Quando a mulher se fez cabra - Revista ART. ” ♀ - Uma revista de Direitos Humanos | Caminhos para um outro mundo

June 5, 2017 | Autor: Teresa Cunha | Categoria: Human Rights, Feminism
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ART.º ♀ UMA REVISTA DE DIREITOS HUMANOS

CAMINHOS PARA UM O U TRO MUNDO Acção Jovem para a Paz n.º 2/2003

Art.º ♀ – Caminhos para um Outro Mundo

Acção Jovem para a Paz 2003

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FICHA TÉCNICA

E D I Ç Ã O : Acção Jovem para a Paz C O N C E P Ç Ã O : Secretariado Nacional da Acção Jovem para a Paz O R G AN IZ AÇ Ã O APO IO

ED ITOR IAL E GRÁF IC A:

GRÁF ICO:

F O T O G R AF I A

DA

Sandra Silvestre

Carla Fino C A P A : Miguel Mesquita

A P O I O : Instituto Português da Juventude

© ACÇÃO JOVEM SETEMBRO

P AR A A

P AZ

2003

Publicação disponível em formato PDF na página da AJP em: www.ajpaz.org.pt

Nota: Todos os artigos e contributos publicados nesta Revista são da exclusiva responsabilidade das suas autoras e não reflectem necessariamente a opinião ou posição da AJP

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SUMÁRIO Introdução Mulheres Caminhando por Um Outro Mundo Sandra Silvestre

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Capítulo I – A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES Caminhos para um Mundo Melhor Antónia Miguelito Mulheres, Cidadania e Participação Política Ana Camilo, Cristina Azevedo, Marta Peça e Sílvia Roque Participação Política a Caminho de uma Alternativa... Uma Lista de Mulheres para as Autárquicas 2001 Ana Cristina Santos e Tatiana Moura Chamo-me Priscila… Priscila Soares Creio no incrível, nas coisas assombrosas, na ocupação do mundo pelas rosas Isabel Lopes Delgado

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Capítulo II – AS MULHERES E A PAZ As Mulheres, a Paz e o Futuro Eva Bacelar Tais Fátima Guterres Um Mundo Melhor no Afeganistão? As Mulheres da RAWA Kathrin Tackle Tolerância Tareca

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Capítulo III – PAPÉIS DAS MULHERES EM DEBATE Onde estão as Histórias Femininas? Allene Lage Barreiras Taís Regina da Silva Chaves Mensagem uma outra mulher “Eu, Phoolan Devi” Carolina Uma fatia de Vida- Conversa com a Sr.ª Celeste Antunes Laura de Witte

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Capítulo IV – AS LUTAS AINDA POR FAZER 45

Quando a Mulher se fez Cabra Teresa Amal A Violência está na moda? por Nina Rocha de Antas Esperança e Paz Ilda Figueiredo Ganhar a guerra contra a sida Virgínia Ferreira

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CONTO 57

Murmúrios Ana Paula Assunção BANDA DESENHADA

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Caracool em algo melhor Andrea Inocêncio IMAGENS Na Comunidade Juvenil S. Francisco de Assis um Mundo Melhor é… Charlotte Mohaer Palavras de um Outro Mundo Dóra Kénez

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I NT RO DUÇÃO

MULHERES CAMINHANDO POR UM OUTRO MUNDO

A ideia de fazer a Art.º ♀, uma Revista de Direitos Humanos exclusivamente escrita por Mulheres, nasceu em 2000 depois da III edição do Seminário Sem Preconceitos- um espaço de debate e participação no feminino. A ideia e a vontade que nos moveu na realização desta publicação foi a de dar a caneta e a voz às Mulheres que, apesar de lutas seculares pela emancipação, permanecem ainda na sombra, no domínio do invisível. No seio da AJP, a problemática das Mulheres tem vindo a ser encarada cada vez mais como central para a construção de uma Cultura de Paz e para a construção de um Mundo mais pacífico, mais justo e mais solidário. Encaramos as Mulheres, as diferentes problemáticas à volta dos papéis das Mulheres no Mundo e as diferentes percepções de Mulheres do Sul e do Norte, do campo e da cidade, como essenciais para Caminharmos para um Outro Mundo que seja Melhor e Possível! Através da realização de seminários, oficinas e publicações, pelo trabalho em Rede com outras organizações feministas, através da nossa prática diária tentamos dar o nosso humilde contributo para a reinvenção de um Mundo onde as Mulheres sejam as protagonistas da PAZ! O primeiro número da revista “Art.º ♀” centrou-se em questões ligadas à violação dos Direitos Humanos contando com contribuições de jovens estudiosas e investigadoras desta temática, sendo um trabalho maioritariamente académico, mas militante. Neste segundo número quisemos diversificar os tons e as cores da Art.º ♀ em consonância com o momento que se vive na AJP, de que é exemplo forte a participação activa nos Fóruns Sociais Mundial e Português. Quisemos assim alargar o espectro da Revista e trazer para o papel registos de vozes de diferentes Mulheres: Mulheres do Sul e do Norte, de várias idades, cores e feitios, com diferentes percursos e experiências de vida. Convidámos então várias Mulheres a reflectir sobre OS CAMINHOS PARA UM OUTRO MUNDO. Apelámos à criatividade e quisemos abrir espaço às mais diferentes formas de expressão. O resultado é uma mistura de discursos, de registos, de modos de dizer e fazer que não quisemos compartimentar, nem sempre fácil para a nossa racionalidade Ocidental. Assim, em cada Capítulo desta Revista o discurso académico convive pacificamente com a poesia e a

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metáfora, as histórias de vida contadas na primeira pessoa com o discurso sobre @s outr@s, a experiência associativa convive com a experiência parlamentar ou com a experiência de uma dona de casa. Quisemos trazer a cor e a diversidade que marca a AJP e as suas acções para esta Revista, misturando o contributo de uma jovem alemã com a poética de uma mulher timorense, a opinião de uma mãe angolana com a de jovens estudantes de Coimbra, o estudo e a reflexão académica de uma brasileira com o testemunho de uma activista do interior de Portugal, o discurso de deputadas europeias com o de Mulheres anónimas desse mundo e desse Portugal fora porque todas temos algo a dizer. Quisemos, mais do que pôr estas diferentes vozes lado a lado, perceber de que maneira se conectam entre si, tendo para isso que fazer um esforço para deixar de parte preconceitos e ideias feitas. Consideramos a Diversidade de discursos uma riqueza em si mesma que põe à prova a tradicional maneira de pensarmos e vermos o Mundo- a preto e branco, com dicotomias simplistas. Nos dias de hoje, no século XXI, os quadros em que estamos habituados a pensar o Mundo não podem ser os mesmos, pois este é agora muito mais complexo. Assim, também o debate e a reflexão em volta das questões da Mulheres têm de ser feitos de modo diferente. É isso que tentamos induzir aqui com o cruzamento de discursos, vozes e formas de expressão e com a transversalidade das temáticas. Este número dedicado à procura de “CAMINHOS PARA UM OUTRO MUNDO” foi dividido em quatro capítulos, embora esta divisão não possa ser entendida como estanque, pois todos se comunicam. Sendo a Participação, entendida na sua generalidade, um dos pilares para a Construção da Mudança resolvemos começar por aí esta edição. Tocando desde a participação política à associativa, usando o relato de experiências e percursos de vida e ao mesmo tempo a homenagem e o manifesto, pretende-se perceber como participam as Mulheres na mudança da sociedade e o que há ainda a fazer no futuro. O segundo capítulo é dedicado à Paz. Entendemos a Paz não apenas como a ausência da guerra, mas como a existência e exigência permanente de Justiça, de Respeito pela Diferença, de Direitos reais e não meramente formais. Neste capítulo estão entrecruzadas perspectivas e escalas aparentemente longínquas, que vão do institucional ao doméstico, da Europa à Ásia, construindo-se assim uma visão complexa de PAZ. No terceiro capítulo, abre-se o debate sobre os Papéis das Mulheres na construção de um Outro Mundo. Dos silêncios forçados aos gritos, ficam as diferentes histórias de Mulheres que nos remetem para o debate sobre a intrínseca bondade das mulheres, ou não, e sobre os papéis definidos por uma ordem patriarcal.

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Por fim, ficam os Desafios que há ainda a enfrentar. Ficam algumas das lutas mais prementes que Mulheres e Homens têm ainda que travar para construirmos um Mundo onde seja bom viver. A Revista fecha com a criatividade e sentido crítico de várias artistas, uma escritora, uma artista plástica e duas criações de jovens que acrescentam a esta edição outras formas de expressão de tom mais lúdico, mas sem perder a ligação com o que está atrás. Animam ainda este Art.ª ♀ outras formas artísticas como a fotografia e o desenho que harmoniosamente complementam os outros contributos. Esta Art.º ♀ afirma-se assim como um espaço de expressão, reflexão e acção das cerca de vinte mulheres que dando um pouco de si tornaram esta iniciativa possível. Sabemos que, tal como para esta Revista, estas Mulheres, e muitas outras, estão hoje dia a dia a travar várias lutas em vários sítios e por coisas diferentes, mas é nossa profunda convicção que convergimos todas para um mesmo fim: Caminhar para Um Outro Mundo Melhor. A tod@s elas o nosso mais sincero Obrigada e votos de muita força para continuar o Caminho porque o Mundo está apenas muito imperfeitamente inventado. Sandra Silvestre Agosto 2003

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Capítulo I – A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES

CAMINHOS PARA UM MUNDO MELHOR

O Mundo hoje é feito por indivíduos que lutam pelo protagonizo,

esse

indivíduos

esquecem

das

outras

personalidades ignorando-as, por vezes passando mesmo por cima. A mulher tem um papel importante e relevante, na tomada da consciência da dignidade. Nela se deve despertar o desenvolvimento das capacidades, de modo que cada uma possa sentir que algo lhe compete fazer para o progresso da humanidade. É inabalável o espaço, o diálogo, e o respeito mútuo, para que a mulher possa interiorizar essas atitudes duma maneira fomentadora na participação do empenho na iniciativa. Todos esses pressupostos seriam alcançados se as oportunidades necessárias fossem usufruídas por todas as mulheres que vivem no mundo do anonimato, excluídas da sociedade. Quantos conhecimentos seriam proporcionados pelas várias mulheres esquecidas? As oportunidades devem ser dadas a todas as mulheres, porque heroínas seremos se trabalharmos unidas para descobrirmos os caminhos para um mundo melhor. NGASSAKIDILA, KIAVULU Em Língua Nacional Angolana Kimbundu, Muito Obrigada Coimbra, 11 de Novembro de 2002 Antónia Manuela Miguelito Domingos

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MULHERES, CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

Desigualdade, identidade e solidariedade A ideia de universalidade é o pilar sobre o qual repousam as noções de Democracia e Cidadania. A universalidade abre caminho para a igualdade ao assinalar que de uma razão comum a todos os indivíduos derivam os mesmos direitos para todos os sujeitos. Contudo, o grande problema das políticas e regulamentações públicas de igualdade - tendo evoluído a partir de um fenómeno de exclusão democrática - é que se limitam normalmente à “concessão” de uma igualdade política e redistributiva meramente formal. Os direitos assim definidos, acabaram por segregar diversos grupos sociais, perpetuando a sua diferença e não conduzindo a uma concretização política no caso das Mulheres. Assim, apenas a reivindicação política pode deter o insidioso mecanismo social que coloca as Mulheres em posição de subordinação. O facto de as Mulheres não formarem uma categoria social como a classe ou a etnia não significa que não possam constituir-se como grupo social com vínculos de solidariedade, tendo em vista a acção política. Existe entre si um interesse comum que, segundo J. Scott1, atravessa todas as fronteiras de classe, raça ou soberania e que é a superação da opressão. As Mulheres constituem um colectivo marginalizado e subordinado em toda e cada uma das sociedades existentes. A discriminação pelo género constitui o fundamento da sua identidade como colectivo. A desigualdade que as Mulheres experimentam não é casual nem aleatória. Pelo contrário, prende-se a dados constantes que as singularizam face a outros colectivos em sociedades patriarcais hierarquizadas pelo género e atribuindo-lhe papéis específicos. A perspectiva da igualdade não pode senão reivindicar a radicalização da Cidadania e da Democracia para as Mulheres: tanta Cidadania e tanta Democracia quanto seja necessário para que as Mulheres se constituam como sujeitos plenos e autónomos.

Participação política e intersecção de esferas: formal/informal e público/privado

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Joan Scott cit. in Rosa COBO “Democracia Paritaria y radicalización de la Igualdad” disponível na internet em www.camaranet.com

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Os movimentos de Mulheres têm tornado públicos assuntos considerados triviais ou esquecidos no secretismo da existência privada e que deviam ser encarados como uma preocupação pública. Ao mesmo tempo o Feminismo considera que o “pessoal é político”, tentando assim “redireccionar a atenção para a esfera quotidiana e ampliar o significado da Democracia de modo a incluir a desigualdade doméstica, a identidade, o controlo sobre a sexualidade, desafiando a representação cultural, o controlo da comunidade sobre o bem-estar promovido pelo Estado e (promovendo) um acesso mais equitativo aos recursos públicos”2. Denuncia assim uma conexão entre a vida social e política, daí que se tenha vindo a incrementar as negociações para que os associativismos femininos possam ter mais presença na esfera pública, o que já em 1792 Mary Wollstoncraft defendia como crucial para um projecto político. Paralelamente a uma valorização das acções levadas a cabo na esfera privada, é evidente a necessidade de uma política formal mais inclusiva, uma vez que se uma parte da cidadania política é a promoção da equidade das Mulheres (e também da sua diferença), então terão de ter um papel mais activo no sistema político formal: as Mulheres constituem um interesse político que devia ser representado no processo de tomada de decisões, até porque têm diferentes interesses dos homens que muitas vezes entram em conflito, sendo necessário serem representadas por membros do mesmo sexo já que a representação “indirecta” (pelo outro sexo) não é suficiente: daí que a corrente Feminista defenda a necessidade de uma “política da presença”3.

Discriminação positiva Perante a evidência da discrepância numérica entre Homens e Mulheres em cargos posicionados no topo da hierarquia dos governos ou organizações, torna-se aceitável introduzir medidas que, desde que temporárias, contribuam para que as Mulheres, até então tão arredadas dos postos de decisão, possam aceder aos mesmos, transformando a maneira de se fazer política: talvez só assim consigamos uma sociedade mais justa, em que Homens e Mulheres partilhem a esfera pública e privada sem que isso prejudique (pelo contrário beneficie) uns e outras. Com este passo avança-se um pouco mais na re-invenção de uma Democracia de qualidade: todos os sistemas de discriminação positiva acarretam efeitos negativos, mas a

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“feminism shifts attention towards the sphere of everyday life and widens the meaning of democracy to include domestic inequality, identity, control over sexuality, challenge to cultural representation, community control over state welfare and more equal access to public resources” (Anne PHILIPS, Feminism and Politics, Oxford, Oxford University Press, p. 95) 3 Note-se que as Mulheres não podem ser encaradas como um grupo de interesse homogéneo, não sendo uma categoria unitária, até porque a partilha de ideologias ou de prioridades não é obrigatória pelo simples facto de serem Mulheres.

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ausência destas políticas tem efeitos mais negativos que positivos, uma vez que propicia a reprodução de esquemas de dominação e subordinação. Daí que nos deparemos com um imenso movimento constitucional, legislativo e intrapartidário que, pelo mundo fora e com ímpeto crescente, encara estas acções como uma solução (embora transitória): existe hoje uma panóplia de textos internacionais que tenta encontrar e recomendar soluções que permitam ultrapassar a ausência manifesta de Mulheres em cargos de decisão política, nomeadamente a Plataforma de Acção adoptada na 4ª Conferência Mundial da ONU sobre as Mulheres em Pequim, recomendações no âmbito da UE ou do Conselho da Europa. Neste sentido, surge a proposta de um conjunto de instrumentos que, directa ou indirectamente, pode conduzir a uma participação dos sexos mais equilibrada. Relativamente à promoção do estatuto das Mulheres em geral, o primeiro passo prende-se com mudanças no domínio da lei, terminando sistematicamente com todas as discriminações anteriores na Constituição, no direito da família, da nacionalidade ou penal, no direito a eleger ou a ser eleito ou no acesso a cargos públicos, protegendo a maternidade e adoptando, em cada caso, soluções mais favoráveis à igualdade não apenas jurídica, mas de facto. Apesar de ser uma meta que se encontra já razoavelmente cumprida, a sua aplicabilidade tem encontrado obstáculos que exigem um conjunto de medidas que permitam superar estas dificuldades. Um primeiro campo de acção poderia ser o domínio da informação em sentido amplo, a divulgação sistemática e orientada de dados sobre a situação das Mulheres em todos os sectores, com o objectivo de levar à reflexão e à utilização dessa mesma informação por parte das Mulheres e de as induzir a exigir, a exercer os seus direitos, a não aceitar passivamente, em suma, a exercer a cidadania. Impõem-se ainda medidas nos domínios do acesso à educação e à formação, bem como na promoção de empregos, na partilha das responsabilidades familiares (através por exemplo da implementação de licenças de paternidade e de conciliação dos horários) e no controlo da fecundidade/exercício dos direitos reprodutivos. Se tivermos em mente medidas que visam especificamente a participação no domínio da intervenção política surgem como possibilidades a limitação da ocupação de cargos (tais como a proibição das acumulações e as penalizações ou prémios, sobretudo nos partidos ou nos sindicatos) e ainda o mais mediático de todos os instrumentos, as quotas4.

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O sistema de quotas aplica-se, de modo um tanto indiferenciado, a todas as acções positivas que garantem às Mulheres, numa situação de subrepresentação, uma participação nas listas eleitorais ou nos órgãos electivos subordinada a um objectivo quantificado – em percentagem ou em número de lugares. São consideradas medidas temporárias que visam compensar uma desigualdade de facto que afecta a participação e a representação das Mulheres na vida pública, mas têm enfrentado um conjunto de opositores (apesar de serem conformes à lei, como no art. 109 da Constituição Portuguesa). Apresentam um conjunto de argumentos conta este sistema tal como o constitucional da igualdade política formal, da unidade e indivisibilidade da representação, do direito à candidatura de todos, o argumento político (ex: a introdução de quotas desestabilizará todo o sistema partidário ou que se corre o risco de perda de qualidade dos titulares de cargos públicos), o argumento sociológico de que as Mulheres não se

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Mais do que a politização da esfera privada ou a democratização da esfera pública é ainda preciso uma democratização das relações domésticas, paralela às exigências de políticas públicas verdadeiramente democráticas, redistributivas e em conformidade com as necessidades específicas, o que implica mudanças profundas ao nível cultural e sociológico de forma a transformar não só as mulheres mas todas as relações dominadas pela lógica patriarcal. Os meios privilegiados são (para além do tempo) as lutas políticas e as políticas educativas orientadas para mudanças e progressos profundos da sociedade que temos.

