Quando a aldeia é na cidade: uma análise sobre a translocalidade de um acampamento Kaingang na Praça Ângelo Cretã na cidade de Londrina.

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ANA CAROLINE GOULART

“QUANDO A ALDEIA É NA CIDADE”: UMA ANÁLISE SOBRE A TRANSLOCALIDADE DE UM ACAMPAMENTO KAINGANG NA PRAÇA ÂNGELO CRETÃ NA CIDADE DE LONDRINA.

Londrina 2011

ANA CAROLINE GOULART

“QUANDO A ALDEIA É NA CIDADE”: UMA ANÁLISE SOBRE A TRANSLOCALIDADE DE UM ACAMPAMENTO KAINGANG NA PRAÇA ÂNGELO CRETÃ NA CIDADE DE LONDRINA.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina. Orientador: Prof. Dr. Flávio Braune Wiik

Londrina 2011

ANA CAROLINE GOULART

“QUANDO A ALDEIA É NA CIDADE”: UMA ANÁLISE SOBRE A TRANSLOCALIDADE DE UM ACAMPAMENTO KAINGANG NA PRAÇA ÂNGELO CRETÃ NA CIDADE DE LONDRINA.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________ Prof. Dr. Flávio Braune Wiik Universidade Estadual de Londrina

______________________________ Profª. Drª Maria Nilza da Silva Universidade Estadual de Londrina

_______________________________ Prof. Dr. Wagner Roberto do Amaral Universidade Estadual de Londrina

Londrina, _____de ___________de _____.

DEDICATÓRIA O resultado final desta pesquisa é dedicado ao grande mestre João Valentin Wawzyniak que tive a oportunidade de conhecer e compartilhar ideias, angústias e realizações acadêmicas. Por questões que nos fogem do controle, o “mal olhado de bicho” que ouviu falar lá para os lados da Amazônia pegou de surpresa o Polaco tapajônico, deixando saudade e um bocado de tristeza. Mas o que fica para consolar a tristeza e a saudade é o que esse grande pesquisador deixou de conhecimento, determinação e paixão pelo que fazia, assim nos resta relembrar, sorrir e agradecer pelos momentos de convivência, afinal, suas andanças pelas estradas afora se completaram por aqui, mas continuam em algum lugar, pois como ele mesmo disse “corpo de espírito inquieto não encontra acomodação” Dedico também esse trabalho que representa o final de uma fase, para Luis Henrique Caetano Borges que, deixou belas recordações para eu levar por toda vida. Grande sambista que abraçado pelas águas partiu para fazer seu samba em outro canto. Deixou o vazio e a angústia, sentimentos que vão sendo aliviados ao reviver através das lembranças os momentos de celebração da vida, o que fazia muito bem. Hoje o que se pede é que, a oração e as lágrimas se convertam em samba, para agradecer o tempo que passou entre os amigos ensinando o que é viver.

AGRADECIMENTOS Agradeço a minha mãe Antonia e meu pai Marcos por sempre terem dado o apoio, carinho e pela grande paciência durante esses cinco anos, pessoas especiais que me fizeram compreender o sentido das pequenas coisas da vida. Agradeço ao Prof. Dr. Flávio Braune Wiik que aceitou dar continuidade na orientação dessa pesquisa, mesmo já estando em sua fase final. Sou muito grata pela atenção, disponibilidade e pelo diálogo. Agradeço aos professores de antropologia desse departamento, em especial a professora Martha Ramirez e Leila Jeolás que se mostraram sensíveis às dificuldades que surgiram nessa fase final de graduação. Agradeço aos grandes amigos Alexandre, Guilherme e Larissa Rocha que fizeram parte de toda minha formação acadêmica, dividindo angústias e desejos antropológicos. Amigos com um lugar especial em minha vida. Agradeço aos amigos Larissa Mattos, Jamile, Lais, Eduardo e Monique, que com as diversas reflexões sobre “o negro no mundo dos brancos” me fizeram refletir em diversas questões cotidianas, contribuindo para meu crescimento pessoal e como aspirante à antropóloga. Agradeço às amigas que se tornaram grandes irmãs em minha vida, Tássia, Fabíola, Laura, Flávia, Lilian e Camila, que souberam me acolher nos momentos mais sensíveis pelos quais passei, construindo a mais sincera relação de carinho, amor e amizade. Agradeço à Renata Enz Rino Wawzuniak, que além de se mostrar uma mulher com muita garra, sempre esteve disposta a ajudar no que fosse necessário. Agradeço muito a amizade construída. Agradeço aos secretários do departamento de Ciências Sociais, Neuzeli e Joilson que tiveram muita paciência e souberam ouvir meus desabafos com muito humor. Agradeço aos participantes do Programa de Formação Intercultural e da CUIA – Comissão Universidade para o Índio, em especial o Prof. Dr. Wagner Roberto do Amaral, que não deixou cessar em mim a vontade de continuar, incentivando mesmo que de forma indireta a participação nas discussões do Ensino Superior Indígena. Agradeço aos universitários indígenas das etnias Kaingang e Guarani que conheci desde o meu primeiro ano de graduação, foram eles que me ensinaram o valor de se dedicar às causas indígenas. Sou eternamente grata aos ensinamentos e aos momentos especiais que me proporcionaram. Agradeço especialmente às famílias Kaingang da Praça Ângelo Cretã que deixavam as portas de suas casas abertas às minhas visitas e conversas, sempre me recebendo com carinho e confiança durante um ano. Sempre me recordarei da força com que essas famílias refazem seus dias urbanos com um sentido muito significativo de luta, demonstrando o que de fato é a continuidade étnico-cultural.

GOULART, Ana Caroline. “Quando a aldeia é na cidade” Uma análise sobre a translocalidade de um acampamento kaingang na Praça Ângelo Cretã na cidade de Londrina. 2011. 71f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2011. RESUMO Desde seu surgimento a etnologia indígena preocupou-se em estudar organizações tribais que se localizavam em territórios tradicionais. Entretanto, a história nos sugere um novo cenário etnológico de estudo, as cidades. As grandes metrópoles ou pequenos municípios têm sido o destino de muitas famílias indígenas nos últimos anos, segundo dados levantados em pesquisas realizadas pelo IBGE. O que superficialmente representa um abandono cultural, historicamente determinado pela noção e conceito de aculturação, nos revela na verdade a dinamicidade cultural identificada nas resignificações do meio urbano, reiterando, assim, o seu modo de vida indígena em meio às transformações globais. Pretendo com essa pesquisa traçar um estudo de caso sobre famílias kaingang das Terras Indígenas de Barão de Antonina e São Jerônimo da Serra, situadas no norte do Paraná, que ocupam a Praça Ângelo Cretã na zona norte de Londrina desde agosto de 2009. O fenômeno da organização indígena em espaços urbanos possui uma característica específica, o não reconhecimento da identidade étnica por parte da população não indígena. A partir da perspectiva nacional frente aos povos indígenas que residem nas cidades, temos o que Turner (1974) chamaria de estágio liminar, um momento em que não são considerados indígenas por “renderem-se” ao mundo do branco e deixar de lado suas tradições, ao mesmo tempo em que não são reconhecidos como brancos, por não partilharem de todos os códigos simbólicos. Com a intenção de analisar tais categorias identitárias de (des) legitimação étnica utilizo a noção de “etnização” da cidade, oferecendo dados que afirmem a premissa da “permanência na mudança” Sahlins (1988), ou seja, é a possibilidade de compreender a ontologia kaingang nos centros urbanos e em suas diversas apropriações do mundo moderno. Palavras-chave: Kaingang; Cidade; Etnicidade.

GOULART, Ana Caroline. . “Quando a aldeia é na cidade” Uma análise sobre a translocalidade de um acampamento kaingang na Praça Ângelo Cretã na cidade de Londrina.. 2011. 71 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2011. ABSTRACT Since the emergence of the indian ethnology it worried about studying tribes organizations which were situated on traditional territories. However, the history suggest us a new ethnology scenery of study, the cities. The big metropolis or small cities have been the destiny of many indian families in the last years, according the data of the researches achieved by IBGE in the years of 1991, 2000 and 2010. What superficially represents a cultural contempt, historically determined by the acculturation notion, reveal us the cultural mobility identified in the remeaning of the urban area, reiterating thereby, the way of indian life amid the global transformations. I intend with this research to trace na study of cases about kaingang families of the Indian territories of Barão de Antonina e São Jerônimo da Serra, which occupies the Plaza Ângelo Cretã in the north zone of Londrina since August 2009. The indian organization phenomenon in urban areas have an specific characteristc, the not recognition of the ethnic identity by the not indian population. From the national perspective of the indians Who live in the cities, we have which Turner (1974) would call border stage, a moment that they are not considerated like indians because they surrendered to the world of the White people and abdicate of their traditions, in the same time they are not recognised as white people, because they do not share all the symbolics codes. With the intention of analyze these identity categories of ethnic (des)legitimation I use the notion of “ethnizing” of city, offering data which declare the premise of the “permanence in the change” Sahlins (1988), namely, it is the possibility to comprehend the kaingang ontology in the urban downtown centers and in its varied appropriations of the modern world. Keywords: Kaingang; City; Ethnicity.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ARPINSUL – Associação Regional dos Povos Indígenas do Sul COHAB – Companhia de Habitação COPEL – Companhia Paranaense de Energia CRAS – Centro de Referência de Assistência Social CTNP – Companhia de Terras Norte do Paraná DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena FUNAI – Fundação Nacional do Índio FUNASA – Fundação Nacional de Saúde SEMA – Secretaria Municipal do Meio Ambiente SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais UBS – Unidade Básica de Saúde

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................10 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.......................................................................12 CAPÍTULO I – POVOS KAINGANG E AS POLÍTICAS DE ALDEAMENTO ...............13 1.1

TERRITORIALIDADE E A NOVA NOÇÃO DE DELIMITAÇÃO........................ 13

1.2

NOTAS SOBRE A TERRA INDÍGENA SÃO JERÔNIMO DA SERRA ............ 16

1.3

NOTAS SOBRE A TERRA INDÍGENA BARÃO DE ANTONINA...................... 19

1.4 A LÓGICA LEGAL URBANA EM OPOSIÇÃO ÀS INTENCIONALIDADES KAINGANG............................................................................................................................ 20 CAPÍTULO II - QUANDO A ALDEIA É NA CIDADE: UMA ETNOGRAFIA MARGINAL........................................................................................................................26 2.1 ETNOGRAFIA MARGINAL .......................................................................................... 26 2.2 ORGANIZAÇÃO SOCIAL (URBANA) KAINGANG .................................................. 27 2.3 - CONSTRUINDO UMA NOVA TRAJETÓRIA: ENTRE A MIGRAÇÃO E OS TRÂNSITOS NA CIDADE ................................................................................................... 37 2.4 QUEM ESTÁ DO OUTRO LADO?.............................................................................. 43 2.5 FAZENDA REFÚGIO .................................................................................................... 46 CAPÍTULO III – ORGANIZAÇÃO DOS DADOS ETNOGRÁFICOS.............................50 3.1 CIDADE E ALDEIA: QUANDO ACABA UM E COMEÇA O OUTRO? .................. 50 3.2 ETNIZAÇÃO DA CIDADE COMO RESULTADO DO EMPODERAMENTO KAINGANG............................................................................................................................ 55 3.3 NAÇÃO, IDENTIDADE NACIONAL E CIDADANIA: COMO INTERPRETAR O CASO INDÍGENA?............................................................................................................... 60 NOTAS CONCLUSIVAS.................................................................................................67 Bibliografia .....................................................................................................................68

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INTRODUÇÃO Para a realização desta pesquisa foi estabelecida inicialmente a aproximação com as famílias que estavam acampadas na Praça Ângelo Cretã, localizada na zona norte de Londrina, a fim de conhecer seu cotidiano, problemas e planos futuros. Ao mesmo tempo percorri as ruas do bairro buscando contato com os moradores não indígenas, para saber um pouco mais sobre seus posicionamentos diante da situação que estava posta. Logo no início me deparei com uma situação um pouco mais complicada, as ações de órgãos indigenistas e municipais que em meio aos discursos protecionistas, desencadearam em um processo de descaso social. Portanto, com o objetivo de fazer deste trabalho uma etnografia dos índios na cidade, isto é, analisar as formas de organização social e ocupação do espaço urbano, ao mesmo tempo em que busco realizar uma denúncia ao que presenciei desde o início de 2010, dividi o estudo em três momentos que considero essenciais para compreender a causa dos deslocamentos e das relações travadas com os diversos agentes que surgem nesse jogo político. Tomo como ponto de partida o estudo sobre a formação da cidade de Londrina pela Companhia de Terras Norte do Paraná e sua influência na formação dos aldeiamentos de São Jerônimo e Barão de Antonina. Após essa introdução histórica analiso as relações de poder travadas entre as famílias Kaingang e órgãos representativos do município de Londrina. Parafraseando Magnani (1996), no segundo capítulo “Não somos mais escravos: uma etnografia marginal” faço uma etnografia da Praça Ângelo Cretã e posteriormente analiso a realocação das famílias para a Fazenda Refúgio, zona sul de Londrina. Discorro sobre as estratégias de organização em cada território, as relações estabelecidas com a população não indígena dos bairros e as formas de transitar pela cidade. Faço nesse ponto uma diferenciação entre a migração e o deslocamento, visto que a migração é caracterizada pela mudança direta de território, isto é, da Terra Indígena para a Praça, quanto ao termo deslocamento, será empregado nos casos que se referem às famílias que já morando na cidade mudaram-se para a Praça. Optei pelo termo “etnografia marginal” por fugir da etnografia tradicional em Terras Indígenas e por tratar de uma temática ainda recente no Estado do Paraná. Passando para a fase de organização dos dados etnográficos procuro relacionar tais dados com as teorias de fronteiras étnicas, territorialidade,

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agenciamento, dentre outras, que nos dão elementos para repensar as novas demandas indígenas, que estão atreladas à sua autodeterminação na elaboração de seus discursos e de sua propagação.

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PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS O início desta pesquisa não se deu a partir do levantamento bibliográfico, ao contrário, foi com a aproximação das famílias que estavam na Praça Ângelo Cretã. Ao saber da existência do acampamento na Praça fui até as famílias para conhecer um pouco mais sobre esse movimento, surgindo então o interesse em realizar a pesquisa de conclusão de curso. Partindo do primeiro contato, foi feito o levantamento bibliográfico referente ao movimento migratório de populações indígenas para as áreas urbanas, contudo, notei que ainda se trata de um tema que começa a instigar novas reflexões na área da antropologia. Portanto, utilizei teorias antropológicas que não estão totalmente ligadas ao fenômeno da migração, mas que direcionam a reflexão sobre esse tema. Assim, a base teórica que orienta os percursos da presente pesquisa é constituída por autores que discutem conceitos como território, territorialidade e sociedades translocais (GALLOIS, 2004; MAGNANI, 2000; OLIVEIRA, 2004; SAHLINS, 2008), nação, Estado e identidade étnica (RAMOS, 1993; BARTH, 1998) e temas como agência, poder e diálogo interétnico (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000; ORTNER, 2007). As etapas da pesquisa foram marcadas pela incursão a campo, com conversas informais com a população indígena e com a população não indígena, isto é, os vizinhos, os donos de bares e mercados, funcionários da UBS e do CRAS. Num segundo momento, depois de já ter estabelecido relações mais aproximadas com as famílias, formulei um roteiro de questões que orientaram nas entrevistas que colhi com algumas das famílias. Foi dado o consentimento para que se colocasse os nomes nessa pesquisa, contudo, por questões de ética, sabendo que se trata de uma disputa política que ainda está em andamento, optei por utilizar nomes indígenas fictícios. Não gravei entrevista com os órgãos representativos do município e com a FUNAI, as informações obtidas são resultados de algumas conversas informais com os representantes, bem como da minha participação na reunião realizada no CRAS.

