Quando a traição torna-se uma enfermidade: a infidelidade política e a prática do morbo gothorum no reino hispano-visigodo de Toledo (século VII).

May 31, 2017 | Autor: Renan Frighetto | Categoria: Late Antiquity, Early Middle Ages (History), Visigothic Spain, Visigodos
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Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1.

QUANDO A TRAIÇÃO TORNA-SE UMA ENFERMIDADE: A INFIDELIDADE POLÍTICA E A PRÁTICA DO MORBO GOTHORUM NO REINO HISPANOVISIGODO DE TOLEDO (SÉCULO VII)

WHEN BETRAYAL BECOMES AN ILLNESS: POLITICAL INFIDELITY AND PRACTICE OF MORBO GOTHORUM IN THE HISPANO-VISIGOTH KINGDOM OF TOLEDO (SEVENTH CENTURY).

Renan Frighetto Universidade Federal do Paraná _________________________________________________________________________________________________________

Resumo: Ao longo do século VII, o reino hispano-visigodo de Toledo foi palco de diversas tentativas de usurpação do poder régio por parte de segmentos aristocráticos e nobiliárquicos rivais ao rei e aos seus mais próximos aliados políticos. Atitudes que reforçam a ideia, presente na historiografia, da incontrolável sanha infiel de importantes grupos aristocrático-nobiliárquicos contra o monarca reinante e contra o reino. Esta tendência à traição, com a ruptura dos juramentos de fidelidade prestados ao rei, denominada como o morbo gothorum, aparece nas fontes como uma autêntica “enfermidade política” que enfraqueceu a instituição monárquica hispano-visigoda, levando o regnum gothorum à confrontação interna e a consequente desaparição no início do século VIII.

Abstract: Throughout the seventh century, the Hispano-Visigoth kingdom of Toledo was the scene of several attempts of usurpation of royal power by aristocratic and noble segments rivals to the king and his closest political allies. Attitudes that reinforce the idea, present in the historiography of uncontrollable infidel’s rage important aristocratic-noble groups against the reigning monarch and against the kingdom. This tendency to betrayal, with the disruption of loyalty oaths provided the king, the morbo gothorum, appears in the sources as a true "political illness" that weakened the HispanoVisigoth monarchic institution, leading the regnum gothorum to the internal confrontation and consequent disappearance in the early eighth century.

Palavras-chave: Antiguidade Tardia; Reino Hispano-visigodo de Toledo; Infidelidade Política; Traição Política; Morbo Gothorum.

Keywords: Late Antiquity; HispanoVisigoth Kingdom of Toledo; Political Infidelity; Political Betrayal; Morbo Gothorum.

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Recebido em: 05/05/2016 Aprovado em: 25/06/2016

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Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. “…lo que era más digno de ser historiado…”1

A escrita da história, os seus reflexos e suas relações com o poder. A primeira vista pode parecer curioso que iniciemos nosso estudo evocando o relevo que o conhecimento histórico deve ocupar na formação de cada individuo que reverberará no aprimoramento do conjunto de toda a sociedade ou, como diriam os autores da época clássica, da comunidade cívica2. De fato, desde os tempos de Heródoto e Tucídides, conhecer o passado tinha uma concepção figurada no sentido de “tornar claro” os mais importantes acontecimentos de outrora que foram, em alguns casos, vivenciados pelo próprio autor daquela narrativa sendo, na maioria das vezes, desconhecidos por aquele que os descobria através da declamação ou da leitura. Logo ao “tornar claro” um acontecimento, descrevendo-o e explicando-o, aquele que escrevia a história acabava oferecendo ao conjunto dos cidadãos uma perspectiva própria, particular, que ao alcançar um público maior ganhava uma conotação e compreensão mais ampla, exemplar e universal 3 . Lembramo-nos, por exemplo, das detalhadas descrições de batalhas, cercos e destruições de cidades que revelavam, por certo, tanto o olhar presencial daqueles episódios como a fascinação por determinados personagens e sistemas políticos que destacavam-se naquele contexto que era objeto da abordagem do autor da história4. Uma história escrita em primeira pessoa e que encontra ecos em outros documentos, em outras fontes manuscritas e arqueológicas que a tornam, também, única

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GASCÓ, Fernando, La crisis del siglo III y la recuperación de la Historia de Roma como un tema digno de ser historiado, Studia Historica Historia Antigua, v. IV-V, 1986-1987, p.171. 2 CICERUS, DE PLINVAL, Georges (ed.). De Legibus, I, 5-6, Paris: Les Belles Lettres, 1959; CICERÓN, Sobre el orador, II, 12, 51 ; 15, 62-63. Introdução, tradução e notas: José Javier Iso. Madrid: Editorial Gredos, 2002; ver também PICAZO GURINA, Marina, Los hombres reunidos en la plaza: la toma de decisiones colectivas en el mundo antiguo, Gerión, v. 31, 2013, pp. 211; ANDRÉS SANTOS, Francisco J. Roma. Instituciones e ideologías políticas durante la República y el Imperio. Madrid: Editorial Tecnos, 2015, p.105-112. 3 PRADO, Anna, ROMILLY, Jacqueline. Tucídides. História da Guerra do Peloponeso: Livro I (=Tuc., HGP). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. XXI; NICOLAI, Roberto. The place of history in the ancient world. In: MARINCOLA, J. (ed.). A Companion to Greek and Roman Historiography. Oxford: Blackwell, 2007, v. I, p.14-15. 4 Como, por exemplo, no caso de Políbio ao narrar os cercos e destruição de Cartago e Numancia onde surge, de forma destacada, o grande personagem da república romana no século II a.C., Cipião Emiliano. Para tanto, vide MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização. A interação cultural das civilizações grega, romana, céltica, judaica e persa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p.27-49; GABBA, Emilio, Aspectos culturales del imperialismo romano. In: GABBA, Emilio, LAFFI, Umberto, Sociedad y política en la Roma republicana. Pisa: Pacini Editore, 2000, p.209-234; ANDRÉS SANTOS, Francisco J. Roma. Instituciones e ideologías políticas durante la República y el Imperio. Madrid: Editorial Tecnos, 2015, p. 126-131.

