Quando a educação é tabu

June 30, 2017 | Autor: A. Borges de Oliv... | Categoria: Liberdade, Limite, Sagrado, Tabu, Educação Poética
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Graduado em Letras, com habilitação em Alemão, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação e Ensino de Filosofia do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (PPFEN/Cefet-RJ). Correspondência: .


Quando a educação é tabu

André Luís Borges de Oliveira
Revisado por Thayrine Kleinsorgen


Resumo Disse certa vez o pensador sobre a relação entre filosofia e paixão; o resultado demonstrou-se um extensor das fronteiras entre um e outro, ao mesmo tempo que um delimitador de um e outro. Neste sentido, pensando o que aparentemente pouco tem a ver, proponho questionar a espaço-temporalidade da educação enquanto tabu. Naturalmente, é preciso que se pergunte sobre o que é educação e tabu em alguma instância, a fim de corresponder à afirmação que supõe esta proximidade.

Palavras-chave: educação poética; tabu; limite; liberdade; sagrado.

When the education is taboo

Abstract – The thinker once said about the relationship between philosophy and passion; the result shows an extension of the boundaries between one another, while a delimiter of either (JARDIM, 2004). In this sense, thinking what apparently has little to do, I propose to question the spatio-temporality of education as taboo. Of course, one must wonder what education and taboo is in some instance in order to match the statement that assumes this proximity.

Keywords: poetic education; taboo; limit; freedom; sacred.

Quando a educação é tabu?

Muito provavelmente, dos tabus desta sociedade, nos atuais tempos, talvez a educação seja um dos últimos. Isto porque vivemos numa época entorpecida pelos conhecimentos adquiridos e acreditamos plenamente em poder transmiti-los. Simultaneamente, supomos que as barreiras e limitações são estímulos para a superação e o aprimoramento. Suposições justificáveis, pois de fato hoje podemos curar doenças historicamente incuráveis e levamos a humanidade a limites jamais antes inventados. Com tantas informações e experiências, seria de se esperar que passá-las adiante, mais do que uma opção, fosse tratado como um dever moral da atualidade.
Neste sentido, seria mais conveniente referir-se à educação quando ela não é um tabu. Afinal, tabu é algo que deve ser evitado ou, quando muito, tratado com circunspecção. Uma barreira dialógica se impõe a cada tabu. Já o trato com a educação, principalmente a formal, é algo feito às claras e sem medo. Ela está na moda e seu discurso soa bem-vindo nas diversas disciplinas do conhecimento e nas rodas sociais.
Embora a educação lide com os tabus, especificamente nas salas de aulas, em debates acalorados, entre risinhos sapecas e olhos arregalados, ela não seria um tabu. O ato de educar interpõe-se entre diversas barreiras, limites impostos e esperados: ora derrubados, ora reproduzidos, dando forma à cultura. Logo, questiona-se o que será ou não transmitido, quando ou como será colocado às novas gerações, mas dificilmente coloca-se em xeque a validade do próprio ato educacional.
Diversos autores criticaram ferozmente a educação, principalmente a escola como instituição, a ponto de repensar nossa sociedade sem a mesma. Dentre estes, Ivan Illich (1973) acreditava que, apenas quando desinstitucionalizássemos os valores, encontraríamos um novo equilíbrio com o meio ambiente. Em sua opinião, "a escola é a agência publicitária que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela é" (ILLICH, 1973, p. 178). Neste sentido, sua definição diz respeito à reprodução de um conteúdo, alienação e, por fim, domínio.
Do pondo de vista da educação tradicional, a importância da transmissão, da seleção e da reprodução de um conteúdo parece-me evidente; por outro lado, na construção de um pensamento crítico também encontramos a crença num controle a ser transmitido, ainda que justificado ideologicamente. Por mais que se argumente que os conteúdos transmitidos são vitais para a sobrevivência, ou que os mesmos perpassam pela responsabilidade dos envolvidos neste processo, isto é, os educadores, os educados e o mundo, trata-se, no mais das vezes, do que pode ser apreensível pelo saber:
A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele [...] é também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova [...], preparando-as [...] para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 1972, p. 247 grifo meu).