Ana Camilo, 26 anos Cristina Azevedo, 23 anos Marta Peça, 23 anos Sílvia Roque, 23 anos Recém-licenciadas em Relações Internacionais

interessam pela política, o argumento filosófico de que as quotas são destinadas a promover as minorias e as Mulheres não o são, ou que as quotas pressupõem uma situação de inferioridade que não é formalmente aceite.

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PARTICIPAÇÃO POLÍTICA A CAMINHO DE UMA ALTERNATIVA... UMA L ISTA DE MULHERES PARA AS

AUTÁRQUICAS 2001

Quando decidimos constituir uma lista composta exclusivamente por mulheres para concorrer às eleições autárquicas de 2001 pretendemos, manifestamente, agitar as águas deste morno sistema «um bocadinho» patriarcal, «um nadita» tradicional e conformado, «um pouquinho» alimentado pelo compadrio e pelo machismo que a nossa sociedade, de brandos costumes, «quase» não tem. Pois, por isso, porque entendemos que este é o meio onde abundam as «doenças dos pedacinhos» e que esses muitos pedacinhos moldam um sistema de opressão e dominação mais lato em que a mulher tem saído invariavelmente a perder, é que nos interessámos por uma lista feminina. Repare-se que as mulheres, embora constituindo mais de 51% da população, continuam a ser uma minoria se, por minoria, entendermos não um conceito numérico, mas um conceito que remete para a real capacidade de poder e de participação nas esferas de decisão... Por esta via, as mulheres são efectivamente uma minoria porque tradicionalmente são excluídas da arena pública e remetidas para o seu espaço considerado «natural» – o da domesticidade do lar, da educação dos filhos/as e do cuidado dos idosos/as. Tratou-se de uma lista de mulheres... … e porque não? Teria tanta notoriedade se fosse uma lista composta apenas por homens? A estranheza decorre do facto das mulheres estarem tradicionalmente afastadas da esfera política. Nas eleições autárquicas de 1997, dos 305 presidentes de câmara eleitos, apenas 12 são mulheres (3,5%); em Junho 1999, foram eleitos 25 deputad@s portugues@s para o Parlamento Europeu, d@s quais apenas 5 eram mulheres (20%); não há nenhuma mulher a desempenhar o cargo de Governador Civil. Nenhuma mulher ocupa o lugar de chefia máxima nos partidos representados na assembleia da república. Não obstante as nossas convicções assumidamente feministas, a lista de mulheres da Freguesia de Santa Clara para as autárquicas 2001, sob o slogan «Santa Clara… pelo lado de cá!», constituiu um projecto particularmente centrado na identificação das condições objectivas de existência dos/as habitantes daquela freguesia, por um lado, e na elaboração de propostas concretas visando solucionar os problemas existentes, por outro. As nossas propostas, construídas após diversas consultas a gente local, consistiam sucintamente em facultar a participação cívica dos/as cidadãos/ãs (através da criação de Acção Jovem para a Paz 2003

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comissões e grupos de trabalho em temas diversos, estímulo ao voluntariado e reconhecimento do importante papel das associações cívicas e das escolas enquanto parceiros fundamentais), melhorar os transportes e as acessibilidades, criação de infra-estruturas básicas e espaços de lazer (biblioteca, piscina, espaços verdes, etc.), maximizar as oportunidades oferecidas pelo Programa Pólis (através da constituição de uma comissão de acompanhamento do processo), proporcionar a designada educação para a cidadania (mediante a dinamização de sessões de esclarecimento e debates temáticos, valorizando os temas da educação sexual, planeamento familiar, prevenção do hiv/sida e combate à toxicodependência), incentivar a recuperação do património (recuperação e criação de edifícios, miradouros, fontes e passeios com calçada portuguesa, conservação do património gastronómico e divulgação turística) e investir em apoios e equipamentos sociais (prevendo-se a criação de um banco de tempo e de uma micro-bolsa de emprego, para além de uma creche e de um lar de 3ª idade). As motivações das mulheres que constituíram a lista eram diversas – por ser uma lista por Santa Clara, por ser composta por mulheres, por ser um projecto inovador. Entendemos que essa diversidade de atitudes e motivações constituiria certamente uma mais-valia. Portanto, a visibilidade que adquirimos – juntos dos meios de comunicação social e consequentemente da opinião pública – por via de sermos todas mulheres constituiu uma forma de expressarmos aquilo que nos unia sob uma mesma bandeira, invocando a realidade da discriminação das mulheres na esfera pública, mas também tornando pública a situação de subordinação que a margem esquerda da cidade de Coimbra sofre relativamente ao resto da cidade, do outro lado do Mondego. E isso foi possível fazer de uma assentada, pelo simples facto de que termos deixado de ser mais uma lista para passarmos a ser a «lista de mulheres» ou «as mulheres de Santa Clara». E aquilo que poderia ser apenas uma banalidade, uma coincidência decorrente de relações estabelecidas entre pessoas que se conhecem e que aprenderam a trabalhar em conjunto, acabou na verdade por se tornar um símbolo, uma marca, um motivo extra de conversa de café ou com a família. Sendo nós uma lista independente apoiada pelo Bloco de Esquerda, cuja campanha se centrou na colagem de cartazes, pintura de mensagens em muros, distribuição de material de informação, conversas de rua com habitantes e uma sessão de esclarecimento público, não esperávamos obter um grande reconhecimento da validade das nossas propostas. Ainda que a reacção das pessoas com quem contactávamos nas ruas fosse aparentemente positiva, isso não significava necessariamente uma alteração no sentido do voto, tradicionalmente dividido dicotomicamente entre o PS e o PSD. Foi, portanto, com alguma surpresa e com muita alegria que acedemos aos resultados finais dos votos para aquela freguesia, atribuindo-nos 8% dos

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votos, num cenário em que o BE obtivera 3% a nível nacional. Elegemos uma representante para a Junta de Freguesia. Objectivamente, a diferença nunca poderá ser sentida da forma ampla que subjazia às nossas propostas, cuja aplicação extensiva dependia da nossa vitória. Contudo, conhecendo nós a improbabilidade de tal vitória ter lugar, importa reconhecer o voto de confiança que 8% da população nos deu. O saldo positivo é avaliado não só com base nesse voto de confiança, mas sobretudo pela forma como desenhámos a nossa campanha, pela linguagem utilizada e pelas estratégias de aproximação à população. Em suma, o nosso contributo ao participar numa lista de mulheres consistiu numa tentativa de construir um novo «pedacinho», desta feita rumo a um mundo alternativo que, esperamos, seja melhor. Ana Cristina Santos Tatiana Moura (Vice-Presidentes da Associação não te prives - Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais)

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CHAMO-ME PRISCILA…

Chamo-me Priscila, sou minhota e vim para o Algarve em Julho de 1985, para participar no lançamento de um projecto de intervenção no interior rural da região... e por cá fiquei, pelo menos até agora. No Algarve confrontei-me com uma cultura completamente diferente, e descobri o peso e importância das minhas raízes. Com uma certa surpresa, dei-me conta de que a minha memória continuava povoada por imagens da infância passada numa aldeia não muito distante de Braga. Esses laços terão facilitado o reencontro com o mundo rural. Mas não foi fácil para quem tinha vivido os últimos 27 anos em meio urbano (primeiro em Braga e depois no Porto) e para quem ganhava a vida como professora, a maior parte do tempo como professora da Universidade. Do norte, urbana e intelectual, vi-me, de um momento para o outro, no sul, no interior serrano, procurando estabelecer comunicação com as pessoas de aldeias mais ou menos esquecidas e fazer avançar pequenos projectos capazes de dar resposta a algumas das suas necessidades concretas. A intervenção foi sempre conduzida com a preocupação de envolvimento das pessoas e das entidades locais no desenvolvimento e avaliação dos processos. Trabalhei intensamente, sem regatear esforços, com inteira dedicação e grande entusiasmo. O projecto, que começou por ser conduzido a partir da Escola Superior de Educação de Faro, deu origem à Associação In Loco, que é uma agência de desenvolvimento local, com um historial já longo e um conjunto de realizações significativo. Sinto que estes mais de 17 anos de trabalho valeram a pena: aprendi muito, cresci, torneime mais atenta e disponível para os problemas e os projectos dos outros. Mesmo assim, foi necessário todo este tempo – e as andanças que dentro dele couberam para despertar na minha cabeça uma pergunta tão simples como esta: será que nós técnicos de intervenção somos capazes de ouvir realmente as pessoas para quem e com quem trabalhamos, de as apoiar na concretização dos seus sonhos, ou será que andamos intensamente ocupados com a realização do nosso projecto, do nosso sonho? Em última análise, o desenvolvimento passa pelo desabrochar de cada pessoa, pela sua compreensão de que faz parte de uma comunidade (de várias), pela sua decisão de se inserir

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contribuindo para o crescimento dessas comunidades e pela sua capacitação para concretizar esse projecto de realização pessoal e social. O meu trabalho como agente de desenvolvimento preparou-me para acolher esta pergunta. E como o desafio de o realizar me foi lançado pelo meu marido, cabe-me agradecer-lhe a oportunidade de aprendizagem e evolução que este trabalho representou para a minha vida. Mas a pergunta em si, na sua incontornável interpelação, foi-me lançada por uma amiga, que sendo funcionária do Ministério de Agricultura acumulou a frustração de muitos anos de trabalho à revelia das necessidades mais básicas dos agricultores. Para ela também o meu obrigada. Que mais posso dizer? De momento, procuro manter viva esta interrogação e prosseguir um trabalho que me força, constantemente, a procurar realizar a quadratura do círculo, ou seja, a conjugar de forma significativa: programas formatados com rigidez, necessidades das populações serranas ainda sem resposta e aspirações de realização dos técnicos que comigo trabalham na associação. São Brás de Alportel, 13 de Fevereiro de 2003. Maria Priscila Soares Agente de Desenvolvimento, 53 anos, Portuguesa

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CREIO NO INCRÍVEL, NAS COISAS ASSOMBROSAS, NA OCUPAÇÃO DO MUNDO PELAS ROSAS5

Pedem-me que escreva sobre a Mulher... Que lance para a folha em branco, o que penso ser o nosso papel num mundo que de dia para dia vai perdendo o azul... Pedem-me que no feminino, escreva sobre o feminino... E, de repente, lembro-me de mulheres que me ajudaram a ser quem sou... Recordo um vulto esfuziante, uma mulher que usava a palavra de igual para igual, no parlamento, na televisão, uma mulher que ousava ser quem era, humanamente igual a todos os outros, num tempo em que o feminino e o masculino se começavam a encontrar em parceria nos corredores da política nacional. Aquela mulher, no entanto, não era um político: tinha uma alma sábia, circular como o mundo, transparente como as poéticas palavras com que transfigurava a realidade e ao mesmo tempo nela intervinha, aproveitando com mestria a veia satírica dos nossos velhos trovadores. Aquela mulher era especial... Na televisão, recordo-me do seu tom calculado, do modo vibrante como falava dessa paixão, a língua, a poesia, o modo sensual como pronunciava as palavras, como se as mastigasse a cada instante, delas retirando a sabedoria e o prazer, num acto de sedução permanente. Mais tarde, aprendi a lê-la, descobri-a única na utilização poética da palavra, encontrei-me com trovadores e jograis através dela, transfigurei-me em heroína romântica lendo os seus sonetos, ri-me com a sua sátira contundente a figuras da nossa mesquinha política nacional, descobri o sabor a sal do mar que cerca as ilhas, e o cheiro a sangue da terra em que habitamos, cruzei-me com o amor, com a paixão, com o desejo, num acto permanente de sábia sedução. Descobri que ela sabia ser mulher e que isso não a impedia de estar presente e de intervir, de tomar posição em assuntos nacionais e internacionais e que se o fazia é porque era livre e se opunha a qualquer tipo de escravidão. Descobri também a sua grande arma: a palavra. A palavra dita, a palavra escrita, a palavra poesia, a palavra argumento e essa sua palavra transformou-se, para mim, em Mátria. Palavra feminina, infinitamente humana, que nos permite confessar afectos e lutar contra tiranias, voz de antepassados longínquos, promessa de futuros melhores. Natália Correia, era assim o seu nome, ensinou-me que um mundo visto pela janela do feminino será certamente um mundo mais justo, mais solidário, mais afectivo e que a palavra pode ser “ um engenho mais fecundo”, para conciliar o que nos parece muitas vezes irreconciliável.

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O título do nosso texto é uma citação de dois versos de Natália Correia, de um dos seus SONETOS ROMÂNTICOS.

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Vale a pena falar de Natália Correia, relembrando-a como alguém que deixou nos seus textos a memória cifrada de um mundo mais justo, mais igual, mais pacífico. Alguém que acreditava no Amor como um sentimento mais alto, capaz de conduzir mais além, que acreditava na importância da palavra, a palavra transformadora. Neste momento em que os valores da Paz e da Fraternidade estão em perigo, e em que as imagens do sofrimento da guerra nos lembram o flagelo da destruição e da injustiça, comemoro os 80 anos de Natália, a poetisa cuja lira interior lhe inflamava a alma e o corpo e recordo a sua ODE À PAZ Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza, Pelas aves que voam no olhar de uma criança, Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza, Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança, Pela branda melodia do rumor dos regatos, Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia, Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos, Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria, Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes, Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos, Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes, Pelos aromas maduros de suaves outonos, Pela futura manhã dos grandes transparentes, Pelas entranhas maternas e fecundas da terra, Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra, Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna, Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz. Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira, Com o teu esconjuro da bomba e do algoz, Abre as portas da História, deixa passar a Vida!6 Não será esta uma boa maneira de escrever sobre a Mulher? Coimbra, 31 de Março de 2003, precisamente 11 dias depois da guerra ter começado. Isabel Lopes Delgado Docente da Escola Superior de Educação de Coimbra

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Poema de Natália Correia publicado em DRUJBA – AMIZADE, revista da Associação Portugal – Bulgária, Julho/ Setembro de 1989.

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Capítulo II – AS MULHERES E A PAZ

AS MULHERES, A PAZ E O FUTURO

Como antever um futuro mais pacífico? Será um sonho, neste "pós-11 de Setembro" cujas consequências ainda não conseguimos superar? E qual o papel das mulheres – mais de metade da população - na evolução mundial? Se pensarmos que foram precisos séculos e séculos para chegarmos aqui, que as mulheres conquistaram uma igualdade de direitos que, afinal, é mais teórica do que real, teremos de concluir que muito resta por fazer para a igualdade das mulheres na sociedade. É que, se a liberdade e os direitos que temos são o resultado da luta de milhões de mulheres, é também verdade que outras tantas, ao longo da História, tiveram de abdicar dos seus direitos, muitas vezes para tornarem possível a afirmação dos homens que as acompanhavam. Não esqueçamos, por exemplo, que até ao século XX as mulheres quase não figuravam na literatura e eram levadas a escrever, frequentemente, com nomes masculinos. Ao longo de séculos da História mundial, as mulheres pouco figuraram na pintura e, no cinema, só agora começam a aparecer por trás das câmaras. Ao longo de séculos, as mulheres apagaram-se no anonimato, vestiram-se de homens, como Joana d'Arc, para combater, usaram nomes falsos para se poderem afirmar. Neste início de século XXI, num mundo marcado por problemas como a violência, os fluxos migratórios e a pobreza, em suma, pela globalização, as mulheres têm um papel essencial na prevenção e solução dos conflitos mundiais. No Parlamento Europeu, onde trabalho, a Comissão dos Direitos da Mulher tem-se debruçado sobre a participação das mulheres nos conflitos armados e nos processos de paz, mas também sobre uma globalização que as afecta particularmente. Mas terão as mulheres, afinal, um papel específico a desempenhar? Tudo parece indicar que sim. Embora não me agradem certos "estereótipos” segundo os quais as mulheres têm uma forma diferente de estar na política – mais sensível, mais sentimental – não há dúvida de que os papeis homem-mulher na sociedade estão ainda compartimentados. São ainda as mulheres que se ocupam da maior parte das tarefas domésticas e dos filhos, embora, felizmente, as coisas tendam a mudar. Mas, creio, só no futuro se verão os resultados. Até lá, temos de reconhecer que as mulheres têm, forçosamente, uma visão mais prática, mais realista, da política e da vida em Acção Jovem para a Paz 2003

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geral. De certa maneira, não estamos longe do tempo em que uma sufragista americana afirmava, em 1915, que “os homens são demasiado emocionais para votar. É o que demonstra o seu comportamento nos jogos de basebol e nas reuniões políticas, tendo também uma tendência inata para recorrer à força, os que os torna pouco preparados para estarem no governo”. De resto, são as mulheres as primeiras vítimas da guerra, juntamente com as crianças. São as mulheres as vítimas do tráfico de pessoas, um problema que se coloca actualmente na Europa e que se traduz na prostituição de milhares e milhares de mulheres e jovens de países da Europa Central, da África, da América Latina. Também sobre este tema a Comissão dos Direitos da Mulher do Parlamento Europeu se tem pronunciado repetidamente. O fenómeno da imigração – geralmente a consequência das crises mundiais, da pobreza, dos conflitos armados, dos casamentos forçados – desdobra-se num emaranhado de problemas que se fazem sentir um pouco por toda a parte. Ainda no Parlamento Europeu, as mutilações genitais femininas e a lapidação de mulheres têm sido tema de relatórios. Na Comissão dos Direitos da Mulher, onde sou responsável pela informação aos jornalistas e ao público em geral, há deputados – quase sempre mulheres – que trabalham para melhorar a situação das mulheres na Europa e no mundo. As deputadas portuguesas que nela participam têm desenvolvido um trabalho continuado, no plano jurídico e não só, para afirmar os direitos das mulheres nos Tratados da União Europeia. Insistem quotidianamente nos problemas de pobreza e exclusão que afectam as mulheres, analisando a aplicação prática dos programas comunitários. Defendem uma melhor situação laboral para as mulheres e, a propósito de um relatório sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, apresentaram diferentes propostas, focando a situação portuguesa face à problemática do aborto. São posições que se situam, por vezes, em quadrantes políticos diferentes. Mas todas elas contribuem para lançar o debate e fazer progredir a condição das mulheres. E o que dizer dos jovens e, sobretudo, das jovens? Através de movimentos e associações como a "Acção Jovem para a Paz", eles têm um papel determinante, porque lhes cabe construir um futuro mais igualitário, mais justo, menos violento. Quando, em 1999, estive na ONU para participar na preparação da reunião "Pequim+5, Mulheres 2000", que fez o balanço da Plataforma de Pequim sobre os Direitos das Mulheres, um movimento de jovens do Canadá, de Washington e de outros pontos dos Estados Unidos, para além de um amplo sector da Amnistia Internacional, mobilizou jovens de todo o mundo para fazer ouvir as suas reivindicações. Assiste-se actualmente, em todo o mundo, à multiplicação de associações e organismos que lutam pela igualdade de direitos. Poderia até parecer desnecessário ter de se lutar por uma igualdade que nos parece tão evidente no início do século XXI. Mas a verdade é que essa igualdade está ainda longe de se fazer sentir na vida diária. Creio que quando mulheres e homens