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Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. e, ao mesmo tempo, universal e plena de vários exempla para “contribuir à formação do cidadão e do homem de poder”5. Esta perspectiva universal aparece, também, em muitas outras obras históricas ao longo do processo histórico, motivo pelo qual a definição e o conceito de história ganharam explicações bastante interessantes e acordes com o contexto histórico daqueles que tentaram oferece-las. Vejamos um caso em particular relacionado com as nossas pesquisas e que faz referência ao conceito de história na Antiguidade Tardia: referimo-nos aos escritos legados pelo bispo Isidoro de Sevilha (560? – 636+), indubitavelmente um dos maiores baluartes político-culturais do reino hispano-visigodo de Toledo e de todo o ocidente tardo-antigo dos primórdios do século VII6. Em um de seus mais importantes tratados, as Etimologias, o hispalense7 apresenta uma interessante explicação sobre o que seria a história: História é a narração dos acontecimentos pela qual se conhecem os sucessos que tiveram lugar no passado. O nome história deriva em grego de historein que significa ‘ver’ ou ‘conhecer’. É que entre os antigos escreviam histórias apenas aqueles que tinham sido testemunhos e haviam visto os fatos que deviam ser narrados. Melhor conhecermos os fatos que observamos com nossos próprios olhos que aqueles que sabemos de ouvido8.

Parte significativa desta definição segue, em linhas gerais, aquela já apresentada pelos autores das épocas clássica e helenística9. Porém, a parte final da citação isidoriana aporta algo de novo com relação aos autores do passado greco-romano, quando afirma que, do ponto de

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NICOLAI, Roberto. The place of history in the ancient world. In: MARINCOLA, J. (ed.). A Companion to Greek and Roman Historiography. Oxford: Blackwell, 2007, v. I, p.24. 6 DIAZ Y DIAZ, Manuel Cecilio. De Isidoro al siglo XI. Ocho estudios sobre la vida literaria peninsular. Barcelona: El Albir Universal, 1976, pp.143-201; FONTAINE, Jacques. Isidoro de Sevilla. Génesis y originalidad de la cultura hispánica en tiempos de los visigodos. Madrid: Ediciones Encuentro, 2002, p.8598; FRIGHETTO, Renan. A comunidade vence o indivíduo. A regra monástica de Isidoro de Sevilha (século VII). Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 65-74. 7 Hispalense é “oriundo de Sevilha” ou “sevilhano”, epíteto aplicado pela historiografia a Isidoro por ter, provavelmente, nascido e recebido sua formação erudita e ocupado a função episcopal em Hispalis/Sevilha. 8 As traduções ao português feitas neste artigo são do autor deste trabalho. Nesse sentido, oferecemos em nota as citações latinas das mesmas. ISIDORUS HISPALENSIS, DIAZ Y DIAZ, Manuel (ed.), OROZ RETA, Jose (ed.), MARCOS CASQUERO, Manuel(ed.). Etymologiarum Libri XX (= Isid., Etym.). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1982. Isid., Etym, I, 41, 1: “Historia est narratio rei gestae, per quam ea, quae in praeterito facta sunt, dinoscuntur. Dicta autem Graece historia (...), id est a videre vel cognoscere. Apud veteres enim nemo conscribebat historiam, nisi is qui interfuisset, et ea quae conscribenda essent vidisset. Melius enim oculis quae fiunt deprehendimus, quam quae auditione colligimus”. 9 Tuc., HGP, I, 22, 3-4; POLIBIUS, DIAZ TEJERA, A. (ed.), BALASH RECORT, Manuel, (ed). Historias, I, 1-6. Madrid: Editorial Gredos – Biblioteca Clásica Gredos 38, 1981.

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Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. vista da história, aquilo que vemos tem mais “veracidade” do que se a mesma informação fosse ouvida. Ideia complementada pelo próprio hispalense com a seguinte afirmação: As coisas que se veem podem narrar-se sem falsidade. Esta disciplina (história) se integra na gramática porque às letras se confia tudo que é digno de recordação...10.