Este é o saber que apreende e identifica e, por isso, pode transmitir e preparar. Tais decisões geram modelos que dão sentido à existência. Em outras palavras, o que se identifica na vontade de preparação tem validade de transmissão; o que não, a partir de uma decisão modelar, é excluído da cidade (PLATÃO, 2000). Esta é a forma de compreender a educação como uma questão de identidade, não como uma questão do ser. Apregoa-se que pensar a essência limita e dicotomiza a educação, sem perceber que a identidade, esvaziada da questão do ser, está mais preocupada em classificar e adequar (porque já pressupõe conhecer o que é!) do que propriamente em tornar-se presença:
Mas é também uma questão: quem é quem? Não é 'O que é quem?' – não é uma questão de essência, mas de identidade (como quando perguntamos diante da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos, mas não os seus rostos: 'Quem é quem?' – Este é Kant? Aquele é Heidegger? E este outro ao lado dele?). (NANCY, 1991, p. 7 grifo no original).

Ao tratar a questão educacional como identidade sem essência, remontamos aos primórdios da civilização ocidental, em que a identidade se dava na existência: "os únicos caminhos que existem para pensar: um, o caminho que é e não pode não ser [...] o outro o que não é e é forçoso que não exista [...]" (PARMÊNIDES, 1982, p. 275). Ou seja, "ao pensarmos a enunciação parmenidíaca segundo a qual 'a mesma coisa existe para pensar e ser' percebemos que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da 'coisa que existe' e de seu modo de existência" (JARDIM, 1999, p. 14). Portanto, existir é estar em identidade com o ser, que, por isso, pode ser pensado. Em outras palavras, o ser que não pode ser pensado não é, no sentido de não existir.
A pergunta pela identidade aqui traz à tona a questão pela presença no existir. Não que a essência também não diga presença, mas exatamente por este motivo, pensando como duas coisas distintas, o ser e o existir podem ser postos em identidade, não em igualdade. Existir aqui enfoca o modo como algo é ou quem é, em vez do que é.
Na fotografia dos entes, a pergunta pela identidade está interessada em saber "quem é quem" ou "como é quem". Deiticamente pergunta-se na expectativa pelo que constitui o real concretamente: este é fulano, aquele é cicrano. Tem que haver uma identificação, na qual a urgência por "quem é" sobrepuja "o que é". A questão da identidade torna-se, pois, a questão da representação. Se, ao contrário, na música dos entes, não soubéssemos como o arranjo foi composto, ainda assim ele deixaria de soar? No momento em que perguntar pela identidade pretende prescindir à pergunta pelo ser, perguntar pelo "quem?", "como?", "por quê?" apresenta-se como a medida do real, e tudo o que diferir será de menor importância.
A validade de algo se dá pelo que ele faz, produz, sua finalidade, a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta, em detrimento do que é. Nesta concepção de essência, alija-se do ser seu caráter de presença. Aqui, o tornar-se presente depende da coisa que existe, isto é: "permite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de tornar-se presença sem ter que explicar 'o que' existia antes que 'ele' se tornasse presença" (BIESTA, 2013, p. 67 grifo no original). Em outras palavras, a questão ontológica perde sua relevância: não há necessidade de se pensar o que é uma vez que já se saiba como produzir ou se se trata do óbvio, do funcional, do útil.
Relevância esta que fundamenta a educação quando ela não é tabu. Entretanto, não é isso que fala o título. Há um quando que dita uma singularidade de tempo, abertura de espaço para o onde de uma educação que é tabu. "Quando a educação é tabu" afirma que, em certa perspectiva, educação e tabu se imiscuem. Não por meio de um simples "educação é tabu", pois assim colocaria em igualdade duas presenças singulares, corroborando com a crítica à essência dos parágrafos anteriores. Nada disso; o título é um convite a pensar pelo ser da educação na sua emergência inaugural de ser tabu.


