QUALQUER \" CUJO \": CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA NEGATIVIDADE NA OBRA DE NUNO RAMOS

May 18, 2017 | Autor: Carolina Anglada | Categoria: Arte Contemporanea
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QUALQUER “CUJO”: CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA NEGATIVIDADE NA OBRA DE NUNO RAMOS ANY “CUJO”: CONSIDERATIONS ABOUT THE NEGATIVITY IN THE WORK OF NUNO RAMOS Carolina Anglada de Rezende1

Resumo: O presente artigo visa estabelecer uma interseção entre a obra Cujo, de Nuno Ramos, e a filosofia de Giorgio Agamben, tendo como eixo o pensamento da negatividade. Considerando tratar-se de obras marcadas pelo limiar do século XX, em que o fim da esperança em propostas coletivistas e comunitárias deu lugar a um pensamento crítico a respeito da essência das comunidades, as obras objeto deste artigo propõem, às suas maneiras, novas maneiras de pensar o comum. Palavras-chave: Negatividade, Nuno Ramos, Giorgio Agamben. Abstract: This article aims to set an intersection between the work Cujo of Nuno Ramos, and the philosophy of Giorgio Agamben, whose axis thinking of negativity. Considering the case of works marked by the twentieth century boundary, where the end of hope in collectivist proposals and Community gave way to critical thinking about the essence of the communities, the works object of this article suggests, to their ways, new ways to think the ordinary. Keywords: Negativity, Nuno Ramos, Giorgio Agamben.

A semelhança é o melhor disfarce “O ser que vem é o ser qualquer”. Assim, de forma aforística, é que Giorgio Agamben (2013a, p. 9) começa seu conjunto de ensaios-fragmentos A comunidade que vem, posicionando-se a respeito de uma longa discussão filosófica sobre o comum e a comunidade, que se estende desde a relação intelectual entre Bataille e Kojève a Jean-Luc Nancy, passando por Maurice Blanchot2. Tal discussão filosófica adveio da chamada “crise do comum”, de um momento quando as antigas formas de contorno e consistência dos laços sociais, nacionais, ideológicos perderam sua vigência. No entanto, o foco da obra do pensador italiano será a potência do comum inscrita em uma ordem de singularidade, a partir da recuperação do termo latino “quodlibet” que designa o “qualquer um, indiferentemente”. Calcado, portanto, não na seleção e nem na indeterminação de um ser, mas em um “ser tal que, de todo modo, importa” (AGAMBEN, 2013a, p. 10), o filósofo italiano ultrapassa a antinomia individual/ universal, cujos desígnios foram responsáveis por derivar a discussão para a questão do comunismo, da comunicação ou para a questão da representação na arte e na política, por exemplo. A potência encontrada no ser 1

Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Brasil. E-mail: [email protected]. 2

A respeito desse tema, encontramos, a princípio, a obra A experiência interior, além de textos sobre a soberania, escritos por Bataille e, posteriormente A comunidade inconfessável, de Blanchot e La communauté désoeuvrée, de Jean-Luc Nancy, que formulam uma teoria da comunidade a partir das proposições batailleanas. Tanto Blanchot quanto Nancy concordam sobre a impossibilidade de uma comunidade positiva fundada sob pressupostos comuns. Vale lembrar que o acontecimento do nazismo vem a pôr fim na imaginação de uma possível comunidade erguida sobre um comum, seja ele nacional, de gênero, linguístico etc. Então, a experiência da morte surge como o único fundamento para uma possível comunidade necessariamente negativa.

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qualquer agambeniano é a do homem comum, aquele que mantém uma outra relação com as noções de propriedade e de impropriedade. Assim é que Agamben (1993, p. 25) define: qualquer é a coisa com todas as suas propriedades, mas nenhuma delas constitui diferença. A in-diferença em relação às propriedades é o que individua e dissemina as singularidades, as torna amáveis.

Ser qualquer, ser-tal, ser singular. Ser que se esquiva de toda identidade, de toda condição de pertencer, e, assim, se esquiva também da captura do Estado; sua comunidade não é mediada nem por identificação, tampouco por pertencimento. Agamben (2013a, p. 87), em uma espécie de apêndice de A comunidade que vem, acrescenta: “O ser, que é assim, irreparavelmente, é o seu assim, é apenas o seu modo de ser”. Ser o assim é ser o seu cujo. Esse pronome relativo é responsável por introduzir as orações subordinadas adjetivas, isto é, “cujo” é a promessa do encadeamento de uma primeira oração principal e uma segunda que vem a caracterizá-la, distingui-la pela adjetivação. O ser qualquer, no entanto, é aquele que manteria em suspenso sua pertença, que se manteria in-diferente a essa adjetivação, aquele que se sustenta in-diferentemente às suas posses, às suas qualidades. Ser singular, perfeitamente qualquer. Colocamos em questão a relação do “ser que vem” com este pronome relativo específico no sentido de tentar aproximar o pensamento agambeniano sobre o qualquer com a primeira obra literária do multi-artista contemporâneo Nuno Ramos, intitulada precisamente de Cujo, publicada na mesma década que A comunidade que vem. Afinal, a qualidade de ser qualquer não baniria a cujidade? Esse pronome, como veremos, acaba por ganhar outros contornos, tendo a sua função sintática e o sentido dessa função, interrompidos. Desde o início do texto, o ser narrado pode ser identificado como um alguém que relata e descreve as transformações da matéria antes de elas tornarem-se obra propriamente dita. A princípio, água, alga e lama são as matérias colocadas juntas, como uma escultura. Elas se misturam, derretem, escorrem, suam. O lastro deixado na linguagem revela-se igualmente instável: os processos mais longos resultam em fragmentos narrativos mais extensos ao passo em que há momentos de extrema concisão, brevidade, opacidade na sintaxe. Mantém-se, entre as etapas de transformação, entre as matérias envolvidas, a distância que a obra não para de esconjurar. A matéria-linguagem torna-se movediça: o sujeito, esse alguém, até então, operador ou dispositivo da transformação, quase desaparece. Em um desses sketches-fragmento, logo no início do relato, o vidro derretido é adicionado a um breu. Para a formação da escultura, Seria preciso, então, que os materiais se transformassem uns nos outros ininterruptamente e, o que é mais difícil, encontrar um nome para este material proteico, um nome que tivesse as mesmas propriedades dele. (RAMOS, 2011, p. 9)