Nesse caso, o pensamento isidoriano apresenta-se totalmente vinculado as interpretações legadas por Agostinho de Hipona (354 – 430+) no seu tratado De Ordine, onde a relação entre a história, a verdade e as letras levavam o conhecimento histórico a ser integrado no âmbito da Gramática11. Mas, além disso, percebemos uma interessante vinculação entre o escrito, manuscrito gravado pelas letras, como aquilo que é visto, presenciado pelo ato de ler o documento escrito fazendo com que este seja um reflexo da verdade e, ao mesmo tempo, signo evidente da história. Portanto, podemos dizer que Isidoro de Sevilha oferece-nos uma concepção histórica transformada, atualizada com relação ao mundo clássico-helenístico que o precedeu, acentuando a importância dada ao documento manuscrito que legaria às gerações futuras a “verdade” da história nele contida. Essa associação complementa-se com o destaque oferecido pelo hispalense ao leitor das informações passadas pelas obras de história: As histórias dos povos não deixam de proporcionar aos leitores coisas úteis que nelas são ditas. Muitos sábios, tomando-as das histórias, narraram acontecimentos humanos de épocas passadas para ensinamento do momento presente...12

Assim, a história teria um papel fundamental ao formar e informar o indivíduo, na medida em que o passado, registrado e preservado, ofereceria lições, ensinamentos e alertas ao leitor no seu presente histórico. Certamente aquele, o leitor, pertenceria a um grupo mais destacado do ambiente sociopolítico e cultural naquelas monarquias romanobárbaras onde circulavam as histórias dos mais variados grupos, fossem eles de

Isid., Etym., I, 41, 2: “Quae enim videntur, sine mendacio proferuntur. Haec disciplina ad Grammaticam pertinet, quia quidquid dignum memoria est litteris mandatur...”. 11 AURELII AUGUSTINI HIPPONENSIS EPISCOPI, . MIGNE,J.-P. (ed.). De Ordine, II, 12, 37. Paris: Patrologia Latina XXXII, 1861; sobre a importância da Gramática na obra isidoriana, FONTAINE, Jacques. Isidoro de Sevilla. Génesis y originalidad de la cultura hispánica en tiempos de los visigodos. Madrid: Ediciones Encuentro, 2002, p.116. 12 Isid., Etym., I, 43: “Historiae gentium non inpediunt legentibus in his quae utilia dixerunt. Multi enim sapientes praeterita hominum gesta ad institutionem praesentium historiis indiderunt…” 10

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Para “tornar clara” esta narrativa do passado/presente através das obras de história, seria necessária a aplicação de um método que auxiliasse o autor de história em sua caminhada redacional, aspecto este muitas vezes olvidado por aqueles que estudam a produção historiográfica, lançando aos séculos XVIII, XIX e XX a “invenção” e a incorporação da metodologia como princípio gerador do conhecimento histórico-científico. Embora sem a conotação científica, mas amparado no preceito de disciplina voltada ao saber, a escrita da história nos mundos antigo, tardo-antigo e medieval contemplava a existência de um método com vistas a alcançar resultados, como os que são indicados pelo pensamento isidoriano: ...As histórias recebem também o nome de ‘monumentos’ porque guardam a recordação dos acontecimentos ocorridos. Se chamam ‘séries’, graças ao sentido translato de guirlanda de flores, entrelaçadas umas com as outras.15 ...Durante muitos séculos foram governados por chefes, depois por reis, cuja cronologia, nomes e atuação convêm expor por ordem e sucessivamente, servindo-nos para isso de dados retirados das histórias.16

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VELAZQUÉZ, Isabel. Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633). In: GOETZ, H. W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p.165; GEARY, Patrick. O Mito das Nações. A invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad Livros, 2005, p.149-158; FRIGHETTO, Renan, Identidade(s) e fronteira(s) na Hispania visigoda, segundo o pensamento de Isidoro de Sevilha (século VII). In: FERNANDES, F. R. (org.). Identidades e Fronteiras no Medievo Ibérico. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p.111-116. 14 Isid., Etym., I, 44, 4: “...Inter historiam autem et annales hoc interest, quod historia est eorum temporum quae vidimus, annales vero sunt eorum annorum quos aetas nostra non novit. Vnde Sallustius ex historia, Livius, Eusebius et Hieronymus ex annalibus et historia constant." 15 Isid., Etym., I, 41, 2: “...Historiae autem ideo monumenta dicuntur, eo quod memoriam tribuant rerum gestarum. Series autem dicta per translationem a sertis florum invicem conprehensarum.” 16 ISIDORI HISPALENSIS EPISCOPI, De origine gothorum (=Isid.,HG), 2: “...Per multa quippe retro saecula ducibus usi sunt, postea regibus, quorum oportet tempora per ordinem cursim exponere et quo nomine actuque regnauerint, de historiis libata retexere”, RODRÍGUEZ ALONSO, Cr (ed.). Las Historias de los Godos, Vandalos y Suevos de Isidoro de Sevilla. Leon, Colegiata de San Isidoro, 1975.

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Logo, de acordo com estas citações isidorianas, o recurso da consulta aos documentos manuscritos, dentre os quais encontramos as histórias, seria a via preferencial para o desenvolvimento da própria história, sempre relatada segundo o seu curso cronológico. Assim, a história concilia-se com a cronologia e podemos dizer que a primeira inexiste sem a segunda aparecendo, na perspectiva do hispalense, de forma lógica, sequencial e explicativa. Para tanto, as histórias necessitavam alimentarse de outros documentos que seriam complementares e confirmadores das informações oferecidas. Estes seriam de caráter múltiplo, legislativos, epistolares, panegirísticos, biográficos e autobiográficos que contribuiriam decisivamente à elaboração e confirmação das afirmações apresentadas nas histórias. O próprio hispalense oferece-nos um exemplo desta busca ao informar um aspecto, apontado como relevante, que fora desenvolvido pelos godos a partir do reinado de Eurico (466 – 484+): “...Em seu reinado, os godos começaram a ter leis escritas, pois anteriormente se regiam somente segundo seus usos e costumes...” 17. É evidente que o relato histórico isidoriano recuperava um dado inquestionável, o da formulação do código de Eurico, conjunto de leis válidas aos godos redigido entre 469 e 481 e paralelo ao conjunto legislativo maior representado pelo código imperial reunido pelo imperador romano-oriental Theodosio II (422 – 450+) aplicado aos súditos de origem romana18. Por outro lado, observamos certas “lacunas” deixadas na história isidoriana sobre as informações relativas a outros monarcas godos, caso do antecessor de Eurico, seu irmão Theodorico II (430 – 466+) que de acordo com o bispo de Clermont-Ferrand e contemporâneo ao crescimento da hegemonia goda sobre a Galia, Sidônio Apolinario, já teria promulgado leis entre os godos antes de Eurico: ...Exaltando os godos e insultando os romanos, zombando dos prefeitos por fazerem acordos com os oficiais do tesouro, atropelavam as leis de

