Quando a subjectividade se torna conhecimento científico: Ferrarotti e a abordagem biográfica nas ciências sociais

May 30, 2017 | Autor: Pedro Patacho | Categoria: Sociologia, Ciências Sociais, Metodologias de Pesquisa, Método Biográfico
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Haveria porventura muitas formas possíveis de começar a nossa análise, mas acreditamos que uma maneira promissora de o fazer é referindo-nos explicitamente ao título da obra em apreço, a saber, Sobre a Ciência da Incerteza. É um título poderoso e provocador, particularmente se tivermos em conta o momento em que foram escritos os textos que Franco Ferrarotti reúne nesta obra. Como o autor deixa escrito no prefácio, estes ensaios foram elaborados ao longo da década de 1980 e constituem «um reflexo da crescente consciencialização acerca das limitações das ferramentas puramente quantitativas na investigação em ciências sociais» (p. 9). As décadas anteriores a 1980 foram o palco de acaloradas discussões filosóficas, que se prolongaram por essa década dentro, em *

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Texto da apresentação da obra de Franco FERRAROTI, Sobre a ciência da incerteza. O método biográfico na investigação em Ciências Sociais (Prefácio do autor; tradução de Narrativa Traçada; revisão do texto de Isabel Henriques e Pedro M. Patacho. Luanda, Edições Mulemba; Mangualde, Edições Pedago, 2013, 98p. [Oficina de Ciências Sociais e Humanas]), no dia 7 de Agosto de 2013, no anfiteatro principal da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Agostinho Neto (UAN). Professor Adjunto do Instituto Superior de Ciências Educativas (ISCE), Portugal e investigador no Departamento de Pedagogia e Didáctica da Universidade de Coruña, Reino da Espanha, onde prepara a sua tese de doutoramento. É Director das Edições Pedago.

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torno dos aspectos ontológicos, epistemológicos, axiológicos e metodológicos definidores daquelas que ficaram conhecidas como sendo as duas grandes orientações na investigação em ciências sociais: i) a orientação positivista/empirista e ii) a orientação construtivista/fenomenológica. É hoje razoavelmente consensual que esses debates emergiram sobretudo em oposição à enorme influência que a tradição positivista/empirista exerceu sobre as práticas de investigação em ciências sociais. À medida que os investigadores se foram apercebendo de que a pluralidade e a complexidade dos universos de vida exigiam uma nova abordagem ao estudo empírico das questões, foram caminhando na direcção de métodos progressivamente mais abertos, que se ajustassem ao estudo dos significados subjectivos e das práticas quotidianas, agora entendidos como conhecimentos e práticas locais, indissociáveis de um contexto sociohistórico e cultural específico. É no seio destes debates (que na verdade se inserem numa outra questão mais ampla relacionada com o próprio significado da ciência enquanto empreendimento humano) que devem ser entendidos os ensaios de Ferrarotti. Como deixa bem claro logo na introdução, «determinados problemas cruciais só podem sem enfrentados através de uma abordagem qualitativa, na qual o entendimento não é sinónimo de medição matemática. Esta abordagem assenta principalmente em materiais autobiográficos [...]» (p. 11), o que remete desde logo, na perspectiva do autor, para dois aspectos essenciais: i) a redescoberta do valor do indivíduo, o que implica voltar a atenção para os significados subjectivos; eii) a dimensão histórica dos fenómenos sociais. Ao longo dos seis ensaios que estruturam esta obra, Ferrarotti tenta recuperar aquilo que na sua perspectiva deve constituir a preocupação dos investigadores sociais, ou seja, o estudo da substância viva dos sujeitos em sociedade, as suas memórias e experiências de vida; nas suas próprias palavras, «a história em construção» (p. 33). Não devemos desligar estas preocupações do próprio percurso pessoal do autor, da sua autobiografia. Ferrarotti obteve em 1960 a primeira cátedra em Sociologia instituída no sistema universitário italiano. Em 1965 tornou-se fellow do Centro de Estudos Avançados em Ciências do Comportamento, em Palo Alto, na Califórnia. Nessa altura, Palo Alto era um dos centros de efervescência tecnológica daquilo que ficou conhecido como a bolha tecnológica de Silicon Valley. Grandes corporações mundiais como a HP ou a Apple, nesses tempos, e muitas outras, mais tarde, surgiram ou fixaram-se em Palo Alto. Estas experiências pessoais de Ferrarotti, enquanto cientista social