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CAPÍTULO I – POVOS KAINGANG E AS POLÍTICAS DE ALDEAMENTO 1.1 TERRITORIALIDADE E A NOVA NOÇÃO DE DELIMITAÇÃO Para que se compreenda o sentido das recentes migrações indígenas para as áreas urbanas, foi necessário realizar um levantamento histórico relacionado ao uso do espaço pelos Kaingang e como foi o processo de limitar os seus deslocamentos, dando origem às fronteiras demarcadas pelo Estado brasileiro. Partindo de pesquisas realizadas sobre a formação da cidade de Londrina, o primeiro ponto a ser analisado é o modelo de cidade a ser edificado, bem como quem está por trás desse projeto; o segundo ponto é o que a historiografia oficial transformou como verdade histórica. Sabe-se que Londrina foi por muito tempo a “menina dos olhos” de ingleses que aqui chegaram em 1930 através da Companhia de Terras do Norte do Paraná CTNP, que, por meio de anúncios no Jornal Paraná Norte vendia a imagem de uma cidade projetada para o futuro, o Eldorado cafeeiro (NETO, 1993). Portanto, houve forte investimento nessa imagem, com a construção de um “modelo urbanístico, preconizado pelos urbanistas partidários da proposta das cidades-jardim.” (LINARDI, 1995: P. 128). O público alvo pensado pela CTNP para constituir a base populacional de Londrina seriam os “imigrantes que tivessem um perfil adequado, burguês possuidor de recursos econômicos, com nível cultural universitário.” (SANTOS & MOLINA, 2010) Todo esse ideário de prosperidade interligado ao intento de civilizar o solo paranaense a partir de interesses econômicos deu espaço para a teoria do vazio demográfico, já no século XX. “Os Kaingang até o século XVIII aparecem como empecilho ao ‘desenvolvimento’ e ao ‘progresso’ [...] No século XX a historiografia apresenta o Estado do Paraná como totalmente despovoado.” (TOMMASINO, 1995, p. 140) Diante do breve relato referente à formação da cidade de Londrina, a escolhida como sede da CTNP, o como foco de reflexão é a relação que foi estabelecida entre o ideal de progresso capitalista com as sociedades Kaingang dessa região. Toda a política da CTNP foi de venda de terras para os (i) migrantes, a fim de desenvolver um novo pólo comercial e agrícola. Dessa forma, o que se pode pensar de imediato é o contato que foi construído entre a CTNP e os povos indígenas através do Serviço de Proteção ao Índio – SPI. Em 1930 os aldeamentos já

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simbolizavam os efeitos das políticas coloniais no norte do Paraná. Nesse novo contexto, a CTNP já tinha um território devidamente demarcado de acordo com os interesses econômicos. Para os Kaingang da região, já aldeados, restou recorrer ao trabalho assalariado e venda de seus artesanatos. Após a tomada dos territórios Kaingang, estes tornaram-se “agricultores de subsistência, assalariados e passaram a vender seu artesanato nos distritos e nas cidades” (TOMMASINO, 1998, p.68) sendo essa fase que marca o início do que poderia ser chamado de proletarização Kaingang em Londrina. Entretanto, esse fato não culminou no desaparecimento étnico-cultural, pois essa inserção mais aproximada dos Kaingang com a venda da força de trabalho foi resignificada por eles de acordo com suas necessidades, sendo a possibilidade encontrada para sobreviverem físicamente. A disposição territorial kaingang dava-se em duas divisões, que eram as residências fixas, chamadas de emã, construídas nos campos e as residências provisórias, os wãre, construídas próximas de rios e da mata. A distribuição populacional entre os dois territórios era estrategicamente planejada pelos Kaingang para que houvesse famílias de ambos os lados, sendo uma espécie de alternância entre as famílias que vão mudando do território. (TOMMASINO, 2000) Mesmo após os descimentos e as pressões econômicas sob os kaingang da região, Tommasino (1998) ainda identifica uma resignificação da cidade e a reelaboração de seus acampamentos temporários, os wãre. O percurso realizado da Terra Indígena para a cidade levava algumas horas de caminhada, portanto, os Kaingang precisavam permanecer por alguns dias na cidade para obter algum lucro de suas vendas de artesanato ou mesmo com o intuito de conseguirem algum trabalho temporário. Nesse movimento para a cidade, foram construindo novos wãre. Em seu deslocamento da Terra Indígena, os Kaingang saiam em grupos familiares, ou seja, trata-se de uma mobilidade familiar para reconstituir no meio urbano um espaço próximo ao da T.I., como se percebe na seguinte descrição: deslocam-se em grupos de parentesco, cada qual instala sua barraca e lá permanece por cerca de 10 ou 15 dias. Tal como faziam antes (e ainda fazem) nas matas e beiras de rios, trazem os equipamentos básicos para a permanência provisória: roupas, panelas, animais de estimação. A cozinha é

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improvisada na parte externa da barraca, os e produtos para comércio são expostos e dependurados nas árvores das ruas, em frente ao acampamento. (TOMMASINO, 1998, p.69-70) Um fato que deve ser levado em consideração após essa leitura sobre território e mobilidade kaingang é que, mesmo com o interesse da sociedade nacional em integrar os povos indígenas ao sistema de classes, de exploração e da unidade cultural, houve uma espécie de manobra Kaingang para relacionar seu modo de pensar e agir com as atuais condições colocadas à eles pela sociedade envolvente. Assim, notamos que: a vida nas reservas obriga os Kaingang a moverem-se no e sobre o espaço do branco. Mesmo negado na sua especificidade, ele ressurge borrando esse espaço com sua territorialidade Kaingang. Dialeticamente, o processo indígena se (re) inscreve no mundo dos brancos. (TOMMASINO, 2000, p. 223) Mesmo com as diversas estratégias Kaingang para transformar os espaços de acordo com suas concepções, as condições atuais das Terras Indígenas do norte do Paraná são o reflexo de políticas civilizatórias que primaram pelo crescimento urbano em detrimento das reduções territoriais para os povos indígenas, por esse motivo a migração indígena para as áreas urbanas tem aumentado a cada ano já que o trabalho, a educação e a saúde dentro das T. Is ainda passam por um lento processo de melhorias e investimentos por parte do Estado. Sendo assim, são esses alguns dos motivos de migração para a área urbana que se somam a outros problemas internos, mas que serão problematizados no decorrer do trabalho. Para melhor compreender a lógica dos deslocamentos e a reorganização indígena em áreas urbanas, parto para um estudo de caso com famílias Kaingang que saíram de suas terras indígenas São Jerônimo da Serra e Barão de Antonina para a cidade de Londrina. Em 2009, famílias Kaingang de diferentes áreas indígenas do Paraná se deslocaram para uma praça localizada na região norte da cidade de Londrina, a Praça Ângelo Cretã, doada pela prefeitura à Fundação Nacional do Índio - FUNAI em 1990. Conforme relatos de representantes do órgão, tal doação surgiu de acordos políticos com a prefeitura. A doação foi realizada com a proposta de criar um centro cultural, a partir dos seguintes objetivos: preservação da mata nativa

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remanescente e replantio das áreas desmatadas; implantação de horto florestal; criação de animais típicos da região; construção de pista de pedestrianismo ao redor da Praça; implantação de cerca de segurança; sede da delegacia regional de Londrina da FUNAI; loja de artesanato; museu do índio com biblioteca, sala de vídeo e um anfiteatro. Essas famílias reivindicam o reconhecimento da área como Terra Indígena, pautando-se na doação da praça pela prefeitura à FUNAI. No entanto, a doação foi invalidada pela prefeitura em 1992, com o argumento da sua não utilização pela FUNAI. Inicialmente havia famílias das Terras Indígenas de São Jerônimo da Serra, Barão de Antonina, Apucaraninha, Faxinal, no entanto, prevalece o pertencimento às T. Is de São Jerônimo da Serra e Barão de Antonina, fazendo a ressalva de que os pertencentes às outras áreas retiraram-se da Praça ainda nos primeiros apontamentos desta pesquisa, que se deu no início de 2010. Após refletir sobre as ações da CNTP e compreendendo como a partir desse período desenvolvimentista as populações indígenas, em específico os Kaingang, passaram a se reorganizar e traçar novas estratégias de sobrevivência e de organização é necessário, antes de iniciar a discussão sobre o caso da Praça Ângelo Cretã, fazer um histórico das T. Is de São Jerônimo da Serra e Barão de Antonina, a fim de se compreender melhor as motivações da migração Kaingang para a cidade de Londrina. 1.2 NOTAS SOBRE A TERRA INDÍGENA SÃO JERÔNIMO DA SERRA Estudos (TOMMASINO, 1995; RAMOS, 2006) indicam que a cidade de São Jerônimo da Serra teve origem como uma fazenda no ano de 1846, posseada por João da Silva Machado, o Barão de Antonina. Os Kaingang que foram se aproximando do Tibagi, apareceram no primeiro aldeamento, São Pedro de Alcântara. Posteriormente reapareceram em outros pontos. Após as invasões, os colonizadores entraram em contato e os Kaingang mostraram interesse em se aldear, pois tinham interesse em adquirir os materiais de trabalho que eram disponibilizados pelos colonizadores. Assim, em 1859, o Barão de Antonina “doou” a fazenda S. Jerônimo para os Kaingang; no ano de 1903 foi autorizada a doação, contudo, em 1911 foi criada a “Povoação Indígena de São Jerônimo”, já em 1920

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surge o município de São Jerônimo, construído sobre dois cemitérios Kaingang (TOMMASINO, 1995), contabilizando 72 anos de alterações legais sobre as terras ocupadas pelos Kaingang na cidade de São Jerônimo da Serra. A Terra Indígena de São Jerônimo fica a quinze minutos da cidade de São Jerônimo da Serra, localizada às margens do rio Tigre, afluente do rio Tibagi. Sua área é de 1.330 hectares, com uma população atual de aproximadamente 674 pessoas dos grupos étnicos Kaingang, Guarani Ñandeva, Xetá e não índios. Como sua

composição

populacional

não

contempla

apenas

uma

etnia,

a

representatividade política centra-se atualmente nas figuras de dois caciques, o cacique Kaingang João Cândido e o cacique Guarani Adilson. Em visita que realizei na T.I. de São Jerônimo observei, com relação a disposição espacial das casas, que não há uma separação territorial entre as etnias, mas as construções nos dão a rápida identificação a qual etnia pertence determinada moradia, pois as casas dos Kaingang são de alvenaria e as dos Guarani são casas mistas, em que alvenaria e madeira compõe sua estrutura. Os trabalhos desenvolvidos dentro da T.I. pelos próprios indígenas que não possuem formação superior é de agricultores ali mesmo ou em propriedades rurais localizadas em seu entorno; outros trabalham como professor bilíngue ou agente indígena de saúde, há também os que procuram trabalho na cidade ou vivem da aposentadoria. Mesmo com algumas possibilidades de trabalho na T.I. ou na cidade de São Jerônimo da Serra, muitos Kaingang dizem que esses trabalhos ainda são poucos para a demanda apresentada e que por São Jerônimo da Serra ser uma cidade pequena não há opções de trabalho. Dessa forma, os Kaingang passam a criar meios de estabelecer uma relação com a cidade por conta do trabalho, mas sem abandonar sua T.I., de acordo com a pesquisa realizada em São Jerônimo: [...] índios que querem tentar a vida na cidade, por exemplo, vendem sua casa a outro índio da reserva, que passa a morar nela. (Houve) um índio que saiu e entrou da reserva quatro vezes, se valendo deste tipo de negociação. Ou seja, saía da área, vendia a casa, voltava para a área, construía outra casa, saía novamente e etc...(ROTHEN, 2000, p. 30) Tommasino (1995) também indica a procura por trabalho fora da T.I. principalmente entre os anos de 1900 e 1970. Esse fenômeno, assim como a forte presença de brancos na área, nos faz voltar ao período inicial do aldeamento de S.

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Jerônimo, pois Frei Cemitile, responsável pela área, fundou uma “Colônia Agrícola” em 1879, vinte anos após a “doação” feita por Barão de Antonina. A construção da Colônia foi estrategicamente pensada pelo Frei, já que sua localização ficava bem próxima à T.I., demonstrando “uma política indigenista, assimilacionista, favorável à entrada de trabalhadores nacionais para ocuparem e colonizarem as terras indígenas.” (TOMMASINO,1995, p.147) Analisando as políticas do Estado do Paraná desde a doação das terras pelo Barão de Antonina, o território Kaingang foi sendo reduzido aos poucos, sendo a construção do município de São Jerônimo sinônimo de maior perda territorial para os Kaingang. Tommasino identificou que “a desorganização da economia tradicional e a dependência em relação aos objetos de mercado levaram cada vez mais os índios a buscar o trabalho assalariado” (TOMMASINO,1995, p. 156) No entanto, a constante migração não era positiva para a política tutelar implantada no Brasil, tendo como primeiro órgão tutor o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais – SPILTN. Segundo Souza Lima “evitar a migração para os centros urbanos era uma tarefa a inserir o Serviço num conjunto de aparelhos responsáveis pela (i)mobilização da mão-de-obra.” (SOUZA LIMA, 1995, p.128) Dessa forma, o que podemos analisar desde o período de consolidação da CTNP no Paraná, as políticas de aldeamento determinavam áreas geograficamente precárias aos Kaingang, bem como a ausência de atendimentos básicos como na área da saúde, o que também ocorreu em diversos pontos do país em períodos marcados pelos projetos desenvolvimentistas. Focando a atenção no caso da T.I. de S. Jerônimo, as políticas tutelares somadas aos projetos desenvolvimentistas e colonizador da CTNP, que surgiu na década de 1930, influenciaram o modo de vida e a organização social dos Kaingang, limitando seus deslocamentos, impondo valores religiosos, morais, etc. Portanto, não há como compreender o atual processo migratório de São Jerônimo da Serra sem antes pontuar fatos históricos que dizem respeito a formação desse aldeamento, exatamente por trazer elementos que contribuem na reflexão sobre a atual condição territorial e econômica das T.Is.

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1.3 NOTAS SOBRE A TERRA INDÍGENA BARÃO DE ANTONINA 1 A Terra Indígena Barão de Antonina é a segunda área limítrofe ao município de São Jerônimo da Serra, está localizada na margem direita do rio Tibagi, confluente com o rio do Pinhal, possui hoje uma área de 3.750,72 hectares. O dado populacional dessa T.I. é de 460 pessoas prevalecendo a presença de Kaingang com baixa população não indígena, comparado à T.I. de São Jerônimo. No ano de 1949, o território que havia sido repassado para os indígenas foi dividido em duas Glebas, sendo que a Gleba I seria a de Barão de Antonina e a Gebla II, de São Jerônimo, o problema que Ramos (2006) coloca é que quando houve essa divisão o município de São Jerônimo da Serra já existia, assim como as fazendas em seu entorno. A TI Barão de Antonina esteve, ainda, da década de 1940 a de 1970, obstruída por todos os lados pelos posseiros que o SPI e depois a Funai foram colocando na já diminuta área, por meio dos contratos de arrendamento. Essa pratica fez com que em determinados momentos houvesse mais famílias de não-índios do que de Kaingang vivendo nas áreas da TI Barão de Antonina. (RAMOS, 2006, p.73) Segundo Ramos (2006) nas décadas de 1970 e 1980 foi realizada uma revisão de área para a T.I. Barão de Antonina, que conseguiu abranger seu território com o reconhecimento de áreas como Cedro e Pedrinhas que ficam próximas à aldeia sede, porém com uma população bem mais reduzida. Assim como em São Jerônimo, os Kaingang do Barão de Antonina dedicam-se aos trabalhos rurais dentro da T.I., na escola, posto de saúde ou na cidade de São Jerônimo da Serra, contudo, o problema apresentado é que a cidade de São Jerônimo está distante dos que moram na T.I. Barão de Antonina dificultando mais o acesso aos trabalhos assalariados da cidade. Vale lembrar que as T.Is de São Jerônimo e Barão de Antonina são áreas reduzidas em que as roças não são totalmente viáveis por se tratar de um terra formada basicamente por pedras e areia.

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São poucas as referências bibliográficas encontradas referente ao histórico da Terra Indígena Barão de Antonina.

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1.4 A LÓGICA LEGAL URBANA EM OPOSIÇÃO ÀS INTENCIONALIDADES KAINGANG Antes de tratar da organização Kaingang na Praça Ângelo Cretã, introduzo a problemática do reconhecimento dessas famílias na cidade, apontando os principais acontecimentos políticos envolvendo território, autoridades municipais e os Kaingang. Quando o assunto é sobre populações indígenas que residem em áreas urbanas, nos deparamos com um problema recorrente: a ausência de atendimento a essas populações por parte dos órgãos específicos, Fundação Nacional do Índio – FUNAI e a Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI2. Esse fato é resultado da limitação existente nas normas que regem o atendimento às populações indígenas que são voltadas exclusivamente às populações que habitam os territórios reconhecidos e demarcados pelo Estado. Proponho com essa pesquisa não tornar o indígena uma espécie “patrimônio” do país a ser mantido num local específico para que somente assim seja legitimado como um sujeito de direitos diferenciados. Contrariamente a essa visão simplista da história, deve-se entender que: Reservas indígenas não são jaulas de jardim zoológico, vitrines do paleolítico, grotões onde ‘índios genéricos’ devem ficar para que não percam sua autenticidade e, portanto, a justificativa para a aquisição de seus direitos legais. (CESARINO, 2008, p.174) É nesse quadro de reconhecimento de direitos e não direitos onde se trava o embate da tríade moldada em seus jogos discursivos de poder que no caso da Praça, envolve agentes que estão diretamente relacionados na questão: 1Prefeitura Municipal de Londrina, representando os direitos/interesses urbanos, pautando-se na Lei Orgânica do Município; 2- FUNAI, responsável por atender os direitos das populações indígenas, ainda marcada pela característica tutelar e, por fim, 3- os Kaingang, que depois de suas guerras épicas (MOTA, 1994) traçam uma nova história de resistência e intenções que perpassam os limites territoriais 2

O atendimento de saúde indígena era oferecido pela FUNASA, porém, em 2010, foi criada uma Secretaria de atendimento voltada somente às populações indígenas.

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reconhecidos

pelo

Estado

nacional.