O que é tabu?

O que chamo tabu merece destaque. Até o momento, não se refletiu sobre o que entendemos por tabu; em vez disso, aplicamos nossos pressupostos, adquiridos com menos ou mais erudição, do conceito tabu para compreender enformando a realidade. Delonguemo-nos, pois, no tabu.
Como bom exemplo do que se compreende por tabu, o dicionário Houaiss (2009) terá seis entradas: a primeira refere-se à instituição religiosa, conferindo sacralidade a seres, objetos ou lugares, concomitantemente proibindo qualquer contato com eles, sob pena de castigo divino. Todas as demais definições dicionarizadas trazem a ideia de proibição, ora interdição religiosa, ora cultural, ou imposta por costume social, ou como medida protetora. Vejamos alguns exemplos: "Em Samoa, distribuía-se todo o pescado pelo chão e ele era lavado em água doce para livrá-lo do tabu", "Beltrano é uma pessoa que vive presa a tabus" e "Os tabus convencionais da era vitoriana" (HOUAISS, 2009).
Esta concepção ratifica as limitações pelas quais a educação será convocada (pelos pais, pela sociedade, pelos educadores). Para cada situação, um limite apropriado, tanto aqueles louváveis a serem almejados, quanto os desprezíveis a serem execrados; e, propriamente a estes últimos, chamaríamos de os tabus da educação. Determinados assuntos não devem ser mencionados.
Na exceção das exceções, quando se precisar tocar no assunto, que o toque seja delicado, pois é tópico sensível, ou que seja ríspido, pois é passível de reprovação. Em ambas as circunstâncias, preza-se pela brevidade discursiva, já que não se deve falar de tal coisa, chamariz de mau-agouro. Ao velarmos o tabu, aprendemos a ignorar aquilo a que não conseguimos dar a devida atenção. Ao não mencioná-lo diretamente, deixamos subentendida a pujança posta pelo tema e tememos pelos descontroles que dali possam se originar neste ambiente controlado da educação. Ao reconhecer a existência dos tabus da educação, entrevemos a educação dos tabus, mantenedores de um status quo.
Para responder o que é o tabu, precisaremos pensá-lo. Isto não significa que lhe daremos existência como eks-istência, repetindo a tradição antigo-moderno-contemporânea de compreensão do ser como um interior que se exterioriza em ente, existência. Nem se pretende ignorar sua proveniência, ou retornaríamos ao exposto sobre identidade sem essência, em busca da classificação das características do ente tabu. Pensar o que é tabu diz aqui do modo próprio do ser-tabu dar-se em existência, este ser-sendo do tornar-se presença. Entendo que falar de ser na atualidade se mostre démodé, porém é a partir deste viés ontológico que se consuma no ente, na existência, mas não se esgota nele, que teremos o vigor necessário para se pensar o que, por desatenção inaugural, não foi pensado de dentro do tabu.
O único problema é que as pessoas têm dificuldades em falar sobre ele, quanto mais com ou a partir dele. É difícil falar, já que, na fala deste tabu, somos convidados a pensá-lo; quando o pensamos, aproximamo-nos tanto dele que, por fim, incorremos em delito, a saber, incorremos no próprio tabu. Este encontro nos deixa desconfortáveis, moralmente estranhos, até que não nos reconhecemos no que nos transformamos.
O tabu é o que não queremos ser. Aquilo que não queremos que seja! Convém um exemplo: não somos e odiamos pedófilos, muitos hão de concordar. Ainda que haja uma distinção entre pedofilia, um conceito da psicologia, e violência sexual, um conceito do direito, a mera preferência sexual por crianças e adolescentes é tida como abominável aos olhos ávidos das mães vigias e impensável de coexistência social.
Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais ambientes para coibir tal comportamento, a ponto de se achar terrível pensar o contrário. A ira sobe à goela se seu gosto por criancinhas descambar em ímpeto sexual; assim compreendemos o que é correto. Porém, não precisamos ir muito a fundo para constatarmos que em diversos povos o incesto, por exemplo, era praticado sem esse peso recriminatório (CADENA, 2013).
Se, contudo, prosseguirmos com a lista de tabus, na qual, por exemplo, se diria "não somos e odiamos sodomitas", certamente boa parte discordaria. Os séculos e os povos nos mostraram que tanto a pedofilia quanto a homossexualidade sempre existiram, ainda assim, essa presença histórica não impediu frases como: "Não haverá prostituta dentre as filhas de Israel; nem haverá sodomita dentre os filhos de Israel" (DEUTERONÔMIO, 23:17). Neste sentido, a suposta Israel apresenta modelarmente uma proibição de algo que já estava dado como possibilidade. Só porque poderia haver sodomitas que pode haver uma negação da sodomia. Aquela representação do social tenta instituir o tabu por lei.
Para Freud (2006) os homens (cabe ressalvar que, para os povos antigos, o tabu não é uma condição exclusivamente humana, mas também é ligado a animais, manifestações do clima, frutas, árvores etc.) que incorrem em tabu excitariam à ambivalência (bom e mau) e tentariam os demais ao tabu. Esta concepção moraliza o tabu, trabalhando por meio de modelos para preservar um modus operandi, um know how de como se pensar o real.
O que deve permanecer? A incompreensão do modo indígena de ser ou a crença numa concepção modelar de família supõe uma ideia pré-concebida de como as coisas devem ser independentemente de como elas estão se dando no momento. Qual modelo deve ser protegido?
Falou mais o Senhor a Moisés, dizendo:
Também dirás aos filhos de Israel: Qualquer que, dos filhos de Israel, ou dos estrangeiros que peregrinam em Israel, der da sua descendência a Moloque, certamente morrerá; o povo da terra o apedrejará.
E eu porei a minha face contra esse homem, e o extirparei do meio do seu povo, porquanto deu da sua descendência a Moloque, para contaminar o meu santuário e profanar o meu santo nome.
E, se o povo da terra de alguma maneira esconder os seus olhos daquele homem, quando der, da sua descendência a Moloque, para não o matar,
Então eu porei a minha face contra aquele homem, e contra a sua família, e o extirparei do meio do seu povo, bem como a todos que forem após ele, prostituindo-se com Moloque. (LEVÍTICO, 20:1-5).