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ligado ao mundo do trabalho e da tecnologia, foram certamente determinantes de um percurso intelectual ao longo do qual o autor foi rejeitando a subserviência da ciência e dos cientistas sociais ao mercado e, mais do que isso, criticando violentamente a ideia de uma suposta ciência social neutra e objectiva, para reclamar, em vez disso, uma outra epistemologia das ciências sociais. Devemos sinalizar aqui a precisão com que Ferrarotti nos diz que os materiais autobiográficos constituem os dados essenciais na investigação qualitativa, pois é aí que compreendemos a perspectiva ampla de abordagem biográfica que o autor propõe e que integraas histórias de vida, mas não se limita a elas. Deste modo, abordagem biográfica, tal como proposta nesta obra, aponta tanto para o estudo dos indivíduos, como dos grupos e de associações básicas numa situação histórica determinada. A este respeito Ferrarotti adverte-nos para a necessidade de adoptar uma historicidade não-historicista, ou seja, uma ruptura com a noção de história enquanto sucessão diacrónica. Na perspectiva do autor, o projecto de «identificar e interpretar as invariantes estruturais ou as convergências que emanam tacitamente das histórias de vida individuais no quadro de um contexto histórico específico substitui [...] o procedimento uniforme e automático do desenvolvimento historicista, dotado, a nível escolástico e dogmático, de uma metodologia historiográfica, agora claramente absurda na medida em que aquilo que vem depois é sempre e por definição justificado e explicado por aquilo que veio antes» (p. 40). Desta forma, conceder o adequado peso à história na abordagem biográfica significa concebê-la não apenas como a memória do passado, mas como consciência crítica do presente e base operativa para o futuro. Isso significa que a história deixa «de ser concebida de forma restritiva, como a sequência nobre de grandes acontecimentos [...] mas sim como o resultado cumulativo dos laços e das redes de relações celebradas diariamente» (p. 42) por sujeitos e grupos humanos em virtude das suas necessidades (cf. CASTELLS 2007). São estes sujeitos anónimos que no seu agir quotidiano formam a substância viva do processo histórico enquanto construção activa de uma memória colectiva. Assim, a perspectiva histórica relevante para a abordagem biográfica aqui proposta é aquela que concebe a histórica como «a essência do quotidiano, o esclarecimento e a interpretação das práticas de vida e da prática da tradição [...] [que] não são revisitadas com

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sentimentalismo enquanto mero folclore popular, mas criticamente reavaliadas, em simultâneo, como visões do mundo […] e constelações de valores [...] relacionadas com, e confirmadas pela experiência de vida quotidiana» (p. 44).A clarificação deste aspecto inerente à abordagem biográfica é importante e relaciona-se profundamente com a produção do saber numa África contemporânea em que o antigo e o supostamente moderno surgem entrelaçados de formas que urge compreender (cf. HOUNTONDJI 2012). Entendido nestes temose em virtude da ruptura paradigmática que estabelece com as formas mais tradicionais de investigação, o método biográfico em ciências sociais é não apenas uma via para a compreensão do outro, mas uma forma de auto-conhecimento, um percurso interpretativo que inscreve a investigação num plano crítico e conduz o investigador à clarificação dos compromissos e implicações políticas e culturais inerentes ao seu trabalho, à medida que constrói a sua relação próxima e de confiança com os sujeitos ou grupos objecto de investigação. A biografia é, então, interacção e participação. Aquilo que é valorizado é a «plenitude subjectiva do significado no contexto de uma comunicação interpessoal complexa e recíproca entre o narrador e o observador» (p. 57). A natureza distintiva da abordagem biográfica reside no facto de a um tempo procurar a compreensão dos sujeitos e da sociedade através da biografia que é entendida não como um mero relato de experiências vividas, mas uma micro-relação social complexa marcada por tensões, conflitos e dinâmicas de poder (cf. ELA 2013). O indivíduo é aqui entendido como «um polo activo que se fixa nas estruturas e na história de uma sociedade [...] Longe de ser um reflexo do social, apropria-se dele, interfere nele, filtra-o e tradu-lo ao projectá-lo para uma outra dimensão, a da sua subjectividade [...] [que reinventa] sem cessar» (p. 58). O estudo desta relação dinâmica complexa, desta passagem simultânea da biografia à sociedade e vice-versa, significa prestar atenção cuidada aos espaços de mediação, os espaços humanos de negociação e construção activa de significados que permitem compreender os sujeitos como «um conjunto de relações sociais» (p. 69; cf. BALANDIER 2013; 2013a). De tudo isto resulta, na perspectiva do autor, a relevância da abordagem biográfica face a duas necessidades essenciais: A necessidade de renovação metodológica e a necessidade de uma nova antropologia que figura no capitalismo avançado (e agora globalizado) em que as explicações de ordem estrutural e as categorias gerais avançadas pelas