Entretanto,

essa

ocupação

envolveu

indiretamente outros agentes políticos que são o Centro de Referência de Assistência Social – CRAS da região sul, o Posto de Saúde e a FUNASA/SESAI. Para uma melhor análise dessas relações estabelecidas utilizo as formulações teóricas de Cardoso de Oliveira (2000) sobre a existência de uma comunidade de comunicação que aponta a possibilidade de estabelecer um diálogo ético entre os diferentes, obtendo o que ele chama de horizontalização do diálogo. Complemento a análise com a teoria da prática sob perspectiva de Ortner (2007), que passa a questionar a centralidade do poder, investigando “a construção cultural da agência ao mesmo tempo como uma espécie de empoderamento e como a base que permite que se persigam ‘projetos’ dentro de um mundo de dominação e de desigualdade.” (ORTNER, 2007, p.87). Ou seja, o que proponho é a compreensão do empoderamento Kaingang no sistema jurídico-legal urbano. Em visita que realizei à FUNAI, em 2010, sob a administração de Mário Jacinto, pude observar que o posicionamento firmado era da não aceitação da vinda das famílias Kaingang para a cidade, sem que fizessem uma prévia avaliação do que ocasionou a migração. Os funcionários com quem tive contato construíram um discurso preservacionista e tutelar, um deles ao ser questionado sobre a situação dos Kaingang da Praça Ângelo Cretã, posicionou-se da seguinte forma sobre esse movimento migratório: “Se a FUNAI apoiar esse movimento, nós estaremos apoiando a baderna, não concorda?”. Outro logo em seguida, completou tal raciocínio dizendo, “seria tudo mais fácil se eles aceitassem voltar para a aldeia. Não é objetivo da FUNAI esvaziar as aldeias”. Já que o reconhecimento e atendimento a todos os indígenas não tem sido contemplado pela legislação indigenista, essa atribuição é dada aos órgãos municipais, como é o caso da prefeitura, responsável pela doação da praça em 1990 e agora responsabilizada, pela FUNAI, em realocar essas famílias. Representada pela antropóloga Marlene de Oliveira, a prefeitura ampara-se na Lei Orgânica do Município que proíbe doação, permuta, venda ou permissão de uso de área destinada a logradouro público. Com relação aos envolvidos indiretamente, CRAS e Posto de Saúde, suas ações têm sido diretas no atendimento às famílias acampadas na Praça, através do cadastro no Programa Bolsa Família e encaminhamentos para a retirada de documentações (RG e CPF). No caso da UBS têm sido realizados atendimentos

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básicos, encaminhando para outras unidades de saúde os casos mais específicos de doença. A busca pelo Posto de Saúde do bairro ocorreu pelo fato de não haver atendimento da FUNASA, que por sua vez não oferece esse atendimento aos índios urbanos. Segundo o chefe do DSEI, ''Se eles estão vivendo na área urbana por vontade própria, precisarão se submeter a esse procedimento.'' (LUPORINI, 2010) Vale questionar até que ponto essa decisão é por vontade própria. O movimento migratório não se resume à simples vontade de se mudar, pois como colocou Santos (1987), a migração torna-se forçada de acordo com os interesses hegemônicos das diversas localidades, que no caso da Praça Ângelo Cretã esses interesses estão voltados no retorno à aldeia, sendo esse o lugar de reconhecimento étnico para as autoridades urbanas. Após um ano de acampamento e de diversos pedidos feitos pelos Kaingang para que se regularizasse a situação, foi convocada uma reunião no início de julho de 2010 com o intuito de estabelecer um acordo entre os Kaingang e órgãos municipais. Foram convidados para a reunião os Kaingang, o CRAS, a Prefeitura, a FUNAI e a SEMA. A reunião foi realizada no CRAS, contando com a presença de nove Kaingang das terras de São Jerônimo da Serra e Barão de Antonina, cacique guarani da T.I. de São Jerônimo da Serra, a antropóloga do município Marlene de Oliveira, FUNAI e assistentes sociais do CRAS. O secretário da SEMA, José Faraco, também convidado, não compareceu. Os encaminhamentos finais da reunião partiram da Prefeitura, que propôs fazer junto ao CRAS um levantamento das famílias que estava residindo na Praça, identificando quais teriam o interesse de permanecer na cidade, para que pudessem ser encaminhadas à COHAB, e quais famílias gostariam apenas de ter o Centro Cultural como um espaço de passagem para quando viessem vender seus trabalhos na cidade. Contudo, passado um ano não houve uma segunda reunião com as famílias Kaingang, tampouco o levantamento sobre quem teria o interesse em continuar morando na cidade. Com relação ao Centro Cultural, o projeto permaneceu arquivado na câmara dos vereadores. Mesmo com a ausência de aplicabilidade das propostas aventadas na primeira reunião, os Kaingang permaneceram na Praça até julho de 2010. Durante esse período, as famílias receberam atendimento social do CRAS, como já foi declarado anteriormente. Porém, o atendimento foi interpretado pela Prefeitura de Londrina

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como um empecilho à saída das famílias da Praça, já que teriam como referência os auxílios como bolsa família, cupom alimentação e auxílio natalidade. Dessa forma, a prefeitura proibiu a continuidade nos atendimentos. Nesse caso, chamo a atenção para dois pontos de extrema relevância, primeiramente a inconstitucionalidade em tal medida, já que, segundo a Lei Orgânica de Assistência Social compete ao Municipio: "IV - atender às ações assistenciais de caráter de emergência" (Art. 15) Quanto aos benefícios eventuais temos: § 2º Poderão ser estabelecidos outros benefícios eventuais para atender necessidades advindas de situações de vulnerabilidade temporária, com prioridade para a criança, a família, o idoso, a pessoa portadora de deficiência, a gestante, a nutriz e nos casos de calamidade pública. Outro aspecto a ser ressaltado é a característica de dominação que prevalece nas tomadas de decisões por parte da Prefeitura, que ao negar atendimento social impõe o retorno às áreas indígenas, pressupondo a dependência de serviços assistenciais. Pouco tempo depois da proibição feita pela Prefeitura, a equipe de Assistência Social do CRAS acordou em voltar com os atendimentos mesmo sem haver a liberação. Basta conhecer as bases das políticas indigenistas para identificar as características coloniais nas atitudes tomadas, fato observado na noção de delimitação territorial, em que o território é destinado à determinada população de acordo com o interesse estatal. No caso das populações indígenas naturalizou-se a idéia de cercamento, Souza Lima (1995) e Davis (1978) já nos advertiram que a criação de áreas indígenas deve-se a uma política de controle sobre essa população a fim de construir a riqueza e desenvolvimento nacional. Certamente os interesses de alguns ramos indigenistas ou das instituições que pactuam com a noção de “cercamentos étnicos” não estão sempre de acordo com o pensamento nativo, como demonstra na fala de Jair, Kaingang e morador da Praça: “Não somos mais escravos dos portugueses, não temos que ficar na aldeia”, diz ainda não querer trabalhar em projetos dentro das áreas indígenas, pois não teve boas experiências, sentindo-se como escravo dos brancos. Essa fala direciona novamente a reflexão para a divergência entre intencionalidade Kaingang que é permanecer na cidade e intencionalidade estatal

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que é forçar a volta para o seu “lugar de origem”. Ao analisar as políticas indigenistas Souza Lima (1995:285.) observou o “intento de erradicar o nomadismo logo, a proposta de disciplinar os espaços geográficos internos por meio das populações dele ocupantes, estabelecendo freios às mudanças de localização...” No início do segundo semestre de 2011 a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, representada por José Faraco, retirou as famílias Kaingang da Praça realocando-as na Fazenda Refúgio, uma área de preservação ambiental, localizada na zona sul de Londrina. O secretário responde por diversas infrações nessa área de preservação, como é o caso do depósito de podas de árvores ou a criação de um centro de zoonoses. Ao que parece, realocar as famílias Kaingang nesse terreno foi uma estratégia rápida utilizada pelo secretário que resolveu um problema, tirando as famílias de um local muito próximo às vistas da população e as mandando para um local mais distante, sem qualquer estrutura digna, ficando apenas a promessa de construção de 20 casas, sem qualquer auxílio prévio. Após serem realocados, a SEMA não compareceu na Fazenda, mesmo o secretário, José Faraco não atende as ligações dos Kaingang e nem da FUNAI. Nessa fase de reorganização o cacique Paulo e outras lideranças se mobilizaram para matricular as crianças na escola, fizeram contato com a Articulação dos Povos Indígenas do Sul – ARPINSUL e participaram de uma sessão na câmara dos vereadores para exporem suas maiores dificuldades. Durante a sessão, a promotora do meio ambiente, Solange Vicentin, pediu a palavra para apontar os principais problemas jurídicos que envolvem José Faraco, pedindo seu afastamento da Secretaria. Nesse contexto os discursos estavam voltados muito mais para o meio ambiente e pela irregularidade em enviar famílias para uma área de preservação ambiental do que pela situação em que se encontram os Kaingang e pela história que estão construindo em Londrina desde 2009, como se vê na seguinte notícia no Jornal de Londrina: “ONG pede ao MP ação contra Faraco: Pedido encaminhado ao Ministério Público acusa secretário de crime ambiental” (KOMARCHESQUI & SILVEIRA, 2011). Ou mesmo no questionamento feito pela Promotora: durante uma reunião na Câmara para tratar da situação dos índios Kaingang abrigados provisoriamente na Fazenda

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Refúgio, a promotora do Meio Ambiente, Solange Vicentin, disse que estuda entrar com uma ação judicial, na qual pretende pedir o afastamento de Faraco. E falou duro: ‘Como pode a autoridade máxima do Município, desconhecer e afrontar a legislação ambiental? Eu acho um absurdo isso’, completou. Alguns vereadores propuseram que as famílias ficassem no Centro Cultural Kaingang que tem na cidade, mas de imediato o cacique Magé e Piatã colocaram a especificidade do caso do Centro Cultural, que é voltado apenas aos Kaingang do Apucaraninha, e que mesmo existindo esse espaço, ainda não foi reformado após o incêndio que destruiu grande parte do Centro, inclusive as famílias do Apucaraninha que ficam temporariamente no terreno do Centro Cultural também estão acampadas, construíram casas com o material que era disponível, assemelhando-se ao início da formação do acampamento da Praça Ângelo Cretã. Pude observar que, em sua maioria, os discursos dos vereadores estiveram voltados à construção de um Centro Cultural em que as famílias ficariam temporariamente alojadas, mesmo ficando clara a intenção de permanência apresentada pelo cacique e por Piatã. O caso foi encaminhado para a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania, que até o final dessa pesquisa não havia organizado reuniões com as famílias que ainda permanecem na Fazenda Refúgio.

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CAPÍTULO II - QUANDO A ALDEIA É NA CIDADE: UMA ETNOGRAFIA MARGINAL 2.1 ETNOGRAFIA MARGINAL Por muito tempo a etnologia indígena foi voltada para a análise de comunidades que ocupam um espaço legalmente reconhecido e delimitado pelo Estado. O grande distanciamento cultural que prevalecia nas etnografias dessas comunidades era o diferencial nos estudos sociais. Entretanto, com os projetos expansionistas que resultou na expulsão dos povos indígenas de suas terras, as diferenças que antes estavam distantes do pesquisador e de toda a sociedade nacional passam a se estreitar, o que dá espaço ao mito do fim do objeto da antropologia, que foi desconstruído por Sahlins ao provocar a discussão sobre a ruptura com uma abordagem que tenha como referência a estrutura social, propondo desta forma uma análise a partir de uma história cultural, ou seja, é reconhecer a existência de uma estrutura simbólica e seus significados no ordenamento da vida de determinada sociedade “dominada”. Interpreto os apontamentos teóricos de Sahlins (1988, 1997, 2008) como um marco na Antropologia por trabalhar com a idéia de resignificação e não apenas determinações estruturais que atuariam sobre o modo organizacional, simbólico, religioso, etc, de grupos que passam a ter o domínio dos códigos hegemônicos, fato que ocorre exatamente por estarem inseridos nos processos históricos. Compartilhando das reflexões de Sahlins, os etnólogos brasileiros (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1968; OLIVEIRA, 2004) começam a desnaturalizar o que por muito tempo foi compreendido como o lócus privilegiado para se realizar uma etnografia respeitável no campo científico, as aldeias. Lançam agora seu olhar para o recente fenômeno da migração indígena para os centros urbanos, que contribui para a renovação dos estudos etnológicos. Ainda está em lento processo essa desnaturalização, como sustenta Ramos Cada vez mais presentes nas cidades brasileiras, eles (populações indígenas) têm recebido tanto silêncio por parte dos antropólogos quanto da sociedade em geral [...] Esse conservadorismo da antropologia é responsável, por exemplo, pela tardança em se perceber toda a dimensão social e política

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dos novos atores indígenas em múltiplas esferas da vida nacional (RAMOS, 2010, p. 6) Esse “mal-estar antropológico” que fica transparecido na resistência em reconhecer as transformações pelas quais a disciplina precisa passar, como foi observado por Alcida Ramos, faz dessa pesquisa que realizei, uma etnografia marginal. Utilizo esse termo por tratar-se de uma pesquisa que foge dos parâmetros clássicos de uma etnologia indígena. Segundo Mary Douglas (1976) a marginalidade é atribuída “aquele que não tem lugar”, nesse caso que apresento, a etnologia não é a tradicional por não analisar grupos indígenas dentro de suas terras demarcadas com o característico traço do distanciamento geográfico e temporal, assim como não se trata de uma etnografia urbana por não se referir a grupos que tem a cidade como o espaço próprio de construção de seu corpo e de sua noção de pessoa. Essa idéia da existência de uma marginalidade etnográfica é reflexo do que poderíamos chamar de uma etnografia do marginal, dos grupos indígenas que passam a ocupar um espaço que lhe foi imposto como sendo contrário ao seu modelo cultural. Exemplo dessa etnografia (do) marginal são as reflexões de João Pacheco de Oliveira, que elabora estudos sobre os povos indígenas do Nordeste que já haviam sido considerados por Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro povos misturados com a população envolvente, não havendo resquícios de sua cultura e identidade. Para Oliveira, “A ‘etnologia das perdas’ deixou de possuir um apelo descritivo ou interpretativo e a potencialidade da área do ponto de vista teórico passou a ser o debate sobre a problemática das emergências étnicas e da reconstrução cultural.” (OLIVEIRA, 2004, p. 21) Acreditando também que o trabalho etnográfico é um dos meios em que os sujeitos pesquisados podem ter voz e dar visibilidade ao seu contexto sócio-cultural, essa pesquisa apresenta alguns elementos desse estágio marginal da atual mobilidade Kaingang e da própria (re) formulação da etnologia indígena brasileira. 2.2 ORGANIZAÇÃO SOCIAL (URBANA) KAINGANG Comecei a me aproximar das famílias Kaingang da Praça Ângelo Cretã no início de 2010; não tive um interlocutor que pudesse facilitar minha primeira conversa com eles, mesmo sem essa mediação fui muito bem recebida por algumas

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pessoas. O fato é que me surpreendi com as condições que se encontravam aquelas famílias, vivendo sem o mínimo de infra-estrutura os Kaingang estavam desde 2009 sem água e energia elétrica, improvisando recursos, utilizando fogueiras, fogão a lenha e duas minas de água que ficam próximas à praça. Localizada na divisa dos bairros Aquiles Stenghel e Maria Cecília, a Praça tem seu entorno fechado por uma grade com quatro entradas que dão acesso ao seu interior, rico em vegetação, inclusive em plantas medicinais. Na parte externa das três entradas principais há um largo gramado que completaria o espaço ideal de convivência comunitária. Apesar de ser um projeto inicial que tinha por objetivo oferecer um espaço de lazer à comunidade da zona norte, a Praça já estava abandonada há muito tempo pela SEMA, tornado-se um depósito de lixo e ocupado por usuários de drogas, sendo possível encontrar, por exemplo, latas para o uso de crack. Essas condições de degradação do espaço público preocupavam os moradores que tinham seus filhos na escola ou brincando nas proximidades. O descaso foi registrado pela Folha de Londrina em 2008 com a seguinte notícia “Reivindicações dos moradores vão desde roçagem e iluminação pública a revitalização” (FARO, Folha de Londrina, 08 de agosto 2008). Abaixo está a foto da Praça antes dos Kaingang.

