Qualidade na literatura infantojuvenil: Comparação entre as obras \"A caminho de casa\" e \"As confusões da Duda e do Dudu\"

August 9, 2017 | Autor: Gabriel Machado | Categoria: Literatura Infanto Juvenil, A caminho de casa
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

COORDENADORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA INFANTOJUVENIL

Comparação entre as obras A caminho de casa e As confusões da Duda e do Dudu

Trabalho

apresentado

pelos

alunos

Gabriel

Machado e Luiza Miranda à professora Margareth Mattos, como pré-requisito para obtenção de créditos para disciplina Leitura e Formação de Leitores.

2014 NITERÓI

Introdução

A literatura tem um lugar específico na vida em sociedade. Nela, há propostas de abordagem dos conflitos e dos sentimentos inerentes ao crescimento individual dos sujeitos e de compreensão do mundo. Como arte, desempenha um papel libertador e transformador. Ouvindo e lendo histórias, crianças e adultos podem apresentar reações que manifestam seus interesses revelados ou inconscientes e conseguem vislumbrar, nas narrativas, soluções que amenizam tensões e ansiedades. Como ressalta Ana Maria Machado (2001, p.88): A literatura, por fazer uso estético da palavra, experimenta o que ainda não foi dito, inventa algo novo, propõe protótipos, enquanto o texto da cultura de massa vem carregado de estereótipos, trazendo apenas redundância e repetição do que já existe, consolidação do status quo.

Há necessidade de se promover uma leitura que realmente represente um fator incisivo no desenvolvimento geral do leitor. Pois a literatura também possibilita a promoção de outras competências através de sua leitura. Segundo Graça Paulino (2000, p. 59): Antes de qualquer outra consideração crítica [...], é preciso assumirmos que as habilidades exigidas na leitura literária são habilidades cognitivas, além de serem habilidades de comunicação, no sentido de habilidades interacionais e também afetivas.

Nos seus primórdios, a literatura para crianças tem função formadora, apresentando modelos de comportamento que facilitam a integração da criança na sociedade. Lajolo e Zilberman (1999) acreditam que a valorização da família na sociedade é a mola mestra que transforma a leitura em prática social, quando constitui atividade privada nos lares, tendo o livro como instrumento ideal para a formação da moral burguesa. Desde então, segundo as autoras, “ser leitor, papel que, enquanto pessoa física, exercemos, é função social, para a qual se canalizam ações individuais, portanto não é temerário afirmar a função social da literatura infantil, pois é na infância que se forma o hábito da leitura” (p.14). Mediante as tendências atuais da literatura infantojuvenil contemporânea, se faz necessário analisar a produção da literatura que está no mercado, ou seja, o texto, os temas e os reflexos na estética da obra. Dessa forma, este trabalho tem como objetivo

estabelecer uma comparação no que tange à qualidade nos livros A caminho de casa, de Jairo Buitrago, e As confusões da Duda e do Dudu, de Bebeti do Amaral Gurgel.

1. Qualidade na literatura infantojuvenil

O gênero literatura infantil começou efetivamente no século XVIII. Nessa época, criouse o conceito de criança e infância. Antes, ela participava da vida social adulta, inclusive usufruindo da sua literatura. No Brasil, os estudos em literatura infantil nascem na virada da modernidade para a pós-modernidade e refletem esteticamente esse sistema social complexo, vivendo entre o pré-capitalismo de algumas regiões, onde a urbanização não chegara, e as grandes cidades, de fácil acesso aos bens de consumo. Aos poucos, a literatura infantil e seu estudo ganharam relevância. O interesse que ela desperta provém de sua natureza desmistificadora: como, apesar dos condicionamentos externos, o gênero alcança uma identidade – atestada pela permanência histórica e pela predileção de que é objeto pelo leitor-criança –, mostra que a arte literária tem um espaço próprio de atuação (LAJOLO; ZILBERMAN, 1999, p. 18). O encantamento do leitor prova que a literatura, ao oferecer uma nova concepção de texto a múltiplas leituras, transforma o livro infantojuvenil em suporte para experimentação, questionamento e reflexão do mundo. A literatura infantil pode ser um espelho literal de uma dada realidade, pois, como a ficção para crianças pode dispor com maior liberdade da imaginação e dos recursos da narrativa fantástica, ela extravasa as fronteiras do realismo. Dessa maneira, o autor pode transmitir um projeto de realidade, buscando a adesão afetiva e/ou intelectual, ou investir em uma literatura escapista, dando vazão à representação de um ambiente perfeito e, por decorrência, distante. Alice Áurea, em O que é qualidade em literatura infantil e juvenil: com a palavra o educador, refletiu a respeito das escolhas de obras para leitura em ambiente escolar diante das inúmeras possibilidades do mercado editorial brasileiro e aconselha aos professores e educadores que consultem as listas do Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE), os livros agraciados com o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e os ganhadores do Prêmio Jabuti nessa mesma área.