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tiverem um papel mais equilibrado na sociedade, no trabalho, na política, nas empresas, na educação e cultura, o mundo será melhor, mais pacífico. Mas essa evolução tem de passar por todos nós, tem de se ir construindo dia-a-dia, passo a passo. Citando de novo uma feminista americana da nossa época, “as mulheres não estiveram na Última Ceia, mas estarão certamente na próxima”… Bruxelas, Janeiro de 2003 Eva Bacelar Funcionária do Parlamento Europeu

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T AIS

Sou o algodoeiro, um arbusto de folhas dum verde tão suave, nascido numa horta fértil das montanhas de Timor. Cresci ao som do canto dos pássaros, regado pelas chuvas, humedecido pelo orvalho, aquecido pelo calor do sol, acariciado pelo vento e cuidado por mãos rudes da dura labuta do quotidiano, mas cheias de carinho. Quando comecei a florir olharam-me com ternura. Depois vieram os frutos, que mais tarde já maduros, foram colhidas com alegria pelas mesmas mãos rudes. Fiquei muito triste com a nossa separação, mas achei melhor assim, apesar de saber que iriam estar sujeitos a vários processos de transformação muito dolorosos. Levaram os meus frutos e colocaram-nos numa grande esteira, feita com folhas de palmeiras, para secar ao sol. Com as mãos tiraram-lhes as cascas, ficando o algodão, com as sementes, continuando a secar durante duas ou três semanas. Para descaroçar usaram dois paus médios e bateram no meu algodão, durante cerca de várias horas. Escolheram depois, a parte mais branca e mais resistente, destinando-a à confecção dos fios. Levaram o algodão de novo ao sol. Em seguida, num lugar protegido, colocaram o meu algodão sobre uma esteira. À parte separaram uma porção já desfiado, para afastar as fibras do algodão, mexendo a corda do arco de desenriçar, que depois era enrolada com a palma da mão, formando pequenos cilindros prontos a serem fiados. Para que o fio fique sempre com a mesma grossura, utilizaram o fuso para a fiação, exercendo força nos dedos da mão direita, orientando o movimento giratório do fuso, enquanto se estica a mão esquerda, de modo que o fio se vá envolvendo no fuso e formando uma bola. Mediram a quantidade do fio para a confecção da peça que desejaram enrolando-o numa peça de madeira comprida atravessada nas duas pontas por pequenas peças grossas de madeira perpendiculares.

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Depois de constituírem as meadas necessárias assim enroladas, foram retiradas para serem tingidas. Mas antes, foram lavadas e depois de secas, bateram-nas com uma pequena haste, evitando de ondearem. Colocaram-nas numa armação, para ficarem esticadas. Separaram os fios em pequenas porções, enrolando-os fortemente com fibras de palmeira, nas faixas que não pretendiam tingir, de modo a formarem o motivo pretendido. Depois de tingidos, retiraram as fibras de palmeira. Montaram as meadas no tear, com os fios apertados entre si por pequenos pedaços de bambú, conservando-os na posição perfeita, evitando assim que o desenho tingido não se deformasse. Os fios foram esticados sucessivamente entre os dois cilindros do tear, de maneira que durante a tecelagem fossem passando em volta deles, até formarem a peça de tecido, que depois de estar pronto o chamaram de TAIS. Sinto-me orgulhoso por o meu algodão, tão frágil, com muita paciência ter conseguido enfrentar tantos sacrifícios, para hoje se tornar tão importante e valioso, desde agasalhar as pessoas, tomar parte nas cerimónias tradicionais, tornar-se comerciável, conhecido e admirado por diferentes pessoas de outros países. Só por isso vale a pena lutar e resistir. Fátima Guterres Ex-guerrilheira timorense

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UM MUNDO MELHOR NO AFEGANISTÃO? AS MULHERES DE RAWA

“Um Mundo Melhor”... Como posso contribuir para este tema? Quando estava a pensar nisto, encontrei uma entrevista com uma mulher que trabalha para a RAWA, uma associação de mulheres do Afeganistão. Esta entrevista foi muito impressionante para mim. A mulher Desenho da autoria de Sarah Czubak (voluntária alemã na AJP).

entrevistada da RAWA contou um pouco do seu trabalho na RAWA e o que elas fazem. Eu percebi bem que esta

organização estava e está a fazer muitas coisas muito importantes para o seu país e para um mundo melhor. Antes de me ocupar deste tema pensei que as mulheres afegãs não podiam fazer nada para combater os Talibãs. Mas agora sei um pouco mais sobre isto e sei que é possível. Especialmente quando parecemos muito frac@s e desamparad@s. Todos os povos do mundo podem fazer ou tentar alguma coisa para fazer o Mundo um pouco Melhor. O que é a RAWA? A Associação Revolucionária da Mulher do Afeganistão (RAWA) foi fundada em 1977 em Kabul. Tem sido uma organização política e social independente de mulheres que defende os direitos humanos e a justiça social no seu país. RAWA é uma organização fundada por mulheres só para mulheres. Significa que só mulheres podem ser membros da RAWA. Este facto não significa que RAWA tenha uma posição “anti-homens”. RAWA precisa da ajuda dos homens e há muitos que querem ajudá-las (por exemplo, homens das famílias dos membros da RAWA ou homens que simpatizantes com os objectivos da organização). Mas estes homens não são membros. Só ajudam. Muitas mulheres que trabalham para RAWA estiveram antes em escolas no Paquistão fundadas pela RAWA onde as raparigas se foram preparando para o seu trabalho na RAWA. Elas aprenderam coisas sobre a RAWA, os objectivos dela e coisas sobre democracia, direitos das mulheres, etc. Quando saíram da escola, viveram em casa em conjunto com outras mulheres

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jovens. Receberam as suas primeiras missões. Assim foram sendo incluídas na RAWA. Algumas ficaram no Paquistão e outras voltaram para o Afeganistão para trabalhar ali. Em 1978/79 os Soviéticos ocuparam o Afeganistão. Com este novo governo, as actividades da RAWA alastravam. Os afegãos entraram em guerra, na resistência contra a potência russa ocupante. Mas ao contrário da resistência dos “combatentes da Paz” islâmicos, RAWA combateu pela democracia e contra a repressão política. Neste tempo a influência da RAWA cresceu. Durante a ocupação Soviética, a RAWA distribuiu panfletos anti-soviéticos e organizou manifestações e greves em escolas e universidades. Membros da RAWA foram mandados para o Paquistão para trabalhar em campos de refugiados, estabelecidos pela RAWA. Elas construíram escolas e um hospital para crianças e mulheres refugiadas. A RAWA também publicou e distribuiu “Payam-e-Zan” (Mensagem de mulheres) e encorajou mulheres a contribuir para a resistência, apesar da oposição fundamentalista. Após a queda do governo-marionete soviético em 1992, grupos fundamentalistas islâmicos invadiram Kabul. Primeiro vieram os “Mujahiddin” e depois os Talibãs. Neste tempo, a RAWA especializou-se em exigir o respeito pelos direitos humanos, pelos direitos das mulheres, lutou contra a desigualdade entre mulheres e homens e expôs os actos bárbaros dos fundamentalistas. No Afeganistão as mulheres começaram a esconder câmaras e máquinas fotográficas dentro das suas “burkas” e assim documentaram execuções públicas e punições que foram parte do seu diaa-dia. Tentaram falar com vítimas da violência dos Talibãs (vítimas de roubo etc.) para ajudar, apoiando-as e encorajando-as. A RAWA organizou escolas em casas privadas para crianças no Afeganistão, porque com os Talibãs as crianças não podiam ir à escola. Só aos meninos era permitido frequentar escolas islâmicas, dirigidas pelos Talibãs. No Paquistão, as mulheres da RAWA continuaram o trabalho nos campos de refugiados, nas escolas para meninas e meninos e nos cursos de tapeçaria e organizaram manifestações contra os Talibãs. Todo o trabalho foi muito perigoso. Se uma pessoa fosse presa pelos Talibãs, podia ser maltratada e também executada. As mulheres de RAWA sabiam deste perigo, por isso foram muito corajosas e tiveram muito cuidado no seu trabalho. No Paquistão, a situação também era difícil porque a polícia simpatizou com os Talibãs e isso dificultou muito o seu trabalho. Muitas vezes, tiveram de usar nomes falsos e de se esconder. Agora, a situação no Afeganistão é muito difícil. Há um presidente – Hamid Karzai – que deveria orientar os destinos do país a partir de Kabul, mas há muitos entraves ao seu governo. Entre eles, por exemplo, inclui-se os “Warlords” (“Príncipes de guerra”) que detêm o poder nas várias províncias. Fora de Kabul, as frases do presidente não são válidas. Para os “Warlords”, a coisa mais importante é a manutenção do seu poder. E eles conseguem mantê-lo com a ajuda de

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soldados e armas financiados com o dinheiro do comércio de drogas, contrabando, etc. Alguns também estão dispostos a combater contra o presidente, se ele os “aborrecer”. No caso de haver conflitos com as províncias vizinhas estes são resolvidos com armas também. A reconstrução não faz progressos e este é o motivo principal porque muitas pessoas ainda não viraram as costas aos “Warlords”. Eles têm trabalho e pagam mais do que o governo do presidente. Sem a tropa de protecção internacional, o Karzai não conseguirá impor as estruturas do governo em todas as províncias e tirar o poder aos “Warlords”. Sem as tropas de protecção talvez a guerra deflagrasse novamente por toda a parte no Afeganistão. Portanto, o país ainda está em guerra, na guerra dos “Warlords” e na da reconstrução. Hoje, no Afeganistão as actividades da RAWA incluem o apoio às vítimas femininas da guerra e de outras atrocidades cometidas pelos grupos beligerantes. Divulga as suas lutas através de informações publicadas na “Mensagem de Mulheres” e alerta as sentinelas dos direitos humanos, como a Amnistia Internacional e organizações similares, sobre as violações dos direitos humanos cometidos contra mulheres. A RAWA também concede apoio psicossocial, transporta vítimas e crianças de famílias traumatizadas para o Paquistão para tratamento médico e reabilitação, na esperança de que estas tenham uma melhor educação. Procura mulheres desaparecidas, assiste famílias em fuga vindas de campos de batalha e de áreas afectadas por desastres naturais, ajuda a realojá-las em lugares mais seguros. Proporciona a estas famílias meios de subsistência básicos e tenta facilitar a sua integração. No Paquistão também fazem muitas coisas. As actividades principais são nos campos da educação, na saúde, nos direitos humanos e na cultura. A RAWA administra escolas primárias e secundárias para crianças refugiadas, dirige cursos de alfabetização para mulheres, coloca lá professores e fornece materiais para as crianças. Também construiu dois orfanatos para menin@s. Tem grupos móveis de saúde que são activos principalmente nos campos de refugiados. Gere também um hospital em Quetta, mas este está à beira de ser fechado devido a problemas financeiros. Informa também diversos grupos e fornece informação aos media e publica relatórios sobre actos desumanos. Todos estão disponíveis na Internet. RAWA produz peças teatrais e sátiras com uma mensagem anti-fundamentalista. Dirige distintos círculos sociais onde @s participantes são esclarecid@s sobre os conceitos dos direitos da mulher, etc. Para o futuro, a RAWA tem muitos planos. Quer estabelecer escolas modernas com novas possibilidades para ensinar @s alun@s. Acha que a educação é muito importante para as mulheres pois tornam-se conscientes dos seus direitos, do seu lugar na sociedade, de saber sobre os problemas sociais e políticos no

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Afeganistão. Esta educação inclui também cursos de informática para menin@s e mulheres, cursos de língua inglesa, etc. Para receber mais informações sobre a RAWA ou para saber como é possível ajudar RAWA contactem-nas através do endereço no fim deste texto. Os objectivos mais importantes da RAWA: !

Lutar contra todos os tipos de fundamentalismos

!

Estabelecer a liberdade, democracia, paz e direitos da Mulher no Afeganistão

!

Estabelecer um governo eleito e secular baseado em valores democráticos

!

Unir todas pessoas que amam a paz e força democrática a lutar contra todos os que cooperarem com os fundamentalistas

!

Lutar contra os traidores que querem desintegrar o Afeganistão e causar guerras de tribos e de religião

!

Estabelecer projectos de educação, de cuidado de saúde dentro e fora do país

!

Apoiar os movimentos que amam a Paz no mundo todo Esta é uma mensagem de uma das mulheres de RAWA que recebi quando pedi a sua

opinião sobre este tema: “RAWA crê fortemente que o fundamentalismo de qualquer tipo é a maior ameaça para as mulheres em todo o mundo e especialmente nos países islâmicos. Os fundamentalistas têm poder e estão em países como o Afeganistão há muito tempo, isso tem significado que não há paz, estabilidade nem democracia. Especialmente a nossa dura experiência no Afeganistão mostra que os fundamentalistas são o maior obstáculo para a restauração dos direitos das mulheres e da democracia. Nós achamos que só uma sociedade baseada na secularização pode assegurar os direitos das mulheres e preparar o caminho para a liberdade, democracia e justiça social. Para um mundo melhor, especialmente nos países islâmicos, as pessoas devem combater juntas o fundamentalismo que é um susto de vergonha na testa da Humanidade no amanhecer do século XXI e um símbolo da escuridão.” Contacto: Revolutionary Association of the Women of Afghanistan (RAWA) Endereço: RAWA, P.O. Box 374, Quetta, Pakistan Telemóvel: 0092-300-855/638 Fax: 001-760-2819855 E-Mail: [email protected] http://www.rawa.org Kathrin Tacke, 21 anos, Voluntária alemã na AJP Acção Jovem para a Paz 2003

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TOLERÂNCIA

Penso que para construirmos um Mundo Melhor devemos começar na nossa casa a praticar a TOLERÂNCIA (cf. dicionário: admitir sem reacção defensiva; atitude que consiste em deixar aos outros a liberdade de exprimirem opiniões que julgamos falsas e de viverem em conformidade com tais opiniões; condescendência; indulgência). Pensemos: devemos educar as crianças, transmitindo-lhes princípios morais e cívicos, mas com os adultos devemos ser tolerantes. E cada adulto pense em melhorar a cada hora a sua maneira de pensar/agir. Figueira da Foz, 8 de Março de 2003 Tareca

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Capítulo III – PAPÉIS DAS MULHERES EM DEBATE

ONDE ESTÃO AS HISTÓRIAS FEMININAS?