Isid., HG, 35: “...Sub hoc rege Gothi legum instituta scriptis habere coeperunt, nam antea tantum moribus et consuetudine tenebantur...”. 18 WARMALD, Patrick. The Leges Barbarorum: law and ethnicity in the post-roman west, in: GOETZ, H. W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p.27-28; DUMÉZIL, Bruno. Le comte et l’administration de la cité dans le Bréviaire d’Alaric. In: ROUCHE, M., DUMEZIL, B. (dir.). Le Bréviaire d’Alaric. Aux origines du Code civil Paris: Press Universitaire Paris-Sorbonne, 2008, p.85; HILLGARTH, Jocelyn. The Visigoths in history and legend. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 2009, p.8-9. 17

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Theodosio substituindo-as pelas de Theodorico, buscavam antigos delitos e novos impostos...19 .

É possível que este “esquecimento” no relato histórico isidoriano tivesse relação direta com a recuperação e atualização das leges antiquas existentes no código de Eurico a partir do reinado de Leovigildo (569 – 586+), promotor da grande ação hegemônica goda sobre a Hispania e que leva-nos a sugerir a existência de uma monarquia hispanovisigoda a partir de então20. Como nos indica Isidoro: ...Além disso, em matéria legislativa (Leovigildo) corrigiu tudo aquilo que parecia haver ficado confusamente estabelecido por Eurico, agregando muitas leis omitidas e tirando as supérfluas...21.

Dessa forma podemos dizer que a história dos godos do hispalense tinha, como foco central, refletir o seu presente histórico como produto dos acontecimentos selecionados, ou por ele conhecidos, ocorridos no passado mais distante e diretamente vinculado aos godos e a sua supremacia política sobre o império romano e as monarquias romano-bárbaras dele herdeiras no ocidente tardo-antigo. Com isso a “verdade” histórica proposta pelo relato isidoriano relacionava-se ao fortalecimento da monarquia hispanovisigoda fundamentado, por um lado, nas vitórias militares iniciadas no tempo de Leovigildo e “concluídas” no reinado de Suinthila (621 – 631) e, por outro, pela conversão ao catolicismo realizada no III concílio de Toledo de 589 durante o reinado do filho e sucessor de Leovigildo, Recaredo (586 – 601+). De fato, estes últimos acontecimentos são apresentados pelo relato isidoriano de uma forma quase épica,

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SIDONII APOLINARIS, LOYEN, André (ed.). Epistularum, Paris: Les Belles Lettres, 2003, livre I. Ep., II, 1, 3: “...exsultans Gothis insultansque Romanis, inludens praefectis conludensque numerariis, leges Theodosianas calcans Theudoricianasque proponens ueteres culpas, noua tribute perquirit...”. Na opinião de VALVERDE CASTRO, Maria Rosario. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2000, p. 71, “…Es más probable pensar, por lo tanto, que fuera Teodorico II el otro de los monarcas legisladores, anteriores a Eurico, a los que parece hacer referencia el Codex Euricianus…”; WARMALD, Patrick. The Leges Barbarorum: law and ethnicity in the post-roman west, in: GOETZ, H. W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p.26. 20 GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Catedra, 1989, p. 113-131; VELAZQUÉZ, Isabel. Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633). In: GOETZ, H. W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). .). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p.173-174; FRIGHETTO, Renan. Símbolos e rituais: os mecanismos do poder político no reino hispano-visigodo de Toledo (séculos VI – VII), Anos 90, v. 22, n. 42, 2015, p.250-253; FRIGHETTO, Renan. A comunidade vence o indivíduo. A regra monástica de Isidoro de Sevilha (século VII). Curitiba: Editora Prismas, 2016, p.36. 21 Isid., HG, 51: “...In legibus quoque ea quae ab Eurico incondite constituta uidebantur correxit, plurimas leges praetermissas adiciens plerasque superfluas auferens...”

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direcionando toda a sua energia para realçar a grandeza dos monarcas responsáveis por tais iniciativas e, consequentemente, da monarquia hispano-visigoda: ...Desde os primórdios de seu reinado Recaredo se converteu à fé católica e levou ao culto da verdadeira fé a todas as gentes godas, apagando assim a mancha de um erro enraizado. Em seguida, reuniu um sínodo de bispos das diferentes províncias da Hispania e da Galia para condenar a heresia ariana. A este concílio assistiu o próprio religiosíssimo principe e com sua presença e subscrição confirmou suas atas...22. ...Mas, depois que ascendeu à dignidade do poder real (Suinthila) ocupou, em um combate, as cidades restantes que administrava o exército romano na Hispania, alcançou por seu feliz êxito a gloria de um triunfo superior ao dos demais reis, visto que foi o primeiro que obteve o poder monárquico sobre toda a Hispania peninsular, fato que não se deu com nenhum principe anterior...23.