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ciências sociais já não satisfazem os seus destinatários (cf. FLICK 2005). Como deixa escrito, «as pessoas desejam entender as suas vidas quotidianas, as suas dificuldades, contradições, tensões e problemas [...] por conseguinte, é requerida uma ciência da mediações susceptível de traduzir as estruturas sociais em comportamento individual ou micro-social» (p. 82). A investigação desemboca assim numa perspectiva pós-estrutralista de compreensão das dinâmicas sociais (cf. DENZIN & LINCOLN 2011). Desta forma, a abordagem biográfica, tal como proposta nesta obra, não apenas aceita a subjectividade inerente aos sujeitos comoreivindica uma hermenêutica da interacção. Assim, o essencial dos materiais utilizados serão então os materiais biográficos primários, a saber, os relatos autobiográficos recolhidos directamente pelo investigador (muitas vezes no âmbito de uma entrevista aberta) e os materiais biográficos secundários, ou seja, os materiais biográficos de qualquer tipo que não resultem de uma interacção primária do investigador com os sujeitos. Os materiais primários, por oposição aos secundários, implicam «necessariamente, para efeitos de recolha em condições aceitáveis, uma situação de base e um estatuto de igualdade entre os investigadores e os objectos de investigação [...] [verificando-se] a transformação da investigação em investigação “conjunta” quer ao nível teórico, quer ao nível prático» (p. 90). Para novas abordagens, novas condições. Quer isto dizer que os critérios clássicos de validade e as condições básicas de qualidade da investigação não se adequam à abordagem aqui proposta. Novos critérios de validade e novas condições de qualidade impõem-se numa investigação que se baseia numa outra visão do mundo, uma outra perspectiva de conceber tanto a realidade como as formas de a conhecer (cf. LINCOLN, LYNHAM & GUBA 2011). É por isto importante que antes de dirigirem ao «supermercado» dos «métodos», os investigadores compreendam bem porque tomam determinada direcção e as razões das suas escolhas (PATACHO 2013). Ainda que não se apercebam, a sua visão do mundo é determinante nos processos de tomada de decisão, pelo que se impõe um exercício profundo de reflexão crítica sobre as questões que moldam essa mesma visão. A escolha de um tema, o interesse por determinadas correntes teóricas, a problematização da realidade social, a escolha do método não são processos neutros, mas culturalmente fundados na pessoa do investigador, na sua história, no seu percurso de vida, nos valores que defende, em suma, na sua autobiografia.

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Referências bibliográficas BALANDIER G. 2013a, Sociologia das Brazzavilles Negras. Luanda, Edições Mulemba; Mangulde, Edições Pedago [Reler África]. 2013b, Sociologia da África Negra. Luanda, Edições Mulemba; Mangualde, Edições Mulemba [Reler África]. CASTELLS M. 2007, A era da informação. Economia, sociedade e cultura. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 3 volumes. DENZIN N. & LINCOLN Y. 2011, Handbook of qualitative research. Thousand Oaks, Sage Publications. ELA J.-M. 2013, Restituir a história à África Negra. Promover as ciências sociais na África Negra. Luanda, Edições Mulemba; Mangualde, Edições Pedago [Reler África]. FLICK U. 2005, Métodos qualitativos na investigação científica. Lisboa, Monitor.

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HOUNTONDJI P. 2012, O antigo e o moderno. A produção do saber na África contemporênea. Luanda, Edições Mulemba; Mangualde, Edições Pedago [Reler África]. LINCOLN Y.; LYNHAM S. & GUBA E. 2011 (4.ª edição), Paradigmatic controversies, contradictions and emerging confluences, revisited, in N. Denzin & Y. Lincoln (orgs.), Handbook of qualitative research. Thousand Oaks, Sage Publications, pp. 97-128. PATACHO P. 2013, «Investigar em Ciências Sociais», Revista Angolana de Ciências Socias, n.º 11, pp.107-119.

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Pedro Manuel Patacho (cf. infra, p. 28)

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