Um mundo melhor é talvez a utopia de todas as pessoas que acreditam na mudança e nas novas possibilidades de uma humanidade solidária e livre de preconceitos. Mas se a mudança é tão necessária para alcançarmos este mundo melhor, por que então a tememos? Tememos entre outras coisas porque, ao imaginarmos a mudança, não temos a certeza se será realmente para melhor, a despeito de não estarmos satisfeitas com este mundo. E esta dúvida pode ser imobilizadora e muito convincente de que é melhor nos adequarmos a este mundo, do que arriscarmos a querer um mundo realmente melhor, aliás este sempre foi o argumento. Mas a dúvida e o risco que tentam desvanecer nossos sonhos podem também nos encorajar a torná-los realidade. Podemos e temos direito de sonhar e lutar para que o mundo no futuro tenha outra história e antes de tudo, que a história deste mundo melhor seja uma história onde as mulheres possam ser também protagonistas. Não queremos mais que o nosso protagonismo seja ocultado por papéis de coadjuvantes, isso não nos basta mais. Estamos cansadas de ouvir as histórias sobre imperadores, governadores e soldados, sobre revolucionários e heróis e até sobre homens de bem... São todas histórias masculinas demais para serem consideradas verdadeiras. A história até agora foi contada pela metade. E se esta é apenas uma parte da história, onde estão as histórias femininas? Porque até agora, as histórias contadas onde as mulheres eram protagonistas, elas estavam disfarçadas de homens, ocultando toda a fortaleza feminina, e ao final foram queimadas em fogueiras para servir de exemplo, tal como foi Joana D’Arc. Ou então, foram histórias de santas, abnegadas e até de virgens imaculadas. Qual a verdadeira mensagem dessas histórias? Mas se não queremos o papel de santa ou de heroína queimada, que outras histórias poderemos contar, que outros papéis nos cabem desempenhar? Como poderemos resgatar e construir histórias “sem cortes”, onde as heroínas possam sobreviver? Como contar as histórias das mulheres que, descontentes da opressão que as cercava, foram à luta, disseram não ao preconceito e provaram que as verdadeiras histórias por mais silenciadas que tenham sido ou

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venham a ser, são histórias de dignidade, de resistência e de coragem, em busca de um mundo melhor, mais justo e democrático. Queremos ser e viver como mulheres, desempenhando papéis neste mundo melhor, desenhados conforme nossa perspectiva de mundo e de dignidade, e não conforme a autoritária perspectiva masculina que tentar impor padrões de comportamento e de subalternidades. Nesta medida, para se construir una história de um mundo melhor, é preciso reformular muitas ideias e conceitos, sendo a perspectiva da maternidade a primeira a ser reformulada. Não tencionamos mais ser apenas um “terreno fértil” ou um “terreno infértil” onde pode germinar ou não, a “semente masculina da vida” ou apenas o prémio para o valente e forte espermatozóide que venceu a competitiva corrida e rompeu o bloqueio inerte e passivo, para se transformar em vida. A semente masculina é apenas uma parte da semente da vida. A concepção é um processo democrático e a maternidade, em última análise, é um activo processo de concepção da vida humana. Por outro lado, a ideia do corpo e do prazer deve ser dissociada da ideia do pecado e da perversão. Mulheres e homens têm o mesmo direito ao sentido de liberdade e de integridade moral nas relações com o corpo e com prazer, individual ou partilhada, assim como a ideia que ronda estes conceitos não pode estar ancorada em padrões físicos, etários, sexuais e raciais. No que se refere à questão do trabalho, a competência e o reconhecimento das mulheres, não podem mais estar sujeitas a um traje masculino ou a pequenas saias, que em ambos os casos são símbolos do poder masculino. A competência e o reconhecimento devem ter por base o desempenho, e a igualdade de acesso e de oportunidade de desenvolvimento profissional, criando novas concepções, valores, qualidades e até uma nova ética em torno da ideia de líder e liderança. O mundo do trabalho não é apenas um mundo masculino é também um mundo repleto de simbolismos masculinos que naturalizam as hierarquias entre géneros e condicionam comportamentos, prioridades e visões sobre o trabalho. Com isso não queremos dizer que as histórias devam ser somente femininas, pois correríamos o risco da mesma arrogância e opressão a que fomos submetidas e ocultadas desde sempre. As histórias sobre um mundo melhor devem ser histórias com um elenco de mulheres e homens, protagonistas e coadjuvantes, sem estereótipos de papéis, de carácter ou comportamento. Um mundo melhor é talvez um mundo mais democrático, onde as relações entre mulheres e homens, seja a que nível for, sejam também relações mais democráticas. Allene Lage Brasileira, 40 anos, professora da Universidade Santa Úrsula no Rio de Janeiro

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BARREIRAS

Esses dias recebi uma carta de uma revista convocando voluntários para manifestarem-se sugerindo alternativas para a construção de um mundo melhor. Achei a ideia excelente! Primeiro, por tratar-se de um convite aberto a todos os interessados, independentemente da formação ou sucesso literário do mesmo. Segui lendo a carta. Falava em pluralidade, em um mundo mais pacífico e mais justo. Perfeito, pensei! Um mundo mais humano. Muito bom! Mais feminino. Ops! Em primeiro lugar, gostaria de dizer que acho a iniciativa louvável, podendo contar com todo meu apoio. Porém, antes de qualquer coisa, é preciso ter muito cuidado com o que desejamos. Ou com a forma que desejamos. Será que, ao planejarmos a construção de um mundo mais feminino, já não estamos praticando uma forma de exclusão? Não me compreendam mal. Concordo que a mulher tem sido discriminada durante muitos séculos, e que continue sofrendo violência, abusos e privações até os dias de hoje. Mas será que uma das barreiras que mais nos limita é a própria distinção do feminino, a ideia de que somos diferentes dos demais? Será que não estamos nos limitando ao supor que carinho, justiça e compreensão são exclusividades femininas e que, para que um homem possa compartilhar afeto, tenha de se “feminilizar”? (Não negue que você já se pegou fazendo comentários maldosos diante de um homem com maneiras mais delicadas, ou que o primeiro presente que você daria a um filho homem seria uma bola de futebol). Sim, somos diferentes. Mas será que por isso somos melhores? Não nos esqueçamos que mulheres também podem ser mesquinhas, extremamente competitivas, dissimuladas e até cruéis. Será que vale realmente à pena lutar por um mundo mais feminino? Por que não começamos a lutar pela igualdade quebrando nossos próprios mitos, aceitando nossa própria condição de iguais? Será que temos que lutar porque somos mulheres e sofremos preconceito ou simplesmente porque ainda existem os preconceitos? Então, caras amigas, é isso que lhes proponho: vamos lutar por um mundo mais justo, onde todas as mulheres possam gozar plenamente de seus direitos não por serem mulheres, mas simplesmente por serem seres humanos. Vamos eliminar as definições que conhecemos do feminino e do masculino. Vamos lutar para que a sensibilidade, a doação e o amor ao próximo passem a ser de domínio público, deixando de ser vistas como características femininas. Só então, teremos um mundo melhor, “apartidário”.

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Vamos, sim, lutar por um mundo mais justo. Mas não lutemos por homens ou mulheres, masculinas ou femininos. Definições, como o próprio nome diz, são definitivas e definidoras. E, portanto, cerceadoras de nossa liberdade. Taís Regina da Silva Chaves 22 anos, Porto Alegre – Brasil

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MENSAGEM: Para ti mulher, minha amiga minha irmã, que transportas no peito tal como eu o sonho da esperança, a claridade das palavras, a construção de um mundo novo, tal como se fosses uma criança que abre os olhos assumindo pela primeira vez um compromisso com a vida. Contigo trazes já um desafio; o dealbar de algo novo que se traduz num impulso que te impede de ficar estática frente à luta, e como um rio corres nos matizes azuis, rumo ao mar e ao futuro. Imperfeita sim, (como somos imperfeitas) mas a perfeição não é fácil, porém também não existem respostas impossíveis, e bem sabemos que constantemente elas nos colocam à prova dia após dia, momento após momento, mas é preciso seguir em frente sem esquecer os princípios mais fortes e mais nobres que devem guiar todo o ser humano na caminhada que se propõe realizar, nesta passagem tão curta, mas onde indelevelmente deverá deixar gravado a fogo, a força do seu ideal numa abertura poderosa ao mundo hospedando no teu seio laços de amor e de enraizamento, fome insaciável de saber encontrando quando procuras e encontrando-te quando te buscas no tempo e no espaço. Transportas contigo o desejo, a ternura, o amor, o sentimento de partilha, as raízes de toda uma vida não vazia, porque essa imolá-la-ias na pira da solidão e nas esquinas escorregadias da rua onde escondes o rosto de muitas noites, conhecendo apenas a leveza das coisas, o viver sem horizontes, mergulhada no hiato incolor do indizível, mas sim uma vida que é calor uterino e que é cordão umbilical, que te liga ao local da tua origem. No fundo dos teus olhos deverá brilhar sempre a chama da paixão, os momentos gratos de recordar, libertos de sombras trazendo para a luz a força de querer traçar um caminho para que toda a tua vida valha a pena ser vivida. Todos os momentos são feitos de cansaços; são cansaços feitos de alegria e de tristeza, mas saboreia-os ontem como hoje, com esse gosto agridoce que é sabor de mel e amargura. Deixa a tua alma mergulhar na proximidade das coisas, cujo contacto te envolve e te acaricia na sua imediatidade, profundamente, suavemente... O que viveste é a colcha de retalhos que colocas no teu leito de mulher e que pacientemente teceste, unindo pedaço após pedaço, alguns coloridos deslumbrantes até, outro cinzentos embaciados de lágrimas choradas, mas sempre mesclados de partículas que se tornam eternas pela força do pensamento, e se presentificam pelo poder do teu coração. Não és apenas tu, a tua individualidade, dentro de ti agitam-se rostos contornos, marcas de caminhos que se entrelaçaram no teu e que ressurgem vigorosos com o seu bafo benfazejo. Se a alma no seu movimento de ascese aspira a uma existência superior, tu mulher numa ida ao fundo de ti mesma aspirarás também ao sentimento maior de saber que és pertença, que és caminho, que és morada e que envolves com os teus braços toda uma planície de luz, de

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liberdade e de paz, banhada pelo sol e pelo água que são e alimentam a vida. Não olhes apenas em frente, se o fizeres facilmente serás ofuscada e esquecerás que possuis um passado, uma origem, que desenvolveu todo um enraizamento e senão quiseres procurar por ele, é porque de algum modo olvidaste que um dia foste feliz, é porque esqueceste na aridez do presente, os anseios mais ocultos e fortes que sempre aninhaste no teu peito. Estarei sempre a teu lado para te ajudar, para te estender a minha mão, para lutar contigo nas praças e nas ruas, nos caminhos mais recônditos, nas horas mais trágicas, ou nas transbordantes de alegria, dessa alegria que não cabe em nenhum lugar, e inunda tudo o que está à tua volta. Se caíres levanta-te, porque o chão é apenas o lugar em que feriste as tuas mãos e o teu rosto, se deste chão brotam as coisas maravilhosas que a natureza te dá, brotará também uma mulher mais fortalecida, mais lutadora e poderosa, sem contudo abdicar dos sonhos que sempre comandarão toda a tua vida, te conduzirão ao lugar que desejas, e ao qual pertences por direito próprio. Busca a tua felicidade na entrega aos outros; aos mais desfavorecidos, aos mais necessitados de uma palavra, de um gesto e de um carinho. Estar na vida e no mundo é fazer parte dessa vida e desse mundo, que pretendes tal como eu mais justo e mais equilibrado. Se o diamante estiver em bruto, lapida-o com as tuas mãos e verás como o seu brilho, é o sinal de um novo tempo, de uma nova era. de uma outra mulher

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“EU, PHOOLAN DEVI”

A história de Phoolan Devi inspirou Shekhar Kapur, um dos mais conhecidos realizadores do cinema indiano, que lançou o filme “A Rainha dos Bandidos”. Analfabeta, como a maior parte das mulheres de castas inferiores da Índia, gravou a sua autobiografia que foi posteriormente editada. Foi eleita e reeleita para o parlamento hindu. Esta lenda dos nossos tempos nasceu em finais dos anos 50, em Gurha Ka Puruti, uma remota aldeia do Estado de Uttar Pradesh, no Norte da Índia. Não sabia ao certo a sua idade, mas pensava ter sido aos 11 anos que a família entregou-a a um homem com 35 anos, em troca de uma bicicleta e uma cabra. Foi maltratada e violada. Numa atitude de total insubmissão, fugiu e regressou à casa dos pais. Foi expulsa e repudiada pelas pessoas da aldeia, já que tal decisão era impensável, vinda de uma mulher pobre da Índia. Tempos depois, um primo denunciou-a à polícia por roubo. Foi espancada e violada na esquadra. Após a libertação, seguiu grupos de ladrões que cometiam pequenos roubos, especialmente nas aldeias dominadas pelos clãs takhures. Eram conhecidos como dacoits. Após ter sido sequestrada por outra quadrilha de ladrões, acabou por conhecer Vikram, o seu grande amor e posterior líder do bando. Vikram rebelou-se contra o seu chefe, matando-o e libertando Devi. Durante alguns anos, o casal passou a actuar em grupo contra os latifundiários de castas superiores, causando verdadeiro terror na região. Outro episódio marcou profundamente a sua vida. Em 14 de Fevereiro de 1981, à frente do seu bando, eliminou 22 homens da aldeia de Behmai. Um ano antes tinha sido sequestrada por um bando rival de takhures, ficando retida durante um mês, sendo sistematicamente violada pelos habitantes da povoação de Behmai. Posteriormente libertada, após ser publicamente despida e humilhada, Phoolan prometeu vingar-se. Os takhures nunca esqueceram o seu retorno à Behmai, liderando o bando com faixas vermelhas na testa. Os homens que a tinham molestado foram sumariamente assassinados. Assim nasce a mais temida personagem feminina da recente história da Índia. Em 1981 morre Vikram, entre outros importantes membros do bando. Procurada em todo o país, negociou a sua rendição com o exército em 1983. No dia em que se entregou, cerca de dez mil camponeses concentraram-se para aclamar e invocar Durga, a deusa sinónimo de luta contra a injustiça.

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Em 1994 foi libertada. Nunca mais voltou à situação de miséria. A sua popularidade levoua a diversas conquistas, entre as quais o casamento com um construtor abastado e às eleições no estado de Uttar Pradesh em 1996, numa lista do partido socialista de Samajwadi. Phoolan Devi foi assassinada em Agosto de 2001. Entre as controversas versões da sua morte (vingança dos takhures ou crime cometido pelo próprio marido), ficam as páginas da sua autobiografia – “Eu, Phoolan Devi” – editada em português. Mais que uma surpreendente história pessoal, Phoolan Devi deixa registado o relato de exploração e discriminação que atinge milhares de mulheres anónimas do seu país. Mulheres sem direitos e sem a sua inigualável capacidade de resistir. Carolina Brasileira e portuguesa, 39 anos, membro da Cooperativa Mó de Vida.

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“UMA FATIA DE VIDA” CONVERSA COM A SENHORA CELESTE ANTUNES Pronto, mas tem que ser a falar... - Não... Escrever também... Pensamos mais... A falar, sai como sai, e pronto... - É isso... mas juntam-se muitas coisas, a falar, juntam-se muitas coisas... (suspiro) Por exemplo, como ir para escola, ficar sem meu pai, ficar na companhia da minha mãe. - Foi à escola então? - Fui à escola, até à quarta classe. Eu saí da quarta classe, fui logo servir... - O que é servir?

- Boa tarde Celeste. Como já lhe tinha explicado, vamos começar com a nossa entrevista para aquela revista sobre o que pensam as mulheres sobre o nosso Mundo e como elas vêm um Mundo diferente, outro Mundo... Se não se incomodar, queria começar com um resumo rápido da sua vida... que eu sei bem cheia... mas acho que é preciso contar... não? - Pois... Acerca desses temas todos, a pessoa devia dar uma coisa a...

- Patrões... trabalhar doutros...

ter patrões... por conta

- Numa empresa? - Não, a tomar conta de crianças, bebés... Com 14, 13 anos eu já estava a fazer isso tudo. - E quanto é que ganhava? - Nesta altura, ganhava acho que eram 10 escudos por mês. Mas era muito dinheiro! - Em que ano? - Oh, Jesus... Sei lá... Então, com 14 anos... que Acção Jovem para a Paz 2003

idade é que eu tinha? Se nasci em 41... Portanto, 1955 por aí... Pois a partir daí, pronto, depois saí dessa casa, desses senhores...fui novamente trabalhar para outra casa... - Aqui em Coimbra? - Na Mealhada, na zona forte do trabalho, a cavar vinha, a semear batatas, a criar animais. O que é uma coisa bastante pesada para a minha idade... que era aquela idade que eu tinha. A partir daí comecei a namorar. Depois casei aos 18 anos, mas continuei na mesma a trabalhar, a trabalhar, a trabalhar, sempre na mesma. A partir deste momento, começaram a nascer os filhos. Nasceu a minha filha mais velha, logo em... Quê? Ela tem 40, eu acho que a tive aos 19, a mais velha. Depois aos 20, logo outra. Depois foi uma vida muito privada porque o meu marido não queria trabalhar. Eu sempre a trabalhar ao mesmo tempo. Eu sozinha a trabalhar para os dois filhos. Naquela altura eram aqueles dois, depois o ano a seguir, em Março, nasceu logo outra… que é a minha menina deficiente. Portanto, nasceu deficiente, foi internada até os 15 anos de idade,

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detectou-se uma paralisia cerebral. (...) Depois a vida começou a... pronto, comecei a ficar com mais experiências de vida porque comecei a trabalhar já com aquela ânsia de ter filhos para orientar... Entretanto, eles foram para a escola e eu tinha que ganhar para eles todos. Praticamente o pai nunca se incomodou com eles. Precisamente por isso depois é que ele se suicidou, porque a vida para ele não teve sentido nenhum. - Mas ele não trabalhava mesmo nada? - Trabalhava pouco. E o pouco que trabalhava também era só para o vinho, para os amigos. Não tinha modos nenhum em casa, com as pessoas, não falava com as pessoas como devia ser. - Então apaixonou homem?

porque se por aquele

- Não sei. Calhou assim. Pois calhou. Depois fiquei viúva. Ao fim de 21 anos de casada! Fiquei sozinha. Depois passado 5 anos, casei a segunda vez. Aonde eu estava muito bem. Não me faltava nada. Mas sempre a trabalhar, nunca deixei o trabalho. Vim para a Brasileira de Coimbra. Estive lá 18 anos. Entretanto trabalhava na Brasileira, à noite ia para casa e fazia a minha vida normal. Tinha o meu marido que era guardalivros na Triunfo, que vinha

todos os dias, limpo, impecável. Todos os dias, impecável para o serviço. Com os filhos, também dava já um bocado de trabalho, com o mais novo. Porque depois já tinha o mais novo e outros. Os outros já estavam todos arrumados. A partir deste momento, as pessoas começam a conviver com outras pessoas, começam a ter novas convivências, amigas... amigos... A vida vai assim mais elevada... Depois tornei a ficar sozinha. Fiquei viúva novamente. Morreu o meu marido. Esta segunda vez... depois de eu estar bem, bem, bem... é que fiquei sozinha. Daí para a frente, tem sempre tudo corrido mal... (silêncio) Não tive mais experiências, nada... porque não dá. Não vale a pena tentar mais nada. Mas o trabalho é uma das coisas que sempre segura, é o trabalho. (...) Trabalhar é sagrado. Tem que se trabalhar porque se a gente deixar de trabalhar... então se já que não tem nada... a partir do momento que deixa de trabalhar, então é que não tem mesmo nada. Absolutamente nada. - Ficou 18 anos na Brasileira. A fazer o quê? - Eu era empregada de copa. Vinha às 6 da manhã fazer a limpeza ao café. A partir daí ficava na copa a fazer as torradas, a fazer os fritos...