Ao mesmo tempo, verificamos que as informações contidas tanto nos escritos isidorianos como nos de outros autores hispano-visigodos encontram ecos na legislação laico-eclesiástica publicada ao longo do século VII, especialmente quando o tema centrase nas tentativas de usurpação desferidas contra o poder régio hispano-visigodo e as suas consequências que incluíam, também, penalizações e castigos24. Sabemos que algumas ações usurpatórias perpetradas resultaram na vitória dos promotores da usurpação que alcançaram a condição régia, casos de Sisenando (631 – 636+), Chindasvinto (642 – 651+) e Ervigio (680 – 687+), enquanto outras, como a liderada pelo conde Froya (652) e a conduzida pelo duque Paulo (672), foram duramente aplacadas pela força do poder régio vigente. Estas últimas, marcadas pela derrota dos usurpadores, apresentam-nos um denominador comum que será analisado a partir de agora: ambas aparecem marcadas nas fontes históricas por uma prática consuetudinária que sempre esteve associada aos grupos aristocráticos godos, o morbo gothorum, que pode ser visto como uma atitude de traição

Isid., HG, 52-53: “...In ipsis enim regni sui exordiis catholicam fidem adeptus totius Gothicae gentis populos inoliti erroris labe detersa ad cultum rectae fidei reuocat. Synodum deinde episcoporum ad condemnationem Arrianae haeresis de diuersis Spaniae et Galliae prouinciis congregat, cui concilio idem religiosissimus princeps interfuit gestaque eius praesentia sua et subscriptione firmauit...” 23 Isid., HG, 62: “...Postquam uero apicem fastigii regalis conscendit, urbes residuas, quas in Spaniis Romana manus agebat, proelio conserto obtinuit auctamque triumphi gloriam prae ceteris regibus felicitate mirabili reportauit, totius Spaniae intra oceani fretum monarchiam regni primus idem potitus, quod nulli retro principum est conlatum...” 24 FRIGHETTO, Renan, El exilio, el destierro y sus concepciones políticas en la Hispania visigoda: los ejemplos de Juan de Bíclaro e Isidoro de Sevilla (siglos VI – VII). In: VALLEJO GIRVÉS, Margarita (ed.), BUENO DELGADO, Juan Antonio (ed.), SÁNCHEZ-MORENO ELLART, Carlos (ed.). Movilidad forzada entre la Antigüedad Clásica y Tardía. Alcalá de Henares: Ediciones Universidad de Alcalá de Henares, 2015, p.111-134. 22

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endêmica ou, pelo contrário, como demonstração das disputas aristocráticonobiliárquicas pelo acesso ao poder régio no reino hispano-visigodo de Toledo. O morbo como sinônimo de traição: a enfermidade política entre os godos. Inicialmente, devemos buscar uma definição etimológica apresentada pelos autores hispano-visigodos sobre o termo morbo. Para Isidoro de Sevilha, morbo tinha uma evidente vinculação aos problemas adquiridos por um corpo adoentado e debilitado por uma enfermidade: No nome genérico de ‘enfermidade’ se resumem todas as mazelas do corpo (morbi). Os antigos lhe deram o nome de morbus, para mostrar com esta denominação a mortis vis ou a força da morte que da enfermidade se origina...25.

Ou seja, seguindo a descrição oferecida pelo hispalense encontramos uma relação entre os morbi/mazelas relacionados às doenças e enfermidades que assolavam o corpo humano e que sem o tratamento adequado poderiam leva-lo a morte. Ao que tudo indica, esse foi o caso relatado pelo próprio Isidoro sobre a morte do rei Sisebuto (612 – 621+) que “para uns morreu de morte natural, para outros como consequência de ter ingerido uma dose excessiva de medicamentos”26, realçando a ideia de que a enfermidade poderia incrementar-se tanto pelos excessos como pelas ausências. Outro exemplo, mais genérico, encontramos na crônica de Máximo de Zaragoza que se refere à morte do rei Leovigildo ocorrida após uma grave enfermidade27 e que, curiosamente, aparece intimamente vinculada com a condição herética do falecido monarca hispano-visigodo. Aqui encontramos uma interessante analogia entre a enfermidade que debilita e elimina a vida com aquela que, desde uma perspectiva moral, destrói a alma e os valores que se destacam pelas virtudes próprias do homem defendidas pela visão católica que, corroídas pela ambição, se transformam em vícios e pecados. Ao defender e promover o arianismo, Leovigildo apresentava-se, aos olhos dos autores

Isid., Etym., IV, 5, 2: “Morbi generali vocabulo omnes passiones corporis continentur; quod inde veteres morbum nominaverunt, ut ipsa appellatione mortis vim, quae ex eo nascitur, demonstrarent...” 26 Isid., HG, 61: “...Hunc alii proprio morbo, alii inmoderato medicamenti haustu asserunt interfectum...” 27 MAXIMI CAESARAUGUSTANI, MIGNE, J.-P. (ed.). Chronicon. Paris: Patrologia Latina LXXX, 1849. Chronicon, a.587: “...Leovigildus, ingravescente morbo...”. 25

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católicos hispano-visigodos, como o maior inimigo da verdadeira fé, infiel e traidor em potencial. Sua apresentação por Isidoro reforça essa imagem negativa e pejorativa: Com efeito, cheio de furor da perfídia ariana, (Leovigildo) promoveu uma perseguição contra os católicos, relegou ao exílio a muitíssimos bispos e suprimiu as rendas e privilégios das igrejas. Empurrou, também, muitos à pestilência ariana com ameaças e a maior parte seduziu sem perseguição atraindo-os com ouro e riquezas. Entre outros contágios de sua heresia, se atreveu a rebatizar os católicos...28.