Num primeiro momento, me aproximei das famílias que estavam na parte de cima da praça, por ser a primeira entrada que avistei assim que cheguei. Logo que entrei encontrei Taiguara, o cacique do local. Conversamos por algum tempo e Taiguara foi me explicando o que estava acontecendo, os trâmites políticos e como estavam se organizando na cidade. Quando falei que era da Universidade, ficaram interessados em saber se eu tinha alguma relação com a FUNAI ou com a Prefeitura; me preocupei em explicar que eu não estava ali em nome dessas

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instituições, mas que se tratava de um interesse pessoal, que dias depois foi se transformar em um tema de pesquisa para o trabalho de conclusão de curso. Nessa conversa inicial achei mais apropriado não prolongar a visita ou fazer muitas perguntas para não criar uma situação de desconforto e insegurança para as famílias. Taiguara já vivia na cidade há muitos anos, tendo saído da T. I. Apucaraninha ainda moço, procurando, desde então, formas de sobreviver na cidade. Desde que saiu da T.I., Taiguara permaneceu no município de Londrina, onde se casou com uma Kaigang e hoje tem uma filha. Durante o período que realizei minha pesquisa na Praça, Taiguara estava empregado como garçom do restaurante de um shopping da cidade, já tendo atuado em outras áreas, que em sua maioria tinha caráter provisório. Quando retornei à Praça e coloquei meu interesse em fazer uma pesquisa com as famílias para um trabalho acadêmico, Taiguara se mostrou disposto em contribuir no que fosse possível. Na posição de estudante de graduação eu não tinha influências políticas para solucionar o problema de moradia que eles me apresentavam, penso que isso havia ficado claro para todos, mas obviamente foi estabelecido um sistema de trocas para que eu pudesse conquistar a confiança das famílias. Taiguara sempre falava sobre a necessidade de roupas, principalmente para as crianças, em uma das conversas mencionou também uma festa que estavam planejando para o Dia do Índio, quando fariam até uma apresentação com danças kaingang, porque segundo ele “os brancos gostam de ver essas coisas”. O retorno que pude dar foi através de doações de roupas que algumas pessoas me repassaram e uma contribuição para a festa, que acabou não acontecendo. Quando pedi para que Taiguara me acompanhasse pela Praça para que eu pudesse conversar com as outras famílias, ele me disse que não iria para a parte de baixo, por ser liderado por outro cacique. Nesse momento me dei conta de que eu poderia ter prejudicado minha pesquisa por não ter entrado em contato com as outras famílias, afinal, se havia ali uma divisão política num espaço pequeno com aproximadamente sete famílias, o cacique da parte baixa da Praça poderia encarar minha desatenção como uma afronta e preferência pelo seu opositor. Diante disso, expliquei para Taiguara que para que eu pudesse realizar a pesquisa, seria necessário entrar em contato com o outro cacique, mas que não encarasse isso como algo negativo, pois não havia em minha atitude intenção de

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prejudicá-lo. Tive, então, que seguir sozinha para conversar com o outro cacique, chamado Ibiaçu, que tempos depois soube ser primo de Taiguara. Ao passar pela fronteira geográfica criada pelo dualismo Kaingang, que tem em sua essência a complementaridade pela divisão3 e que no caso do faccionalismo o território é essência para compor esse tipo de divisão, tomo consciência de que devo ter a cautela de saber caminhar entre uma divisão faccional, que mesmo os caciques ocupando a mesma Praça, não mantinham relações diretas. Não foi na primeira vez que tive a sorte de encontrar Ibiaçu, mas conversei com dois jovens Kaingang que me passaram o telefone do cacique para combinar um melhor dia para conversamos. Quando disse que já havia conversado com Taiguara anteriormente e expliquei quais eram minhas intenções, os jovens passaram a questionar o que Ibiaçu havia me dito, mas não foi um fator de impedimento, muito pelo contrário, pois ao saber que Taiguara estava sendo procurado por alguém da Universidade que tinha intenções em realizar um trabalho sobre a permanência deles na Praça, de alguma forma isso relegou certo status a Taiguara, não podendo eles omitirem-se, sentindo a necessidade de também exporem o que a outra metade da Praça pensava sobre todo esse processo de ocupação. Ao conversar com Ibiaçu, soube que foi a primeira pessoa a chegar na Praça em 2009, juntamente com Mairarê, uma índia Kaingang que no começo não aceitou conversar comigo, ela era sogra de Taiguara e também vivia com ele e sua filha e neta na parte de cima da Praça. Ibiaçu contou que quando soube que aquela Praça, chamada de Ângelo Cretã havia sido doada um dia para a FUNAI com o objetivo de construir um centro cultural, mas que nada havia sido construído no local viu como necessário fazer a ocupação da Praça que segundo ele era dos índios, havendo um compromisso maior por levar o nome de um parente. Assim como Ibiaçu, Mairarê saiu da T.I. de São Jerônimo da Serra diretamente para a Praça Ângelo Cretã com o objetivo de legitimarem o espaço como deles e de seus parentes. Fui pra lá porque tava gravado o nome do índio lá né [...] aí fiquei lá dentro desde agosto de 2009 pra conseguir de volta aquela terra pra construir um Centro Cultural pro pessoal do Barão e São Jerônimo da Serra, porque o povo do Apucaraninha já tinha [...] a gente quer um Centro Cultural pra Entenda-se que nesse caso a dualidade não está representada em metades clânicas com referência a Kamé e Kairu, mas em seu sentido de oposição política, redesenhando a oposição inerente ao modo de vida kaingang (FERNANDES, 2003) 3

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gente ir lá, ficar um pouco lá, trabalhar um mês, dois meses e depois voltar pra reserva perto da família (Ibiaçu) A partir disso outras famílias foram migrando e se deslocando em direção à Praça. As famílias foram se deslocando para a Praça por manterem a unidade familiar, segundo o que me afirmou um dos jovens com quem conversei. Quando perguntei sobre Taiguara, Ibiaçu foi bem incisivo quanto a divisão, que diz ser necessária, visto que cada um tem um jeito de lidar com a política do não índio e por terem posicionamentos contrários sobre o que deve ser feito na Praça e para as famílias. Na concepção de Taiguara, o ideal seria construir dentro da Praça moradias para essas famílias, ou que algum outro lugar fosse destinado para que eles pudessem se fixar. Já no caso de Ibiaçu, isso poderia ser negociado, aceitando a construção de um centro cultural, ou seja, apenas um lugar de passagem, que fosse coordenado por indígenas e que ao menos um Kaingang pudesse permanecer no local para cuidar do que fosse necessário. Em meio aos desacordos entre as duas lideranças notei que essa divisão se dava em maior grau entre os caciques, mas que não se estendia inteiramente aos outros Kaingang. Passado um tempo foram fincadas na terra estacas que delimitavam geograficamente a parte que cabia para cada cacique. Mesmo com essa divisão o trânsito entre famílias de cima e famílias de baixo não foi interrompido, apenas um cacique não ia para a área do outro. Após aproximadamente um ano dessa divisão política, Taiguara saiu da Praça com sua família, conseguiu alugar uma casa em outro bairro da cidade, para ele já não daria para ficar por mais muito tempo no acampamento, pois tinham um bebê, sendo o melhor para a criança ter uma casa e condições mínimas de sobrevivência. Saiu também Ibiaçu, que voltou para São Jerônimo da Serra, dizendo que estava sendo pressionado pela FUNAI por ter crianças fora da escola, então voltou com sua família e as crianças voltaram para a escola. Quando conversei com Ibiaçu, depois de voltar para São Jerônimo me disse que ainda tinha interesse em retornar à Praça, afinal estava desde o início nesse enfrentamento e não gostaria de se distanciar. Passa então a ser cacique o Kaigang Magé, vindo de Barão de Antonina, sendo que o fator principal que fez com que Magé fosse para Londrina morar na Praça foi também a falta de trabalho,

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Chegamos na Praça que tem o nome de um índio, começamos a trabalhar, porque lá em São Jerônimo, não tem muito trabalho pra nós que somos mais fracos, hoje tem trabalho pro pessoal estudado, a gente que não tem estudo trabalha mais como servente de pedreiro, esse é o serviço que ‘pinta’ mais pra gente né. Aí a gente foi se assentando né, trabalhando, nossa família comia e bebia bem com o suor do nosso trabalho Mesmo com a mudança de liderança e contando agora com um cacique, a organização social kaingang não sofreu muitas alterações, somente no fato de permanecer um único cacique. A organização que foi criada no espaço da Praça pode ser definida como atividades internas e externas. Aos homens coube o trabalho externo, incluindo a relação política com os não índios, às mulheres coube os cuidados da Praça e das crianças. Todas as casas foram construídas pelas próprias famílias, com a utilização de madeiras, pedaços de guarda-roupa, lonas, Eternit, dentre outros materiais que fossem úteis para a edificação das casas. A cozinha da maioria das casas ficava para fora, logo em frente ou ao lado da única porta da casa. As moradias que estavam mais localizadas na parte de cima eram poucas e um pouco afastadas umas das outras, já as de baixo eram mais numerosas e aglomeradas. Vale lembrar que as casas permaneceram na Praça durante os períodos de visita às aldeias, mesmo quando os caciques se mudaram, marcando assim a pertença ao território pela existência de suas casas, que apenas permaneciam de portas fechadas. Nesses períodos em que algumas casas ficavam fechadas, eu perguntava para os outros se as famílias que habitavam determinada casa havia ido embora e diziam sempre que apenas foram passar um tempo com os parentes na aldeia, mas que logo voltavam. Notei então, que realizavam visitas freqüentes para as T.Is., assim como seus parentes passavam alguns dias na Praça, o que as vezes me fazia confundir quem de fato havia migrado ou se deslocado para a Praça e quem apenas a visitava, já que alguns sempre estavam na Praça, mas diziam não viver lá, apenas indo para visitar ou procurar algum “bico”. Após um período tendo contato com as famílias tive que me distanciar por conta de alguns problemas, nada envolvendo os Kaingang, voltando à Praça alguns meses depois. Foi quando dona Mairarê, que passou a me tratar com muita atenção e com sorrisos, me apresentou a uma nova família que estava há apenas um mês

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na Praça, tratava-se de Airumã e seu marido Apoema, que vieram com seus filhos Coaraci, Rudá e Moema. Pudemos conversar sobre muitos assuntos, como a legalidade da Praça, as estruturas físicas do local, sobre o benefício bolsa família e da casa da COHAB, já que eu disse que estava estagiando no CRAS responsável pelo território em que eles estavam. Quando perguntei para Apoema o porquê de insistir em ficar num lugar que não tem água, luz elétrica e saneamento básico, já que dentro das áreas indígenas eles têm essa estrutura, me respondeu o seguinte: É, não tem luz e não tem água, mas só que tem uma mina de água ali nas distâncias ali e o caminho tá bom pra ir até lá [...] Pra mim ficar na área lá, não dá, não tem emprego pra ninguém, não tem, aqui a gente faz um servicinho, no começo eu não tinha serviço, pegava ferro velho, vendia [...] não vai pensar que eu fico por aí batendo palma na casa dos outros pedindo esmola, eu não! Eu prefiro trabalhar, por isso mesmo que eu queria uma casa de moradia. Apoema trabalhou muito como pintor de obras, de letreiros, inclusive pinta quadros, em uma das visitas ele me mostrou dois de seus quadros que estavam jogados atrás da casa, um deles representava um escravo deitado no chão apanhando, outro era de um indígena com arco e fecha sob seu cavalo. Elogiei os trabalhos, disse ser importante que os guardasse. Na semana seguinte quando voltei, os quadros estavam pendurados na parede da sala. Um problema nas pernas gerou maiores dificuldades para seu Jair encontrar trabalho, já que não podia fazer muito esforço físico. Conta que na T.I não trabalhava porque tinha “incomodo nas pernas”; complementa dizendo que as condições do pouco trabalho destinado aos indígenas dentro das T.Is encontra-se em situação de muita precariedade por não haver um acompanhamento médico. Um dos casos que me chamou a atenção foi sobre o penhor de cartões de aposentadoria e pensão, que Apoema disse ser uma prática recorrente entre os indígenas. Explica que os que são aposentados ou pensionistas acabam penhorando os cartões no mercado, que serve como uma garantia de pagamento, inclusive o cartão dele estava no mercado de Tamarana. Apoema explica com muita precisão sua opção pela cidade nesse momento:

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A gente não tem nome sujo em delegacia nenhuma e nem em área nenhuma [...] em qualquer área que eu quiser ir, eu posso ir, mas só que eu não quero ir, porque hoje em dia o índio é liberado, o índio não é mais escravo como antigamente, as vezes um chefe sabia que tinha um índio em tal lugar aí eles iam lá, prendiam o cara, levava ele a força pra área dele, mas a gente não tá dando nenhum motivo, pra que eu posso ir num lugar que eu não quero? O Brasil é nosso a mais de 500 anos, então eu tenho direito de morar em qualquer lugar do Brasil, porque eu sou uma boa conduta, não faço sujeira pra lá e pra cá, pra mim ficar com medo da justiça, da polícia, seja lá o que for, porque eu to andando livremente e sem fazer nenhuma sujeira. Após a conversa com Apoema, Mairarê me levou para conhecer uma das minas que utilizavam, pois quando as mulheres não estavam na Praça é porque estavam em seus afazeres na mina. O lugar é em meio a uma mata que é cortada por um córrego, onde tomavam banho. Para lavar as roupas utilizavam como torneira uma bica, por onde passa um raso fio de água que desce da pequena mina; improvisaram também uma espécie de tanque colocando uma banheira de baixo da bica para reter um pouco da água. Eis que lá estava Airumã lavando as roupas com as duas filhas. Esse foi um local que ficou marcado pelas nossas conversas, pois quando ia visitá-los tinha que descer até a mina para me encontrar com Airumã, que estava sempre em companhia de Coaraci e Moema. O assunto preferido de Airumã era sobre os estudos, disse ter parado na oitava série e que gostaria de terminar para que pudesse ter mais chances de conseguir um trabalho melhor na cidade “resolvi vim pra cá porque na reserva as coisas são mais difícil né, serviço é o mais difícil que tem lá. O difícil aqui é luz e água.” Minha aproximação com a família de Airumã e Apoema foi extremamente importante para reencontrar meu caminho na pesquisa após o período de afastamento do campo. Talvez o fato de fazer estágio no CRAS tenha contribuído nessa aproximação, pois conheci Airumã quando fiz a atualização do cadastro de sua família, sempre me perguntavam sobre os benefícios sociais e qual era o procedimento para entrarem na fila da COHAB, fato que também gerou revolta em Apoema: a gente vai querer fazer uma inscrição de COHAB, precisa o cara morar a dois anos ou ter um título de eleitor a dois anos, pra que isso? Eu to achando que isso aí, como que eu posso dizer...eu não sei se eu devo falar, eu não sei, porque a gente é franco, mas eu acabo acreditando que isso é um racismo,

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principalmente o índio que é brasileiro legítimo, por que o presidente da COHAB não abre as mãos? Principalmente para o aposentado, por que ele tem a garantia de que vai pagar. O índio por exemplo, quer morar numa casa da COHAB, mas ele não tá pedindo nada de graça, por que o presidente da COHAB não olha, não escuta essas palavras e deixa uma casa pra qualquer outro índio pra entrar dentro? Porque ele vai pagar, ali ele vai cooperar com a Copel, vai cooperar com a sanepar, vai cooperar com imposto, isso aí é certeza que a gente quer, mas a gente sabe que vai ter que comprar, é igual comida, a gente compra comida mas vai ter que pagar, porque esse senhor presidente não dá uma olhada nessa profundidade de compreensão? Não é mesmo? Enquanto estive como estagiária do CRAS da região norte de Londrina me deparei com atitudes que ultrapassaram a legislação de assistência social, como já foi mencionado no capítulo anterior. Mas ao mesmo tempo tornou-se um local de referência para que eles pudessem me encontrar, inclusive me surpreendi quando dois pastores foram ao CRAS me procurar, vinham da Igreja Peniel 4, dizendo conhecer Apoema e que gostariam de conversar sobre a situação dos Kaingang que habitavam a Praça. Marcamos um encontro para o mesmo dia, me interessei em saber qual era o contato que os pastores haviam feito com as famílias. Saindo do trabalho, me dirigi à Igreja Peniel, dois quarteirões acima do CRAS, lá estavam os pastores me esperando. Conversei por mais tempo com um deles, o pastor Reinaldo, que parecia mais interessado no caso, tendo maior proximidade com as famílias. O pastor já havia feito também contato com vereadores e a coordenadora do CRAS para que pudesse entender melhor a situação. O interesse inicial do pastor era reformar as casas, fazer uma limpeza da área e fazer uma fossa, que por impedimentos legais não foi possível realizar. Assim, os pastores resolveram entrar em contato com a COHAB para fazer a cobrança de prioridade na fila dos apartamentos, considerando as condições de alta vulnerabilidade em que se encontravam as famílias, mas também não obtiveram sucesso. Foi Apoema quem fez o primeiro contato com o pastor Reinaldo, disse estar passando pela rua da Igreja, quando o viu lavando a calçada e resolveu se aproximar e perguntar se Reinaldo não tinha conhecimento de algum trabalho como 4

Trata-se de uma Igreja composta por Igrejas Batistas. Um dos projetos desenvolvidos pela Igreja é “missão das novas tribos”, projeto evangelizador realizado em grande parte das Terras Indígenas e atualmente em países na África.