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- Então, mas como fazia com os filhos... às 6 da manhã? - Deixava-os sozinhos em casa... fechados à chave! Depois, eu saía às 3 da tarde, tinha um intervalo das 3 às 5, vinha à casa ver como eles estavam. Deixava o comer lá, dentro das “tacitas” e eles comiam... Como os gatos, né? Como quem cria os gatos... e lá se cuidavam uns aos outros. E assim se criaram todos, praticamente. Nunca tive a minha mãe, nem meus cunhados, nem ninguém. Nada. Nunca ninguém me ajudou a criar os meus filhos. Fui eu sempre sozinha. Lutei por tudo. Agora, é nessa situação de agora... o meu filho arranjou aquela rapariga... automaticamente tenho o direito de ele casar, né? Casar, ele não casou... Mas viveu comigo 3 anos! Em 3 anos, foi uma vida derrotada... Porque eu tinha que trabalhar para mim, trabalhar para ela, trabalhar para ele porque era pouco ou nada... ainda ela não está a trabalhar! Depois conheci o Jorge... (...) Acho que errei... que eu estaria melhor... não sei. Não é o caso de estar sozinha. Estou à vontade, estou na minha casa. Tenho as minhas coisas, boas ou más... que não prestam para nada... mas são aquilo que é meu. De manhã saio de casa deixo tudo arrumadinho, chego à noite tenho tudo em ordem. Não tinha nada disso antigamente. Trago as

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minhas chaves no bolso e ‘tá tudo bem! E lá está! O trabalho... é o trabalho! - E porque Brasileira?

saiu

da

- Saí da Brasileira, porque há 6 anos tive um acidente de carro... eu estava sentada numa paragem de autocarro... um carro atropelou-me lá. Então estive paralisada uma data de meses, e foi na altura em que a casa abriu falência... Quando cheguei para entrar ao serviço, já não tinha direito, nem à indemnização... Não recebi nada... nem alguns colegas meus também não receberam, não foi só eu... Mas eu derivado ao acidente, era pior, porque eu estive paralisada durante muito tempo e só ficava com uma percentagem de serviço... Eles tinham que me dar um trabalho que eu pudesse fazer... porque eu fiquei incapacitada... Pronto, eu não podia trabalhar! Eles não tinham trabalho mínimo para me dar... era tudo pesado, era pegar em grades, carregar balcões, estar no balcão, tirar bicas... Tudo isso era pesado! Mas pronto, novamente tive que arranjar qualquer coisita. Sempre fui arranjando trabalho, nunca estive em casa. Pronto, foi aquele tempito e foi bastante! Lá está! Lá foram os filhos, lá foram pagando a rendita da casa, lá foram ajudando... e com a minha baixa e com a reforma do meu marido que ainda há poucoxinho tempo é que

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aumentou mais qualquer coisa porque era muito poucoxinho e... é assim que eu tenho sobrevivido! Para uma mulher, é uma situação que nós estejamos a viver sozinha. Tem que ser uma coisa muito bem decidida. A gente não pode pensar que ganha 30 e vai gastar 40. (...) Tenho que levar a Vida. Não posso matar-me, né? Tenho que seguir em frente, até ver a situação. Uns diazitos ando mais desanimada, depois rio-me, levanto-me e sigo em frente... (risos)

causa dos compromissos a assumir e da disponibilidade. (...) Perdi mesmo algumas por causa disso. Mas acho que nós, se nos sentirmos bem, numa vida melhor, embora a gente tenha as nossas amigas, que elas têm que compreender. Por elas não terem sorte de encontrar companhia, não significa que a gente não tem direito a procurar aquilo que precisa, né?

- Mas agora não casar de novo?

- Ah, tinha, tinha! Eu fazia uma luta de tudo o quanto era bom! Eu procurava tudo do melhor... eu... eu... Se eu tivesse nascido homem, eu tirava um curso ou eu ia para a polícia, ou seguia a GNR, ou tirava um curso de enfermagem... Que isso também se deu no meu caso! Eu, em novita, gostava imenso disso... não tinha a possibilidade para nada disso! Cantar! Eu adorava cantar... E eu dizia para a minha mãe “Oh mãe compra-me uma roupa”. Prque iam as pessoas fazer uma peça de teatro, tinham que ter roupa... Iam cantar, tinham que ter roupa, e eu não tinha dinheiro nenhum. E ela dizia “oh filha, mas eu não tenho dinheiro! Não posso! Para ir para um teatro tens que ter isso, tens que ter aquilo”. E eu perdi muito que eu gostava imenso de representar...

quer

- Não. Quero ficar sozinha. Tenho muito medo, porque senão sei que amanhã fico outra vez sozinha! É um bocado puxado, a gente assim sozinha, mas... melhor assim. (...) Acho que sozinha conseguia equilibrar melhor as coisas do que acompanhada. Acho que sozinha é que se está bem... - E amigas, tem? - Tenho muitas amigas. Apesar de que... acho que com uma companhia, a gente tem... É muito mais honesta, é muita mais bem recebida pelas pessoas, passa-se na rua com uma dignidade... Não quer dizer que as outras pessoas não tenham dignidade, mas é diferente! Mas elas (as amigas) mesmo dizem... Mas perdi umas amigas por causa de eu estar junto, de eu ter companhia. É por Acção Jovem para a Paz 2003

- E acha que se a Celeste tivesse nascido homem, tinha sido diferente?

- E como homem, tudo isso podia ter sido mais fácil...?

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- Pois, era muito mais fácil, porque arranjaria talvez uma ocupação. Para já não tem compromisso nenhum… E não ter filhos para orientar, é que era diferente! E ganhar dinheiro e seguir para tirar um curso qualquer. Mesmo nesta altura, tirava-se… Mais atrás, estudava-se menos e havia mais possibilidades de arranjar melhores trabalhos que agora. É que agora vão à Universidade, vão para tirar grandes cursos e não conseguem arranjar assim trabalho, às vezes com muita... - Olha, que agora mulheres polícia, mulheres...

há há

- Pois, é isso que eu gostava... Adorava isso tudo! Só que a minha idade não dá agora para isso, né? (risos) Meus Deus, adorava imenso mesmo, mesmo, mesmo! Qualquer coisa que se relaciona com a vida de andar sempre a mexer, sempre a lutar para mim é bom... como cozinhar! Eu adoro cozinhar! Eu gosto muito daquilo que faço, eu gosto muito das coisas em ordem... e de pensar, de resolver. Estar sempre a adiantar de hoje para amanhã e... eu gosto imenso da cozinha! Embora seja um bocado pesado. Eu gostava também de estar numa cozinha, como tenho estado no hotel a fazer férias, que ganhasse... pronto, mais dinheiro que aquilo que não ganho e com melhores condições. Porque as minhas condições aqui não são

nenhumas, né? Isso é aproveitar, derivado a idade, derivado ao trabalho porque tenho mais um bocadinho de descanso, porque tenho dois dias por semana de descanso, depois tenho as feriazitas... Não tenho subsídio de Natal mas tenho subsídio de férias... e vão ajudando uma coisita para outra... O trabalho é muito cansativo, mas é preciso fazê-lo... (risos) Mas com gosto a gente faz tudo! (...) E assim sucessivamente, sempre a trabalhar! (risos) - E então... sobre o Mundo diferente... o que acha que era preciso mudar neste Mundo? - Um mundo diferente... o que eu acho agora... Acho por exemplo, antigamente, na minha época, não se gozava como agora. Não se saía de noite de casa, porque parecia mal! Não se podia falar com certas pessoas, porque parecia mal! Não havia uma liberdade como agora... Acho que a liberdade é boa, se for realmente bem aproveitada... que não seja uma liberdade a andar a prejudicar ninguém. Porque eu acho que isso está mal... E que o Mundo... está bom! Há bons programas, na televisão há muita coisa que a gente não sabia e que agora está... a reviver momentos bons, porque há coisas que a gente nem entendia, que nem sabia como elas se chamavam, nem nada disso! E agora sabe-se muito, muitas

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coisas mesmo... Eu acho que está bem. Só que ‘tá mal é sobre a droga. Isso para mim é que... (suspiro) Não tenho ninguém na família felizmente que tenha este problema.. Mas há aquilo que eu ouço e aquilo que às vezes me apercebo... A miséria, a pobreza e... o desânimo das pessoas que são novas e que vivem angustiadas precisamente por causa dessas coisas. Mas que ninguém pode fazer nada por isso porque se não for por livre vontade das pessoas, as pessoas não conseguem fazer nada! - E para as Mulheres... o que era preciso mudar? - Acerca da prostituição... que deviam ter mais vontade de trabalhar, ser mais honestas. Porque há muito trabalho... Se elas quisessem aproveitar… São jovens... e que ainda a partir do trabalho que elas fazem, ou que fossem fazer, ainda tinham possibilidades de estudar porque são moças novas, são bonitas, são com boas capacidades e que têm grandes sítios para continuar a estudar qualquer coisa. Acho que deviam de aproveitar e que não deviam andar assim a fazer coisas assim... Prejudicam a vida delas, prejudicam a saúde delas e nunca têm nada na vida. Porque depois é tudo muito bom enquanto as pessoas têm uma idadezinha pequenina, depois começam a avançar... A partir dos 30 até os 40 para

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cima... Depois uma pessoa fica abanada. Elas não têm nada, ficam sem ninguém... Amigas também não devem ter muitas porque não conseguem e de resto... - Acha que ainda vivemos num Mundo machista ou não? - Sim... não... É assim... É mais ou menos... Há coisitas que é bom no machismo! É bom! Pelo menos para os homens! (risos) Há muitos homens, que não é preciso mandar, nem resolver nada com eles... que eles propriamente sabem decidir e... ajudam as mulheres em casa, cuidam dos filhos, vão levar os filhos por exemplo, à creche, dão-lhe leite, muitos até dão-lhe banho que eu tenho assistido muitas vezes a esses problemas... Na minha casa, também se está passar isso com meu filho... Acho que os homens que... Alguns estão a proceder muito bem! - Alguns...? - Alguns, não quer dizer que sejam todos! (risos) Mas isso também é como as mulheres! (risos) - E acha que se houver mais mulheres nos governos, na política podiase mudar essas coisas ou não? - Penso que não. Acho que... Praticamente os homens... Bem, alguns homens que estão lá... Praticamente elas eram

capazes de decidir melhor dos problemas do que alguns que estão lá... Mas como é uma coisa muito pesada, e são problemas graves de resolver... são situações que estão mais a cargo dos homens do que das mulheres... - Ah é...!!!??? Elas não podem? - Eu digo que elas podem! Têm capacidades para isso, só que algumas até teimam... Algumas teimam, outras não. Outras são bastante valorizadas para estarem lá e já tenho ouvido algumas... Ainda ouvi agora num debate… Eu gostei bastante de ouvir. Aonde estava a Dr.ª Maria Barroso. e mais três jornalistas... Com a Maria Elisa, que fez aquele grande depoimento e eu gostei muito da ouvir. Acho que está tudo muito mais a progredir que antigamente, porque não havia, não se via mulheres GNR, não se via mulheres bombeiras, não se via mulheres polícias... Andava-se numa obra, havia os engenheiros, poucas iam para engenharia. Agora vê-se tantas meninas novas na engenharia, tantas meninas novas a apreciar e ver, e elas a dar as ordens e organizar as coisas. E que assim é que é bonito! Na tropa, motorista de autocarro. Tanto aqui em Coimbra, como em Lisboa, como no Porto. Em todos esses lados já há senhoras a conduzir autocarros. Torna-se bonito! E mostrar aos homens que elas Acção Jovem para a Paz 2003

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também são capazes de fazer isso tudo. Mostrar aos homens que elas têm capacidades. Porque tudo o que os homens fazem, as mulheres fazem tudo na mesma. Tudo! Principalmente coisas que eu tenho apreciado e gosto imenso ver e tenho pena de não poder... Mas porque já não posso! Porque se pudesse, ainda conseguia... Não é que não pudesse! Não tenho é a idade para poder! (risos) Mas não posso... Então aonde é que eu ia com a minha idade?! Entrar aonde? Também tive boas possibilidades. Podia ter uma boa carta na mão, podia ter um bom carro. Quiseram-me dar carro, quiseram-me dar apartamento, quiseram-me por uma casa para eu trabalhar por minha conta, como se fosse um barzinho para eu ficar. Tudo isso eu recusei tudo! Porque nós quando somos mais novos, não estamos para ficar à mercê de uma pessoa mais velha. Não queremos estar ali, presa a uma pessoa. Acho que as pessoas é que devem aproveitar enquanto têm vida para isso. Porque agora na minha idade, já não tenho facilidade para essas coisas. - E as suas filhas... o que elas fazem? - As minhas filhas, está tudo bem. Cada uma tem o seu emprego. Tenho uma numa pastelaria com o 12º ano! Que ela ia para entrar para a Universidade, queria ser uma advogada. Teve

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um namorado que lhe estragou a vida, ela não seguiu e pronto... ficou assim! Esta é a mais velha. Depois tenho a outra a seguir que é chefe na Makro. É ela que dirige. Bom, foi para lá como mulher de limpeza e hoje é chefe lá dentro. Está bem, tem a casinha dela, comprou um apartamento, comprou carro, tem um bom ordenado... e é sozinha! É solteira. Essa está sozinha e não tem problema nenhum. Comprou, está na casinha dela. Depois tenho a outra também a trabalhar. Ela que está pior porque é minha filha um bocadinho deficiente. Que não é deficiente porque ela trata muito bem da vida dela! A deficiência que ela tem é física. Portanto, problemas de saúde dela... Mas cuida muito bem da casa dela. O meu filho também é segurança. Também não está mal. Ganha um ordenadinho bom, o trabalho não é assim nenhum… É muito esperto, é muito honesto. (...) Tenho muito orgulho disso. Gosto muito dos meus filhos todos. - Educou bem os filhos então? - Pois... Mesmo assim, não estar em casa junto deles... Porque não era preciso a gente estar sempre a bater, estar sempre a gritar para eles se orientarem que lá, eles sozinhos se orientavam... Eram muito mais bem cuidados sozinhos que praticamente

a gente estar sempre a avisar “não mexe aqui...”.Eles propriamente não mexiam, porque tinham medo! Sozinhos, dentro de uma casa...! Mas não são mal criados. Sou pobre, não sou rica mas são todos educados. Todos! Todos! Não tenho nenhum que não seja bem educado... - Ainda bem... E o seu maior sonho... qual é? - O meu sonho... Se eu fosse mais nova queria o que não consegui realizar... Por exemplo, queria ter comprado uma casa, ter uma casa minha... Não consegui, porque sozinha não conseguia fazer isso. Agora, também não consigo, porque a idade também não o permite. E já que não posso ter mais nada... Olha, tenho o resto da vida! Que eu tenha pelo menos saúde, que tenha a cabeça para me orientar, para cuidar das minhas coisas, para ter sempre tudo feito por mim. Que eu gosto muito de fazer as coisas, e que eu não gosto que ninguém me faça nada. Prefiro forçar-me mais um bocado, ter tudo em ordem e, pronto!... Continuar, ter a minhas amigas, ter na mesma a minha vida. Um bom trabalho... Enquanto eu estiver no serviço em que estou (cozinheira na República dos Kágados), praticamente eles são meus filhos... Eu que cuido deles, estou com eles, estou mais tempo no trabalho que estou em casa... De resto, acho que não posso pedir mais nada Acção Jovem para a Paz 2003

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porque com 62 anos, também já não posso pedir muito... Então, não posso! Então pedir o quê? Vou fazer isso, vou fazer aquilo?! Continuo a fazer e a lutar... Não vou agora ficar...Porque me aconteceu isso... Agora que fui assaltada não é? Fiquei um bocado em baixo (...) Nunca me aconteceu nada disso (ser assaltada em plena rua e de dia)... Estive sempre de noite a trabalhar, sempre sozinha, saía à 1 hora da manhã e nunca tive problema nenhum. (...) Agora tenho medo... Fiquei mesmo com medo. Para dormir é um problema... Vou na rua, vou sempre a desconfiar a olhar para um lado e para outro. (...) Mas não se vai deixar agora de lutar, de vir trabalhar e de vir para a rua porque aconteceu isso. É sempre a andar e sempre em frente.! E é assim, não tenho mais para... Para dizer tudo tinha que escrever! (gargalhadas e... umas lágrimas de emoção) - Obrigada...

Laura de Witte, Coimbra, numa tarde do dia 5 de Fevereiro de 2003, à volta de um chá.

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Capítulo IV – AS LUTAS AINDA POR FAZER

"QUANDO A MULHER SE FEZ CABRA..."

Ocorreu-me, pensando no tema deste editorial, «as cores da esperança» se seria legítimo abusarmos assim das palavras, para as fazer dizer as coisas que queremos ouvir. Cores? Cores, se vivemos num mundo de cinzas? Sim, cinzas que cobrem a terra ardida e esventrada por milhares de toneladas de explosivos, enviados ao acaso, ou directamente aos alvos da inteligência dos serviços secretos, de quem pode decidir de que cor será o tempo e que cor terá a terra. O que importa, é que reduzam tudo, a cinzas. Cinzas nas nossas cabeças, sinal da nossa vergonha e da nossa culpa. Vergonha por continuarmos a permitir que 1,2 biliões de pessoas vivam na mais extrema miséria e, que no máximo, esperam poder chegar ao dia seguinte até que um dia, tudo se fecha diante de si, num negro de absoluta ausência de cores. As cinzas da vergonha pelos mais de 45 milhões de refugiad@s que fogem pelo mundo, e, que jamais saberão se poderão ou não, voltar um dia, a casa. E se voltarem, tudo lhes pode acontecer. El@s já não esperam, só desesperam porque muit@s del@s já viram nascer @s suas/seus filh@s no seu exílio. A vergonha e as cinzas dos milhões de pessoas mortas em guerras que nada lhes dizem mas das quais não podem fugir, seja na Serra Leoa, no Afeganistão, no Congo, na Colômbia. Esperam a paz? Talvez esperem apenas o momento de enterrarem e rezar os seus mortos. As cinzas de mais de 12 milhões de crianças com menos de cinco anos que morrem por ano de doenças curáveis; as cinzas das (quase) 40 milhões de pessoas infectad@s pelo HIV, só em África e que não esperam mais nada senão morrer. E morrer não custa, custa é chegar até essa morte povoada de suores e dores e indignidades. A vergonha de continuarmos a assistir à maior concentração de riqueza que jamais se viu. É, ou não é, uma enorme vergonha, sabermos que a riqueza privada das três pessoas mais ricas do mundo, e sobre a qual elas exercem um poder absoluto, é equivalente ao produto interno bruto dos 48 países menos desenvolvidos do mundo? Podemos esperar para nos indignarmos, nos agoniarmos e denunciá-lo na esperança de contaminar os quatro ventos?