Sabemos que há livros destinados aos jovens e às crianças que não atravessam as fronteiras regionais, não concorrem a prêmios, mas têm valor literário. É necessário, portanto, saber qual o critério a ser adotado. Algumas dicas são: criatividade, literariedade, linguagem simples mas não infantilizada, boa diagramação e uma ilustração criativa e artística. De todas essas qualidades, criatividade e literariedade são as mais importantes.

2. Análise do corpus 2.1 – Confusões sem graça e sem conteúdo

As confusões da Duda e do Dudu, de Bebeti do Amaral Gurgel (Editora Brasiliense), é a história de dois gêmeos, descritos repetidamente como quase iguaizinhos, que sempre aprontam alguma traquinagem. O livro é cheio de situações em que os irmãos ludibriam os pais e os amigos fazendo-se passar um pelo outro. Acreditando na ideia de que seriam tão iguais a ponto de não serem penalizados, fazem muita bagunça, sempre colocando a culpa um no outro, o que acaba dando um caráter antiético a narrativa, pois Duda e Dudu só sabem mentir e enganar. O objetivo da autora é mostrar que todos são iguais, mas ela não aposta na inteligência do leitor e condiciona-o a uma história pouco elaborada e sem surpresas. A obra também falha quando não consegue construir pontos de vista em que a criança não se reconheça. Com isso, remete à discussão levantada por Turchi: escrever para crianças não é dominar artifícios que venham a preencher rótulos, mas ser capaz de expressar-se dentro da ética de uma troca significativa em que o leitor se sinta tomando parte no mundo da literatura. Didatismo e moralismo não combinam com literatura e fruição; o livro não deve conter respostas prontas, mas ser fonte de prazer e descoberta, porta para a imaginação e a criação. Com atitude pedagogizante, na tentativa de ensinar as crianças a respeitar as diferenças, a proposta de Bebeti não apresenta traços ficcionais, e sim pragmáticos. Como afirma Paulino (2000, p. 46), anula a experiência estética e afasta os jovens da verdadeira literatura, já que estes passam a achar que todo livro é assim e criam aversão à leitura. Bebeti apenas quer impor uma lição, e de maneira convencional. A narrativa peca na tentativa de fazer o que Ceccantini (2011) destaca como

poder de sedução em livros para as novas gerações: presença de temas da atualidade, uma linguagem próxima daquela que crianças e jovens utilizam no dia a dia e projetos gráficos editoriais que embalem em grande estilo. E ele mesmo alerta para a grande maioria das obras que acabam sendo produzidas, provavelmente feitas às pressas e por encomenda (p. 40). Desde a quarta capa (em que o leitor descobre que os protagonistas estão escondendo brinquedos para pregar peças, em meio a vários rostos travessos dos gêmeos), e seguindo por todo o miolo (inclusive na folha de rosto e na página da ficha catalográfica), reitera-se o humor, a ludicidade que a autora quis alcançar, ainda que sem sucesso, pois o livro torna-se cansativo devido a suas inúmeras repetições. Já na primeira página: Era uma vez uma casa cor de abóbora A Duda e o Dudu moravam na casa cor de abóbora. O Dudu e a Duda moravam na casa cor de abóbora. De que cor mesmo era a casa da Duda e do Dudu? Era uma casa cor de abóbora.