Indiferença e correspondência; percepções sobre a relação entre as palavras e as coisas. Essas são, certamente, questões que atravessam a obra de Nuno Ramos no sentido de seu trabalho se dar no âmbito da literatura e das artes plásticas. Naturalmente, lembramos a célebre obra de Michel Foucault, em que o pensador se detém precisamente na relação entre as palavras e as coisas, para buscar as diferentes constituições epistêmicas que ela gera no Renascimento, na Idade Clássica e na Modernidade. Em um paradigma da semelhança, exposto como método para o saber sob as figuras da conventia (conveniência), aemulatio (emulação), analogia e simpatia, o mundo dobrava-se sobre si mesmo, numa relação de espelhamento, decifração, encadeamento. Sabemos que esse saber das similitudes tem a sua limitação, uma vez que as coisas não permanecem as mesmas. Por isso a empreitada do artista de Cujo é impossível: as coisas assemelham-se ao passo que as formas desintegram-se, os nomes distinguem-se, e a

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própria relação entre palavra e coisa, a partir da Idade Clássica, não é mais consubstancial. A linguagem deixa de ser vista como matéria e torna-se representação, opacidade, distância. “Pôr um nome dentro de uma pedra não faz sentido, pois ela já tem este nome, pedra”, afirma o narrador (RAMOS, 2011, p. 11). Cujo apresenta, então, a busca pela singularidade dos quaisquer, qualquer ente, entre o anonimato ou a impropriedade daquele que é narrado em sua trajetória de manipulação e reflexão sobre matéria e linguagem e o desprendimento dos materiais em transformação. Nesse movimento da obra, surgem pelo menos três regimes a partir da observação da matéria, que tendem a orientar a sua dinâmica: 1) regime de visibilidade/invisibilidade, 2) regime de semelhança/dessemelhança e 3) regime de centralidade/liminaridade, sendo que cada um age transversalmente aos outros. Polarizado, de um lado, pela intensa absorção do sujeito do texto nos processos de interação e transformação da matéria, e, de outro, pelas incessantes tentativas de fixar os procedimentos em regras, o sujeito-narrador, muitas vezes, sentencia a partir da observação, como o faz no trecho a seguir: Tudo o que reflete some. Não vemos o espelho, apenas o que nele se reflete. Se o espelho estiver sujo, veremos a sujeira sobre ele depositada e não veremos tão bem as imagens refletidas. Quanto mais impura e opaca a superfície, mais identidade ela própria ganha. Toda superfície, no entanto, reflete de algum modo a luz, ou não seríamos capazes de enxergá-la. Há algo de espelhado, de invisível portanto, em tudo o que vemos: aquilo que é refletido, a luz que abre os objetos. Se todas as coisas refletissem como espelhos, viveríamos num mundo de relações ininterruptas: tudo remeteria a tudo, como quando pomos um espelho em frente ao outro (mas como seria monótono). A identidade de um objeto depende antes de mais nada de sua opacidade. É ela que o separa dos demais e guarda para si suas propriedades. (...) Quanto mais reflexos, menos propriedades tem um objeto, menos ele se distingue dos demais. A conclusão a que chegamos tem sabor de paradoxo: quanto maior o número de reflexos, mais relações um objeto produz e quanto mais relações, mais semelhante ele se torna. (RAMOS, 2011, p. 51)

Não por acaso, o fragmento assemelha-se ao que Foucault descreve como o paradigma renascentista da semelhança. Nuno Ramos, no entanto, vincula a possibilidade de infinito espelhamento dos objetos que refletem – de sua ilimitada potência de semelhança, que é proporcional, consequentemente, à desmesurável potência de desaparecimento – à invisibilidade. Daí, que o escritor postula os “três modos de invisibilidade”: “tudo refletir” (como os espelhos), “nada refletir” (a exemplo dos buracos negros que absorvem a luz) e “transparência” (que o narrador só explica mais à frente, no livro). O segundo regime emerge, naturalmente, dos critérios da (in)visibilidade: a semelhança é, como vimos, efeito da luminosidade sob a matéria. O dessemelhante seria, então, aquele que encontra-se a meio termo: nem tudo reflete, nem toda luz absorve. Isso se deve, como já abordamos, ao grau de sua opacidade (que é a resistência à reflexão). Assim se conclui: “A escala de visibilidade seria, portanto, inversa a das propriedades”. (2011, p. 51) Quanto menos ele é próprio, mais visível. A potência da visibilidade advém do tornar-se impróprio, do assemelhar-se, ou, se arriscarmos uma aproximação com o qualquer, de Agamben, uma indiferença à sua propriedade. Um pouco antes, o narrador afirma, sob a forma de um aforisma: “Rostos conhecidos concentram-se aos poucos num único rosto”. (RAMOS, 2011, p. 23) E tarefa do artista é à aparência a aparência mesma, a condição vazia do homem, a dissimulação das imagens. Os rostos se concentram num único rosto atestando a simultaneidade de um estarcom, o limiar de um fora e um dentro, de uma propriedade e de uma impropriedade. Cujo solicita, nesse sentido, a experiência da matéria, de um fora, a priori. A rigor, essa experiência acaba por exigir um confundir-se com a matéria. Da matéria animada ou inanimada, bruta ou alterada, passa-se à natureza humana, a um relato narrado em primeira pessoa,