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Cinza é a cor que se impõe no horizonte das florestas devassadas e arrancadas para que se consumam as suas árvores e se revelem todos os seus segredos; e essas árvores que para muit@s não são árvores, são @s própri@s antepassad@s, transforma-se tragicamente, em mercadorias de luxo e de poder. As florestas teimam em não esperar mais nada senão o momento da sua fúria brutal. Cinza é a cor das olheiras d@s milhões de mulheres e homens que partem todos os dias, de algum lugar, à procura do seu emprego, perdido no redemoinho de reformas que nos envergonham porque são assaltos, não são reformas. Cinzas, cinzas e mais cinzas... nas nossas cabeças, sinal da nossa vergonha e da nossa espera! Falemos da besta para falarmos de cores e de esperanças! Sabemos que o neo-liberalismo não se contenta com pouco nem com muito porque o neoliberalismo precisa de infinitamente mais e mais; e se isso representa menos e menos, cada vez menos para todo o mundo, paciência, sempre houve pobres e ricos! O neo-liberalismo não se contenta com mais, ele quer o infinito e pretende convencer-nos a tod@s que os recursos são infinitos, os conhecimentos sobre os recursos também são infinitos e que os nossos desejos também o são e que infinitas são também, as maneiras de os realizar (se nos portarmos bem, segundo as regras da ordem). Sabemos que neo-liberalismo e os seus homens de serviço, estão tão fascinados consigo mesmos e com as suas varinhas mágicas hi-tech, que não se escusam a cometer qualquer violência e a usar qualquer método para prosseguirem este desígnio de infinitude: cada vez ter mais coisas para ter, para possuir e para dominar. Por isso sabemos também que precisam de fazer a guerra, e fazer pobres, e fazer doentes, e fazer desiguais, e fazer colónias e fazer seu, o que até ao momento não era seu (a isto chama-se roubar) e produzir de forma infinita essa guerra sem fim, contra todos e contra tudo o que não se contente com esta infinita e louca avidez. E se alguém tem dúvidas sobre esta besta, que se ocupe um pouco, passeando pelos seus santuários, lendo os seus livros sagrados, acendendo os seus incensos e ouvindo os seus cânticos; certamente não vai poder ignorar e quem sabe, dirá como Alphonsina: Vengo de la reunión secreta: he salido convulsionada… Tengo 25 años… Horror! Desde mañana heme a la caza de un hombre, pequeño o grande, delgado o grueso, rubio o moreno… el país necesita mi concurso maternal. Dios mío, inspírame. Nós sabemos que a guerra não é apenas uma ocupação violenta, de extrema violência, de um território, nem procura só a glória dos seus generais nem sequer apenas fazer suas, as riquezas de outrem. Acção Jovem para a Paz 2003

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Quem conquista sempre rouba! A guerra é a fabricação de despojos, ou seja de tudo o que deixa de ter vida própria, pertença, identidade e por isso pode ser tomado por quem quer que passe. Nós sabemos que a guerra e as cinzas do seu rasto, são destruição são dominação de alguém sobre alguém. A guerra é a capacidade que alguns se atribuem, de poder definir quem é para ocupar e para ser ocupado. Quem pode ter a palavra ou não ter nenhuma palavra a dizer sobre o seu destino; quem ganha e quem perde. A guerra é o poder de definir quem é superior e quem é inferior, quem é democrata ou autoritário, o que é a ordem e o que é a desordem, quem é a mercadoria e quem é o mercador. A guerra é aceitar fazer vítimas hoje, porque são necessárias para fabricar um futuro melhor para tod@s amanhã. A guerra é o poder de definir, quem paga com a vida, os benefícios incertos de um futuro qualquer, de alguém que não sabemos quem é. A guerra, é por isso mesmo, o braço armado do neo-liberalismo, ou seja, é a manifestação maior e de maior horror do seu projecto imperial. A guerra é o nome próprio do neo-liberalismo. E para quem tenha dúvidas sobre esta besta, que se ocupe em contar as mortalhas, em apanhar os restos das balas, minas, mísseis, granadas e bombas; que se ocupe em fazer antologias sobre povos desaparecidos e a recuperar velhas ilustrações de animais pedras e plantas que nunca mais serão vistas. Escute com atenção os gemidos dos membros espalhados pelos campos de batalha, à procura das almas dos seus corpos. Não vai poder ignorar, não é, ó Ana? Chora por mim ó minha Infanta, Escorre sangue o Céu e a Terra Ah pois por mais que seja santa A Guerra é a Guerra Fausto Este é um Mundo impossível! A Paz, dizem mulheres de um lugar remoto e sem internet, a Paz é tudo, e com ela, tudo corre bem; Sem Paz não há Liberdade, nem Justiça e não há justiça sem Perdão. Aliás, as mesmas mulheres, daquele lugar remoto e pobre, sem internet, atrevem-se mesmo a acrescentar que a Paz é uma coisa sagrada. Que sabem elas sobre a Paz, estas mulherzinhas sem diplomas, sem cargos, sem passaportes, sem internet, sem mais nada senão os seus olhos, as suas mãos, os seus corpos paridos de filh@s amad@s; que sabem estas mulheres que não recusam transportar e conviver com os dilemas dos seus corações cheios de memórias, ora ternas ora terríveis e que permanecem nos seus sonhos ou insónias. Enfim, mulheres como quase todas as mulheres do mundo: as mais pobres dos pobres, as mais analfabetas, as mais despojadas, sem mais nada Acção Jovem para a Paz 2003

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senão, a sua força de coragem, como elas próprias dizem? Que sabem estas mulheres sobre as cores da esperança, elas as eternas subalternas, as desde sempre objectos de todas as violências, repressões, explorações e violações? Que sabem estas mulheres sobre a Paz e porque insistem elas em falar de perdão e de coisas sagradas, ópios da vontade e da libertação? Será que querem fazer piadas de mau gosto quando precisamos tanto de consolidar a diplomacia preventiva e elas dizem que preferem a paciência e a amizade? Porque respondem que fazer a paz é construir harmonias em casa, na família, na vizinhança, nas aldeias, pelos governos fora, com associações e colegas e que isto é bom e é um bem para todo o Mundo? Insistem na sua tontice quando aos acordos de paz elas contra propõem o perdão e a justiça e dizem sem hesitar que a paz não se obriga, ela faz-se com tempo, com tranquilidade, com sossego, com calma, com diálogo. No seu delírio ignorante estas mulheres dizem que de nada valem os acordos sobre o desarmamento sem acabar com o medo. Estas mulheres, daqueles lugares que nunca estão em mapa nenhum, e por isso podemos até duvidar da sua existência, afirmam que é preciso saber receber e dar conselhos, é preciso saber antecipar as consequências dos nossos actos e os sofrimentos que eles provocam. É preciso detestar o abandono, as vinganças, e as manias de «arranjar sarilhos». Para desespero de tod@s @s sexistas elas dizem que preferem a harmonia entre os sexos do que a igualdade sexual e que isso é uma coisa de Paz porque a Paz faz-se assim: com mulheres e homens harmoniosamente religad@s pelas mesmas virtudes: o respeito, a responsabilidade e a compaixão. Elas dizem também que todo o dinheiro que se havia de gastar em forças militares de defesa podia usar-se para acabar com o analfabetismo, a pobreza e a discriminação, resolver os problemas da violência, das ameaças, do medo e da vergonha. O que querem estas mulheres? Acabar connosco e com a nossa condescendência? Não percebem elas que não temos tempo a perder, que não temos outra forma de combater senão ir empurrando com a barriga, este mundo impossível enquanto gritamos que um outro mundo é possível – mas sem pôr em causa e muito menos em risco a nossa vidinha povoada de supermercados de ilusões. Não percebem elas que há muito mais coisas entre o céu e a terra que as suas razões alcançam e que tudo é muito mais complexo que umas palavras ditas e ouvidas por elas? Querer as coisas simples, preferir conversar com @s velh@s e enfrentar com el@s as coisas difíceis que por aí vêm; cuidar de tudo e de todos em vez de mandar consertar; correr o risco de unir em vez de separar… são cores das esperanças que são tantas e variadas mas se

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não nos desafiarem profundamente, nada deixará de ser como é. É por isso que estas mulheres para mim, magras, negras e faladeiras se fizeram cabras, e Foi quando a mulher Se fez cabra No compasso da fúria Contra a batuta Dos chefes de orquestra Que escorrem notas Dos gritos da música Luíza Neto Jorge Ocorre-me que isto sejam também as cores da esperança que aprendi com a Albina, Ana, Ana Leonor, Ana Rosa, Esmelita, Fátima, Fidélia, Hermínia, Humilta, Lígia, Lurdes, Natalina, Olandina, Pascoela, Rita, Sabina... de Timor Leste. Teresa Amal I Fórum Social Português, dia 9 de Junho de 2003 Conferência "As Cores da Esperança: Solidariedade e Cooperação"

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A VIOLÊNCIA ESTÁ NA MODA?

“E assim nos lembramos a cada passo de que, de modo algum, dominamos a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da natureza, mas pertencemos-lhe com a nossa carne, o nosso sangue, o nosso cérebro; estamos no meio dela, todo o nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que temos sobre os outros seres de poder chegar a conhecer as suas leis e aplicá-las correctamente.” Engels- Dialéctica da Natureza “ A melhor maneira de subtrair rapidamente um assunto da atenção do público (ou, pelo menos, do seu interesse) é obrigar toda a gente a ocupar-se dele sem parar. A moda ecológica oferece-nos hoje um exemplo muito claro deste mecanismo. Levada ao mais alto grau de ebulição publicitária, esta moda começa nos dias de hoje a evaporar-se e o ruído das rotativas postas ao seu serviço, impede-a, cada vez mais, o que pode parecer um paradoxo, de se fazer ouvir.” Tomás Maldonado- Environnement et Idéologie

Nas outras margens do rio Danúbio, a atenção dos turistas é chamada para uma casa outrora habitada pelo naturalista Konrad Lorenz, um incorrigível optimista que esperava que a Humanidade ainda iria acabar por realizar, como os gansos cinzentos, uma ordem social onde o amor e amizade impedissem os seus membros de se magoar ou lutar entre si... mas também o Lorenz realista, explicando que a agressividade, mãe da violência, é indispensável para a conservação das espécies e faz, felizmente, parte do nosso património genético. O nosso comportamento instintivo, imbuído de agressividade, mostrou-se incapaz de se adaptar a todas as novas condições criadas pela aparição da cultura... Os australopitecos, inventores dos primeiros utensílios, serviram-se logo deles para massacrar os seus semelhantes e o homem de Pekin, primeiro observador do fogo, não hesitou em utilizar a sua invenção para queimar os seus congéneres. Durante milhões de anos, os primeiros seres humanos foram os criadores do perigo, mal armados que setavam para subsistir num mundo exposto à implacável selecção natural; eles só sobreviveram graças à astúcia e à malícia engendradas pelo desenvolvimento do cérebro, da consciência e da linguagem.

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Transformados, finalmente, nos mestres indiscutíveis da criação, os humanos utilizaram, há dez ou doze mil anos somente, a sua tranquilidade preciosamente adquirida, para recusar as leis naturais com as quais tanto tinham sofrido, e para inventar noções desconhecidas da natureza, como a justiça ou a primazia dos indivíduos. Se nós tivéssemos sido coerentes com a nossa repulsa pela lei da selva e com a nossa nova moral, nós teríamos de admitir que “o comportamento da massa humana, no percurso da história, é estúpido, repugnante e indesejável.” Eis-nos, então, perpetuamente divididos entre as nossas grandiosas esperanças de uma sociedade ideal e as nossas heranças genéticas, verdadeiros desmancha-prazeres, que recusam a agressividade sob todas as formas de violência, desde as tragédias de Eurípides ou de Shakespeare até aos crimes passionais. Hoje, infelizmente, a violência parece estar na moda. As lutas de conquista de poder, as grandes guerras mundiais deram lugar a uma multiplicidade de conflitos locais, étnicos, religiosos ou de linguagem, que enchem a actualidade de guerrilhas limitadas mas cada vez mais numerosas, cada vez mais frequentes; o terrorismo, a agitação social ou racial, as compressões demográficas, criam nas populações uma angústia constante. A agressividade que, na Natureza, tem um papel indispensável como garantia contra as desordens naturais, perde o seu sentido, mas mantém-se indestrutível no mais profundo de nós mesmos. Nós nunca seremos carneiros ou gansos cinzentos... mas é nosso dever não deixar que a violência invada a nossa sociedade, nem perverta a vida das pessoas, principalmente quando se trata de crianças. No Canadá, na Europa e mesmo nos Estados Unidos há grandes movimentos que se desdobram o mais possível para protestar contra a invasão da violência, dos homicídios, das torturas, dos abusos sexuais nos programas de televisão. Mas temos de ser realistas: a violência faz parte da nossa natureza, ela chegou mesmo a inspirar a maior parte das obras-primas da Humanidade, mas compete-nos refreá-la, dar-lhe exutórios pacíficos, proteger as crianças dela, evitar que ela se banalize ou mesmo se transforme numa moda. Um sábio disse uma vez que “NINGUÉM COMETE MAIOR ERRO DO QUE AQUELE QUE NADA FAZ, PORQUE POUCO PODE FAZER”. Janeiro 2003 Nina Rocha de Antas

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ESPERANÇA E PAZ

Na espera de uma viagem aos EUA, integrada numa delegação de cerca de 30 deputados do Parlamento Europeu, que em mais uma acção contra a guerra e na defesa da paz, vai contactar a ONU, movimentos e congressistas americanos que estão contra a guerra, comemorase o 8 de Março. Ora, nesta semana de comemorações do Dia Internacional da Mulher, recordo um dos lemas utilizados no Brasil a propósito da eleição de Lula – A esperança venceu o medo. E num momento de tantas incertezas, de ameaça de guerra, de retrocessos no quotidiano das pessoas e na legislação, de campanhas ideológicas que atravessam a sociedade, tentando subverter princípios e valores fundamentais como a igualdade e a solidariedade, importa reflectir sobre a luta travada, as ameaças que persistem e a vontade das mulheres de manterem a sua dignidade de cidadãs, de construtoras do futuro que transportam no ventre. A esperança num mundo melhor tem rosto de mulher, essa metade da humanidade sem a qual não é possível uma democracia participativa. Foi longo o caminho percorrido pelas mulheres até conseguir o reconhecimento na lei do princípio da Igualdade. Em Portugal tem menos de 30 anos. Só com a promulgação da Constituição da República de 1976, após a revolução de 25 de Abril de 1974, foram inscritos, na nossa lei fundamental, direitos, liberdades e garantias fundamentais, consagrado o direito à igualdade, proibida a discriminação com base no sexo, garantida a protecção da família. Mas, no mundo, data de meados do século XIX a luta pelo reconhecimento dos direitos das mulheres, embora o Dia Internacional da Mulher apenas tenha sido aprovado no princípio do século XX, em 1910, em Copenhaga, e somente reconhecido pela ONU em 1975, o que de imediato aconteceu em Portugal porque se estava em pleno período revolucionário. É que, como dizia Maria Lamas, ao terminar a sua obra espantosa “ As Mulheres do meu País”, em 1950, “nas aldeias, nos casais da serra e das cidades, nas fábricas e nos escritórios, nos hospitais, nas escolas e no lar; em toda a parte onde vive e trabalha – a mulher espera a hora da sua redenção”. E conseguiu-a com a revolução de Abril de 1974. Por isso, hoje, os retrógrados de mentalidade passadista e exploradora, que pensam ser possível regressar ao passado, voltar a mandar as mulheres para o falso destino de “fadas do lar”, para fazer baixar estatísticas do desemprego, estão enganados. É certo que a ofensiva é vasta e violenta. Estão em causa progressos civilizacionais e pilares essenciais à concretização de uma sociedade mais humana, mais solidária e mais democrática. Mas as mulheres sabem que a sua dignidade passa pela manutenção dos seus direitos. E vão lutar por eles. Acção Jovem para a Paz 2003

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Como, há dias, me afirmavam mulheres trabalhadoras despedidas da Clarks, em Castelo de Paiva, “Não queremos ficar em casa a receber o subsídio de desemprego. Queremos um emprego. Queremos trabalhar e ter um salário justo”. Elas sabem que a sua autonomia e realização pessoal passa por participarem na vida activa com uma profissão, um emprego e um salário, embora reconhecendo sempre o papel social fundamental da maternidade. Mas não é só na prática diária que os retrocessos caminham. A ideologia dominante do neoliberalismo, que pretende impor os velhos métodos da exploração, está aí com toda a força a tentar fazer passar alterações à legislação laboral e à lei de bases da família, no seguimento de outras já obtidas na segurança social, que são um atropelo a direitos e conquistas essenciais de homens e mulheres. São disso exemplo as propostas de alargamento da jornada de trabalho até às 12 horas por dia e 60 horas por semana, incluindo para mães e pais com filhos pequenos e em idade escolar, interferindo com o direito a férias, aumentando a precariedade, insistindo na mobilidade e flexibilidade, desorganizando a vida das famílias. Simultaneamente, tentando retirar direitos ligados protecção devida à maternidade e paternidade, promovem o trabalho doméstico, empurrando, na prática, as mulheres para casa, fragilizando direitos no acesso a à rede de apoio materno-infantil, no direito à educação sexual e planeamento familiar, no reforço da criminalização da interrupção voluntária da gravidez, escamoteando problemas graves das famílias e direitos universais das mulheres, como a recomendação de Julho de 2002 do Parlamento Europeu que recomenda aos Estados-membros e aos países candidatos que, a fim de salvaguardar a saúde reprodutiva e os direitos das mulheres, a interrupção voluntária da gravidez seja legal, segura e universalmente acessível. Num momento em que a ameaça de guerra paira sobre as nossas cabeças, as mulheres sabem que a luta pela igualdade, pelo direito ao trabalho e pelo trabalho com direitos é indissociável da luta pela paz, condição básica para um futuro melhor, de progresso e desenvolvimento, para toda a humanidade. Ilda Figueiredo Deputada do PCP no Parlamento Europeu

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GANHAR A GUERRA CONTRA A SIDA

As estratégias para a prevenção da sida têm-se centrado no fomento do uso do preservativo, na redução do número de parceiros/as sexuais e no tratamento das doenças transmitidas sexualmente. No equacionamento dos problemas tem, contudo, estado ausente a abordagem das relações sociais de sexo, nas suas múltiplas vertentes (afectivas, económicas e de poder, sobretudo). Estas relações, conjuntamente com as diferenças fisiológicas, determinam em grande medida os riscos de infecção de mulheres e de homens, a sua capacidade para se protegerem a si próprios e a sua quota parte de responsabilidades pela epidemia. Senão vejamos: 1 – As mulheres são fisionomicamente 4 vezes mais vulneráveis à infecção por vírus HIV do que os homens. As jovens na casa dos 20 anos de idade apresentam as mais altas taxas de mortalidade por infecção com HIV. Em 1990, as mulheres eram 25% das pessoas infectadas, hoje são mais de 50%. 2 – Os estereótipos associados à sida que a relacionam com alguns grupos socialmente marginalizados (como as prostitutas) contribuem para atirar as culpas pela propagação da epidemia para cima das mulheres. Os receios de estigmatização inibem as pessoas de tomar medidas preventivas e levam tanto as mulheres como os homens a avaliar os riscos que correm numa base completamente enviesada. Acima de tudo, muitas ideias e expectativas relativamente ao comportamento sexual masculino e feminino não encorajam nem as mulheres nem os homens a agir responsavelmente e a protegeremse a si próprios/as e aos/às seus/suas parceiros/as, nem estimulam as mulheres a desafiar as noções de inferioridade feminina e as estruturas sociais que as mantêm na vulnerabilidade. 3 – A dependência económica impede muitas mulheres e as pessoas mais jovens de uma maneira geral de controlarem o risco que estão dispostas a correr. Com um poder de negociação débil, são incapazes de insistir em relações sexuais protegidas. 4 – Na qualidade de principais prestadoras de cuidados, é sobre as mulheres que cai o fardo, físico e psicológico, de cuidar de pessoas infectadas e doentes com sida. Poucos homens partilham com as suas companheiras as responsabilidades pelas tarefas domésticas e pelos cuidados a prestar aos membros da família.