Nesta mesma direção é apresentada a descrição oferecida pelo anônimo autor da Vida dos Santos Padres de Mérida. Conjunto de pequenas hagiografias dos bispos emeritenses escrita no primeiro terço do século VII29, esta obra refletia o clima de grande animosidade e confrontação existente na cidade de Mérida entre os grupos católico, liderado pelo bispo Masona, e ariano, comandado pelo bispo Sunna, no final do reinado de Leovigildo30. Acusado de ter provocado inúmeros flagelos e castigos aos católicos, o monarca defensor do arianismo faleceu após “uma gravíssima enfermidade provocada pelo juízo de Deus com uma pena perpétua de uma cruel morte de corpo e alma” 31 , enfermidade ocasionada, segundo o anônimo autor, como decorrência do castigo divino contra o “pérfido” Leovigildo32. A relação morbo/enfermidade associada com os males provocados à alma por causa da conduta moral equivocada e da infidelidade à fé católica

Isid., HG.,50: “Denique Arrianae perfidiae furore repletus in catholicos persecutione commota plurimos episcoporum exilio relegauit, ecclesiarum reditus et priuilegia tulit. Multorum quoque terroribus in Arrianae pestilentiam inpulit, plerosque sine persecutione inlectos auro rebusque decepit. Ausus quoque inter cetera haeresis suae contagia etiam rebaptizare catholicos...” 29 MAYA SANCHEZ, A. Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium. Turnholti: Corpus Christianorum Series Latina 116 – Brepols, 1992, p. VIII; VELÁZQUEZ, Isabel. Hagiografía y culto a los Santos en la Hispania Visigoda: Aproximación a sus manifestaciones literarias. Mérida: Cuadernos Emeritenses 32, 2002, p.177-178. 30 ALONSO CAMPOS, J.J. , Sunna, Masona y Nepopis. Las luchas religiosas durante la dinastía de Leovigildo. In: UNIVERSIDAD DE MURCIA. Antigüedad y Cristianismo: monografias historicas sobre la antigüedad tardia. III. Los Visigodos. Historia y civilización. Murcia: Universidad de Murcia, 1986, p.151-157; CASTELLANOS, Santiago. Poder social, aristocracias y hombre santo en la Hispania visigoda. La Vita Aemiliani de Braulio de Zaragoza. Logroño: Universidad de La Rioja, 1998, p.127-129; VELAZQUÉZ, Isabel. Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633). In: GOETZ, H. W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p. 176; DUMÉZIL, Bruno. Les racines chrétiennes de l’Europe. Conversion et liberté dans les royaumes barbares Ve – VIIIe siècle. Paris: Fayard, 2005, p.274-278; SANZ, Rosa. Historia de los Godos. Una epopeya histórica de Escandinavia a Toledo. Madrid: La esfera de los libros, 2009, p.281-288. 31 ANONIMUS, MAYA SANCHEZ, A. (ed.). Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium, (= VSPE) Turnholti: Corpus Christianorum Series Latina 116 – Brepols, 1992. VSPE V, 9, 5-8: “...grauissimoque morbo Dei iudicio correptus uitam fedissimam amisit et mortem sibi perpetuam adquisiuit crudeliterque e corpore eius anima resoluta, perpetuis penis detenta...”. Uma versão espanhola recente é a de VELÁZQUEZ, Isabel. Vidas de los Santos Padres de Mérida. Madrid: Editorial Trotta, 2008. 32 VSPE, V, 9, 14-15: “...uir denique ortodoxus et per omnia catholicus, qui non patrem perfidum...”. 28

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surgem de forma evidente nesse caso que terá uma importante inflexão no entendimento do termo morbo que, a partir da nossa compreensão, será também relacionado como sinônimo de enfermidade política. Podemos observar este vínculo através da afirmação presente no Tomo régio, documento exarado pelo rei para a abertura de uma reunião conciliar e que neste caso antecede as atas do VIII Concílio de Toledo de 653, nos primórdios do reinado de Recesvinto (652 – 672+), onde o monarca oferece uma imagem, pautada no pensamento paulino33, da sociedade política hispano-visigoda equiparada a um corpo onde a cabeça – o rei – rege a todos os demais membros – a sociedade política: ...a potencia divina submeteu à mim a totalidade do poder que Ele me deixou como herança, pelo qual e dado que a saúde da cabeça é a causa do bom estado dos membros e a felicidade dos povos consiste na mansidão dos príncipes...34.