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subjetivo, consciente. Por isso, inquirir sobre a relação entre superfície e substância será interrogar-se, constantemente, a respeito da pele3. A pele é uma espécie de borda que, por sua vez, atua na deferência de um eu. O limiar entre linguagens, entre matérias, o começo de um dentro e um fora: Comecei a arrancar a pele das coisas. Queria ver o que havia debaixo. Ergui a superfície do assoalho, que saiu inteira, sem quebrar. Tive de descascar a pele dos tijolos aos poucos, com paciência. A pele do cimento era a mais fina de todas e a dos azulejos refletia como um espelho. Debaixo destas peles parecia haver outra pele, idêntica porém enrugada. Retirei mais esta camada e o enrugado da superfície aumentou. Fui retirando camadas sucessivas, cada vez mais onduladas e acidentadas. A pele da tábua do assoalho foi a primeira a apresentar grandes rombos e uma tonalidade avermelhada apareceu em sua parte inferior. Pequenas farpas de madeira prendiam-se agora a ela, perfurando-a em diversos pontos. As camadas da pele do cimento começaram a grudar umas nas outras. Já não era possível retirá-las tão finas (quase transparentes) e a força empregada passou a ser bem maior (tinha os braços cansados, agora). A alteração mais triste acompanhou a pele dos azulejos: quanto mais profundas, mais opacas ficavam as camadas. A nitidez especular da primeira pele (bem superior à do azulejo inteiro) transformou-se pouco a pouco na tonalidade leitosa de um dia nebuloso ou de um olho vazado. A pele dos tijolos foi simplesmente virando pó: se no início era ainda possível descascá-la, havia perdido agora toda consistência e se desintegrava ao primeiro toque. Não era mais uma pele, nem uma superfície: transformara-se num material arenoso qualquer. Podia ser pó de tijolo, cal, areia ou, quem sabe, os restos de um defunto. Por trás de cada pele, portanto, encontrei apenas formas degradadas da pele superficial. Ainda que os dados não sejam suficientes, devo concluir que esta primeira camada não recobre um interior diferenciado, mas é a expressão mais estável deste interior, que a repete monotonamente. (RAMOS, 2011, p. 30-32)

A pele mais externa é a expressão repetida monotonamente do interior, até tornar-se o mais indiferenciada de si mesma possível. O exercício é cansativo: os pelos adentram os poros, contaminam-se. Logo, o descascador se entendia, assemelhando-se ao próprio tédio da repetição de camadas: “Dá sempre no mesmo: atrás da madeira, a madeira, dentro do óleo, o óleo, no interior do plástico, o plástico”. (RAMOS, 2011, p. 39) “A diferença não importa”, diz o narrador, porque ela é indiferente. As coisas se aprofudam, se interiorizam, e o escafandrista, quando descobre que elas nada têm a exprimir, retém-se na superfície. A pele não é a diferença, ela é o limiar e a troca. Essas, sim, produzem a diferença. Digamos que, na busca pela expressão de uma singularidade, Nuno Ramos encontra o acontecimento de algo muito próximo ao que Agamben denomina de “Fora”, em A comunidade que vem. Mas, se a direção do movimento de Ramos é de fora para dentro, inicialmente, o movimento sugerido pela reflexão agambeniana sobre o qualquer dá-se de dentro para fora, da particularidade e sua relação com a exterioridade. Agamben afirmará que a singularidade pura que caracteriza o qualquer só pode ser determinada “através da sua relação com uma ideia, isto é, com a totalidade das suas possibilidades”. (AGAMBEN, 2013a, p. 62) Idea nos chega aqui como expressão dessa passagem entre a singularidade e o fora. A comunidade que resta para ser pensada, assim, não terá o seu sentido focado no eu, na identidade, mas em não-eus, na relação do impróprio com a exterioridade, que, se trouxermos Lacan e o conceito de extimidade, resultará no que é radicalmente singular, e, no entanto, vem de fora. 3

O relevo que a pele dá à obra de Nuno Ramos é de tamanha importância que o pesquisador Eduardo Jorge orientou sua tese de doutorado no sentido de trabalhar a questão. O título da tese, defendida em 2014 na Faculdade de Letras da UFMG, é Inventar uma pele para tudo e encontra-se disponível para leitura em: .

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Trata-se de salientar a pertinência da figura do limiar e da passagem ao invés do limite ou da barreira. E é precisamente nesse sentido que tomar a pele como eixo de um pensamento sobre a matéria, sobre a linguagem e sobre o ente dirá sobre a prevalência de um movimento de troca, sobre “a experiência do limite mesmo, o ser-dentro de um fora”, como afirma Agamben, que resta como impensado na filosofia Ocidental. A singularidade é marcada pelo espaço vazio gerado, pelo limiar, pela pura exterioridade: “Qualquer é, nesse sentido, o acontecimento de um fora”, “a experiência, absolutamente não-coisal, de uma pura exterioridade”. (AGAMBEN, 2013a, p. 64) O pensador italiano revolve, nessa obra, a antinomia individual versus coletivo, cuja origem reside na própria linguagem. A linguagem normaliza as singularidades. O nome une, o signo reúne significado e significante a partir da neutralização das diferenças. Isso, certamente, é uma das perturbações do artista de Cujo: Não sei como coisas tão díspares se juntam pelo nome. Podemos pôr palavras juntas, mas não os dias e as aves. Os animais têm ancas e suas ancas são cobertas de pele. Uma pedra é tão distante de outra pedra, vizinha, mas nós dizemos pedra, nós, bichos de carne, que nem um corpo duro temos, só esta bolha fraca e molhada. Dizemos rosas às rosas e nosso dedo aponta. Nosso sexo empina. A pedra de nossa lápide e a cal que nos termina, estas também são coisas. Mas cuidado, a palavra é que junta tudo. Nossa roupa toca nosso peito, ela é nossa. É nossa agora, ao menos, mas não, cuidado. Roupa é a palavra entre nós e essa planta morta, tecida fio a fio depois de arrancada e que nós usamos, pendurada. (RAMOS, 2011, p. 79)