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pintor, já que a experiência de Apoema era nessa área, o pastor então se interessou por sua história e se propôs a ajudá-lo. Tempos depois o pastor ofereceu um serviço de pintor para Apoema em uma casa próxima da Praça, de imediato o trabalho foi aceito. Em todo esse período de permanência na Praça quem ofereceu algum tipo de colaboração aos kaingang foram os moradores não índios do bairro e a Igreja, mesmo o CRAS cumprindo com seu trabalho ainda se viu no direito de negar atendimento por tratar-se de um caso muito específico, tendo quem responda por eles, concordando com a acomodação que as famílias poderiam ter por conta do atendimento social, correndo o risco de que não saíssem mais da Praça. Esses entraves políticos marcaram muito o percurso dessa pesquisa por me colocar numa situação em que devia a sinceridade para as famílias que estavam me recebendo em suas casas, ao mesmo tempo em que era necessário ter o controle de certas atitudes e informações para que os impulsos inconseqüentes de minha parte não prejudicassem os próprios Kaingang, tendo que estabelecer relações diplomáticas com diversas instâncias com pontos de vistas que contrariavam totalmente a permanência Kaingang na Praça ou em qualquer ponto urbano, ignorando as motivações, perspectivas e planejamentos do grupo. Tentei a partir dessas angústias da primeira experiência de campo, focar minha atenção dentro da Praça, para que as informações transmitidas pelos Kaingang fossem priorizadas, evidenciando sua organização, projetos, pontos de vista, histórias de vida, pensando que de alguma forma esses elementos pudessem responder

aos

questionamentos

levantados

pelas

posições

contrárias

à

permanência indígena em áreas urbanas, legitimando sua presença em outro território que não o “original”, sabendo que o motivo pelo qual estão ali não é o simples desejo em morar na cidade, mas uma situação resultante das limitações encontradas nas áreas indígenas e que merecem mais atenção, pois como me disseram algumas vezes o melhor é ficar na aldeia, mas as condições atuais não permitem que todos continuem por lá. Logo após esse período mais acentuado de problemas políticos e proibições, fui apresentada aos Kaingang Caiubi e sua esposa Eirapuã, ambos da T.I. Barão de Antonina. O casal já estava na Praça há aproximadamente um ano e meio quando conversei com eles pela primeira vez. Chegaram quando ainda havia poucas

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pessoas e com Eirapuã grávida. Sobre a falta de estrutura do local, Caiubi me disse o seguinte: na aldeia a gente tem uma casa, tem luz, tem água encanada, mas isso é só agora, antes não era assim né, a gente que viveu com os antigos sabe que não era assim, tinha que ir na mina pra pegar água, não tinha luz, era assim né, isso faz a gente lembrar daquele tempo (...) aqui não tem esse conforto, posso morrer pobre na cidade, mas não passo fome nem vontade de comer as coisas, fica mais fácil né. Eirapuã conta que, desde quando chegou à Praça voltou uma única vez para Barão, apenas para ir ao velório de sua avó, nesse dia passaram apenas a tarde, mas foi o suficiente para não voltarem mais. Eirapuã conta que foi como se tudo escurecesse, mas ao chegar na cidade tudo voltou ao normal, como se tivesse saído um peso de seu peito. Considera a aldeia muito distante da cidade, dificultando o acesso ao trabalho e às compras. Seu relato se assemelha muito ao que disse seu marido, Caiubi: “Nossa, não gosto muito de lá não, já acostumei né, aqui tá toda a ‘parentada’. Quando fui pra lá no velório da vó da Eirapuã foi como se tudo ficasse preto, mas quando cheguei na cidade, nossa, aí melhorou” Diante das diversas etapas que envolvem a migração das populações indígenas, mais especificamente dos kaingang que residem na Praça Ângelo Cretã e de suas etapas de organização social, é essencial que nesse momento se possa ampliar e aprofundar a analise de como essas famílias tem resignificado a cidade de acordo com sua visão de mundo, bem como as relações de poder que envolvem essa disputa de território, entendendo como essas relações influenciam a construção do lugar das populações indígenas em toda história. Questiono então qual seria a compreensão desse tal “lugar” no imaginário de pessoas que passam a conviver cotidianamente com famílias indígenas num espaço inusitado. É esse o ponto que tento então analisar a seguir. 2.3 - CONSTRUINDO UMA NOVA TRAJETÓRIA: ENTRE A MIGRAÇÃO E OS TRÂNSITOS NA CIDADE Buscarei agora compreender as trajetórias dessas famílias Kaingang dentro das cidades, traçando um breve histórico de suas relações com o espaço urbano antes de se fixarem na Praça. Para tanto diferencio os casos de famílias que já

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moravam na cidade quando foram para a Praça, considerando essa mudança territorial como um “deslocamento”. No caso de famílias que vieram diretamente da Terra Indígena, utilizo o termo “migração”. O objetivo em estabelecer essa divisão surgiu a partir das próprias experiências apresentadas pelas famílias Kaingang, já que algumas estão a mais tempo morando na cidade, o que me faz supor que essas famílias ou indivíduos possuem uma relação diferenciada com o espaço urbano comparado aos que saíram diretamente da T.I. e que tinham apenas uma relação esporádica com a cidade. Após ter contextualizado no capítulo anterior as formações dos aldeamentos Kaingang, apontando os interesses políticos locais que levaram essas populações para o trabalho assalariado, em outras palavras o que Tommasino(1998) considerou como o momento de “proletarização” indígena no norte do Paraná, passo para o período atual em que a precarização das áreas indígenas somada à falta de trabalho dentro de suas T.Is os levam para a lógica urbana em busca de trabalho, educação e saúde. Entretanto, antes de partir para as experiências Kaingang, dialogo entre duas pesquisas que discutem o fenômeno da migração indígena tendo como referência os censos de 1991 e 2000 (TEIXEIRA, 2008, NUNES, 2009). Segundo a análise de Teixeira (2008) somente a partir dos anos de 1980 que surgiu uma maior preocupação com a realização de pesquisas demográficas dos povos indígenas. A partir do censo de 1991 foi incluído o quesito raça/cor, contudo, essa categoria se apresentou um tanto limitada diante da complexidade de identificações. Já no censo de 2000 a categoria chave foi de auto-identificação. (NUNES, 2009) Partindo dessas comparações de crescimento da identificação indígena nas cidades, começam a ser levantadas hipóteses que tentam responder essa mudança. Algumas dessas especulações referem-se ao contexto brasileiro na época em quem o Brasil completava 500 anos, colocando os povos indígenas em destaque pela sua participação na formação do país, considerando-os povos originários. Outra hipótese é a de emergência de novas identidades, propiciadas pelos direitos diferenciados, construindo então um cenário de valorização indígena (NUNES, 2009) Um aspecto importante que é ressaltado por Teixeira (2008) é a realidade das populações indígenas que estão em constante processo migratório. Com as informações obtidas pelo IBGE nota-se que “as regiões em que a população

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indígena concentra-se nas áreas rurais, são, geralmente, aquelas em que há maior número de terras indígenas demarcadas e homologadas.” (apud IBGE, 2005, p.3) Assim, há uma prevalência nas hipóteses de que de fato houve uma maior procura indígena pelos centros urbanos, mas que por outro lado essa significativa porcentagem representa um processo de “etnogênese”, termo comentado por Oliveira (2004) que retrata uma nova etapa para os povos indígenas. Esse conceito se opõe ao de etnocídio, ou seja, agora trata-se de um período em que pessoas e/ou grupos se valem de uma história/cultura que nem sempre compartilharam enquanto povo indígena, sendo um momento de reinvenção étnico-cultural e pertencimento

propiciado

por

um

quadro

aparentemente

favorável

pelo

reconhecimento de culturas, organização e direitos diferenciados. Partindo dessas reflexões para pensar o caso das famílias Kaingang que foram para a Praça Ângelo Cretã, acrescento algumas trajetórias significativas para que seja possível identificar, sob o olhar kaingang, a representação que fazem da cidade e como tem sido os trânsitos construídos dentro das cidades e a relação que estabelecem com as áreas indígenas e com outros pontos urbanos, repensando a mobilidade Kaingang em sua translocalidade (SAHLINS, 1997). Repensar a mobilidade Kaingang é ultrapassar a ideia de uma transição territorial que se restrinja aos espaços rurais, rompendo uma divisão que estabelece o que é permitido ao indígena e o que é permitido ao não índio. Há entre os Kaingang da Praça uma instabilidade territorial muito forte que é marcada não só pelo caminho que percorrem entre as áreas indígenas, mas também pelos trajetos traçados de uma cidade a outra, como é o caso da família de Airumã que nasceu em Ortigueira, mas se mudaram para Rolândia. Passado oito anos foram para Arapongas, onde permaneceram por mais cinco anos.

De

Arapongas voltaram para Ortigueira, mas Airumã havia encontrando trabalho em Arapongas onde passaram mais algum tempo. Passado o período de experiência não foi possível que Airumã permanecesse no trabalho, nesse período foram para Apucaraninha, de lá Airumã ficou sabendo através da TV que havia famílias Kaingang que estavam acampadas na Praça Ângelo Cretã em Londrina. Airumã diz ter feito três visitas com sua família para conhecer a Praça, quando finalmente resolveram ficam por lá. Todo esse caminho percorrido por Airumã e sua família teve como pano de fundo a busca por trabalho.

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Após aproximadamente seis meses de tentativas de conseguir emprego e moradia em Londrina, surgiu a notícia de que o Secretário do Meio Ambiente havia doado um terreno para as famílias da Praça, com a promessa de construção de vinte casas. Nesse período todas as famílias foram encaminhadas para o terreno doado, chamado de Fazenda Refúgio, no entanto, foi o período em que seu Apoema estava trabalhando e seus filhos estudando. Nesse caso, optaram por continuar na Praça para que Apoema terminasse seu trabalho como pintor em uma casa e que seus filhos concluíssem o ano escolar. O problema é que o tempo pedido por Apoema não foi o mesmo dado pela SEMA, que os expulsou da Praça, independente de qualquer motivo apresentado pela família. Foi quando perdi o contato com Apoema e Airumã, que não aceitando ir para a Fazenda Refúgio por considerarem um local desfavorável para os Kaingang, foram para outra cidade, mas que as famílias não souberam ao certo me dizer qual teria sido o destino. Como no primeiro caso, Caiubi e Eirapuã também residiam na cidade antes de mudarem para a Praça, moravam com a tia de Eirapuã, próximo à rodoviária e ao trabalho de Caiubi, que na época trabalhava com reciclagem. Desde a chegada do casal em Londrina, foram poucas as vezes que visitaram os parentes na aldeia, pois a dinâmica urbana já faz parte da vida de ambos. Em uma das visitas conheci a irmã de Eirapuã, que já estava há algum tempo com eles na cidade, mas em breve voltaria para Barão com sua mãe. Embora não realizasse visitas freqüentes para a aldeia, Caiubi revelou o prazer que sente em ir para a cidade de Cambé, onde costumam ir para vender artesanato (quando há material pra confecção) e orquídeas. Na última vez que foram para Cambé estavam em aproximadamente 10 Kaingang que retornaram para Londrina em um ônibus que conseguiram pela prefeitura da cidade. Caiubi teve a oportunidade de conversar com a assistente social de Cambé, falou sobre seu apreço pela cidade e pela população, considerando o município o lugar ideal de se construir um Centro Cultural, “o povo que é do Apucaraninha tem o Centro Cultural deles em Londrina, daí nós que somos de Londrina podemos ter o nosso em Cambé” Mesmo com a transição e com as expectativas da vida na cidade os kaingang, em sua maioria, não se desvinculam totalmente da vida na aldeia, estabelecem redes sociais com a família que ainda permanece na T.I., mesmo criando novas redes de comunicação com os não índios que moram no bairro. Constroem um jogo

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duplo de relações diferenciadas que contribui para a formação da pessoa kaingang que se apropria da conexão com os dois mundos como forma de totalidade de si. Essa dupla conexão é representada pela inserção numa sociedade de classes, faz parte de uma comunidade urbana periférica, assim como, pela ambígua relação de descontentamento e afeição com a comunidade indígena de origem, como foi relatado por um kaingang: “Queremos ir para a reserva, mas não tem condições, a FUNAI não consegue atender todos da aldeia, viemos para a cidade para manter nossa cultura e dar comida para nossos filhos.” Notei que os mais jovens estabelecem um trânsito mais constante entre a T.I. e a Praça. Conversei com três jovens Kaingang de São Jerônimo da Serra que diziam estar temporariamente na Praça, apenas tralhavam por um tempo e depois voltavam para a aldeia. Um deles, Cauré, estava com mulher e filhos há três meses na Praça, seu trabalho era de pedreiro. Disse ter vindo direto da aldeia ao saber do acampamento, mas que constantemente ia para São Jerônimo visitar os parentes. Por fim, Cauré acabou retornando para a área indígena, sem possíveis chances de voltar para o acampamento. Quanto aos outros dois jovens Kaingang, um estava há três semanas e o outro há apenas alguns dias, ambos em procura de emprego, estavam com Cauré “fazendo bico” como servente de pedreiro, mas também retornavam para a área indígena de São Jerônimo. Talvez o fato das famílias terem sido transferidas para uma área mais distante e com acesso mais restrito por conta da vigilância, fez com que diminuísse o fluxo de famílias que passavam alguns meses e depois retornam para a T.I., no entanto, Caiubi comunicou que ainda virão mais parentes dele que estão na cidade e na T.I. Praticamente todos que moravam na parte mais alta da Praça voltaram para a aldeia ou não se deslocaram até a Fazenda Refúgio. Como foi o caso de uma família formada por uma mulher Kaingang e por quatro filhos, seu marido era fog 5, ele não tinha se acostumado com a vida dentro da T.I. por isso foi pra cidade e a levou com os filhos, passaram quase um ano na cidade, quando foi para a Praça, mas seu marido não aceitou, então a mulher e os filhos retornaram para a aldeia depois do Natal. Ela havia me contado um pouco sobre as dificuldades enfrentadas por morar na cidade, onde tudo se tornava cada vez mais difícil. 5

Categoria que se refere ao não indígena, o outro que não eu.

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Em grande parte os discursos dos Kaingang que migravam para a cidade estava na super valorização desse espaço, pareciam depositar no urbano todas suas expectativas de melhores condições de vida. Os principais pontos apontados pela maioria foram referentes ao trabalho, educação e saúde, sendo o trabalho o principal fator de motivação da migração para centros urbanos. Fato esse que fica evidenciado quando Caiubi relatou sobre sua decisão em sair da T.I. “trabalhando como servente aqui na cidade eu ganho o dobro do que ganhava na aldeia, lá eu ganhava vinte reais por dia, só tinha uma pessoa que oferecia o trabalho e nem era sempre, aqui eu ganho quarenta reais a diária sempre tem né” Aqueles que se deslocavam dentro e entre as cidades construíam agora suas expectativas na conquista pela moradia, sendo esse sempre o ponto principal a ser colocado. Esse questionamento estava sempre presente de forma incisiva, por exemplo, nos discursos de Taiguara e Apoema, que já haviam saído da T.I. há muito tempo. Nota-se que há uma lógica em todo esse processo migratório e do reconhecimento do espaço, pois a saída da T.I. está sendo influenciada pela falta de trabalho, não de moradia ou terra. Quando já estão estabelecidos na cidade, em um acampamento, ocupações de fundo de vale, ou através de qualquer outro meio de fixar moradia, passam a ter uma proximidade maior com o funcionamento da sociedade fog, estando inseridos ou mais próximos em algum campo de trabalho, em sua maioria informal, sendo mais freqüente os bicos de pedreiro, pintor e servente de pedreiro. O que irá diferenciar esse movimento indígena de outros movimentos como o dos sem terra ou o movimentos dos sem teto, é a particularidade na relação estabelecida com o território, sua concepção de espaço e a significação da organização social e cultural dos grupos étnicos para construir a territorialidade que levará em consideração as concepções que estão interligadas ao modo de vida e visão de mundo Kaingang. Mas o que parcialmente pude concluir com esse esquema de migração e deslocamento é que o sentido de qualquer mudança territorial que objetive o estabelecimento urbano, nos leva a uma reinterpretação da mobilidade Kaingang, compreendendo a complexa rede de trânsitos e circulações dessas famílias, que será desenvolvido no capítulo seguinte.