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O facto de já no longínquo ano de 1990, a Organização Mundial de Saúde ter lançado como tema do Dia Mundial da Sida “As mulheres e a sida”, acabou por não adiantar de forma significativa. O que será, então, que há que fazer? Adoptar estratégias de prevenção que tenham em atenção uma análise dos estereótipos sexuais. É necessário promover a mudança dos papéis sexuais e das relações sociais entre os sexos, de forma a que adoptemos comportamentos sexuais mutuamente responsáveis. A – Às mulheres deve-se incutir auto-estima, consciência pelos seus direitos individuais e domínio de competências sociais. Aos homens deve-se mostrar como a sua posição privilegiada e as normas sociais os orientam para relações autoritárias e competitivas e não colaborantes. B – Assim, embora preservando e reforçando o mais possível os serviços específicos para as mulheres, há que envolver mais os homens nas questões da saúde reprodutiva (planeamento familiar incluindo a vasectomia; avaliação da fertilidade e esterilidade; disfunções sexuais e sexualidade; condições urológicas; prevenção e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis e sida). Serviços dirigidos aos homens não abordarão apenas as suas necessidades, mas devem capacitá-los para a aceitação de uma maior responsabilidade na prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, como aliás tem sido proposto por organismos diversos como a FAO, a OMS, a OIT, a UNESCO e o Fundo das Nações Unidas para a População. C – Nos serviços para adolescentes, é necessário integrar o ensino de técnicas de negociação para contrariar a pressão do grupo de pares e para reforçar a capacidade de tomar decisões autónomas e compreender as expectativas relativamente à sexualidade do sexo oposto. Uma contribuição importante destes serviços pode ser a reformulação da masculinidade em termos que não passem pelas relações sexuais precoces. Talvez assim se ande mais rapidamente, especialmente se os próprios sistemas de saúde não propagarem a epidemia em vez de contribuírem para a sua erradicação. Virgínia Ferreira, Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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CONTO MURMÚRIOS “Felizes os que têm pais/...” À Memória do Meu. Murmúrios Foi uma noite assim... 1. Aquela foi uma noite de fadas e príncipes. Não havia um sopro de aragem, nada bulia. A respiração estava silenciosa. Quieta e expectante. Alguma coisa ia mexer, mas não se sabia ainda. A história ainda não começara. A noite descuidara-se a olhar para aqueles dois que ali estavam. Mas tanto podiam estar ali como noutro sítio. Silenciosos. Especados. A aguardar um sinal que ainda não sabiam. (Como era aquilo?) ... - Talvez, não ... ... - Talvez, sim. Mas era ainda um olhar encolhido, tímido, encaixado. (Como se fazia aquilo?) Aquilo era beijar. Os filmes diziam que era mágico, normalmente era ali que tudo se resolvia: ele punha a mão no cabelo dela, inclinava-lhe a cabeça (para se desencontrar o nariz, tão deselegante esborracharem-se naquela altura sublime !) e ela tremia, respirando fundo e dando ao olhar uma ingenuidade esperada. Depois, os lábios sabiam o caminho e o resto... só experimentado. E, aí, ELA não sabia. E, aí, ELE, não se apressava. A noite transpirava, aguentando com placidez a espera, a conclusão. 2. Que história pode ter uma terra como esta, perdida na serra, cruzada de solidões e ais, de parires tão heróicos que quase nos dá vergonha de tanta falta de horizontes! As personagens não serão muitas e o tempo é o nosso, parece-me. Saber, saber, só sei o fim e meia dúzia de falas que me cantam na cabeça desde que decidi fazer isto. Terá que ser uma história com mulheres, porque não é possível falar de terra nem de água e de sol, sem as ter por perto. Um homem para criar o círculo. É como tudo. No fundo, é uma questão de equilíbrio. Acção Jovem para a Paz 2003

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Três é uma boa conta. Há uma mulher que ainda não se atreveu a entrar na história, parece não ser daqui, tão alva se apresenta, tão esguia e suave: é a OUTRA. Anda como se dançasse, a cada músculo agitado. Vai um corpo assim, tão belo e provocante incendiar um barco destes. Para já, fica definido, de acordo com o fim que já sei (mas que não vos disse) que ela não é decididamente daqui. E não vai ser um final feliz, embora feliz vá fazer, outros. A outra, ELA, talvez sim, é a mulher de cá, desta leva de mulheres que não saiem do quintal mas que vêm televisão, sagradamente à mesma hora, comendo as palavras (algumas nada lhe dizem), mas vão repetindo, qual ensino à distância: - Você mi péga, ouviu! ELE, talvez não, vai passar daqui para ali, enganando-se enganando a escolha que lhe calhou desta vez. Não, não é rifa, mas é quase. Onde é que sito irá parar? ELE - talvez não consiga fechar a noite e passar para a jogada seguinte. ELA - talvez sim satisfaça a sua curiosidade em abrir a boca. A OUTRA, só entra daqui a pouco, quando a verdadeira acção se iniciar. 3. Na verdade, há quem leia romances policiais para evitar cair nas mesmas situações que lê (nunca se sabe!), das drogas subtilmente misturadas nos pratos preferidos com condimentos tão afrodisíacos, antes de matar; ou caia na banheira quando o telefone está avariado e o pessoal na escola. Há quem recorte artigos de jornal para registar restaurantes, comidas e perfumes dos que mandam neste e no outro mundo. Há os que preferem ficção para estar noutra. Há os que pegam nas notícias mais escandalosas para comprovar que o fim está próximo e o diabo anda à solta. Há os que lêem simplesmente. Há de tudo. 4. O lugar é Aqui, um aqui que nos rodeia, como uma cortina que de tão transparente, nos ilude, de nós troça e até desdenha. Aqui, é este aqui que somos. Ao contrário do que nos fazem crer, diariamente, de todas as formas e feitios, a cortina existe, quase muro físico, fronteiriço e com alfândega, com inspecção e revista manual. O muro ou a cortina, para ser mais leve, existe e quem a vê, não fica mais feliz por isso. No entanto, é isso que nos move. Como a terra. Mas esta é a história que vai ter estrelas a piscar os olhos à lua, de cagalumes, aqui e ali. Porque eu quero! 5. - Já viram aquilo?... Não tinham visto. Acção Jovem para a Paz 2003

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Impávida, cruzava a perna, nua até acima dos joelhos. Uma perna leitosa, fina, no fim com uns dedos nuns chinelos com brilhantes, roxos, vermelhos. Sem salto. Chinelos a cobrir os dedos que são finos e pintados de vermelho sangue. Vermelho sangue nos dedos das mãos, tão finas, sem uma simples marca de fritar batatas ou virar peixe frito. Sem anéis, sem marcas especiais. Não se sabe quão suaves podem ser mas a todos parecem de seda. Na boca está um arrogante cigarro, a furar aquele ambiente fresco e puro. Não há carros continuamente, nem fumo de fábricas, que alguns já dizem ser do outro século. Na verdade, ninguém repara no desenho do fumo do cigarro, ninguém se preocupa com o buraco do ozono. Ela está a li a gozar à frente de todos e não convidou ninguém para a festa. Goza tanto quanto lhe é possível. Fuga, relaxe e faz-de-conta. Aquele não é o seu sol mas, de qualquer maneira, é sol. - “Bem hajas ó luz do sol” que iluminas esta terra... A terra branca que está lá e ela ali a pagar directamente o privilégio daquela luz e calor. Quente, soalheiro, generoso e sensual, é este sol daqui. Para norte, mais agreste, mais para sul, faz cada vez mais açúcar nas uvas. Vinho é o que chamam a este líquido que escorre no meio do cigarro e torna tudo mais leve. O cabelo escorre displiscente na cara e cola-se graciosamente. Não é moldura, não é questão de compor. É retrato de jovem mulher em cabelo cor de espiga, antes de vir Setembro. Se a cor é esta, junte-se-lhe o verde de mar ou a cinza de um dia de chuva miudinha, modorrenta, preguiçosa e outonal. Nos olhos. Fica aqui o retrato da OUTRA. A linha do pescoço está hirta. Sente-se. 6.

“Bendita a água da fonte /” que mata a sede desta terra...

- Ainda ontem a tratei. Neste calor, que mais fazer? Andar por aqui é sufoco. - A minha, também já dei conta. Estou a preparar tudo para receber as chuvas. - A água é que nos mingua. Se eu pudesse chegar ali, áqueles poços. Mas não. Fazer furos para quê? Esta terra está toda furada. Eu e ela. - Ah! Que sina! Sabes, às vezes, é mais por acusa da família. A família que foi e eu fiquei. A fazer o quê? Os muros, as pereiras, as figueiras, que nem sequer dão grande coisa. Figos com pão. Pão com figos. Couves com pão. Pão com couves. Feijão... (Na verdade, o cão é o desgraçado da história. Leva cada corrida em osso!) 7. Acção Jovem para a Paz 2003

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Papéis são poucos em casa. A luz é só para quebrar a solidão porque a grande caixa é que traz o mundo para casa. Notícias de longe porque as da terra, quem se importa? É já tudo tão conhecido, tão batido. Não há morte, nascimentos ou festas que não repitam rituais e palavras. - ...Coitadinho! - ...Sofreu tanto! - ...Que bela vai a noiva! - ...É tão bonito o bebé, mesmo a cara do pai! - ... Afinal, que dizem estas palavras? Mas espera-se que se digam e assim se vão repetindo, mesmo sem nada lá dentro. 8. A televisão é mesmo outra coisa. A escola a que não se foi, porque então era fazer o quê? Mulher para ajudar mulher, homem ao lado do homem e não passou daqui. Ainda recebeu uma vez uns lápis e um caderno de folhas brancas. Soube pegar no lápis e senti-lo nos dedos, a dureza do carvão a rasgar a folha virgem. A borracha era miolo de pão – nem se lembrar quem lhe ensinou aquilo – mas as letras não deixaram de ser sinais sem sentidos e os papéis algo de dispensável. Os bonecos da televisão contam histórias mas já sabe que a história tem muito a ver com os seus olhos. A descoberta mais importante, fê-la ELA num dia de quase nada para fazer. A capoeira calada, a terra a dormir, o silêncio a impor-se e tudo a estar num mundo que não cabe nas palavras. Lembrou-se, então, do lápis e do papel branco. Da gaveta da cozinha, lugar onde tudo na sua memória acontecia – de bom ou de mau – lá saíram as coisas. Pareciam aguardar. Nem pó tinham. ELA-talvez estivesse num dia de prodígios (ela não lhe deu nenhum nome). Sentou-se no degrau da escada baixinha, onde o cão a olhava a ver o que dava. Os traços eram soltos mas o sol confundia a cabeça dELA. Eram sóis grandes que enfeitavam rostos de mulheres, sérios, tristes, alegres, mulheres sempre. Roupas longas, como as das nossas senhoras. Na televisão, são sempre pessoas importantes as que andam assim. ELA sentiu-se bem. Aquilo falava para si. Eram mulheres, algumas de altar, outras da vida que se imagina. Eram a preto, do lápis. Mas não eram menos belas. Assim, quando a solidão apertava e a televisão não se entendia, fazia as suas bonecas. Eram absolutamente suas. 9. ELA não era dada a falar. Os outros, naquela terra e sozinha não lhe davam importância. Ficara por ali a tratar da casa, quando a mãe, viúva mas nova, e farta de tudo, quis procurar melhor sorte. Partira sem nada, tal como viera para ali. Deixou-lhe a terra onde viveu com o homem. Era dELA, por isso. Ficou. Ficou por ali com a casa e o resto. Havia os bichos para tratar. Se alguma coisa corresse mal, ELA sempre tinha alguma coisa. Pouco, mas era dELA. Acção Jovem para a Paz 2003

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Ficara, pois. Mas ninguém dera muito por aquilo. Uma mulher sozinha no lugar, com o cão e as galinhas, a vir às compras, às Vezes, mas sempre a medo. Não lia a MARIA, não cochichava sobre as outras mulheres e homens, não sabia ser cusca e imprescindível nestas matérias. Não sabia nada de nada. Mas, como diz uma vizinha, tem boas mãos. O cabelo é curto mas os olhos são grandes e as mãos também. Tem uma figura insignificante. Se se pedisse, haveria dificuldade em a descrever. Por agora fica ssim. No meio, há uma terra, borbulhante. De vida animal. Contando também com estas e outras pessoas. Há cheiros que se misturam. O bolo de laranja e o arroz de cabidela, a lata dos porcos ou a couve para as galinhas. Os restos vão nadando de um lado para o outro na boca dos animais – cães e gatos, que é o que mais há. É uma terra de água, às vezes poucas, de sol e de esperanças. Há os que vão passando e ficando, trazendo algo de novo que ainda não se conhecera a falta mas se veio é porque é bom. Há simplesmente, os que vêm para ir trabalhando e depois partir. Aqui é ladeado de uma ponte, antiga, mas de onde ninguém espera vir a cair. Do outro lado, é terra e estrada longa, por onde passa de manhã e à tardinha, às vezes já tarde, a camioneta do sr. Alves. Às quintas-feiras, passa um vendedor de congelados. Traz peixe e outras coisas que não se conhecem mas parecem iguais às da televisão. Há umas que compram. Aos sábados é a vez das roupas, dos atoalhados, das compras a prestações. Os cartões têm quadrados onde a sra. Emília faz cruzes. ELA compra o que precisa e tem também um cartão da sra. Emília. Vou pouco na camioneta do sr. Alves. Não tem a quem deixar a casa, a capoeira. As mulheres e os homens têm assuntos próprios e as mais das vezes, quase que apenas se cruzam por acaso. ELA não sabe muito disto. Quando é tempo de apanhar as uvas, de pisá-las e engarrafar, há sempre quem venha de fora. ELE veio por uma destas ocasiões. ELA só reparou nele mais tarde. E no meio estava a OUTRA. 11. Cada terra com a sua história. A desta é esta migração sazonal, esperada mas sempre diferente – quem vem lá? Não se sabe. Hoje em dia é cada vez mais o desconhecido – que interessa? O que vale é a força, o geito de cortar bem os cachos e não perder as uvas. E saber escolher as melhores para este fim, as outras ou ficam ou vão para mistura, consumo. É disto que se trata. Quem tem muitos pés de vinha, junta a família e faz uma verdadeira comunhão: o pão que a mulher faz e o vinho que eles pisam. É uma paisagem sempre bela. As uvas, as parreiras a dobrar de peso, o sol a acariciá-las (mais doce, mais doce), a gente a desejá-las. De uma ou outra forma. Aqui, não são uvas de socalco nem em altura nas árvores ou Acção Jovem para a Paz 2003

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arrumação. São baixas e arqueiam. São destas que ELA trata, juntamente com o milho, as couves, os animais. E o cão. E Aqui entra ELE. Vinha por algum trabalho. Ajeitava-se por qualquer coisa. Foi com a cara dELA. Quando depois lhe perguntaram porquê, pensou bem. - Era a mistura, parece-me. Parecia tão desamparada... 12. E foi. Comia e bebia, e cortava e carregava os cestos que ela levava para o Vizinho pesar e pisar depois com as suas. Trabalho de homem, exclusivo. Ninguém pensaria outra coisa! De uma lado, ELE, do outro, ELA. Zás, zás, de dois cortes a mão ficava cheia e era poisar as uvas no cesto. Cantava ELA baixinho. Tinha companhia para além do cão e das folhas de papel branco e das suas senhoras. Mesmo que fosse pouco tempo, tinha um empregado. Um homem. Não é que fosse grande coisa. Afinal, ELE não era grande. Nem tinha mostrado bem os olhos, sempre com o chapéu enterrado e a olhar para o lado. Mas parecia forte e seguro. Reparou sobretudo no peito que da camisa saltava ao olhar, moreno e musculado. Que vergonha! Olhar para o homem...(levas na boca, menina!) A conversa não era muita mas, na pausa, debaixo de árvores, separados pela cesta e pelo jarro, lá se cruzavam os olhos e o tisnado avermelhava-se e os lábios dela fechavam o sorriso. Um dia destes, tudo voltaria ao mesmo. Não fôra a OUTRA que se cruzara por ali e eles não tinham passado disto. 13. No lugar, a OUTRA personagem era história. Bela mas distante, Diferente mas próxima. A venda de coisas variadas e tão inesperadas como inúteis neste Aqui, trazia à sua presença quase certeza irreal. Anéis com pedras grandes, colares com conchas, lenços de seda com flores grandes, caixas com bonecas de porcelana, soutiens almofadados, livros de bd e perfumes baratos – que cantilheira! E depois trazia a grande surpresa: lia a palma das mãos , quando fazia negócio. Acompanhava-a uma mala às costas e o cigarro na boca. Quando ali chegou ninguém se preocupou com o que trazia na mala nem nas maõs. No entanto, soube logo integrar-se e bater nas portas certas. Na dELA, cativou-a o olhar que também a ELE não passara despercebido (- Que faltas, mulher!) - Já viu, tenho aqui um belo anel com uma pedrinha que vai com a cor dos seus olhos. O seu namorado vai oferecer-lhe... - Mas ELE não me é nada... - Isso agora não faz diferença. Mas olhe que é mesmo feito para si e não é caro. - A menina... Ela é minha patroa. Acção Jovem para a Paz 2003