A comunidade e o ser que vêm não podem ser pensados em termos de um dever ou de um compromisso histórico. Todos os regimes da mesura e desmesura da matéria com que lida o sujeito-narrador de Cujo revelam-se apenas intenção de exposição, tomada. E nesse percurso, constata-se, muitas vezes, no ente e no ser, a impropriedade. Na figura do qualquer, Agamben estabelece a impropriedade como o que é buscado e realizado no fim. Afinal, a antinomia entre individual e coletivo tem a mesma causa da antinomia entre o dentro e o fora, o singular e o indiferente: a linguagem. Com todo o desarranjo realizado por Cujo, todas as investidas na matéria e na matéria da linguagem, a marca da singularidade emerge não mais em oposição ao comum. Portanto, a comunidade esboçada por Nuno Ramos, parece refletir, naquele grau apropriado em relação à opacidade, uma compreensão não-essencialista, e não-antinômica de comunidade. Osso feito de carne Concomitantemente ao esforço crítico da filosofia em conjecturar a possibilidade do comum e da comunidade que não fossem medidos em termos de essência, orientou-se o pensamento nos fins do século XX, para uma dessencialização do que viria a ser o propriamente humano. Agamben é um desses pensadores que, reiteradamente, esforçam-se para esvaziar os argumentos de uma habilidade ou obra própria do homem. A linguística moderna demonstrou como é por meio da linguagem que o ser humano se constitui como sujeito. Em outras palavras, o sujeito é nada mais que o locutor. Se a linguagem é ausente, não há possibilidade de sujeito, e onde há um sujeito, está sempre pressuposta a linguagem. Agamben, entretanto, ultrapassa a conceituação linguística moderna de homem, em busca de uma in-fância possível; para o pensador, a in-fância é precisamente aquilo que diferencia o homem da teoria do inatismo da linguagem, atestando a existência de uma experiência e negando a linguagem como totalidade e verdade própria e concluída do homem. Lemos em Infância e história que experimentar esse estado infantil é para o homem tarefa elementar no sentido de reconhecer o abismo entre língua e fala, entre a semântica e a semiótica, pois que a linguagem não abole os variados usos corretos ou incorretos, mas é sempre uma

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descontinuidade e uma tensão, visíveis, por exemplo, no emjambement da poesia. Nesse ponto, Agamben reconhece que o que distingue a linguagem do homem e a do animal é que esta última não é marcada pela cisão e hesitação; o animal, portanto, está inserido na linguagem como “água na água”4, nos termos de Georges Bataille. Interpelando-se sobre a propriedade humana da fala, o pensador italiano atesta: Os animais, de fato, não são destituídos de linguagem; ao contrário, eles são sempre e absolutamente língua, neles la voix sacrée de la terre ingenue – que Mallarmé, ouvindo-a no canto de um grilo, opõe como une e non-decomposé à voz humana – não conhece interrupções nem fraturas. Os animais não entram na língua: já estão sempre nela. (AGAMBEN, 2012b, p. 64, grifo do autor)

Mas outra consequência, e não menos importante, a experiência da in-fância concede ao homem: o de ser um processo inesgotável e ininterrupto. Da passagem da pura língua ao discurso, este trânsito ocorre a cada vez que o homem abandona a sua in-fância, entrando na língua e transformando-a radicalmente. A linguagem, como Agamben defende, não está toda inscrita no código genético como se nos fosse inteiramente natural e forçoso aceder a ela. No caso dos animais, o pensador italiano cita estudos que comprovam a permanência de um extrato do canto normal em casos de pássaros privados prematuramente da possibilidade de escutar aos seus semelhantes. O homem seria distinto no sentido de que não há nada que garanta a inerência da fluência verbal caso ele não seja exposto a atos de fala entre os dois e os doze anos de idade. Assim, se a máxima aristotélica compõe o homem como “o animal que possui linguagem”, o esforço agambeniano, por meio de incursões linguísticas, filosóficas, na etologia, na genética, entre outras, caminha no sentido oposto, acreditando que o homem é o animal desprovido de linguagem e que deve recebê-la de fora. Mais uma vez, o fora e o dentro, mediados por um limiar, é que concedem a singularidade do ser. Como comenta o ensaísta brasileiro Claudio Oliveira no artigo sobre A linguagem e a morte: Em última instância, o que marca o conceito de infância é que há uma entrada na linguagem, que o homem não nasce falante, que ele não é, como quer Aristóteles, um ser naturalmente dotado de linguagem. (OLIVEIRA, 2008, p. 109)

Dito dessa forma, entende-se que, para Agamben, o homem nunca é inteiramente provido de linguagem; há uma entrada a cada ato de fala, isto é, o homem não cessa de entrar na linguagem, por ter infância. A infância é o que permanece sem linguagem a cada vez que o homem entra na linguagem. Outra de suas obras é destinada a deter-se nas disjunções do homem e do animal, no sentido de desvelar uma natureza humana. O aberto sustenta que, ironicamente, o resultado do humanismo, pelo movimento da máquina antropológica de então, foi verificar “a ausência para o Homo de uma natureza própria, mantendo-o suspenso entre uma natureza celeste e uma terrena, entre o animal e o humano” (AGAMBEN, 2013c, p. 53), sendo, portanto, ao mesmo tempo, mais e menos que si próprio. Baseado em uma oração do renascentista Giovanni Pico Della Mirandola, cujo teor torna-a um “manifesto do humanismo”, e traçando paralelos com o pensamento de Lineu, Agamben conclui a respeito do impróprio do homem: “A descoberta humanística do homem é a descoberta da falta de si mesmo, de sua irremediável carência de dignitas”. (AGAMBEN, 2013c, p. 54) O homem não possui mais do que um traço provisório, um aspecto indeciso e aleatório, cujos contornos poderão ser passageiros. Lineu, o responsável pela nomenclatura Homo sapiens, deixa entrever algo neste nome não mais do que genérico: o homem é aquele que se reconhece humano. Lembremos Riobaldo, Para o filósofo francês Georges Bataille, em Teoria da religião, “todo animal está no mundo como água na água”. (1993, p. 20, 23, 25) 4