Parece-nos certo afirmar que ao mencionar a saúde que deveria existir entre a cabeça/rei e os demais membros do corpo/sociedade política do reino hispano-visigodo a mensagem régia apresentada no Tomus do VIII concílio de Toledo dirigia-se no sentido de consolidar a relação política “saudável” que deveria existir entre a monarquia e os segmentos aristocráticos e nobiliárquicos do reino uma vez que: ...em tempos passados, vós e todo o povo juraram que a pessoa de qualquer ordem e honra que comprovadamente tiver maquinado ou trabalhado contra a vida dos reis e para a ruína do povo dos godos e da pátria, seja castigada com uma grave e irrevocável pena, não mereça nunca o perdão e nem alcançará diminuição alguma da pena...35.

Ora, esta mensagem estava diretamente vinculada aos acontecimentos ocorridos entre os anos de 651 e 652, quando a rebelião liderada pelo conde Froya, em aliança com as tribos vascas, provocou uma grande instabilidade na província da Tarraconense ao

O preceito paulino sobre o corpo aparece em I, Coríntios, 12, 12-30: “Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo (...). Mas Deus dispôs cada um dos membros do corpo, segundo a sua vontade (...). Mas Deus dispôs o corpo de modo a conceder maior honra ao que é menos nobre, a fim de que não haja divisão no corpo, mas os membros tenham igual solicitude uns com os outros. Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento...”. 34 VIVES, José (ed.), MARÍN, Tomás (ed.), MARTINEZ, Gonzalo (ed.). Concilios Visigoticos e HispanoRomanos (= Conc.). Barcelona-Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1963. = Conc. VIII Tol., a.653, Tomus: “...divina mici potentia subiugavit. Unde quia regendorum membrorum causa salus est capitis, et felicitas populorum non nisi mansuetudo est principum....”. 35 Conc. VIII Tol., a.653, Tomus: “...retro temporibus ita vos omnique populum iurasse recolimus, ut cuisquumque ordinis vel honoris persona in necem regiam excidiumque Gothorum gentis ac patriae detecta fuisset cogitasse noxia vel egisse, inrevocabilis sententiae multatus atrocitate nusquam mereretur venia remedium vel alicuius temperantiae perciperet qualequumque subsidium...” 33

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ponto de sitiar a capital provincial, Zaragoza, colocando em interdito a autoridade do recém-aclamado rei Recesvinto36. Este episódio recuperava um tema muito candente na história política hispano-visigoda do século VII, o das sucessivas atitudes de traição cometidas por setores aristocráticos e nobiliárquicos contra o poder régio e que tiveram um impacto direto nas práticas adotadas pela realeza que visavam coibir os atos de infidelidade, entendidos na perspectiva teórica como verdadeiras enfermidades que desequilibravam tanto a cabeça/rei como o corpo/sociedade política do reino. Nesse sentido, o caso de Froya é eloquente e a descrição do conde traidor oferecida por Taio de Zaragoza está pejada de termos evocativos desse ato de infidelidade, equiparando-o com uma enfermidade pessoal, moral e política: ...naqueles tempos tortuosos e pestíferos nos quais a mente virulenta espalhava a cizânia e a decepcionante fraude das mentes perdidas no caminho correto: aquele homem pestífero e de cabeça insana, o criminoso, perverso e tirano Froya, inimigo do magno, devoto a Deus e ortodoxo principe Recesvinto...37.

O resultado da reação régia culminou com a eliminação de Froya que teve “uma atrocíssima e ignominiosa morte, destruído pela destra de Deus”38 seguindo, nesse caso, o estabelecido por uma lei que fora editada pelo pai e antecessor de Recesvinto, a LV, II, 1, 6 de Chindasvinto relativa aos prófugos e desterrados que desde o exterior causavam danos e prejuízos ao reino e as gentes hispano-visigodas39. De acordo com a lei, “todo o

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GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Catedra, 1989, p.165; VELAZQUÉZ, Isabel. Pro Patriae Gentisque Gothorum statv (4th Council of Toledo, canon 75, a.633). In: GOETZ, H. W. (org.), JARNUT, J. (org.), POHL, W. (org.). Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early Medieval people an Kingdoms in the transformation of the Roman world. Leiden-Boston: Brill, 2003, p.209; FRIGHETTO, Renan, O rei e a lei na Hispania visigoda: os limites da autoridade régia segundo a Lex Wisigothorum, II, 1-8 de Recesvinto (652-670), in: GUIMARÃES, Marcella Lopes (org.), FRIGHETTO, Renan (org.). Instituições, Poderes e Jurisdições. I Seminário Argentina-Brasil-Chile de História Antiga e Medieval. Curitiba: Juruá Editora, 2007, p.123-124; SANZ, Rosa. Historia de los Godos. Una epopeya histórica de Escandinavia a Toledo. Madrid: La esfera de los libros, 2009, p.312-313. 37 TAIONIS CAESARAUGUSTANI EPISCOPI, MIGNE, J. -P (ed.). Sententiarum libri quinque (=Taio, Sent.). Patrologia Latina LXXX. Paris: Migne,1849. Taio, Sent. Praef., 2, 1-10: “...tempus illud quo tortuosus anguis ore pestiferoin quorumdam mentibus virulenta seminum suorum sparserat zizania, fraudulentaque deceptione a tramite recti itineris gressum removerat mentium perditarum: in quo quidam homo pestifer atque insani capitis Froja tyrannidem sumens, assumptis sceleris sui preversis fautoribus, adversus orthodoxum magnumque Dei cultorem Recesvinthum principem...”. 38 Taio, Sent., Praef., 3, 15-16: “...illi vero inferens atrocissimae mortis ignominiam. Destruxit eum dextera sua Deus...”. 39 LEX VISIGOTHORUM, (= L.V.).In: ZEUMER, K. ed.. Monumenta Germaniae Historica. Legum Sectio I. Legum Nationum Germanicarum. Tomus I. Hannover-Leipzig, Impensis Bibliopolii Hahniani, 1902. L.V., II ,1 ,6 (Flavius Gloriosus Chindasvindus rex), “De his, qui contra principem vel gentem aut patriam refugi sive insulentes existunt”