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2.4 QUEM ESTÁ DO OUTRO LADO? No interior da Praça existem duas trilhas que os moradores dos bairros utilizam constantemente como forma de cortar o caminho, uma dessas trilhas passa por entre as casas dos Kaingang, despertando a curiosidade de ambas as partes, o que acaba resultando numa primeira aproximação. Por diversas vezes chegando à Praça, encontrava algum morador não indígena do bairro passando a tarde com os Kaingang, com muita conversa e risadas. As relações estabelecidas entre os Kaingang e os não índios foram marcadas ora por respeito e solidariedade, ora por aversão ao acampamento que mudava a paisagem do bairro. Logo na frente da Praça há um bar. A dona desse bar, Sônia, me disse em uma conversa que no início ajudava as famílias, mas que começou a ter problemas quando passou a se negar a vender bebidas alcoólicas, porque segundo ela o problema do alcoolismo estava causando situações desagradáveis em seu estabelecimento. Para Sônia, o acampamento indígena não era como imaginava: “Quando ele (cacique) disse que iam vim pra cá eu até gostei. Falei, ah, eles vão construir umas cabaninhas. Acho até bonitinho, gosto dessas coisas, mas olha isso, tá pior que favela, isso desvaloriza o meu ponto”. Quando conversei com outras pessoas da região sobre o acampamento, eles também reafirmaram o problema com o álcool. Muitos diziam não ser contra a permanência das famílias na Praça, mas que quando bebiam não era fácil lidar com eles. Outros diziam que o maior problema era a sujeira deixada na mata dentro da Praça, assim como fezes humanas, que de baixo do sol exalava um forte odor pelo bairro. Entretanto, o que pude notar é que a idéia de higienização já estava consolidada no imaginário da população não indígena, relacionando-a com a sujeira e a desordem todos os elementos que estavam para trás das grades da Praça. Sônia comentou sobre um abaixo assinado que a vizinhança havia feito para que fosse efetuada a retirada das famílias Kaingang da Praça, disse não ter assinado por ser próxima de algumas famílias e não achar correto que saiam sem ter para onde ir, já que não querem retornar para a aldeia. Quando perguntei sobre o autor do abaixo assinado, sem total certeza ela me disse ser um comerciante da região. Assim que terminamos nossa conversa, fui procurar o comerciante para tentar saber o que aconteceu. Fui muito bem recebida em seu estabelecimento, mas notei o seu desconforto ao responder perguntas sobre a Praça. Quanto ao abaixo

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assinado disse ter assinado e que foi uma mulher que havia começado esse movimento, mas que por fim não teve resultados. Para o comerciante o incômodo vinha do cheiro da Praça, principalmente em dias de sol. Segundo ele no início do acampamento os Kaingang tinham porcos e o cheiro da criação era muito forte. Outros dois fatores de sociabilidade que aproximava à comunidade do bairro dos Kaingang eram as crianças e a mata. Nas brincadeiras misturavam-se crianças Kaingang e crianças fog, elas ocupavam o espaço externo da Praça, passavam o dia no gramado, correndo, soltando pipa, jogando bola, uma infinidade de brincadeiras que demonstrava os intercâmbios culturais que poderiam ser feitos com a aceitação. Como já foi dito, o interior da Praça é rico em vegetação, lá existem muitas ervas com propriedades medicinais e que podem ser utilizadas na culinária. Próximo da localização da Praça tem um terreiro de Candomblé que por muitas vezes pediu licença para retirar algumas das ervas que eram específicas para os rituais religiosos, ervas que em sua maioria só eram encontradas ali. Alguns Kaingang iam até lá pedir comida, como faziam em outras casas da região, mas em um dos dias foram convidados para entrar e comer as frutas que haviam sobrado de uma cerimônia. A Kaingang Mairarê ficou por muito tempo observando os assentamentos dos Orixás, não tocou em nenhuma fruta, apenas contemplou o que provavelmente nunca havia visto. Conversando com a Mãe de Santo do terreiro, Jora disse que muitas das coisas que ela falou a fez lembrar de seus ancestrais, não muito lembrados pelos mais jovens, mas que sente saudade desse tempo dos antigos. Quando procurei pela UBS pedi para conversar com o coordenador, disse para a enfermeira qual era o assunto e ela se negou a chamá-lo, porque segundo ela quem poderia falar sobre os “índios” era uma enfermeira que já havia sido transferida para outra UBS. De nada valeu minha insistência, pois a enfermeira passou a relatar sua própria experiência com os Kaingang. A enfermeira disse não gostar de “índio” e pediu para que eu não saísse falando alto sobre “aqueles índios” porque eu correria o risco de ser perseguida pelos moradores. Para ela as famílias são irresponsáveis, sujas, violentas e aproveitadoras, já que recebem uma “mensalidade” do governo deveriam permanecer nas aldeias, sendo aquele o melhor lugar para residirem. Ao ouvir o relato da enfermeira me lembrei da primeira visita que fiz à Praça, uma mulher Kaingang me mostrou seu filho que estava com o pé machucado, uma

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possível infecção. Disse que ao levá-lo na UBS negaram atendimento ao menino com a justificativa de já existir um local específico que oferecia atendimento aos indígenas. Pediu para que a família fosse até a FUNASA porque lá é onde eles deveriam ser atendidos. Caso semelhante ocorreu no CRAS. Em 2010 procurei a equipe do atendimento social para conversar a respeito dos Kaingang, conversei com a assistente social e com uma das psicólogas, elas disseram estar realizando os atendimentos normalmente, mas que não concordavam com a vinda deles para a cidade. A psicóloga comentou que passando por uma avenida da cidade viu crianças indígenas pedindo dinheiro nos carros que paravam no semáforo. Imediatamente ligou para o conselho tutelar fazendo uma denúncia, mas se indignou ao dizerem que não poderiam tomar nenhuma atitude nesse caso, sendo atribuição da polícia federal. Logo em seguida, a assistente social questionou o fato deles virem para a cidade e não adequarem-se às regras dos brancos, afinal, “são como todos os outros”. Quando entrei como estagiária do CRAS passei a presenciar outras atitudes preocupantes, como foi o fato de não oferecerem atendimento social às famílias Kaingang. Nesse período os comentários que surgiam dentro do CRAS eram todos voltados contra a presença indígena na cidade, impondo seu modo vida, padrões de higiene e comportamento para interpretar a ocupação Kaingang. Os casos que ressaltei em que é possível observar as relações aproximadas entre indígenas e população não indígena expõem diversos pontos de vista a respeito do lugar do “índio” hoje na sociedade brasileira. O que talvez ainda não esteja totalmente definido e que potencializa visões estereotipadas sobre os povos indígenas são os papéis que cada instituição deve desenvolver quando se trata de população indígena que passa a questionar as ações tutelares e tomam os espaços de decisão.

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2.5 FAZENDA REFÚGIO Em agosto de 2011, as famílias Kaingang foram retiradas da Praça Ângelo Cretã e realocadas na Fazenda Refúgio, que pertence ao Parque Fernando Milanez, localizado na zona Sul de Londrina. O responsável por essa realocação foi o secretário do meio ambiente, José Faraco, que disponibilizou transporte para fazer a mudança, prometendo a construção de 20 casas para as famílias. Caiubi explica como aconteceu: “daquela árvore ali esse Faraco disse que tudo isso aqui era nosso, que não adiantava ninguém tirar a gente daqui porque a gente podia ficar o tempo que quiser, falou que ia fazer casas aqui pros índios (...) mas agora ele não atende a gente, a secretária dele também não quer conversa” Como eu ainda não tinha conhecimento de onde era a Fazenda Refúgio, tive a colaboração de duas colegas de curso que me acompanharam de carro até o local. Quando chegamos pela primeira vez na Fazenda não permitiram nossa entrada por não termos uma autorização da Secretaria do Meio Ambiente. Seguimos então para a SEMA, não muito distante de onde estávamos. Conversamos com duas pessoas que trabalham no local, explicamos que a entrada estava sendo solicitada para que eu pudesse dar continuidade na pesquisa que já havia sido iniciada com as famílias quando estavam na Praça. Apresentaram-nos duas opções, que foi a de escolher outro grupo indígena ou de entrar em contato com alguém que estivesse no acampamento para que fossem até à FUNAI e lá poderíamos continuar a pesquisa. Um dos funcionários disse que não seria tão interessante entrar na área porque a estadia das famílias na Fazenda era de caráter provisório, portanto, não poderíamos tirar fotos ou fazer filmagens. Passamos mais alguns minutos insistindo para que nossa entrada fosse liberada, até que os funcionários foram novamente falar com o secretário. Fomos então informadas de que seria necessário pedir a permissão para a FUNAI, já que se tratava de pessoas tuteladas. Sem muita discussão seguimos para a FUNAI. Lá conversei com Casturino, atual administrador, falei sobre minha pesquisa e a única exigência feita foi para que eu encaminhasse uma cópia do trabalho para que ele pudesse compreender o que estimula a saída dessas famílias das T.Is. para viverem nas cidades. Concordei com a proposta e fiquei aguardando o funcionário Ricardo, agente indigenista, que Casturino liberou para nos levar até a Fazenda Refúgio.

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Na entrada do Parque ficam os vigias que controlam entrada e saída, o local em que estão as famílias Kaingang fica a aproximadamente 10 minutos da entrada, a pé. Um pouco abaixo fica a estação de tratamento de água da sanepar. Toda essa área tem sido degradada por José Faraco, acusado de diversos crimes ambientais dentro da Fazenda Refúgio. Como mais uma forma de solucionar seus problemas, o secretário do meio ambiente viu nesse espaço um ótimo destino para os Kaingang, que já não podendo continuar na Praça foram levados para onde a população não notaria sua presença. Quando cheguei até o local do acampamento, imaginei que as famílias estariam revoltadas por estarem mais afastadas da cidade e por não terem notícias do secretário, mas foi quando novamente me surpreendi. Chegando com o carro da FUNAI pudemos entrar sem maiores problemas, logo na entrada do caminho que segue para o acampamento havia uma queimada que rapidamente se alastrava, que segundo os vigias só poderia ter sido provocada pelos “índios”. Assim que passamos pela queimada chegamos ao acampamento. A primeira casa que é possível avistar é a de Caiubi e Eirapuã, que construíram a casa em local estratégico, ficando próxima à mina. Logo encontrei Eirapuã, conversamos pouco, ela disse estar tudo bem e que o lugar era bom, comentou que no início não havia gostado da nova área, chegando a chorar ao ver para onde estava sendo levada, mas aos poucos foi se acostumando, só estavam esperando sair as construções das casas prometidas por Faraco. Segundo Eirapuã, ele havia dado o prazo de cinco meses para estar tudo pronto, mas que desde o momento que entraram na Fazenda o secretário não atende mais as ligações e visitas dos Kaingang. Na saída encontrei com Caiubi e o cacique Magé que voltavam de uma escola, onde tinham passado para solicitar a transferência das crianças. Enquanto eu conversava com eles, Ricardo falava com os vigias sobre a liberação da minha volta para realizar a pesquisa com os Kaingang, o que não foi o suficiente, ainda sendo necessário que Casturino assinasse uma autorização e que fosse encaminhada para SEMA, para ser possível o livre acesso à Fazenda Refúgio. Nesse dia Magé e Caiubi me convidaram para participar da audiência pública na câmara dos vereadores que aconteceria na mesma semana, onde colocariam os problemas da transferência de área. Tiveram espaço de fala na audiência, o cacique Magé e outro kaingang, Piatã. Em sua fala Magé diz que não tem sido fácil se

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estabelecer nesse novo local, que, mesmo sendo um bom lugar para morar ainda é preciso resolver muitas coisas, principalmente na área da saúde, contou um pouco como foi o processo de mudança: Depois que a gente já tava há muito tempo na Praça o pessoal aqui de dentro de Londrina foi querendo tirar a gente da Praça né, aí fizemos reunião, participou o senhor Faraco, aí eu acho que ele que queria tirar a gente de lá né pra trazer pra Fazenda Refúgio. Nós viemos, viemos com chuva, sofremos, porque apuraram para nós desocupar lá, dentro da chuva nós fazia comida pra nossa família, levantamos umas barracas agora, por sorte nós tinha recebido doação de comida antes de sair da Praça. Piatã complementa o discurso do cacique apontando o descaso do poder público, que segrega e invisibiliza a população indígena: Quem não tem conhecimento da nossa situação é fácil julgar, falar que índio faz as coisas errada, igual falaram que a gente colocou fogo naquela mata lá [...] a gente tava correndo atrás de outra coisa, de educação, quando a gente chegou o fogo já tinha espalhado [...] o nosso objetivo maior hoje é a saúde, a água tá poluída, passa rede de esgoto [...] até hoje não teve nenhuma visita do Faraco, nem da Prefeitura, é município de Londrina, acho que deveria ter ido alguém lá, pelo menos pra fazer uma visita, pra ver como a gente tava lá [...] a gente não quer incomodar vocês, a gente que ficar no nosso cantinho, tranqüilo, tem gente que julga o índio hoje como um animal, tem pessoas que é fácil falar de fazer um documento e falar, vamos tirar aqueles índios de lá porque lá não é o lugar deles, todo mundo sabe que quando vocês todos chegaram aqui, a gente já tava nesse lugar, o Brasil é nosso! Os legítimos brasileiros somos nós! Vocês são apenas os portugueses que chegaram tomando o espaço do índio.” Ao mesmo tempo em que as famílias respondem fazendo referência aos seus antigos sobre o fato de viverem num ambiente que não tem água, energia elétrica, morando em casas construídas com a sobra de diversos materiais, os kaingang também buscaram a visibilidade em espaços políticos para que as demandas do grupo fossem ouvidas, a fim de efetivar as promessas que os expulsaram da Praça. Percebo que a Fazenda representa o intermédio entre Terra Indígena e cidade, pois ao mesmo tempo que estão num território que se aproxima ao ambiente familiar

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da aldeia, estão também próximos da cidade. Mesmo a Praça Ângelo Cretã estando no “coração do Aquiles” como disse Caiubi, a preocupação com as drogas e violência era maior. Quando saiu da Praça, Caiubi perdeu o emprego e ainda não foi possível voltar ao trabalho, agora o casal está com uma boa criação de patos e galinhas e fizeram uma pequena horta perto da mina. Descendo à casa de Caiubi, chego onde foram levantadas mais seis casas, todas com o material que trouxeram da Praça. Dessas famílias, dois homens estão trabalhando, um como servente de pedreiro e o outro na reciclagem. Quanto às crianças, não foi possível realizar a transferência para a escola mais próxima da Fazenda. Com esse novo território a ser transformado, as famílias Kaingang se organizaram em espaços que estavam próximos às minas e ao rio. Utilizam uma pequena mina, que fica próxima à casa de Eirapuã e Caiubi, apenas para beber e preparar as refeições, já o rio que passa por trás das casas é utilizado para os banhos, para a limpeza das louças e das roupas. Ainda sem energia elétrica, as famílias continuam a improvisar sua iluminação como nos tempos passados. Seguindo essa linha de reflexão, passo para o terceiro capítulo com a problematização teórica dos principais elementos que compõe a resignificação do modo de vida Kaingang e de suas apropriações do urbano como reafirmação étnica.

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CAPÍTULO III – ORGANIZAÇÃO DOS DADOS ETNOGRÁFICOS 3.1 CIDADE E ALDEIA: QUANDO ACABA UM E COMEÇA O OUTRO? Como relatei no capítulo anterior, a permanência das famílias Kaingang na Praça Ângelo Cretã e posteriormente na Fazenda Refúgio foi marcada pelos fluxos migratórios entre as áreas indígenas e a cidade, tanto por parte dos que construíram uma moradia na área urbana quanto dos que apenas caminhavam entre esses territórios. Dessa forma, para introduzir a problematização da interligação entre esses dois mundos, o mundo Kaingang e o mundo resignificado sob a ótica Kaingang, penso ser necessário antes disso, fazer menção às reflexões na área da antropologia urbana, tomando como referência o trabalho de Magnani (2000). Inicio o capítulo com essa proposta de análise por considerar tais reflexões como um ponto de partida para primeiro pensar na abordagem antropológica voltada para as cidades, que oferece uma base teórica para pensar a apropriação Kaingang das cidades e sua inconstância territorial. Assim, sugiro essa reflexão a partir da seguinte provocação feita pelo antropólogo: “Poderão superar, os antropólogos, a tentação do ‘padrão de aldeia’ e assim articular a singularidade de seu objeto com outras variáveis da vida urbana, principalmente nas grandes e superpovoadas metrópoles?” (MAGNANI, 2010, p.20) Esse questionamento surge pelo redirecionamento que estava começando acontecer na antropologia, que se voltava para os estudos de grupos urbanos e suas particularidades em meio à sociedade global, contexto esse que exige do pesquisador maior rigor para se distanciar do seu campo de pesquisa a fim de que não naturalize as relações e organizações que estarão sendo estudadas. Visto que para Magnani esse contato com a cidade oferece ao antropólogo uma infinidade de particularidades expressas em seus comportamentos, valores, etc, o pesquisador não deve somente registrar o que pode identificar, mas se trata de ir em busca das significações, dos sentidos de tais especificidades identificadas. Em meio a essa “diversidade de personagens” a que Magnani se refere, somase agora os personagens que atraiam os olhares da antropologia clássica, como já mencionei no capítulo anterior. No ambiente construído pelas famílias Kaingang na Praça Ângelo Cretã é possível identificar o que Tonnies (apud MAGNANI, 2000, p.22) definiu como comunidade, em que “é marcada por laços de sangue, relações

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primárias, consenso, rígido controle social”, o autor opõe esse conceito ao de sociedade que “caracteriza-se pela presença de relações secundárias, por convenção, anonimato, troca de equivalentes”. O que ressalto é que as famílias Kaingang da Praça representam uma comunidade, pois como disse Caiubi, “toda a parentada está aqui”, dando continuidade em suas “relações primárias”. Entretanto, com uma percepção não muito apurada sobre esse fenômeno migratório, o que possivelmente os olhares não treinados podem observar é um amontoado de barracos que se assemelham a favelas e/ou moradores com hábitos que fogem dos seus padrões de higiene. Até há o reconhecimento de que são “índios”, mas não são os tais índios de verdade, pois deveriam estar na aldeia, não reconhecendo na cidade um espaço legítimo de continuidade cultural/étnica indígena. Portanto, é partindo da concepção de comunidade que ressalto a particularidade organizacional dentro de outro território e também das concepções estáticas de cultura é que reflito sobre a mobilidade Kaingang ao saírem das Terras Indígenas e o que isso significa para repensar o próprio conceito de cultura e territorialidade indígena. Para tanto, as reflexões levantadas por Sahlins (1997) sobre a existência de sociedades translocais em meio ao sistema mundial capitalista serão utilizadas a fim de pensar o caso da Praça Ângelo Certã. Para chegar à definição de sociedades translocais, Sahlins parte das análises feitas sobre os ilhéus do Pacífico, como por exemplo, as populações de Tonga, Samoa, Tuvala ou mesmo os habitantes das Ilhas Cook, que: [...] vivem em comunidades multilocais de dimensões globais. Eles expandiram seu horizonte e potencialidades culturais de um modo que escapa totalmente à compreensão daquelas teorias economicistas e desenvolvimentistas que postulavam sua insignificância (SAHLINS, 1997, p. 108) O objetivo aqui é compreender a relação estabelecida entre Terra Indígena – cidade – Praça, provocando o seguinte questionamento, há uma separação entre a T.I. e a cidade? Para Sahlins as formulações que se baseiam em determinações estruturais que não consideram a história e que anulam o poder de transformação que o sujeito tem sob sua realidade já estariam ultrapassadas, pois tem sido constante a reavaliação dessa abordagem, haja vista que desde o século XIX tem sido considerável o reconhecimento de sociedades ditas translocais, cujas