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- Ah! Mas então, deixe-me ver que mesmo assim vou pô-lo aqui no dedo. Qual é ele ...? ...este ...vê, até fica bem com a cor da sua pela, morena. - É mas as mãos ... - Tão bem feitas. Pronto, fica mesmo bem. Não se fala agora do preço. - Mas... - Ora, deixe cá ver. Vá, abra a mão, vire-a a mim. Vê esta linha que desce, a outra que é mais funda... parece-me. Estique bem os dedos... isso! Pois, é mesmo, vai ser feliz e só vai ter um homem... - O quê!? - Pois, é isso. Um homem de olho verde. (ELE estava mudo.) - ...e vai ser para breve. Vai ter um encontro com um jovem que não é daqui. Vai ter uma menina e uma vida longa. E depois, ...Ah!, fico por aqui. Então, fica com ele, não é...? Tenho mais voltas a dar e não quero ser apanhada pela noite. - Tem razão, já é noite. Tome, fico mesmo com ele e gostei. ...acha que é verdade?... - Claro! eu não minto. Está na sua mão. - Pois, já tinha visto na televisão um programa sobre as mãos e a sina... - Até depois, então. - ... 14. A noite caíra descuidada. Descuidada e a pensar no que ouvira. Os dois encaixavam na história. Naturalmente. Não os podia desacompanhar e por isso, a noite foi-se fazendo de príncipes e fadas. Era o cenário esperado. - Olhe, se quiser, fique ali no quarto das roupas que eu vou fazer uma sopa. Já é noite e não há luz. - Eu fico cá fora, senhora... E ficou. 15. Aqui, as crianças nasciam a espaço. Algumas mulheres tinham uma tarefa delas, outras, nem tanto. Havia muitas circunstâncias explicativas. Mas decerto que nada tinha a ver com falta de incentivos da paisagem, sensual e atrevida. Com muitas sombras e enleios, com muitos aconchegos e cheiros. Não por isso, portanto. Talvez as histórias que cada uma das mulheres trazia consigo, as histórias das mulheres da família. Como se comentava, havia uma com ancas mais estreitas, peito mais farto ou barriga mais aflita ou sangue fraco. Sabe-se lá. Talvez por via destas coisas, havia muitos cuidados com o que se bebia e comia, o que se vestia e fazia. Parir era coisa de verdadeira aventura. Em cada família , havia um caso mais para o torto onde houvera que optar ou nem sequer isso. Claro que havia médicos. Mas ter carro e sair dali a tempo certo, era outra coisa que não se podia prever. E havia trabalhos a que não se podia faltar. Acção Jovem para a Paz 2003

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Riqueza não abundava. E os homens é que conduziam. As mulheres, ajudavam-se, portanto. Umas eram conversas, outras rezavam, que isto de pôr cá fora uma vida era coisa sagrada; outras faziam chás e bolos, também era um dia de festa e alegria. Os chás não eram vulgares. Algumas mulheres sabiam colher as ervas exactas e atribuir-lhes a função certa. Também eram saberes que se passavam como as histórias dos parires. Uma comunidade de partilhas femininas. Quando era barba de milho ou chá verde, era uma coisa; quando entrava o fel-da-terra, a coisa era mais séria ou mesmo com giesta-branca. Algumas vezes, qual recolectora de cálix e foice dourada , era preciso sair do lugar: a salgueirinha, as sete –sangrias. Até a simples urtiga ou tília eram tratadas como se peças de ouro fossem pela mão minuciosa de um ourives. Das ervas secas, da sua porção e água, da sua cor, dependia muito naqueles momentos de dor. Porque havia a dor física e a outra, a que não é fácil de controlar, a dor imaginária, a que vem das outras mulheres, como que numa sororidade não traduzível para fora daquele círculo. Não poucas vezes as mães reviam-se nas dores das filhas, como que hereditariamente transmitidas, as pontadas, os requebros, os pontapés e os enjoos. A infelicidade mesmo. Ainda nenhuma o disse mas sentiam, com angústia, que não devia ser para aquilo que se nascia. Não era só para sofrer. Não era só mas não se escapava. Ser mulher era mesmo um azar por aqueles lados. Nada era pacífico Nada era dado. No entanto, quando à noite, as gargantas masculinas se aqueciam, nas tascas mal iluminadas, lá vinha a estafada “ai, ai, ai, ai“ eu gosto desta mulher...” E resumindo um período de expectativa, lá vinha mais um ou uma para dividir o pão, as couves, o feijão. A miséria, pode-se dizer. Que não é só não ter fome. A velha fórmula lá se repetia pela enésima vez: - Chamem a Júlia-dos-partos! Tudo branco, isso é questão desde sempre. Para lençóis, toalhas, ligaduras, a primeira roupinha, a fralda. Branco, o imaculado e o puro. Mas aquela Júlia trazia a sua novidade: para ela um riscado bordado trazia fertilidade, riqueza. Ela dizia que aquilo lhe vinha de associações antigas, das formas dos objectos que sempre vira para o trabalho da terra: anchinhos, pente, grade, charrua. Esta da risquinha até tinha alguma graça. No meio das conversas, das mãos limpas e oleadas para mexer na barriga da parturiente, os conselhos dados como mãe a falar para filha - não te irrites, - não te canses muito, - não fiques triste - não pares de fazer força, quando te disser

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tudo isto era um rol de coisas suavemente transmitidas, com carinho e saber, com muita paciência e até paixão! A Júlia quando fazia trabalho era para trazer rapazes e raparigas perfeitos. Com ela ninguém se esvaía em sangue ou desistia de lutar, sufocando a criança, na saída. Ná, com ela, nunca. Com ela tudo se usava: cantigas, azeite puro, água a ferver, um cheiro do campo, forte e um chazinho de uma qualquer erva isso é que ela não dizia: - Segredo de família, a que ela honrosamente pertencia. E honrava. A jovem ou a mulher madura sabiam que podiam contar com ela. O que não era mau de todo. A histórias dos azares acompanhavam os nove meses de muitas mulheres que rezavam (não sabemos se elas próprias davam por isso) para que a criança não sofresse. As mulheres que eram um bem de cada família, tinham de ser este bem muito especial de partir. E corriam riscos! De qualquer forma, a Sra. Júlia era limpa, cuidadosa e tinha uma serenidade que emprestava a todo o seu trabalho uma qualquer coisa de irresistivelmente agradável. Mesmo quando aquele parto trazia algo de especial. AQUI não votara no referendo sobre a ivg. Não tinham havido discussões públicas e a única informação era dada pela televisão. Muitas mulheres ficaram com medo inexplicavelmente. Quando se aperceberam que tinham de ir dizer de sua justiça, ficaram em casa, a remoer a luta que sentiam dentro de si. Mais por desinteresse, eles também não foram. Desmanchos, às vezes aconteciam... ninguém negava por aqueles lugares que não era possível dividir o que já era tantas vezes subdividido! Por outro lado, ás vezes, também não era bem assim: o homem vinha a contar, bebido do convívio e da televisão e, zás, mesmo que não queiras, “eu gosto desta mulher, quero tê-la ao pé de mim...” e não valia de nada, bater-lhe ou espernear. E então, depois, já não achava piada. Alguma coisa tinha que se fazer. Aí, a Júlia era a mesma mulher: um filho para sair perfeito tem que ser desejado. E vai daí, lá metia a mão, sempre oleada e fazia o que tinha a fazer. Para bem da criança, dizia ela. Mas, não era matéria consensual. Porque as que tinham todos, às vezes, bem resmungavam da vida. Bem no fundo do lugar, esta questão dos filhos legítimos, ilegítimos, dos desmanchos ou desfeitos, era matéria a que as mulheres acudiam a sós e com as suas coisas. Ajudavam-se, sofriam, protegiam. Não eram conhecidos casos de abandono de crianças, maus-tratos ou violações. Pobreza alguma, mas não maldade. Os homens gostavam das suas mulheres, à sua maneira. As mulheres não podiam deixar de gostar dos seus homens. Por via da vida, não havia tantos que se pudessem trocar!

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Só os das vindimas, forasteiros mas isso só as mais novas e atrevidas que queiram ir ver Lisboa! A gravidez não distingue portanto as mulheres, uma vez que não queriam senão filhos desejados (e quando não...). Verdade é que esta questão não distingue o pessoal de Aqui. Os homens sabiam de algumas versões destes assuntos. Nem umas nem outras fizeram confidências sobre isto. 16. Os pássaros vinham comer as migalhas, poucas, que escapavam dos dedos grandes, mais finos ou fininhos. Como chegou aqui a história? Não há tecnologia de ponta: a televisão ainda só tem 4 canais conhecidos, a tv cabo só lá em baixo, máquinas eléctricas, poucas. O rio corre por baixo, as pedras lisas lá estão e os arbustos também, para corar a roupa branca. Alguns têm telemóvel mas é coisa ainda pouco interessante, sobretudo para as mulheres, que trabalham em casa, no campo, todos os dias, aparentemente menos no domingo, porque é altura de descanso. Dia do Senhor. Amén 17. ELE até sabia disto. Vinha duma casa onde os gemidos das mulheres eram coisa regular. Regular mas sempre diferente. Algumas vezes, até e meter medo, aqueles gritos e conversas que ELE só ouvia distante. - ... sai daqui que não tens idade ou, mais tarde, - ... isto é para homens! Também ELE pensava que não era para homens. Primeiro, onde é que os homens gritavam assim, a chorar, a arrepanhar tudo o que viesse ás mãos? - Onde é que os homens deixariam as lágrimas temperarem o imenso suor que libertava o esforço de parir? - Onde é que parir podia não ser sofrimento? Tudo vinha ao de cima sempre que se aproximava ou deixava que alguma rapariga o prendesse. Não havia jeito de quebrara este feitiço de se esquecer da mãe, das roupas partilhadas e das comidas sempre iguais. Queria ter uma história diferente. E foi por mór desse sonho que descera com outros Srs. Alves, de terra em terra, trabalhando, comendo, e saindo numa peregrinação em que lhe foram crescendo as paisagens, as conversas e as coisas que ia vendo e incorporando no seu vocabulário, nos seus modos de pensar. 18. Chegara a Lisboa já há algum tempo mas não se dera. A falar verdade era tudo muito perigoso: andar nas camionetas, com bilhetes furados, no metro que subia e descia para descobrir o que distinguia cada uma das paragens. Nos comércios, nas pessoas que passavam. Acção Jovem para a Paz 2003

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Rostos fechados, ausentes e sem articular palavras. Nem a saudação (que tal não se devia recusar, aprendera com a mãe). Trabalhara nas obras, nas muitas obras que irrompiam de todos os lados. Ninguém o esperava ali ou aqui e por isso, comia, lavava a roupa e fazia muitos prolongamentos. Amealhara, mas não encontrara ali a alma. Voltou, depois de algumas tropelias e desenganos. Lisboa, assim, sozinho, ná. Retomou a viagem para cima. Para cima. A falta das árvores, do sol, dos cheiros mesmos, faziam-se sentir. Beber um copo e morder pão com queijo era ...saudade! 19. Aquilo agora é que já não era brincadeira. ELA – talvez sim, talvez pudesse achar simples beijar (quem é que ELE não beijaria, só para ganhar apostas?) mas agora, com mais uns anos em cima, aquele feitiço era mais forte e não o deixava assim tão à vontade. Então, se ELE começasse a não ser indiferente, era mesmo uma luta! Não sabia o que viria a acontecer. Sempre se tinha travado a tempo e por isso, este itinerário de lugar em lugar, sem se fixar, sem deixar raízes. - Esta agora! Que quis a OUTRA com aquela conversa dos olhos verdes, de ser para breve?... Na verdade, aquilo mexeu comigo. O mais engraçado é que falou que era para breve e eu, estou para me ir embora ...Ná, não é comigo. Há mais olhos verdes... ... - Ora esta, esta fixação por ELA. Que até a podia beijar esta noite... Vai-me fazer sopa e convidou-me a entrar. Mas é melhor não, é mulher que depois é falada. E não é preciso... 20. - Olhe, trouxe um naco de toucinho que fiz no natal e um pedaço de broa. Sou eu que a faço, no meu forno a lenha, lá atrás... - ...gado. Cheira bem. À sua. - ... À sua. E comeram, contidos nas perguntas que a OUTRA lhes deixava no ar. A vida tem destas coisas. Cruzamento de desejos e vontades, mas tantos desencontros, também! (Não sei o que a sorte me traz... Este homem ... será? Quem me dirá se faço bem ou mal? Aquela coisa da criança é que me toca: uma menina! Então, que faço agora? Que fazer, mãe?) - Senhora, a sopa está boa, com a broa e o toucinho, cheira bem e sabe ainda melhor. Bom, agora é melhor ir andando. A noite já caiu... - Sim, tem razão. Está a ficar fresco. Deixe, eu vou buscar um conchego para o caminho. Fui eu que fiz. É uma aguardente com laranja. Espere. -

Deixe estar, está-se a maçar para quê... Acção Jovem para a Paz 2003

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Depois, também vou fechar as janelas e a porta.

A garrafa, de outra função, tinha umas rodelas de casca de laranja a dançar e o líquido, ouro de cor, escorregava, mansinho para um copo a modos que grosseiro para aquilo. No entanto, servia. - Uhm! Mesmo bom! - Também acho, vaidade minha. Os olhos brilhavam como as acendalhas lá longe, no céu. A fogueira que estava acesa, subira de altura, de intensidade. A noite mantinha-se plácida a aguardar o desfecho, quase anunciado. 21. - Olhe, desculpe lá, mas queria dizer-lhe - Sim,... (a distância até não era minha... nos banco improvisados das cestas das uvas.) - Sim...? - Fiquei a pensar - ... - Aquela conversa, - Pois,... - Acredita naquelas coisas? - Claro! A OUTRA disse que era. Eu já vi na televisão coisas daquelas e deram certinho. Eu não sei ler mas sei ouvir... - Eu cá até acho que... (E no meio disto tudo, aquele sentimento que sempre tenha sentido, não me afronta, não mexe, não se faz sentir!) (...mas ELE não me quer...) 22. E agora, que fazer com esta história? É tudo uma questão de avançar ou recuar. Do meio, já ninguém os tira. Este pode mesmo ser o momento que se tinha que criar para concluir a história. ELE que finalmente se aproximava duma mulher, sem ouvir os tormentos de outras mulheres. ELA, que sabendo destes sofrimentos (e alegrias!), não recusava tê-los com ELE. Por isso, era finalmente, uma noite de fadas e príncipes. De caga-lumes e cigarras. De encontros. O beijo aconteceu. Na verdade, os braços procuraram-se, os peitos tocaram-se, esmagando a ansiedade e a agonia que ia crescendo e as bocas encaixaram, trémulas, tímidas, mas decididas. Os olhos fecharam-se por segundos. Ela aprendeu e ELE saboreou, diferentemente. Quiseram-se mas ficaram por ali. Amanhã era dia também. As dores e as histórias aquietaram-se. Afinal, sempre houvera eco para os seus ais. Acção Jovem para a Paz 2003

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“Bendita a água da fonte,” que mata a sede de todos! “Bem hajas, ó luz do sol” por esta luz tão quente que nos arrebenta! “Bendita a água da fonte,” que nos afagas os corpos e lavas estes desejos! “Bem hajas urze do monte”,” que chegámos a casa! “Bem hajas (...) brisa ligeira” que nos clareias os pensamentos e nos trouxeste de volta! Bem hajas, noite! Abril 2003 Ana Paula Assunção, Chefe da Divisão do Património Cultural da Câmara Municipal de Loures

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IMAGENS

NA COMUNIDADE JUVENIL S. FRANCISCO DE ASSIS UM MUNDO MELHOR É…

Ana (15 anos): Gosta muito de comer pizzas e o seu animal preferido é o cão. Um Mundo Melhor é um Mundo sem fome, sem violência e sem guerras.

Eunice (13 anos): Gosta muito de ver televisão e o seu livro preferido é "À beira do lago dos encantos". Um mundo melhor é um Mundo só com pessoas felizes. Patrícia (11 anos): Quer trabalhar como professora. Não gosta de comer laranjas e um Mundo sem guerras é um Mundo Melhor. Fátima (7 anos): Gosta muito das Dálias e de jogar "o rei manda" Um Mundo Melhor é

Paula (8 anos): Gosta muito de comer batatas fritas com frango e gosta muito do amarelo e do azul. Um Mundo Melhor é um Mundo onde ela pode viver com os seus irmãos.

Vanessa (18 anos): Gosta muito de dançar e da cor azul. Um Mundo Melhor é um Mundo com mais Amor, menos dificuldades financeiras, com melhores condições de vida e mais discotecas.

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Ivette (9 anos): Gosta muito do livro "O gato das botas" e dos gatos em geral. Um Mundo Melhor e um Mundo sem Guerras! Sónia (5 anos): Gosta muito de comer peixe com arroz e salada com tomate. Queria ser médica! O seu Mundo Melhor e um Mundo com muito Sol! Joaquina (14 anos): Gosta dos cães e a sua cor preferida e o verde. Um Mundo Melhor e um Mundo com muito Sol!

Katrin (20 anos/ voluntária alemã): Gosta muito de usar calças e o seu animal preferido é o cão. Um Mundo Melhor é um Mundo sem guerras e com muito menos poluição.

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Sara (13 anos): Ela gosta muito do azul e de fazer desenhos. Para ela um Mundo Melhor é um Mundo onde todas as pessoas sejam amigas.

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Ana (professora): Um mundo com mais amor e menos diferenças sociais. Bela (9 anos): Gosta muito das rosas e de comer batatas fritas com bife. Para ela um Mundo Melhor é um Mundo sem guerras.

Charlotte Mohaer, voluntária francesa da AJP na Comunidade Juvenil S. Francisco de Assis

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PALAVRAS DE UM OUTRO MUNDO

Catarina: Amor. Beta: Amigos.

Marta: Amizade. Cláudia: Fraternidade.

Céu: Paz e Amor.

Mónica: Sossego. Solidariedade.

Melissa:

Kátia: Liberdade. Carolina: Sem Violência. Betina: Paz.

Dóra Kénez, Ex-voluntária na Quinta do Olho Marinho e membro da AJP

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