O trecho descrito está ao lado de uma ilustração que mostra a casa cor de abóbora. E essa é só a primeira das 19 vezes que a autora fala a cor da casa em 24 páginas de texto. É apenas um dos muitos exemplos de repetições: é dito 5 vezes que o quarto da Duda é amarelo e o do Dudu é verde; 8 vezes que a casa tem cinco quartos grandes; 9 vezes (fora a quarta capa) que os protagonistas são gêmeos “quase i-guai-zinhos”. Duda e Dudu repete à exaustão, mas é uma repetição sem a dimensão mítica, ou seja, a narrativa não é uma sacralização da ficção, como quando a criança quer ouvir uma história dezenas de vezes. A história é criada apenas para passar um valor, deixando de ter valor. Como diz Graça Paulino (2000, p. 47), a leitura só tem sentido com o leitor ativo, criativo, e não é o que se pede de quem lê esta obra. Na primeira ilustração do livro, há uma bandeira nacional ao lado de um campinho em que crianças parecem jogar futebol com roupas da seleção e, na festa de aniversário dos gêmeos, sem motivo aparente, os pais estão usando camisas da seleção, talvez para que não vistam a mesma camisa na história inteira, como fazem os filhos, mas também para fazer uma referência à Copa do Mundo de Futebol, já que o livro foi publicado em 2010. Além de o texto não possuir ideias que estimulem o pensamento do leitor, ainda traz algumas obviedades, como “A Duda era menina. O Dudu era menino” (p. 8) e

“faziam aniversário no mesmo dia porque eram irmãos gêmeos” (p. 32). O livro também tem um erro de português na página 15 – “Duda você apagou um arquivo” –, pois o vocativo não é separado por vírgula. O único elemento mais original é a pizza “enorme” tomando a página dupla 2021 (na verdade, maior do que elas), mas volta a cair no erro quando o texto diz “pizza de queijo” e a ilustração mostra uma de margherita. 2.1.1 – Paratexto e epitexto

O texto de quarta capa é super-repetitivo, falando só de confusão e diversão, e essa é a tônica da obra: repetição o tempo todo sem um propósito, como se a autora idiotizasse a criança, seu público-alvo “a partir de 7 anos”, uma faixa etária, aliás, muito ampla e incompatível. A pretensão do livro – também apresentada na quarta capa junto à idade – é discutir “temas transversais” (expressão tão em voga, quase uma obrigatoriedade) como ética e pluralidade cultural, e o “prefácio” completa: “uma proposta de lazer e educação não sexista”. Porém, a história não tem nenhuma relação com ética e pluralidade cultural. E a tal proposta que recusa “os estereótipos e superados modelos de comportamento” é apenas mostrar os irmãos gêmeos usando as mesmas roupas e o mesmo penteado, o menino utilizar um brinco na mesma orelha da irmã, e ambos brincarem juntos, constantemente se fazendo passar um pelo outro, pois eles são “iguai-zi-nhos” e não é feita nenhuma distinção entre os sexos. Essa é a pretensa igualdade, que na verdade se trata de homogeneidade e falta de personalidade. Uma nota sobre o lançamento do livro, no jornal Gazeta do Povo, prepara o leitor para uma história com inclusão social, mas a única retratação para tal é na ilustração da página 33, com um cadeirante, um negro, uma muçulmana e uma indiana. Mas nas páginas seguintes as “minorias” não reaparecem na brincadeira da pintura. Como a autora não é conhecida na literatura infantojuvenil, não gera grande expectativa para a escolha de seu livro e o valor da pré-leitura de paratextos e de epitexto se faz essencial a fim de que haja algum atrativo para a preferência pela obra. Porém, ao mesmo tempo, Ceccantini (2011, p. 40) enfatiza que de pouco adianta a escolha de um título de excepcional qualidade para leitura em contexto escolar se, durante ou após a leitura, o estudante for massacrado com um sem-número de áridas atividades didáticas. A instrumentalização da literatura para realizar esta ou aquela

atividade tem sido alvo de duras críticas ao longo das últimas décadas, sendo apontada frequentemente como causas das mais significativas para a recepção negativa de obras literárias ou do baixo índice de gosto pela literatura.

