Quando a Natureza se vira contra nós: conflito e coreografias ecológicas em Goa colonial e na Ria Formosa (2003)

May 26, 2017 | Autor: Ricardo Roque | Categoria: Environmental Studies, Social Studies Of Science, Science and Technology Studies
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RETÓRICAS SEM FRONTEIRAS: 2 / VlOLENC1AS

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Capítulo

Neves, Francisco, 2002, "Ciganos de Vale do Forno. Para Lá Deste Muro Estão Postos Para Ali, Como Lixo Varrido Para Debaixo do Tapete" Público, 31 de Março. San Román. Teresa, 1997, La Diferencia Inquietante. Viejas eNuevas Estrategias Culturales

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QUANDO A NATUREZA SE VIRA CONTRA NÓS Conflito e coreografias ecológicas em Goa colonial e na ria Formosa

de los Gitanos, Madrid, Sigla Veintiuno Editores

Gonçalo Praça/ Ricardo Roque'

Introdução Neste artigo, falaremos de lutas que nós - humanos - mantemos com a natureza, e dos modos como esta natureza age e nos opõe os seus desígnios? Nos nossos dias, falar de uma guerra nossa contra a natureza tem porventura um tom anacrónico, imoral mesmo; parece que adoptamos uma linguagem própria dos piores momentos da nossa modernidade industrial, tempo censurável de "desrespeito" ao meio ambiente. A retórica da ecologia política dos nossos dias, em boa medida transformada em ideologia contemporânea dos estados "civilizados", insiste em olhar a natureza como uma entidade amiga, a quem devemos a placidez bucólica dos rios, os recursos q-Llebaseiam a abundância do nosso bem-estar económico, e mesmo a própria vida. Devemos protegê-la e com ela devemos viver em harmonia. Falar, pois, da natureza com a linguagem militar do conflito parece destoar deste imaginário contemporâneo. Ainda assim, afirmamos que subsiste um sentido sociológico no qual podemos discutir o modo como nós nos envolvemos em guerra, ou em luta, com a natureza - e isto mesmo quando o envolvimento com a natureza surge ligado ao discurso ecologista da preservação do meio ambiente. Pois nem a retórica arnbientalista detém o monopólio da nossa relação com a natureza, nem esta se resume à idealização da "harmonia" entre pessoas e ambiente. E é esse sentido, inscrito e emergente nas práticas dos actores, que

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Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS)/ISCTE University of Cambridge e Universidade dos Açores. De modo geral, utilizaremos o termo "Natureza" e "meio ambiente" de forma intermutável aludindo ao colectivo heterogéneo de entidades de origem e criação não humana que o discurso modernista (ou a "Constituição Modernista" de que nos fala Bruno Latour), representa e constitui politicamente como entidade distante e abissalmente separada da "Cultura", de origem e criação humanas (Latour 1991). 11'>

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pretendemos explorar ao longo deste texto. Daí perguntarmos: o que acontece quando a natureza se vira contra nós? Para discutir esta questão, juntaremos duas histórias de contextos distintos. A primeira relata um episódio da expansão colonial portuguesa no século XIX. Resume a história da expedição militar destinada a pacificar uma rebelião indígena na antiga colónia portuguesa de Coa, na Índia, em 1895-1896. A segunda relaciona-se com as intervenções protagonizadas por organismos do governo especializados na gestão de uma área protegida, o Parque Natural da Ria Formosa (PNRF), no Algarve actual. A razão para a reunião de objectos aparentemente tão distantes no espaço e no tempo radica em razões teóricas e sociohistóricas. Por um lado, consideramos que, embora separados por 100 anos, estes dois eventos fazem parte de um processo comum de construção da modernidade ocidental. Demonstram a passagem do governo dos homens" à "administração das coisas": a criação daquilo a que Paul Rabinow (1995) chamou, seguindo Foucault, "governamentalidade" moderna." Por outro lado, interessa-nos que o colonialismo e o governo da natureza tenham sido explicados com ideias afins - de um lado, a dominação imperial; do outro, a "hegemonia" estatalque denunciam o exercício da dominação a partir de uma posição estratégica de poder. Por exemplo, no campo genericamente conhecido como "ecologia política" encara-se explicitamente a gestão da natureza como uma continuação do colonialismo por outros meios. Nesta perspectiva, ambos poderão ser entendidos como formas de criação e de incorporação de "outros"; este impondo-se pela força, aquela ao último avanço da história da como regime de verdade", correspondendo expansão e domínio da racionalidade tecnocrática ocidental." Ainda assim, não vamos comparar strictu senso os procedimentos do império português com os do moderno estado democrático; não queremos estabelecer relações entre o império e a democracia, o colonialismo e a gestão da natllreza. Partimos apenas do princípio de que estes eventos pertencem, na longa duração, aos mesmos processos tecnológicos de construção da modernidade de tipo ocidental. Habitam numa mesma retórica, onde os termos da dominação do estado e da resistência ao estado são centrais, quer se trate li

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QUANDO A NATUREZA SE VIRA CONlRA NÓS

RETÓRICAS SEM FRONTEIRAS: 2 / VIOLÊNCIAS

do meio ambiente, quer de populações indígenas. Poderão os olhares sobre a violência colonial servir para iluminar teoricamente as formas de poder envolvidas na gestão ambientalista da natureza, e vice-versa? Tentaremos ver como é que, no quadro de uma forma alternativa de ver o imperialismo - o império em acção (Roque 2001) -, é possível descobrir igualmente formas alternativas de analisar o ordenamento do território, a delimitação de áreas e populações protegidas, a governação da natureza. A análise centrar-se-á, assim, na tentativa de deslocar o entendimento dos processos de poder estatal da desmontagem das "ideologias" para a compreensão das práticas de como se faz o império, e como se faz o ordenamento. Propomos observar o império e o ordenamento em acção, a coexistência de projectos contraditórios, ajustamentos, conflitos, e negociações instáveis, a redistribuição contínua da agência" entre entidades humanas e não humanas. O argumento central deste artigo deriva do desenvolvimento desta abordagem. Quando a natureza. se vira contra "nós", na Índia ou no Algarve, damos conta de instáveis coreografias ecológicas que reúnem entidades naturais e humanas, e procedem através de tentativas de alistamento de elementos eventualmente hostis, da criação de alinhamentos circunstanciais, frágeis, sempre à beira da ruptura, entre Estado, meio ambiente e grupos de actores humanos. A "nossa" força sobre o ambiente descreve-se melhor como modalidade de alianças tácticas, precárias, de contra-vulnerabilidade (Roque, no prelo), mais do que pelo jargão retórico da hegemonia ou do controlo da natureza. Tentaremos mostrar como a natureza surge simultaneamente como objecto, sobre a qual se projectam acções de governo, e como agente autónomo e inimigo, com desígnios próprios definidos por oposição ao programa de acção estatal. De forma simétrica, diversos grupos de actores humanos emergem como objectos de ataque do meio ambiente e como agentes votados ao seu controlo.

A revolta dos ranes e a pacificação

da índia em 1895

A primeira história transporta-nos até à última década do século XIX e a uma dramática revolta nativa contra o estado colonial português? Vivia-se então 4

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o próprio trabalho de Rabinow (1995)sobre o urbanismo francês fornece um outro exemplo para ligar colonialismo e gestão estatal metropolitana, partindo da ideia de governamentalidade. Argumenta Rabinow que, no caso francês, as modernas tecnologias metropolitanas de governo do espaço e das coisas tiveram como "tubo de ensaio" o terreno da
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