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em um dos desfechos literários mais irresolutos: “Existe é homem humano. Travessia". (ROSA, 2001, p. 624) O apoio filosófico da sentença de Guimarães Rosa seria Agamben, quando afirma que: definir o humano não por meio de uma característica notável, mas por meio do conhecimento de si, significa que é homem aquele que se reconhece como tal, que o homem é o animal que deve reconhecer-se humano para sê-lo. (AGAMBEN, 2013, p. 49, grifo do autor)

É por desejar reconhecer-se que o homem deseja a linguagem, para diferenciar-se, para distinguir as coisas pelo nome. Na descrição científico-biológica, na filosofia do humanismo, na literatura: o homem carece de rosto e definição. Isso posto, não haveria, então, absolutamente nada de propriamente humano? Isento de especificidade, de essências e pertenças, qual seria a sua faculdade? Pode o homem alguma coisa? Agamben, Nietzsche, Foucault, Bataille responderiam a respeito de uma instância presente na filosofia Ocidental, desde o pensamento de Aristóteles, mas cujos desígnios mudaram a partir da modernidade: a potência. Para Giorgio Agamben, trabalhar na instância da potencialidade tem permitido desconstruir pressupostos relativos à humanidade, determinando que o homem é aquele que potencialmente tem acesso à linguagem, como também tem a potência de não, de permanecer na in-fância, palavra essa cujo significado etimológico seria a não linguagem. O homem é também aquele que pode tornar-se humano, reconhecendo-se, por exemplo, em um não humano, na divisão, em si, de uma humanidade em relação a uma animalidade. Isto posto, acaba-se por desconstruir, consequentemente, a distinção tradicional (isto é, temporalmente definível) entre o estado natural e a cultura. Agamben, principalmente em Homo Sacer, revê essa pretensa distinção entre o estado de natureza, no qual o homem ainda sofria os processos de hominização, e, por isso, estava entregue à barbárie e à animalidade, e a cultura, que nasce a partir do contrato social e se ergue na formação do Estado. O homem, na verdade, teria abandonado os seus direitos sobre si, e o estado de natureza, por sua vez, seria mantido dentro da política moderna, assim como produzido internamente pela máquina antropológica, como forma de se fazer necessária a atuação e a violência política: O estado de natureza é, na verdade, um estado de exceção, em que a cidade se apresenta por um instante (que é, ao mesmo tempo, intervalo cronológico e átimo intemporal) tanquam dissoluta. A fundação não é, portanto, um evento que se cumpre de uma vez por todas in illo tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma de decisão soberana. Esta, por outro lado, refere-se imediatamente à vida (e não à livre vontade) dos cidadãos, que surge, assim, como o elemento político originário, o Urphanomenon da política: mas esta vida não é simplesmente a vida natural reprodutiva, a zoé dos gregos, nem o bíos, uma forma de vida qualificada; é, sobretudo, a vida nua do homo sacer e do wargus, zona de indiferença e de trânsito contínuo entre o homem e a fera, a natureza e a cultura. (AGAMBEN, 2012a, p. 108, grifo do autor)

Cujo opera também nesse sentido: tornando inoperantes as distinções visuais, cronológicas, materiais entre os objetos da natureza e aqueles da cultura. Logo quando as descrições das transformações passam a ser a tônica da obra, do texto-obra e da obra-escultura narrada em suas etapas de realização, o sujeito se debruça sobre animais como baleias, coelhos e pombos, sobre grama, planta, céu, mar, chuva, para deles extrair suas formas comuns, suas indiferenciações. Daí surgem as associações imprevisíveis entre palavras que, dispostas uma à frente da outra, indicarão o movimento que lhes trará alguma proximidade, como “Mortos, vivos. Cães, latidos” (RAMOS, 2011, p. 35), “Sargaço, alga, sal, elevação cíclica da água (marola), espuma, cilindro se desfazendo, rebentação, areia, areia” (RAMOS, 2011, p. 41), “Alho, chicletes” (RAMOS, 2011, p. 55), “Veludo asa, mármore dente” (RAMOS, 2011, p.

