida profissional em uma exportadora de café como ajudante de prova na década de 1950, também relaciona diretamente as funções do classificador a sua memória de sua relação mais antiga com o café. Tendo de trabalhar ainda adolescência para ajudar a família, um contato dentro de uma firma exportadora fez com que conseguisse o emprego com aproximadamente 12 anos de idade como ajudante de classificação: Eu sou filho de pedreiro. Pra você vê que a relação, o contato pessoal do meu pai, não havia. [...] Davi – E a minha mãe é espanhola, e era dedicada à casa, fazia tudo pra uma família de quatro irmãos. Eu era o mais velho, tinha dez anos. Sempre gostei de estudar, mas eu fui obrigado a trabalhar porque, tinha que ter alguém começar a ajudando a família. E nisso, uma conhecida da minha mãe – minha mãe era espírita – e ela tem um contato grande com uma outra senhora, e senhora tinha um marido que trabalhava numa firma chamada Leon Israel. Eu tô falando a miúdos pra você perceber como é que funcionou o negócio. E esse contato, minha mãe foi lá pedindo, que ai não arrumava emprego, em padaria, farmácia, em lugar nenhum. Bom... e conseguiu então, ele pegou, me lembro até hoje, chamava-se Jaime, classificador da Leon Israel, ele pegou e disse assim pra mim: olha o que eu posso fazer pra lhe 37

MUSEU do Café. Depoimento do ensacador de café Antonio dos Santos Ermida, 2011, p.2. 38

MUSEU do Café. Depoimento do ensacador de café Antonio dos Santos Ermida, 2011, p.11.

ajudar, é pra vir trabalhar na cozinha, e era exatamente lavando copos e preparando as mesas para a prova de café. Ah, a minha mãe “não tem problema nenhum, pelo amor de Deus”... aí fui lá, e lá eu senti na verdade as dificuldades de emprego. Ninguém parava ali aonde eu estava, porque quem estava ali era quem indicou aquele pessoal já, era uma firma inglesa, tinha sempre... naquela ocasião era pior ainda, só quem tinha um bom padrinho que conseguia boas coisas. Eu tinha dificuldades muito grandes. Então, eu perdurei lá por... três anos. Trabalhe na copa, preparando as xícaras... não sei e você conhece, são mesas giratórias, né? Haviam três mesas giratórias, e eu passava das 8 e meia da manhã até as 5 horas da tarde, 1 hora e meia de almoço, não havia a semana inglesa, trabalhava-se sábado. E já, exatamente, coando água, moendo o café, que era um sistema totalmente diferente do atual, moía de dez em dez gramas. Agora você imagina uma mesa com sessenta copos, eu ter que fazer dez gramas, em cada copo, só que tinham três mesas. Eram cento e oitenta copos, e ficava duas vezes pela manhã, 360, e outros 360 à tarde. Era o meu serviço. Serviço maçante e cansativo. [...] E lá, então, já comecei a provar café. Esse foi o meu início nessa profissão, que eu estou até hoje. E a rotina que nós tínhamos, de classificador de café, de um ajudante, era isso. O ajudante faz um sustento das normas de classificação. É ele que torra o café, é ele que mói o café, põe água no café, chama os classificadores para virem tomar o café. Depois que os cafés são provados, você tem a marcação de bebida e entregar para o classificador, limpar a mesa e já providenciar uma segunda mesa. Então, essa era a função de um ajudante de classificador. E o classificador, em si, é aquele que mexe com o grão, mesmo, para atender o mercado interno, o mercado externo. Quer dizer, prova o café, é o que vê o tipo do café, [...], se aquele café que ele tem que embarcar está de acordo com aquele que ele tem na mesa. Então, a função de um classificador é exatamente fazer o enquadramento 39 entre o que ele tem no estoque e o que precisa ser exportado.

Obviamente, a função do classificador também passou por transformações ao longo do século XX, pois o trabalho na perspectiva do classificador envolvia mais que a classificação por tipos. A prova de xícara era muito mais importante na visão de Davi, a qual ele da uma perspectiva a partir do seu começo de sua vida profissional. Entretanto, aqui fica claro essa memória também estava mais atrelada a relação profissional que às relações pessoais e familiares. Entretanto, ambas funções deveriam passar pelo reconhecimento do grão de café por meio das normas estabelecidas como padrão em Nova York, reconhecê-lo através do tamanho das peneiras por números que iam dos números 9 ao 20, sendo o trabalho de um consequência do outro, com as ordens para formação de lotes sendo delegadas prioritariamente através desses números; ao separar os cafés dentro dessas categorias pelas amostras, aplicava-se aos lotes completos, despejava-se o café no armazém “em monte” e iniciavam o que diziam por “bater a pá”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Davi Antônio Pinto Teixeira, nascido dia 23 de janeiro de 1933 em Santos. Trabalhou como classificador de café e trader. MUSEU do Café. Depoimento do classificador de café e trader Davi Antônio Pinto Teixera, 2012, p.1-2)