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populações foram consideradas uma espécie de prisioneiras de um colonialismo que desmantelaria as relações sociais tradicionais, demonstrando então que: O pressuposto geral das ciências sociais ocidentais era o de que a urbanização necessariamente dá fim à “idiotia da vida rural” [...] O campo e a cidade, estágios respectivamente inicial e final de uma mudança qualitativa, representavam modos de vida estruturalmente distintos e opostos. (SAHLINS, 1997, p. 112) Transpondo o conceito utilizado por Sahlins, o de sociedades transculturais para a realidade das famílias Kaingang da Praça Ângelo Cretã, observamos primeiramente a ação Kaingang em mudar de território por questionamentos referentes aos problemas enfrentados na T.I., assim como a crítica feita às imposições de cercamento territorial das populações indígenas, fatos esses que estão estritamente atrelados ao interesse Kaingang em reverter o determinismo que impunha os projetos desenvolvimentistas - a integração à sociedade nacional alcançando o que Sahlins chamou de “ampliação do mundo”, isto é, estamos falando de um grupo étnico que está inserido no sistema mundial, mas que tem resignificado a lógica desse sistema de acordo suas perspectivas. Contudo, essa sociedade translocal não está limitada às relações entre os membros dessa comunidade reorganizada, mas também implica na continuidade das relações de parentesco e com todo o restante de sua comunidade natal, como considera Sahlins quando fala dos Ilhéus emigrantes: “Enquanto indivíduos, famílias e comunidades ultramar, os emigrantes são parte de uma sociedade transcultural dispersa, mas centrada na terra natal e unida por uma contínua circulação de pessoas, idéias, objetos e dinheiro” (SAHLINS, 1997, p. 110) À vista disso, faço referência ao fluxo de famílias que passaram pela Praça em caráter temporário e as famílias que depois de fixadas na Praça faziam visitas para seus parentes nas áreas indígenas. Muitos dos que foram para a Praça dizem ter ido para acompanhar quem lá estava, pois como me afirmou um jovem Kaingang, “as famílias começam a vim pra Praça porque a gente sempre fica junto”. Quando Sahlins fala sobre a centralidade na terra natal percebo que no caso dos Kaingang isso não se assemelha exatamente ao que foi identificado com os Ilhéus que tinham por objetivo reverter seus esforços para sua comunidade

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tradicional. O que suponho é que essa centralidade seja representada pelo modelo de organização que construíram na cidade, pois a migração e o deslocamento não foram caracterizados de forma dispersa como o apontado por Sahlins, mas se trata de uma reorganização que, de certa forma, representa a vida dentro das áreas indígenas, demonstrando a centralidade num núcleo de parentesco e vizinhança, não necessariamente na terra natal. Todavia, isso não anula a complexa circulação que existe entre a Praça e a T.I., visto que, a partir do momento em que há parentes que ocupam determinado território, a movimentação nesse espaço será constante. Levando em consideração a idealização que grande parte dos indígenas faz da vida na cidade, esse fluxo de pessoas que transitam entre os dois modos de vida Kaingang tende a aumentar, principalmente por atribuírem sentido aos seus deslocamentos e migrações. Falo aqui de um sentido político, que passa a desconstruir as barreiras de uma “cultura” da tutela, de ordens indigenistas limitadoras. A autonomia Kaingang é notória pelo constante enfrentamento e por sua valorização étnica, como pude observar atentamente na organização Kaingang na Praça e de como puderam se apropriar dos espaços que se aproximam da organização nas aldeias que se remodelam na cidade. Como relatei anteriormente a (re)organização dos kaingang teve inicialmente em seu centro político a figura dos dois caciques, Taiguara (parte de cima) e Ibiaçu (parte de baixo), que encabeçaram as tomadas de decisões, entretanto, cada cacique tinha uma proposta a ser encaminhada para a Praça e para as famílias, levando em consideração o grupo que ali estava, independente se habitava a parte oposta da Praça. Observa-se então os três fundamentos que envolvem uma liderança política indígena segundo Fernandes (2003:267): “(1) divisão da comunidade em grupos; (2) a concepção de que a comunidade constitui uma unidade; (3) a concepção da comunidade como um agente em relacionamento com o mundo dos ‘brancos’ ”. Enquanto as famílias kaingang aguardavam os resultados acerca de suas reivindicações, traçaram estratégias de (re)organização para ocupação do local. Essas estratégias acabaram por reproduzir alguns aspectos de sua organização, relações e estrutura das áreas indígenas. Essa reorganização das famílias no contexto urbano pode ser analisada a partir das redes de comunicação entre as áreas indígenas, já que a decisão de migrar para cidade acaba sendo tomada pela relação e troca de informações que se mantém com os que foram para a cidade,

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sendo possível então tomar decisões sobre o que fazer em outro território. Em outros termos, formula-se um novo projeto de vida que mantém reforçada a sua identidade étnica num espaço que tem sido caracterizado como oposto à aldeia e não podendo haver ligações entre ambos os lados. Verifica-se, então, o que Melo (2009:59) chamou de “contínua interação” entre os dois mundos, a fim de desconstruir as fronteiras territoriais demarcatórias do que é ser índio. Para compreender como ocorre a interação entre os dois mundos e a desconstrução de tais fronteiras, é necessário, antes de tudo, conhecer a mitologia e organização kaingang dentro da área indígena, a fim de identificar a reprodução de suas práticas rituais e sociais dentro da cidade. Analisando a divisão política que permaneceu por certo período na Praça, notei que a disposição das casas seguia uma ordenação peculiar que representava essa oposição, em que o grupo familiar que ocupava a parte de cima da praça construiu suas casas numa linha vertical e o grupo que ocupava a parte de baixo, tinham suas casas na linha horizontal. A construção do espaço para as casas segue, de certo modo, a lógica de uma organização identificada por Crépeau, em que “[...] a casa do líder político, chamado pã’i (ou cacique), esteja localizada no centro da reserva.” (CRÉPEAU, 2005). Estando, assim, a casa do cacique Taiguara no centro do lado oposto das casas dos demais moradores. Pude observar a mesma centralidade na morada do cacique Ibiaçu, parte de baixo, mas com outra disposição espacial. Assim, há a possibilidade de relacionar esses traços de oposição como o resultado de uma possível representação da dualidade kaingang. O trabalho de Fernandes (2003) analisa, por exemplo, a existência da dualidade Kaingang em outros processos sociais, identificados por ele na vida política, como o faccionalismo, que se refere a “grupos similares que se opõem sem dissolver a unidade fundamental” (FERNANDES, 2003, p.279) Portanto, é ainda presente na organização Kaingang o que sustentava o mito do princípio formador do mundo, isto é, a diferença como fundamento central para a vida Kaingang (VEIGA, 2004). Não estou me referindo a uma representação literal do dualismo kaingang, já que não se trata de casamentos exogâmicos, Kamé e Kairu, mas é uma releitura dessa representação, com uma análise do que fundamenta a organização Kaingang, que é a complementaridade através da oposição, que em tempos de reafirmação étnica e tomada de decisões nota-se a presença da divisão mítica dessa população, simbolizada pelo faccionalismo.

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Deste modo, nota-se a freqüente representação da Terra Indígena na cidade, tanto em sua organização social quanto na apropriação do território, portanto, seria incoerente não levar em consideração os sentidos atribuídos pelas famílias Kaingang à cidade e seus espaços 3.2 ETNIZAÇÃO DA CIDADE COMO RESULTADO DO EMPODERAMENTO KAINGANG Os termos empregados nessa etapa do trabalho, etnização da cidade e empoderamento, são indispensáveis para a análise do novo cenário que vem se formando através das reivindicações indígenas. Quando me refiro à etnização da cidade o que pretendo é incitar a reflexão sobre as apropriações indígenas de diversos espaços, assim como sua crescente busca pela autonomia. Pensar o empoderamento do povo Kaingang é pensar também na história de formação da cidade de Londrina e das formações dos aldeiamentos, como já foi feito no primeiro capítulo. Isso se faz necessário por se tratar de relações hierarquizadas envolvendo o poder tutelar, a companhia de terras e o povo Kaingang, relações essas que sobrepunham os interesses desenvolvimentistas sobre a lógica organizacional e os interesses Kaingang, bem como de outros povos que já habitavam esse território. Portanto, trata-se de pensar nesse momento o quão significativo é compreender as transformações indígenas que passam a representar o que Sahlins (1997) chamou de “permanência na mudança”, isto é, reconhecer a cultura Kaingang mesmo nos grandes processos históricos que alteraram muitas características, mas que apenas estão no campo do visível. Para que se compreenda melhor o que de fato esses termos significam, basta analisar num primeiro momento o embate político da reunião com os Kaingang e representantes de órgãos municipais. Para uma melhor reflexão das relações estabelecidas nesse espaço utilizo as formulações teóricas de Cardoso de Oliveira (2000) sobre a existência de uma “comunidade de comunicação” que aponta a possibilidade de estabelecer um diálogo ético entre os diferentes, obtendo o que ele chama de “horizontalização do diálogo”. Complemento a análise com a “teoria da prática” sob perspectiva de Ortner (2007), que passa a questionar a centralidade do poder, investigando “a construção cultural da agência ao mesmo tempo como uma espécie de empoderamento e como a base que permite que se persigam ‘projetos’

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dentro de um mundo de dominação e de desigualdade.” (ORTNER, 2007, p.87). Ou seja, o que proponho é a compreensão do empoderamento Kaingang no sistema jurídico-legal urbano. Nesse contexto já exposto, foram construídos discursos em torno do espaço e do poder, ou seja, foi formado um campo de disputa (DE PAULA, 2005). Pela composição dos agentes participantes na reunião, temos aparentemente o que Cardoso de Oliveira chamou de comunidade de comunição, “(...) diríamos que o encontro entre uma equipe de indigenistas (formada por antropólogos, técnicos e administradores) e lideranças indígenas, consistiria uma comunidade real de comunicação”. Contudo, o diálogo nem sempre foi pautado dela ética, mas o que cabe ressaltar desse encontro são o objetivo e os projetos que envolvem essa disputa. Para Ortner não há dissociação entre agência e poder, já que o agenciamento surge em situação de desigualdade, em que grupos minoritários, por exemplo, se opõe aos quadros de opressão contra seu grupo e elaboram meios de contrapor suas intencionalidades às dominantes, ou seja é a representação da “agência de poder”. Entretanto, a agência não está ligada somente aos grupos minoritários, pois o poder é que está em disputa, portanto, também há o interesse ou intenção em se manter a estrutura dominante, “A agência ou sua ausência se expressa por meio de uma linguagem de atividade e passividade. Atividade implica em perseguir ‘projetos’; passividade implica não só em não perseguir projetos, como evitar o desejo de fazêlo” (ORTNER, 2007, p.59) A partir dessa reflexão levantada por Ortner, podemos partir do primeiro projeto em jogo, que teve inicio em 1990 com a doação da Praça, que visava a construção de um Centro Cultural, a fim de ter um local no meio urbano que fosse referência sobre a história e cultura Kaingang. No entanto, por não haver investimento na área, surge um segundo projeto, partindo do interesse dos próprios indígenas, que seria construir casas para a moradia fixa dentro da Praça. O reconhecimento da área é reivindicado desde 2009 relembrando da doação e fazendo menção ao nome dado à Praça: “queira ou não queira vamos ficar lá, é o nome de um parente nosso que está lá”. A intencionalidade kaingang estava voltada para a conquista e transformação do espaço, já que a idéia de pertença da Praça permanecia no imaginário kaingang uma vez que a revogação da doação não foi comunicada às lideranças da região, como explicou o cacique Nelson, da etnia Guarani:

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Minha expressão pode parecer que apoio um ou outro. O indígena nunca foi invasor, sempre foi invadido. E por que os índios foram para esse local? Por que um dia alguém doou com o nome de um líder e isso não foi explicado? Se fosse feita uma reunião com prefeito e líderes indígenas, não só os do Apucaraninha, isso não teria acontecido [...] depois de muito tempo está sendo esclarecido. O

diálogo

construído

a

partir

da

intencionalidade

kaingang

e

da

intencionalidade dos demais agentes gerou um novo projeto que é a construção de um Centro Cultural em outra área, podendo receber todos os indígenas que se deslocam para a cidade para vender “artesanato”. Podemos imaginar então que o discurso foi pautado pela eticidade já que as partes entraram num acordo (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). No entanto, devemos nos atentar para uma das representações da agência que é as relações de poder entre os agentes, sabendo que a situação que os envolve é desigual e assimétrica (ORTNER, 2007). O que tento elucidar é que mesmo existindo um acordo, os kaingang presentes na reunião tiveram que reelaborar seu projeto inicial por conta da hegemonia discursiva (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000) Compreendendo então que para Ortner a agência está estritamente ligada ao poder, à atividade e passividade, assim como a resistência é também uma forma de se exercer esse poder, interpreto nesse caso a resistência Kaingang em permanecer na Praça Ângelo Cretã por um ano e meio e posteriormente na Fazenda Refúgio, sem que houvesse maiores interesses por parte do poder público em atender as demandas Kaingang. Os discursos Kaingang que presenciei no período dessa pesquisa, expressam muito bem o agenciamento, o projeto, a intencionalidade, assim como dizem respeito às relações de poder desencadeadas nesse processo reivindicatório. Todos esses elementos são identificados a partir da resignifcação Kaingang do território e suas apropriações do mundo dos não índios, o que tenho chamado de etnização da cidade. Tais discursos apresentam dois vieses dessa ocupação, que, aliás, é mais do que uma ocupação, mas sim um movimento étnico-político, trato dessa forma por questionarem a percepção dos não índios de uma possível estática da territorialidade Kaingang e mesmo a noção tutelar, mostrando nesse movimento suas potencialidades de auto representação.

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Pois bem, as categorias de discurso as quais me referi dizem respeito ao aspecto político reivindicatório, de uma ação pautada no que Cardoso de Oliveira (2000) apontou ser a “comunidade de argumentação”, tratando-se de relações interétnicas, como a participação em espaços políticos como ocorreu na primeira reunião no CRAS e posteriormente a participação na Câmara dos Vereadores. Esse aspecto político é percebido também quando os Kaingang mencionam os aspectos jurídico-legais que envolvem esse processo, e também em suas considerações sobre a condição indígena na atualidade “[...] o índio é liberado, o índio não é mais escravo como antigamente [...] tenho direito de morar em qualquer lugar do Brasil”. Num segundo momento, após ter esclarecido quais são as motivações que os fizeram sair das Terras Indígenas e os interesses que os fazem permanecer na cidade, o olhar se volta para as estratégias de sobrevivência que remontam aos tempos dos antigos, como a utilização de minas e a falta de luz elétrica. Após transitar entre as teorias de Cardoso de Oliveira e Ortner para pensar as mudanças políticas envolvendo os Kaingang, esse momento étnico-político traz a tona a reflexão que Sahlis (2008) faz sobre “interesse e valor”. Ao considerar a estrutura simbólica, Sahlins ressalta que a ideia do outro (nesse caso o não índio) é incorporado dentro do seu sistema de pensamento (pensamento indígena), assim a perspectiva do autor é a ação histórica nos processos de significação e resignificação, vejamos: A ação, dizemos, é intencional: norteia-se pelos propósitos do sujeito agente, pela vida social dele ou dela no mundo [...] ainda na ação, os signos estão sujeitos a arranjos e rearranjos contingentes, relações instrumentais que também afetam potencialmente os seus valores semânticos. (SAHLINS, 2008, p. 127) Os valores tratados por Sahlins estão interligados aos interesses dos sujeitos, portanto, o que para uma observação ocidental sobre os Kaingang da Praça pode parecer o determinismo da integração, revela em suas minúcias o paradoxo que envolve os interesses Kaingang em estar na cidade e a precariedade do estar na cidade. Entretanto, o que essas famílias fazem é inverter o tempo presente ao tempo dos antigos, quando ainda não tinham os confortos do mundo moderno, isto é, os valores dados aos espaços que não são direcionados a moradias por não haver condições estruturais mínimas de estabelecimento passa a ser revalorado por

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famílias Kaingang que consideram a apropriação do espaço como a aproximação de sua tradicionalidade, visto que: Todas essas inflexões de significado dependem do modo como o autor experencia o signo como um interesse: o lugar do signo num esquema orientado de meios e fins [...] o interesse em algo é a diferença que esse algo faz para alguém [...] o que está em questão aqui é a diferença entre o emprego do signo pelo sujeito e sua constituição na sociedade. (SAHLINS, 2008, p. 127 - 129) Assim, se percebe que, desde o momento das migrações e dos deslocamentos em direção à Praça, as ações Kaingang têm dado novos sentidos aos espaços urbanos que eram ocupados apenas pela população não indígena, como a resignificação da Praça, que antes era apenas uma mata abandonada fechada pela grade, ocupada muitas das vezes por usuários de drogas, assim como a resignificação das duas minas existentes nas proximidades da Praça, que praticamente não eram utilizadas pelos moradores dos bairros, mas que se tornou um ponto de complementação da área ocupada pelas famílias Kaingang. Posteriormente, as revalorações são identificadas na organização dentro da Fazenda Refúgio, com a utilização de uma mina e o uso do rio que passa na parte de trás de onde ergueram suas casas, nota-se também essa visão transformada do espaço quando os Kaingang falam sobre a importância de estarem num espaço como o da Fazenda Refúgio, que os aproxima tanto da aldeia quanto da cidade. A compreensão desse espaço deve estar relacionada à concepção que os Kaingang fazem de estar na cidade e de estar na T.I., pois quando falam que há o desejo em ficar na aldeia por ter lá seus laços de parentesco, sua lógica interna de organização e de sociabilidade, falam também sobre o interesse em ficar na cidade por conta dos benefícios que dizem que esse espaço proporciona, assim, o que mais se aproxima dos interesses Kaingang é o espaço da Fazenda Refúgio, pois, diferente de quando estavam na Praça, consideram que na Fazenda não estão tão sujeitos aos males que a cidade oferece, mas estão mais próximos de seus benefícios, visto que mesmo um pouco mais afastados ainda permanecem na cidade. Assim, os valores ocidentais atribuídos aos espaços mudam de sentido a partir do momento em que a ação histórica dos sujeitos os imbuem de novos significados, significados esses que caminham de acordo com as visões de mundo