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65). Tais palavras, provenientes de categorias que se excluem mutuamente no âmbito da semântica ou que, ao menos em certo sentido, não se dizem respeito, quando unidas estabelecem a possibilidade de uma outra relação entre elementos da natureza e os da cultura, de modo que não podemos identificar uma dominação do natural pelo humano. O próprio homem sujeita-se à metamorfose, ao mimetismo relativo à paisagem circundante, por exemplo, quando lemos “Fios como musgo e mofo crescem em meu braço e crânio” (RAMOS, 2011, p. 71) ou “Eu estava me arrastando, como um bicho com um espinho na pata”. (RAMOS, 2011, p. 41) Nuno Ramos surge, portanto, como um desses nomes, a focalizar os processos metamórficos do obrar e do desobrar naturais, as zonas de indistinção, a descentralização do racional. Em uma de suas mais comentadas exposições, intitulada Fruto estranho, exposta no MAM do Rio de Janeiro, de setembro a novembro de 2010, esta tensão não resolvida entre natureza e cultura, em outras palavras, entre técnica humana e elemento natural, exibe-se na instalação formada por dois monomotores incrustrados no tronco de uma árvore. Das asas dos aviões, goteja soda cáustica em contrabaixos transformados em poços de banha quente, de maneira que o sabão se re-produza e atinja toda a obra. O resultado final é uma espécie de monumento desajeitado, fruto de uma técnica que não foi capaz de conter o acaso (do acidente), tampouco o apodrecimento dos elementos animados e inanimados, pareados, nesse sentido, como representantes da natureza e do artifício. Não por acaso, uma obra recente da crítica Florencia Garramuño, destinada a percorrer a variedade de estilos e temas contemporâneos na arte, em suas diferentes manifestações, intitula-se Frutos estranhos. Com referência à inespecificidade da obra artística, bem como dos materiais e elementos envolvidos na instalação de Ramos, a crítica argentina Florencia Garramuño aposta precisamente no impróprio e nos diversos modos do não pertencimento como imagens da “comunidade expandida”, que representaria a comunidade inoperosa, de Jean-Luc Nancy. Mais uma vez, o destino da existência, de suas ínfimas às mais amplas formas, é colocado em questão pela arte contemporânea, a obscurecer as fronteiras e as propriedades que definiriam, ou ao menos teriam definido, o homem e o animal, a natureza e a cultura, a palavra e a imagem, por exemplo. Da mesma forma, a relação entre interior e exterior, assim como entre centro e entorno, é fundamental para o jogo de afinidades e simetrias entre as formas naturais (sobreviventes nas formas culturais). Em dado momento, ainda do início do texto de Cujo, o narrador relata: “Hoje vi um lagarto. Não um lagarto, uma folha que parecia um lagarto. Não uma folha, uma pedra que parecia uma folha. Então é uma pedra, pensei desinteressado” (p. 21). No regime da semelhança/dessemelhança já analisado anteriormente, a observação do real constata-se como etapa passageira, insuficiente, fundamentalmente negativa, que se desdobra em aproximações, distâncias, saltos, equívocos. A desmesura é assumida, portanto, como critério de um movimento de agrupamento cuja síntese ou fechamento são sempre adiados, haja vista um dos maiores fragmentos de Cujo, constituído quase que inteiramente por adjetivos, a começar por “Poroso, caudaloso, branco, espumante, em rotação, Maelstrom, bolhas, borbulhante, sem osso, líquido, insosso, coalhada, talhado, espalhado, molhado, silencioso (...)” (p. 45). Se inicialmente a correspondência é travada pelas imagens, em outros momentos deste fragmento, é o eco da sonoridade afim que irá aproximar palavras, regimes, sentidos.

Pausado, lento, quieto, morto O pensamento da potência revela a sua profunda intimidade com a negatividade, uma vez que toda potência é também potência de não e impotência. Não por acaso, os mesmos pensadores da comunidade foram os pensadores do desoeuvrement, da desobra, da inoperância.

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Considerar a impossibilidade ou o fim de um comum, sua dissolução ou deslocamento, assim como as promessas da modernidade a respeito da totalidade, da coletividade, da unidade e da universalidade resultou na necessária compreensão de uma “comunidade da ausência” ou “comunidade inconfessável” (Blanchot), da “negatividade sem emprego” (Bataille) e da “comunidade sem obra” (Nancy). Não resta ao homem, como já vimos, comunidade positiva, nem fundamento essencialmente humano. É o que confirma Agamben, leitor de Aristóteles, em ensaio intitulado “Arqueologia da obra de arte”5: Aristóteles crê que também existe uma obra do homem em si, do homem enquanto tal, e, logo na sequência, deixa a hipótese de que o homem seja um ser sem obra de lado. Eu, da minha parte, acho tal ideia interessantíssima. Ou ainda, diria que o homem é um animal constitutivamente sem obra e que lhe falta, de maneira diversa dos outros animais, uma vocação específica inscrita no seu destino, assinalada pela espécie. O homem é um animal que não tem uma atividade própria. E é, talvez, justo por isso que, diferentemente dos outros animais, pode encontrar a própria verdade em uma atividade como a arte que, como é notório, é privada de uma finalidade (de uma finalidade ao menos definível).

Homem e comunidade, em Agamben, são liberados de um destino ou de uma vocação a serem cumpridos individual ou coletivamente, levando-nos a considerar o que resta como inoperosidade. No texto “A potência do pensamento”, o crítico italiano retoma trechos das obras De anima, Metafísica e De interpretatione, de Aristóteles, para nelas encontrar a vinculação entre a potência (dynamis) e o ato (energeia). A potência explicaria as “faculdades” do sentir, do pensar, enquanto o ato corresponderia ao âmbito do colocar em prática essas faculdades. A potência é, então, segundo Agamben, a experiência do ter uma privação (steresis), da presença de uma ausência, a conservar algo da potência que não se esgota na passagem ao ato, como se a potência fosse, de fato, anfíbia. Se a potência fosse, de fato, apenas potência de ver ou fazer, se ela existisse como tal apenas no ato que a realiza (e tal potência é aquela a que Aristóteles chama natural e atribui aos elementos e aos animais alógicos), então não poderíamos jamais experimentar a obscuridade e a anestesia, não poderíamos jamais conhecer e, portanto, dominar a steresis. O homem é o senhor da privação porque mais que qualquer outro ser vivo ele é, em seu ser, destinado à potência. Mas isso significa que ele é também entregue e abandonado a ela, no sentido de que todo o seu poder de agir é constitutivamente um poder não-agir, todo o seu conhecer um poder de não-conhecer. (AGAMBEN, 2015, p. 249)