2.1.2 - Relação texto-imagem

A ilustração é de Enzo Dornelas, um jovem arquiteto. A proposta é fraca, não há critério para o tamanho das ilustrações: ora elas ocupam a página inteira, ora fica uma faixa com a cor da página contígua na parte superior e inferior (às vezes até mesmo na lateral). Como afirma Van der Linden (2011, p. 120), “conteúdos idênticos são impossíveis, já que texto e imagem pertencem a linguagens distintas”, porém as imagens do livro são redundantes demais, não acrescentando sentido algum. Na página 18, a ilustração não tem nenhum relação com o texto sobre a pizza pedida, mas trata-se de mais um exemplo de “diabrura” dos gêmeos: vendo TV de cabeça para baixo. Um componente mal trabalhado no texto e na ilustração é a planta da casa. Cinco quartos grandes não fazem muito sentido, pois são duas crianças, que dormem em quartos separados, e um casal, também havendo a ausência de outros cômodos, como sala, cozinha e banheiro. O livro é bastante colorido, provavelmente porque o autor considerou que, assim, atrairia mais os leitores. Os pais de Duda e Dudu (sempre chamados de “mãe Cristina” e “pai Carlos”) aparecem sempre com roupas coloridas e alternativas, talvez numa tentativa de dizer que são “jovens”, “descolados”.

2.2 Um caminho que dá vontade de seguir

A caminho de casa, de Jairo Buitrago, com ilustrações de Rafael Yockteng (Coleção Comboio de Corda, Edições SM), narra a história de uma menina que vive com sua mãe e seu irmão mais novo na periferia de uma cidade e que, por conta das dificuldades que tem de enfrentar em seu cotidiano, pede para um leão lhe acompanhar até sua casa. Além de lidar com a ausência do pai e a falta de dinheiro, a jovem ainda tem que cuidar do irmão para que a mãe possa trabalhar em uma fábrica. Sobre o tema, que pode parecer incômodo para a literatura infantil, o colombiano Jairo Buitrago, em entrevista à agência Efe, explicou que optou por ele porque queria retratar uma realidade muito presente entre os jovens da América Latina.

Também destacou que, “apesar de a temática ser complexa, a história da menina e do leão é bastante divertida”,1 corroborando o que Maria Zaira Turchi (2004, p. 39) fala sobre a boa literatura infantojuvenil: sem reducionismo ou ingenuidade mas sem estar condicionada ao mesmo tipo de complexidade da literatura para adultos. Uma abordagem sutil e delicada, mas sem deixa de encarar o tema. O narrador infantil aproxima e ajuda na identificação do leitor com o personagem, mas não é só isso que transforma a leitura em uma atividade prazerosa. Segundo Turchi (2004, p. 38), há um leitor/ criança com o qual o escritor/adulto deseja construir uma ponte em que as setas do significado apontem nos dois sentidos e reciprocamente. Apesar de relatar um drama colombiano, não deixa de chamar a atenção de leitores brasileiros, pois em diversos momentos a realidade é compartilhada. E é o que faz dela uma narrativa universal, devido a sua força no imaginário, capaz de colocar em movimento

um

dinamismo

de

imagens

com

as

quais

os

sujeitos

interagem profundamente, modificando o próprio cotidiano. O objetivo do livro é a literatura: não há nada indicativo de didatismo, moralismo, nem na quarta capa nem no miolo; trata-se de uma ficção envolvente e com traços de história real. É uma proposta ficcional: tem a intenção de agenciar o imaginário do leitor, mas não um imaginário oposto à realidade e, sim, efeito do texto, dos signos articulados que produzem mundos, encenados pela linguagem (PAULINO, 2000, p. 44). 2.2.1 – Paratexto e epitexto

A quarta capa conta toda a história, mas o destaque são as ilustrações e, de fato, o caminho dela até casa, as reações ao leão, o âmbito da fantasia, assim como a crítica à situação social e política, que a criança não entenderá totalmente. Uma literatura de qualidade, pois pode ser apreciada também pelo adulto (e, aqui no Brasil, só compreendida completamente após uma pesquisa). O epitexto neste livro se faz de extrema necessidade para conhecer um pouco mais a história que envolve a trama. Por não fazer parte da materialidade da obra, foi

1

Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/escritor-colombiano-retrata-dura-realidade-latinoamericana-em-livro-infantil,55ace81e2424f310VgnCLD2000000ec6eb0aRCRD.html. Acesso: 25/02/2014.