Os limites impostos por Moloque se perderam. Quase 2.000 anos antes de Cristo, povos da região da antiga Cartago sacrificavam infantes em seus rituais de adoração. Crianças naquela sociedade, longe de serem descartadas, eram consumidas no fogo que, ao mesmo tempo, purificava e destruía. Não mais.
Com o surgimento dos hebreus, estas civilizações foram sendo reduzidas até desaparecerem. Habituamo-nos ao olhar da moral, que separa o uno do múltiplo, exclui identidade de diferença e divide em duas vias vida e morte. Como bem percebeu Walter Benjamin (1987, p. 207), "no decorrer dos últimos séculos, pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo, na consciência coletiva, sua onipresença e sua força de evocação". Encerramos o momento da morte em esconderijos assépticos, como se nos afigurasse o medo do contágio.
Não somos e odiamos os mortos... são os mortos um tabu? A morte é tão comum, tão à vista... além disso, não podemos proibir a morte. Em que medida a morte seria um tabu? Ora, proibir não quer dizer evitar. Evitar também não pressupõe renegar. Abraçar a vida não se contrapõe a abraçar a morte.
Para corresponder às perguntas supracitadas, devemos recorrer ao sentido, ainda não explorado, de sagrado no tabu. Isto porque talvez seja esta a relação mais profunda com a educação. Até então muito se discutiu sobre modelos, regidos por vontades sociais de adaptação ou repulsa. Porém, morrer não é uma opção. Morre-se, pois é próprio do homem assim ser. O que nos define também se coloca intrinsecamente desconhecido, acessível apenas na hora da manifestação de perecimento e, assim, sem experiência "de dentro" para transmitir o conhecido.
Quando Wundt (apud FREUD, 2006) disse que tabu é mistério e, acima de tudo, eram os mortos um tabu, ele estava fazendo menção exatamente a esta característica de convivência com o que não sabemos. Um demônio incontrolável e, portanto, temível. Simultaneamente, tabu é (também) o sagrado, algo sempre presente; assim era para muitos povos antigos que ainda experienciavam a sacralidade. Para eles, o sagrado era a primeira ascendência genealógica, seu parente mais antigo, isto é, o que funda uma família, consequentemente, um povo.
Podemos aqui traçar um paralelo com a educação como sendo um apropriar-se do que é próprio, pois faz referência ao sagrado, mas nem por isso toma o controle de si, já que é mistério perene. Se, contudo, tabu "opõe-se" a noa, que diz do que é comum, ordinário e geralmente acessível, não seria isto uma contradição? Dá a entender que somos ordinários e extraordinários ao mesmo tempo. Como educar para este desconhecimento de si?
A palavra 'tabu' denota tudo – seja uma pessoa, um lugar, uma coisa ou uma condição transitória – que é o veículo ou fonte desse misterioso atributo. Também denota as proibições advindas do mesmo atributo. E, finalmente, possui uma condição que abrange igualmente 'sagrado' e 'acima do comum', bem como 'perigoso', 'impuro' e 'misterioso'. (WUNDT apud FREUD, 2006).