Porque o homem está lançado na potência, ele pode a própria impotência, isto é, ele só pode ser e fazer porque pode, da mesma forma, não ser e não fazer. Essa conceituação, em vez de engrandecer o homem, por sua impotência estar relacionada, em algum sentido, com sua potência, Agamben, na esteira do pensamento aristotélico, mede a potência pelo abismo e pelo estorvo que constitui a sua impotência, a sua privação. Em O reino e a glória, volume que dá prosseguimento ao projeto Homo Sacer, recorrese, mais uma vez a Aristóteles, para confirmar essa espécie de campo sem classificação, da impotência, que define o homem, para acrescentar ainda mais uma essência humana definida por uma negatividade: o argos, derivado do grego aérgos, como aquele que “não faz”, o “inativo”. Agamben retoma a passagem 1097b da Ética a Nicômaco, em que Aristóteles evoca a ideia “de uma possível inoperosidade da espécie humana”, para atestar a ausência de obra ou de atitude determinada como traço específico do homem. Trata-se, aqui, da elaboração 5

O ensaio é resultado da conferência de Giorgio Agamben em Scicli, Sicília, no dia 06 de agosto de 2012 e sua tradução para o português encontra-se disponível em: .

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agambeniana acerca de um tema já há muito presente na filosofia e nos estudos literários, por meio de Jean-Luc Nancy, Maurice Blanchot e Georges Bataille: o désouvrement. O que o distancia das concepções desses três estudiosos é a articulação já aqui exposta entre a potência e o homem enquanto sem obra, cujo resultado é a instauração de um paradigma do désoeuvrer, afastado do âmbito da inércia ou da apatia. Mesmo sem obra, mesmo podendo-não, a atividade do homem, em sua máxima potência, só pode ser tornar as tarefas humanas da economia, do direito e da religião, inoperantes, impotentes, reestabelecendo a possibilidade de outros usos. Agamben é o mais radical, dentre os pensadores da negatividade, ao afirmar que “esta não pode ser nem a simples ausência de obra nem (como em Bataille) uma forma soberana e sem emprego da negatividade”. Haveríamos, portanto que pensá-la como um “modo de existência genérica de potência, que não se esgota (como a ação individual ou aquela coletiva, compreendida como a soma das ações individuais) em um transitus de potentica ad actum”. (AGAMBEN, 2012a, p. 67) Trabalhar no âmbito da potência é legitimar, mais uma vez, a ausência de uma vocação ou destino histórico do homem ou da comunidade, uma vez que potência é possibilidade. Cujo responde, como não poderia responder de outra forma, na condição de obra inoperante. A pesquisadora da obra de Nuno Ramos, Júlia Studart, diria mais: trata-se de uma “inoperação do comum” 6 , em artigo sobre a manifestação da “imagem desobrada”. De fato, os materiais imiscuídos desde o início de Cujo, quando fundidos, têm seus usos comuns suspendidos, embrenhando a obra de certa resistência a tornar-se imagem figurativa, sendo o seu acontecimento ou a sua realização, algo da ordem do acaso, da deriva. A obra só pode ser porque pode não ser. Em Vidrotexto 1, espécie de instalação, que é também a capa de Cujo e que reproduz um de seus fragmentos, percebemos essa imagem de uma mensagem evasiva, intempestiva, cravada na inusitada e incompleta relação entre vidro, vaselina e óleo. A mensagem está ao rés do chão, numa leitura que não se desprende dos materiais que tornaram visível o texto, numa espécie de paradoxo da transparência. Passemos, momentaneamente, à obra, para pensar outras formas dessa negatividade ser colocada em questão. Há, decerto, uma espécie de defesa da incompletude, da insubmissão da vontade à ação – que é própria à potência – como podemos depreender do fragmento a seguir: Eu quis ver mas não o vi. Eu quis ter mas não o tive. Eu quis. Eu quis o deus mas não o tive. Eu quis o homem, o filho, o primeiro bicho mas não os pude ver. Estava deitado, desperto. Estava desde o início. Quis me mover mas não me movi. Eu quis. Estava debruçado, morto desde o início. A grama alta quase não me deixava ver. Quis ficar acordado mas dormi. Estava deitado, debruçado bem morto. Quis ver o primeiro bicho e a raiz da primeira planta. A grama alta não me deixava ver. Os olhos esbugalhados quase morriam pela última vez. Estava ali desde o comecinho. Eu quis o medo mas não o pude ter. Quis o sono, a arca, algum algarismo romano. Quis o homem, mas não este aqui. Quis um deus, mas não este aqui. Ouvi os mil ruídos sem saber do quê. Estava debruçado sobre a grama. Quis virar o corpo e olhar o céu mas não este aqui. Quis olhar a carne desde o comecinho, por trás da pele mas não demasiado profundo. Quis o medo mas não disso aí. Quis dizer: disso aí. Quis virar o corpo mas sem me mexer. Estava morto desde a primeira planta. Estava morto bem morto desde o comecinho da primeira planta. Era um fóssil da primeira planta mas não esta planta aí. Quis dizer: esta planta aí. Quis olhar, olhar, olhar isto aqui. Estava debruçado sobre a grama alta sem me mexer. Quis virar o corpo e ver o céu mas não este aqui. Estava bem morto e quis dizer isto aqui. (RAMOS, 2011, p. 27-29)

A vontade não é o princípio da ação. O sujeito deseja ver, mas não vê. Daí decorrem as figuras da passividade: o morto, o deitado, o que dorme. O fragmento em questão é também O presente ensaio “Um procedimento de Nuno Ramos: a imagem desobrada”, consta na Revista Z Cultura, do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, e encontra-se disponível em: . 6