Como nos ensina NORA (1993), memória e história em tudo se opõe, pois memória pressupõe a vida, a presentificação da história sempre carregada por grupos vivos; nesse sentido, está em constante evolução e dialética com lembranças, esquecimentos e ressignificações. À história, todavia, cabe problematizar a documentação oral, reconstruindo 40

criticamente os silêncios e transformações que aparecem nesses discursos . Ao analisar os discursos dos profissionais da Praça de Café de Santos ao responder a primeira pergunta do roteiro “qual sua relação com o café e como ela começou?”, diversos profissionais tiveram diferentes reações. Por um lado, um grupo chamou para si a memória construída da ancestralidade, mostrando uma tônica entre pessoas ligadas à direção de grandes escritórios e firmas; por outro, trabalhadores viram – mesmo que perpassada por pais ou avós dentro da mesma profissão – sua memória ao café ligada à técnica, ao trabalho e a construção de sua vida profissional atrelada ao trabalho com o café. Quanto à perspectiva familiar, esses discursos levam a duas possíveis interpretações acerca das construções da memória desses sujeitos. Em primeiro lugar é preciso levar em conta a situação da Praça de Santos nos dias atuais: a facilidade de contato com o interior e exterior do país fez com que cada vez mais os intermediários perdessem força dentro da negociação, já que sua principal reside no domínio da informação de quando comprar, quando vender, qual o momento que o mercado se encontra, etc.; esse fato fez com que acontecesse um esvaziamento de profissionais ligados ao comércio do café na cidade de Santos. O segundo aspecto, e que acompanha este primeiro, reside no fato da existência de uma necessidade de se gerar confiança para os clientes: em outras palavras, não perdendo de vista que a visita ao passado através da memória vem acompanhada de toda a problemática do presente, estes profissionais constroem seus discursos visando a sobrevivência de sua profissão, mostrando o quão confiável e tradicional suas firmas são. É perceptível que tanto Álvaro, quanto Eduardo e Jorge possuem trajetórias distintas, mas focam em elementos semelhantes para inserir sua memória no plano da tradição e da confiabilidade. Quanto à perspectiva de relações profissionais, relacionam-se trajetória pessoal técnica, questões inerentes à função cotidiana, e ao aprendizado que tiveram ao longo de suas carreiras. Aproximações e distanciamentos ocorrem ao longo dessa análise por motivos óbvios da diferença dessas funções, mas questões fundamentais para o entendimento dessas funções aparecem como a delimitação de campos específicos. Por exemplo, um ensacador possuir intimidade com termos específicos de tamanho e formato do grão, conhecimento compartilhado com o classificador de café demonstraram, na verdade seu afastamento da categoria dos estivadores. Além disso, dentro desses discursos apareceram questões relevantes, como uma

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NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993, p. 8-9. http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763. Acesso em: 19 jun. 2015.

necessidade de estabelecer relação causal com o sucesso profissional dentro de uma carreira no café, com a introdução nas funções ainda na adolescência. Em outras palavras, com essa comunicação pôde-se compreender que a memória – ainda conforme Nora – “emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e 41

desacelerada, coletiva, plural e individualizada” . Portanto, não existiria outra forma de trabalhá-la para reconhecer as transformações no trabalho e nas profissões do ligadas ao comércio cafeeiro na Praça de Santos ao longo do século XX sem que fosse feita essa crítica. Por outro lado, frente a pouca literatura histórica a respeito dessas profissões durante as décadas de 1940 a 1990, muitas lacunas ainda estão abertas e algumas hipóteses continuam sujeitas à questionamentos. De toda forma, tais questões reforçam a relevância do tema que continuará a ser discutido, no sentido de trazer mais esclarecimentos a respeito de como essas profissões transformaram-se e como essas pessoas constroem suas memórias profissionais, tanto individuais como coletivas.

REFERÊNCIAS I - DEPOIMENTOS MUSEU do Café. Depoimento do classificador de café Ayrton Souza Ferreira, 2012. MUSEU do Café. Depoimento do classificador de café e trader Davi Antônio Pinto Teixeira, 2012. MUSEU do Café. Depoimento do classificador de café Joe Ferraz Prado, 2012. MUSEU do Café. Depoimento do corretor de café Alvaro Vieira da Cunha, 2011. MUSEU do Café. Depoimento do corretor de café Eduardo Hayden Carvalhaes, 2011. MUSEU do Café. Depoimento do ensacador de café Antonio dos Santos Ermida, 2011. MUSEU do Café. Depoimento do ensacador de café Carlos Roberto Fernandes de Lima, 2012. MUSEU do Café. Depoimento do ensacador de café e fiel de armazém Alexandre Rodrigues, 2013. MUSEU do Café. Depoimento do estivador José Lopes Cunha, 2013. II - PERIÓDICOS Correio Paulistano, 16 jan. 1927, Acervo Biblioteca Nacional. Correio Paulistano, 17 jul. 1888. Acervo Biblioteca Nacional. Correio Paulistano, 7 fev. 1919. Acervo Biblioteca Nacional. Correio Paulistano, 7 jan. 1930, Acervo Biblioteca Nacional. Estado de São Paulo, 22 jan. 1937, Acervo Estado de São Paulo. III - BIBLIOGRÁFICO ALMEIDA, Paulo Roberto de. As crises financeiras internacionais e o Brasil desde 1929: 80 anos de uma história turbulenta. Disponível em: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/2013CrisesFinancBr1929Plenarium.pdf. Acesso em: 17 jun. 2015. BELLI, B. Ill Caffè. Milano: Editore – Libraio Della Real Casa. DANTAS, Pollyana Cardoso. Compreendendo o valor da palavra dada: A importância da História Oral na constituição dos trabalhadores como sujeitos históricos da “Fiação e Tecelagem Arenópolis”, 2012. Disponível em: 41

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993, p. 8-9. http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763. Acesso em: 19 jun. 2015.

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