Ora, tudo tem limite. Por vezes ele esbarra na vida pelo sacrifício, barreiras repostas pelas palavras latinas sacre e fere quando dizem de fazer o sagrado: sentido de proveniência da limitação. Por vezes tropeça na morte pelo demônio que insiste em impor o desconhecido por meio da identidade das diferenças, ou assim soava a palavra grega daimon, dar a unidade, conjugação do verbo dao e mais a palavra monos. Esta unidade é a divindade ou o destino, o que é ordenado pelos deuses (LIDDELL; SCOTT; JONES, 1985).
Este tipo de educação não se dá apenas em salas de aula, não suporta modelos. Não contempla aquilo que não seja o próprio, que é uma família, enquanto origem e plenitude. O tempo sagrado não suspende o tempo comum, ao contrário, atenta à fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada acontece. Eis como o ritual pode ser educativo. O mito dá início ao que o tabu limita, ambos dão sentido à sociedade. O começo é "espaço-temporalidade que pode permitir e reunir tudo" (JARDIM, 2002, p. 419).
Tanto a coisidade da coisa quanto a concretude do concreto, ambos dizem respeito ao obrar da obra. O limite precisa obrar, precisa fazer sentido, tem que ser concreto para o limitado. O limite não é arbitrário, ele é dado pelo real em suas diversas circunstâncias. A arbitrariedade do limite confecciona barreiras invisíveis, gerando colocações muito honestas como quem traçará as barreiras e como mantê-las, quais os modelos a serem seguidos e evitados para manter a barreira invisível. O limite é necessariamente uma barreira visível, ou melhor, um dado da realidade no real: limitada, por isso mesmo, fundamentada entre, isto é, "aquilo em que se reúne o todo de sua história, em sua extrema possibilidade" (HEIDEGGER, 1973, p. 271).
O tabu é o limite que vigora desde sempre, fundamento que delimita. De modo que o incorrer em tabu ou ocasiona em decadência e posterior destruição ou alarga os limites, desvelando o velado. A barreira concreta é rompida: ou a casa cai, ou ganha-se uma nova sala e um herói arrombador de paredes.
Agora, como saber se, ao quebrar a parede a casa permanecerá? Como posso ser ou não ser um quebrador de paredes? Para Frazer (apud FREUD, 2006), nem todos poderiam ser chefes, isto é, quebradores de paredes. Por exemplo, o chefe maori não soprava o fogo com a boca para não transmitir o sagrado à carne cozida e matar quem a comesse, transformando em chefe quem chefe não era.
Claro que isso também poderia ocasionar num novo chefe. Numa cultura mais próxima, o Graal é sagrado – já foi uma pedra que caiu do céu, da coroa de Lúcifer, e já portou o sangue de Cristo. Quem o visse ou tocasse poderia adquirir iluminação plena, cura instantânea, cegueira, paralisia ou morte, sobretudo se o contato fosse com alguém impuro (acepção cristã do que não é próprio).
Isto conflita com a concepção de Freud de os homens se sentirem tentados. Dentro desta lógica do controle, ele só pode ver como tentação o que os antigos viam como presença (qualquer um que incorre em tabu é tabu). Tabu não é um exemplo, pois a própria ideia de modelos a serem seguidos ou evitados é questionável. Quem é rei, sempre foi rei. Quem será rei, sempre foi rei. Outro que tentasse ser rei alargaria seu ser para além de seu próprio, ocasionando no fim para além da finitude: cegueira, paralisia ou morte. Se consigo tirar a espada da pedra, consigo na medida em que já sou a possibilidade de tirar a espada da pedra.
Trata-se de destino, não de vontade. Trata-se de apropriar-se do que é próprio, não de tentar ser algo que não somos. Trata-se de achar o que não podemos perder, não de possuir o que jamais podemos ter.
Adentrando um pouco mais no mito de Ícaro como forma de educação sagrada, ele não se satisfaz em sair do labirinto, mas leva-o aonde quer que vá (JARDIM, 2002). Não é uma decisão sua, não uma adequação a um modelo. Sua própria prática define quem ele é, uma decisão do real. Sua desmedida, incorrer em tabu, é a própria condição heroica, seu fim, sua plenitude.
O mito evoca-se em palavra. O mito evoca palavra. O tabu concerne palavra. É próprio do poeta nomear o sagrado. Neste sentido, poética e mitologicamente o homem habita, pois em casa, que é tabu, as coisas têm memória, a fala que não cessa em lembrança, mas permanece a dizer no tempo.
O mito, que é tabu, nomeia o sagrado, à medida que no real se escuta a fala do tempo. O que é o sagrado senão o próprio do tempo, a presença do presente, a teoria fundamental do real? — O fundamento da casa: o que origina e permite a permanência do originário na plenitude da habitação. Assim sendo, traz o ordinário a fala do sagrado que não se escuta. Eis talvez um belo sentido para quando educação é tabu.