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matéria de outra obra plástica, intitulada Aranha, de 1991, que vem a redimensionar a potência da negatividade. O texto encontra-se integralmente disposto em uma parede, vertical, de forma a escorrer até o chão, onde continua imprimindo-se horizontalmente, mantendo a mesma formatação do texto na parede. O texto, definitivamente, cai. Do piso, entre as letras, irrompe o que parece tratar-se das patas grandiosas da aranha, propriamente dita, também manchada pela vaselina do chão. Ao avesso, a aranha, entrevista apenas por suas irresolutas patas, estabelece uma tensão entre horizontalidade e verticalidade, vida e morte, passividade e atividade, linguagem e animalidade, de forma, é claro, não dual, mas indecidível. A aranha é desmesurada, agigantada, à medida que a sugestão de uma possível morte não põe fim à potência de um alarme infligido por sua presença. Pelo texto, situamos o narrador nessa mesma horizontalidade da aranha, sendo a linguagem, por sua vez, aquilo que começa e desaba, como um corpo. Esse primado da possibilidade ou da potência de não sobre a ação, exposto na figura dos homens sem qualidade, é o que funda a comunidade negativa agambeniana. A pertinência da figura do qualquer na obra de Nuno Ramos, tem em Cujo ainda mais uma interseção. Sabese que 111, realizada em memória dos cento e onze presos mortos durante a invasão à Casa de Detenção de São Paulo, pela Polícia Militar, no ano de 1992, conhecido como “o massacre do Carandiru”, mantém estreita relação com Cujo, ao dispor o fragmento anterior (também presente em Aranha) escrito com vaselina no vidro de pequenas caixas dispostas nas paredes da sala. Para além do texto, 111 paralelepípedos foram colocados e cobertos por asfalto e breu, referenciando-se a cada uma das vítimas pela inscrição de seus nomes e pela inclusão de uma notícia de jornal relatando o incidente. Páginas queimadas da Bíblia adicionavam uma terceira camada semântica a cada paralelepípedo – páginas essas presentes também nas caixas de vidro onde estavam os textos de Cujo. O qualquer em 111 assume um veio simbolicamente reivindicatório e pode ser pensado como vida nua, por meio de uma aproximação com a obra Homo Sacer, de Agamben. A expressão homo sacer aparece pela primeira vez em um texto do direito romano, para configurar o elo entre uma vida insacrificável e a permissão para o aniquilamento impune desta vida. Para o soberano, todos os homens seriam, então, homines saccri, isto é, passíveis de serem mortos impunemente. De fato, cada estágio da sociedade define aqueles que serão os seus homens sacros, isto é, matáveis. Da mesma forma que outrora o homem-lobo, por se situar no limiar entre a selva e a cidade, era banido da sociedade, o criminoso, hoje, sanciona a matabilidade e exclusão social do homem, como podemos comprovar por meio do episódio do Carandiru. A vida nua é, então, a vida reduzida à sua condição biológica, à sua nudez, sem direitos, sem códigos. Se por um lado, o massacre traduzido em número parece massificar as singularidades das vítimas, por outro, o número mesmo, com sua duplicação (ou triplicação) do um, manifesta um efeito de resistência à modificação, à própria soma dos indivíduos. Cada um é um – irreparável, inesquecível, inarredável – nestes 111. Algo ali se recusa à quantificação da mesma forma que a instalação busca a complexidade da experiência, a multiplicidade de elementos, a heterogeneidade de linguagens. Insatisfeito com a representação da morte e da violência, o artista é apenas essa espécie de agenciador do acaso, possibilitando, na própria obra, novos trabalhos de significação. O que não significa eliminar a falta, mas justamente o contrário. O qualquer em 111 exacerba a sua lacuna, a sua ausência constitutiva, o seu direito esvaziado, a sua morte injustificável. E esse primado por vezes volta ao Cujo, à negatividade que lhe é inerente: “Não devo completar tudo. Estar em dia consigo é uma forma de avareza. Preciso encontrar a fração correta do fracasso” (2011, p. 25). Fracasso de uma obra sobre o malogro da obra, sobre a ruína do homem – ser, este, quase sempre ausente nas obras plásticas de Nuno Ramos e diminuto em Cujo, como se elas não pertencessem a ele, não fossem autorais.

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A justeza entre o pensamento sem nome de Agamben e a obra Cujo, de Nuno Ramos, dá-se, com efeito, naquele que viria a ser um detalhe: a ausência de propriedades do narrador ou do narrado. Em nenhum momento, o ser se afirma, afirma o seu pertencimento ou a sua singularidade, de forma que não seja linguística, ou seja, na linguagem. Dessa forma, o ser de Cujo se afirma um ser qualquer, sem um a priori, mas em relação com a matéria circundante, com a linguagem da matéria. O que importa não é o conteúdo de verdade ou de mentira, mas o próprio ser de linguagem, a linguagem, ela mesma, como única possibilidade de revelação na comunidade que vem. Cujo é, portanto, a singularidade estabelecida na linguagem da matéria, na natureza da linguagem, não em sua condição de pertencimento ou propriedade.

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NANCY, J. La communauté désouvrée. Paris: Christian Burgois, 1999. OLIVEIRA, Claudio. “A linguagem e a morte”. In: PUCHEU, Alberto (org). Nove abraços no inapreensível: filosofia e arte em Giorgio Agamben. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 101-132. OLIVEIRA, Eduardo Jorge. Inventar uma pele para tudo: texturas da animalidade na literatura

e nas artes visuais (uma incursão na obra de Nuno Ramos a partir de Georges Bataille). 2014. Tese (Doutorado em Estudos Literários – Teoria da Literatura e Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. RAMOS, Nuno. Cujo. 2 Ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011. STUDART, Júlia. “Um procedimento de Nuno Ramos: a imagem moderna desobrada”. In: Revista Z Cultural, ano VIII, n. 03, PACC, UFRJ.

Recebido em 19/10/2015 Aceito em 10/1/2016

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