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compartilhadas às necessidades advindas de ordens mais amplas que envolvem seu cotidiano, pensando então que a busca Kaingang por outros territórios não quer dizer que simplesmente foram abocanhados pelo sistema mundial, mas que pelo contrário, estão construindo dentro desse sistema estratégias de sobrevivência que dialogam entre a lógica urbana-capitalista e a lógica cultural Kaingang, desconstruindo as tais determinações sistêmicas a partir do que pode ser definido como a nova indianidade. 3.3 NAÇÃO, IDENTIDADE NACIONAL E CIDADANIA: COMO INTERPRETAR O CASO INDÍGENA? Muitos questionamentos surgem para que se tenha uma definição de quem de fato é índio, já que as características visuais, compostas por adornos exóticos e comportamentos considerados primitivos que agregam valor identitário ao nativo, ainda presente no imaginário nacional, passam a ser substituídos por equipamentos tecnológicos e adornos já não tão exóticos. Do outro lado, tem-se o fenômeno do ressurgimento étnico como mencionado anteriormente em relação ao aumento da auto-declaração de uma identidade indígena. Assim, surge a crise do não-índio em buscar categorias fechadas de identidade6. Contrariando essas concepções simplistas que questionam a legitimidade de uma categoria (índio) inventada, Viveiros de Castro desmonta essa rigidez categorial, atribuindo-a ao pensamento ocidental, Bem, o índio isolado ninguém tem coragem de dizer que não é mais índio, sobretudo porque ele nem é índio ainda. Ele não sabe que é índio; não foi contatado pela Funai ou coisa do gênero. Ou seja, primeiro se tem que virar índio para depois deixar de ser. Por que então não se pode querer virar de novo depois de deixar de ser? Ou quem sabe voltar a nunca ter sido, mas nem por isso insistindo menos em ser? (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p.9)7 6

Vale ressaltar que a busca por categoria explicativa fechada não é tão ingênua como aparenta. Viveiros de Castro (2006) afirma que há nesse jogo os interesses de um Estado nacional em reduzir as possibilidades de identificações em nome de sua política de desenvolvimento e expansão territorial. 7 O texto do qual foi extraída a citação refere-se ao mesmo texto utilizado de forma ignóbil pela revista Veja em sua edição 2163, 05 de maio 2010. A deturpação dos trechos citados causou uma série de discussões acerca de identidade, cultura, demarcação de terras, ressurgimento de etnias, ou seja, uma infinidade de temas que por sua vez refletem na construção de pensamentos e opiniões que tendem a novamente renegar os indígenas que estão nas cidades.

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Ao empregar o conceito de uma nova indianidade, entendo que não se trata apenas de uma representatividade indígena nas áreas urbanas, é uma noção que trabalha com a desconstrução de modelos idealizados dos indígenas, motivo pelo qual se torna importante considerar a existência de uma nova indianidade.

Ao

mesmo tempo arrisco dizer que esse processo não é tão recente como se imagina, considero que as circunstâncias de tais deslocamentos e migrações dizem respeito à reflexão indígena sobre sua capacidade de decisão sobre sua realidade e sua história. Pode ser pensado como o surgimento dessa categoria de nova indianidade na década de 1970 quando começaram a despontar os movimentos indígenas e indigenistas mais comprometidos com as causas indígenas. Esta pode ser considerada uma categoria que marca o rompimento com a idéia de submissão indígena ao poder tutelar, com a imagem idealizada de indígena e território. Essa categoria instiga a reflexão sobre a construção de identidade e território dentro de um Estado nação, bem como o questionamento da própria idéia de Estado nação. Alcida Ramos coloca muito bem essa problemática ao dizer que “Uma das características da cidadania é ser temporalizada e territorializada [...] Em suma, falta nessa territorialização estatal um espaço étnico legitimado como tal, apropriado à complexidade pluriétnica do país.” (RAMOS, 1993, p. 5). Nesse contexto apresentado a partir da citação de Ramos, assim como dos dados apresentados sobre as famílias Kaingang da Praça Ângelo Cretã, a discussão agora se volta para o poder exercido através da representação de um Estado nação que regula uma sociedade por meio de leis, imposição de regras e valores que orientam as ações, construindo padrões que, caso sejam desviados por algum grupo ou indivíduo, passam a ser considerados alheios à determinada sociedade, em outras palavras: “a nação [...] é um sistema de representação cultural [...] a formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua, criou uma cultura homogênea.” (HALL, 2006, p. 49) Assim, esse padrão constituído pelo Estado acaba se tornando um paradoxo para os povos indígenas, já que No Brasil, ou se é brasileiro, ou se é estrangeiro, ou se é índio [...] Poder-se-ia dizer que o simples fato de ter nascido em território brasileiro torna-o automaticamente cidadão brasileiro,

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mas a cidadania não se restringe à contingência do mero nascimento. Ela está ligada à constituição de normas jurídicas, sociais, políticas e outras reguladas e executadas por um Estado soberano (RAMOS, 1993, p.3-4) Para o advogado Carlos Marés, não há a possibilidade de considerar os povos indígenas como cidadãos brasileiros, exatamente por partilharem de outras normas, políticas, cultura, dentre outros elementos que seriam anulados ao serem considerados cidadãos brasileiros (RAMOS, 1993). Esse impasse seria solucionado caso o Estado brasileiro reconhecesse como legítima a existência de “nações dentro da nação”, pois “É certo que a Constituição de 1988, pela primeira vez na história do país, assume que ser índio é um estado legítimo e não uma condição temporária. Mas isso não significa conferir-lhe uma cidadania plena e muito menos dupla.” (RAMOS, 1993, p.5) Compreendendo então que a idéia de Nação é composta por um sistema de representação e padronização; é necessário saber que para a legitimidade e continuidade desses padrões é imprescindível que haja o controle exercido pelo Estado, assim, a principal ação estatal observada para que se efetivem seus intentos é a abrangência de seu território nacional com fins econômicos, apelativos ao sentimento de nacionalidade, já que a perspectiva que se tem é que a expansão territorial incute maior poder ao Estado, pois as populações que habitam tais territórios passam a fazer parte do quadro de cidadãos que deverão se adequar às normas superiores. Transpondo essa discussão para o caso das populações indígenas a máquina que representa o poder estatal que objetivará atender aos interesses de um Estado maior, é a “máquina tutelar” (RAMOS, 1991) visto que Souza Lima define o “poder tutelar como poder de um Estado nacional” (SOUZA LIMA, 1995, p. 71). No caso específico dos Kaingang da Praça, compreende-se esse processo não só pela ação desse poder tutelar, mas também pelas ações conjuntas com a CTNP. No embate criado entre a CTNP, FUNAI e Kaingang, as terras foram reduzidas em nome da soberania nacional e do desenvolvimento local, assim, com os cercamentos geográficos, a identidade étnica também passou pela limitação imposta por não índios, sendo estritamente relacionada ao território habitado. Contudo, Gallois (2004) enfatiza que: “O estudo da organização territorial de uma dada sociedade indígena deve levar em conta contextos específicos, historicamente

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localizados e não se limitar a tomar como dado que limites étnicos correspondem a limites territoriais” (GALLOIS, 2004, p. 7) Essas concepções congeladas sobre a complexidade do que se pode dizer de identidade étnica e territorialidade indígena permanecem arraigadas na chamada sociedade nacional. Isso é observado quando, por exemplo, a dona do bar menciona as casinhas que deveriam ser dos Kaingang, demonstrando a insatisfação ao perceber que as casinhas não passavam de barracos de favela, assim, consequentemente muda também sua percepção do que é ser Kaingang, no sentido de que estão distantes do que de fato deveriam ser. É partindo dessas concepções que tem sido repensada a significação da terra indígena e sua territorialidade/territolialização. Cada sociedade indígena mantém uma relação diferenciada com o espaço que vive, entretanto, essa relação foi transformada a partir dos primeiros contatos da colonização, isto é “a presença colonial instaura uma nova relação da sociedade com o território, deflagrando transformações em múltiplos níveis de sua existência sociocultural” (OLIVEIRA, 2004, p. 22) Essa interferência na apropriação do território pelas populações indígenas pode ser observada no sentido de deslocamento dos Kaingang quando se fala nos emã e wãre antes das ações da CTNP e após a edificação da cidade de Londrina, da formação dos aldeiamentos de São Jerônimo da Serra e Barão de Antonina, como

argumentou

Tommasino

(1992)

sobre

a

resignificação

dada

aos

acampamentos, já que por conta da expansão territorial as demandas indígenas passaram a ter outro valor. Nesse sentido é que Gallois (2004) interpreta o território como sendo constituído de relações sociais, tratando-se de uma construção que tem por base a significação cultural de populações que ocupa determinado território. É partindo dessa lógica que se pode compreender os sentidos Kaingang em suas migrações e deslocamentos, pois assim como Gallois não conseguiu identificar entre os Zo’é a habitação permanente, não é possível identificar entre essas famílias Kaingang um sentido estático de territorialidade, pois “a mobilidade espacial funciona como uma espécie de prova de que [...] há a ausência de um censo de territorialidade” (GALLOIS, 2004, p.5) lembrando que o sentido de território/territorialidade difere do sentido atribuído à “terra” que se enquadra nos parâmetros de legalidade jurídica no reconhecimento e legitimação de um espaço.

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Tal abrangência no sentido de territorialidade na percepção indígena/kaingang se torna um problema para o Estado e sua nação, haja vista que a mobilidade Kaingang mesmo que de forma silenciosa implica no questionamento de barreiras geográficas, causando desconforto aos cidadãos que já engessados pelos padrões comportamentais e valores homogêneos passam a deslegitimar a pertença étnica aos grupos que ousam ultrapassar suas fronteiras territoriais, afinal, ou se está lá ou cá, como foi o caso apresentado por Oliveira: “Ao final do século XIX já não se falava mais em povos e culturas indígenas no Nordeste. Destituídos de seus antigos territórios, não são mais reconhecidos como coletividades, mas referidos individualmente como ‘remanescentes’ ou ‘descendentes’.” (OLIVEIRA, 2004, p. 26) Talvez essa confusão entre reconhecimento étnico e territorialidade além de estar relacionada aos planos de ação de um Estado soberano, também esteja arrolada a pouca atenção que tem sido dada ao tema das fronteiras, até mesmo porque “Os grupos étnicos não são simples ou necessariamente baseados na ocupação de territórios exclusivos”. (BARTH, 1998, p.193). Assim, o que se pode dizer sobre as migrações e deslocamentos envolvendo as famílias Kaingang da Praça Ângelo Cretã é que dizem respeito ao próprio sentido que dão aos espaços, sentido esse que marca características particulares dos grupos jê que é a importância dos deslocamentos territoriais, mesmo que agora esses deslocamentos não levem o sentido que antes tinha a sazonalidade, já apresentado

anteriormente

com

as

considerações

de

Tommasino

(1998).

Lembrando que a mudança no sentido e a revaloração das apropriações de territórios é resultado do estreitamento das relações com políticas civilizatórias. (OLIVEIRA, 2004) Também não basta pensar o sentido da revaloração como sendo apenas atribuição de um dado valor, mas que esse valor e sentidos atribuídos constituem o que se considera ser a territorialidade, isto é, as relações sociais étnicas das famílias Kaingang, ao darem novos significados aos territórios da Praça e da Fazenda Refúgio, estão construindo sua nova territorialidade, pois esses espaços serão marcados pelas características sócio-culturais dos Kaingang. (GALLOIS, 2004). Quando os Kaingang mencionam a Praça como sendo um espaço pertencente a eles, estão atribuindo um valor histórico que se contrapõe às regras ocidentais que determinam que aquela Praça não pode ser utilizada como um espaço de moradia.

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Porém os Kaingang permaneceram em sua ocupação do território o marcando com suas características organizacionais. Ao serem realocadas na Fazenda Refúgio, as famílias Kaingang novamente atribuem novos significados e sentidos ao espaço que passam a ocupar. Como mencionei no segundo capítulo, não houve uma resistência Kaingang em permanecer na Fazenda, entretanto, reivindicam melhores condições e atenção dos órgãos municipais. Mas o que vale ser ressaltado é que essa aceitação Kaingang não está associada à mera submissão, mas o que essa aceitação demonstra é novamente a relação histórica que os Kaingang têm com o território, pois se não podemos falar em uma construção fixa do que representa o território para as populações indígenas, o que se percebe é que essa categoria, aberta às significações específicas orienta o modo de vida Kaingang. Já que a mudança, a transferência de território, mesmo que na concepção ocidental este espaço não tenha a estrutura geográfica e seu entorno adequados à construção de moradias, na concepção Kaingang este é o espaço ideal para continuarem. Entretanto, a aceitação vem acompanhada pelo embate político que objetiva a melhoria estrutural do território. Nesse sentido, as relações Kaingang que fizeram constituir uma nova territorialidade dentro da cidade em uma área periférica trazem o questionamento sobre a identidade étnica, que como já demonstrei não deve ser interpretada através de uma relação fixa que se estabelece com o território. Pois se temos em mente que o território é territorializado pelas relações sociais (GALLOIS, 2004) que envolvem significados, modo de vida, aspectos culturais e organização social específica devese, então, compreender que essa territorialização só é possível porque os Kaingang redesenharam esse território a partir de sua própria identidade étnica enquanto um grupo étnico organizado. (BARTH,1998) Portanto, é através dessas explicações sobre território, territorialidade, identificação étnica e a reflexão do conceito de nação, que se faz necessário compreender e legitimar ações indígenas que passam a marcar o rompimento com decisões externas e impostas sobre suas vidas e territórios, ou seja, é considerar que essas iniciativas migratórias e/ou os embates políticos são reflexos de reações à “ameaça contra a sobrevivência de suas tradições culturais, específicas, favorecendo uma ideologia da resistência à uniformização ou à dominação cultural e lingüística” (BARTH, 1998, p.28). Leve-se em consideração que os processos

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migratórios

refletem

etnodesenvolvimento

a para

ausência as

de

áreas

investimentos indígenas,

em

projetos

relegando-as

ao

de mero

assistencialismo precarizado, o que os forçam a mudarem-se de suas Terras Indígenas, passando a ocupar um espaço de marginalidade nas periferias urbanas, que por sua vez tornam-se territórios etnicamente marcados pela progressiva presença indígena.

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NOTAS CONCLUSIVAS Diante das diversas etapas que envolvem a migração das populações indígenas, mais especificamente dos kaingang que residiram na Praça Ângelo Cretã e posteriormente na Fazenda Refúgio, é essencial analisar a resignificação da cidade de acordo com a visão de mundo dessas famílias, bem como as relações de poder que envolvem essa disputa de território, entendendo como essas relações determinam o lugar das populações indígenas. Na mobilização, reorganização e reivindicação dos Kaingang encontram-se várias características próprias de sua cultura que podem assim legitimar qualquer atendimento específico que lhes é de direito, independente de habitarem um território legalmente reconhecido pelo Estado e amparado pela legislação indigenista. Notou-se, com a descrição feita, que as características étnicas passam a imbuir um sentido mais amplo nas definições identitárias da cidade, não havendo a necessidade de enquadrar os migrantes indígenas em uma categoria única que representa a vida urbana, como proletários, mendigos ou não-índios. Foi desconsiderado, portanto, a padronização cultural/identitária politicamente elaborada e aplicada aos povos indígenas que se deslocam para as cidades, ou seja, os Kaingang não se tornaram urbanos, mas se apropriam desse espaço e fortalece, seus vínculos identitários, o que não impede que se enquadrem em outras categorias de identificação como a de trabalhor, mas sem perder sua noção de pessoa kaingang. Considerando a organização social de um grupo étnico, no caso, os Kaingang, percebemos que não há uma desconexão total da vida na aldeia, já que essa ligação representa a unidade entre os dois mundos, levando para a cidade características kaingang, que ao reproduzir a lógica da aldeia desconstroem as falácias que permeiam o pensamento não indígena com relação a dinâmica cultural ao negarem as possibilidades de transformação e resignificação da cultura. Sendo assim, o que permanece como resultado final desta pesquisa, abrindo novas possibilidades de estudo, é o crescente agenciamento Kaingang em defesa de sua autonomia na escolha territorial, construindo estratégias incisivas que demonstram a linha tênue entre aldeia e cidade, além do seu poder discursivo sem mediações tutelares.

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