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

CADENA, Nelson. A vaidade das moças e os rituais do sexo entre os indígenas que residiam na Bahia. Bahia: 2013. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2015.

DEUTERONÔMIO. Português. In: Bíblia sagrada. Disponível em: . Acesso em: 22 de jun. 2015.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos (1913-1914). Rio de Janeiro: Imago, 2006.

HEIDEGGER, Martin. Os pensadores. São Paulo: Abril, 1973.

HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1973.

JARDIM, Antonio. A dimensão poética no contexto hegemônico da técnica. Interfaces, ano V, n. 6, dez. 1999.

______. Ícaro e a metafísica: um elogio da vertigem. Concinnitas – arte, cultura e pensamento, n. 3, 2002.

______. "Quando a paixão é filosofia". In: CASTRO, Manuel Antônio de (org.). A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.

LEVÍTICO. Português. In: Bíblia sagrada. Disponível em: . Acesso em: 22 de jun. 2015.

LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert; JONES, Henry Stuart. Online greek-english lexicon. Massachusetts: Universidade Tufts, 1985. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2015.

NANCY, Jean-Luc. Introduction. In: CAVADA, E. et al. (org.). Who comes after the subject? Nova York/Londres: Routledge, 1991.

PARMÊNIDES. Os filósofos pré-socráticos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982.

PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultura, 2000.

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