necessário buscar a história por trás das pilhas de jornal com a manchete “desaparecidos em 1985”. Segundo Fiorin (2009, p.53), sem perceber as relações dialógicas, não se chega à compreensão: não se entende Buitrago completamente sem saber da situação colombiana. A ausência do pai é relacionada ao desaparecimento em 1985 de onze pessoas após a ocupação promovida pela guerrilha do M-19 da Corte Suprema de Justiça da Colômbia (em alguns lugares, fala-se em treze pessoas, além de uma torturada). Os onze saíram com vida do prédio, mas depois sumiram e, aparentemente, ainda não se sabe o paradeiro delas. A pilha de jornais mostra que a família acompanha com expectativa o julgamento do caso e as páginas finais indicam a esperança de que o pai volte e a acompanhe. O livro foi escrito em 2008, antes da condenação, em 2010, do coronel Alfonso Plazas, um dos militares que comandaram a recuperação do edifício, a 30 anos de prisão. O caso, nomeado Rodríguez Vera e outros vs. Colômbia, corre até os dias atuais e o Estado colombiano chegou a assumir responsabilidade pelos desaparecimentos, mas depois voltou atrás. Outra crítica social que pode passar despercebida pelo leitor brasileiro e que exigiu mais uma pesquisa é indicada na placa no pedestal com a inscrição “1948”. O ano marca o início do período chamado de La Violencia, que durou até 1958 na Colômbia, provocado pelo assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, candidato presidencial do partido liberal e um dos líderes mais carismáticos. O período foi um enfrentamento entre os partidos conservador e liberal e teve muitos assassinatos, perseguições, destruição de propriedades privadas e terrorismo.

2.2.2 - Relação texto-imagem

As ilustrações são bem elaboradas e vão além da narrativa, encaminhando o leitor para uma outra compreensão da obra. As ilustrações da obra têm a função de amplificação, segundo a classificação de Van der Linden (2011, p. 125), pois dizem mais que o texto sem contradizer ou repetir; é um discurso suplementar ou nova interpretação. Tanto a narrativa quanto as ilustrações são de uma estética primorosa. Para Turchi (2004, p. 38), “considerar o livro para crianças um objeto estético é reconhecerlhe o estatuto de arte”. Não se trata de uma obra pragmática, mas de uma que tem a capacidade de construir espaço textual plurissignificativo.

A simbologia dos objetos escolhidos para compor a narrativa e as ilustrações foi muito bem-elaborada: a flor, sinal de alegria em meio à pobreza, à poluição e ao cinza da cidade, aos prédios em mau estado, inclusive a escola; o leão, símbolo do princípio masculino, da ressurreição (mistério da morte e do renascimento), do poder, da realeza, que também aparece discretamente como o nome da avenida em que fica a venda onde a menina tenta fazer compras. Detalhes como o título com a setinha tracejada indicando trajeto e a pata de leão entre os nomes do autor e do ilustrador dão um toque de leveza e criatividade na capa de Rafael Yockteng. As emoções dos personagens são transmitidas pelas imagens, com o leão “em partes” na capa e na quarta capa dando aconchego à menina e em posição de proteção na primeira página, figura que se repete na folha de rosto. Interessante também notar que as cenas do livro retratam o que a personagem principal imagina, como as pessoas com medo do leão. Para a menina, ela até conseguiria comida na venda onde não tem crédito porque o leão assustaria o dono do lugar. Porém, logo no início do livro, se vê ao fundo ainda a estátua do leão, como se ele não tivesse saído de lá. De qualquer forma, o leitor já foi capturado pela poeticidade da história. E vai descobrir que o leão é uma bela representação do pai da menina.

Conclusão

Um bom livro é aquele que agrada, não importando se foi escrito para crianças ou adultos, homens ou mulheres, brasileiros ou estrangeiros. “E ao livro que agrada se costuma voltar, lendo-o de novo, no todo ou em parte, retornando de preferência àqueles trechos que provocaram prazer particular” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2005, p. 9). Essa definição ressalta a importância da leitura de qualidade, pois é através dela que a criança vai encaminhar-se para o processo de desenvolver o gosto pela leitura e conseguir reconhecer a riqueza de linguagem que oferece o texto literário. É necessário seguir Turchi (2004, p. 44): “Mais do que nunca, é tarefa da crítica da literatura infantil: a avaliação – analisar a literatura contemporânea, o crítico tem a responsabilidade com a arte de sua própria época; a seleção – mostrar o que ler ou reler e de que modo; a formação – estabelecer conexões, abrindo para estudos culturais mais amplos, envolvendo todo o processo de leitura.”

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