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criminoso acusado (daquele ato) será sentenciado com a morte (...). E se a ele for concedida a vida por causa da piedade do principe, serão vazados os seus olhos” 40 , castigos extremos e dirigidos aos que fossem acusados de cometerem alguma traição ou infidelidade contra o rei, contra as gentes hispano-visigodas e o reino. O desfecho da ação tirânica promovida por Froya provocou uma tentativa de contenção de possíveis abusos régios na aplicação do castigo para os traidores por parte dos integrantes da aristocracia e, principalmente, do episcopado hispano-visigodo que via com muitas ressalvas a utilização da pena de morte para tais casos. Ao participarem como juízes nos tribunais laicos os bispos, ao menos desde o IV Concílio de Toledo de 633, colocavam-se contrários a execução da pena capital para crimes de traição: Muitas vezes os principes encomendam seus assuntos aos bispos contra alguns réus de alta majestade; mas, por serem eleitos por Cristo para o ministério da salvação, os bispos somente admitirão que os reis lhes nomeiem juízes quando se prometa sob juramento o perdão da pena capital, não quando se prepara uma sentença de pena de morte. E se algum bispo, ao contrário do estabelecido nesse decreto, participar nas condenações capitais de outros, seja réu diante de Cristo do sangue derramado e ante a Igreja perca seu próprio grau41.

Tal recomendação foi recuperada no cânone 2 do VIII Concílio de Toledo de 653 como consequência da aplicação estrita da LV, II, 1, 6 por parte do rei Recesvinto para justiçar a infidelidade cometida pelo conde Froya. Logo, podemos dizer que a prática de imposição da pena capital àqueles que cometessem atitudes de infidelidade contra a figura régia seria mais comum e corrente, culminando com a sua efetivação na lei promulgada no reinado de Chindasvinto. Apesar do reconhecimento na legislação laica, tanto a imposição da pena de morte como a extirpação de membros dos corpos dos condenados por traição foram, uma vez mais, repudiadas pelos bispos conciliares: ...deixamos nas mãos do glorioso principe a realização da mesma misericórdia, pois já que Deus lhe abriu a possibilidade de ter misericórdia não negue ele mesmo os remédios da piedade, os quais L.V., II, 1, 6: “...horum omnium scelerum vel unius ex his quisque reus inventus inretractabilem sententiam mortis excipiat (...). Quod si fortasse pietatis intuitu a principe fuerit illi vita concessa, non aliter quam effossis oculis...” 41 Conc. IV Tol., a.633, c.31: “Saepe principes contra quoslibet maiestatis obnoxious sacerdotibus negotia sua conmittunt; sed quia sacerdotes a Christo ad ministerium salutis electi sunt, ibi consentiant regibus fieri iudices, ubi iureiurando supplicii indulgentia promittitur, non ubi disciminis sententia praeparatur. Si quis ergo sacerdotum contra hoc commune consultum discussor in alienis periculis extiterit, sit reus effusi sanguinis apud Christum, et apud ecclesiam perdat proprium gradum.” 40

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perdurarão moderados pela discrição do principe que concederá a misericórdia em certo grau, mas sem que jamais o povo ou a patria sofram algum perigo ou perda por causa dos indultados (...). Ademais, quaisquer juramentos feitos em favor do poder real ou na defesa do povo ou da pátria, inclusive aqueles anteriores ou mesmo os posteriores a este decreto, devem ser observados irremissivelmente com toda a custódia e vigilância, mas completamente livres daqueles que incluam a amputação de um membro ou a sentença de morte...42.

Contudo, devemos notar que a LV, II, 1, 6 continuou sendo válida à luz do direito régio de reagir à “presunção tirânica” dos grupos aristocráticos que se lançavam contra a autoridade monárquica e apontada claramente desde o IV Concílio de Toledo de 63343. Tanto assim que os castigos previstos na lei promulgada por Chindasvinto surgem como possibilidade de serem aplicados em outra importante rebelião aristocrática e nobiliárquica contra o poder régio hispano-visigodo levada a cabo pelo duque Paulo contra o rei Wamba (672 – 680) no primeiro ano de seu reinado. Centrada nas regiões da Galia Narbonense e da Tarraconense, a rebelião liderada por Paulo pode ser considerada como a mais intensa ocorrida no reino hispanovisigodo de Toledo ao longo de todo o século VII na medida em que envolveu, para além dos grupos aristocráticos hispano-visigodos, agentes externos como vascos, aquitanos e francos em confrontações diretas e muito bem descritas pelo bispo Juliano de Toledo em sua Historia Wambae44. Após uma rápida campanha, marcada pela habilidade estratégica e militar quando impôs diversas derrotas aos rebeldes e seus aliados externos, Wamba conseguiu capturar o duque Paulo e uma significativa parcela de seus apoiantes godos após a derradeira batalha que

Conc. VIII Tol., a.653, c.2: “…opus in gloriosi principis potestate redigimus, ut quia Deus illi miserendi aditum patefecit, remedia pietatis ipse quoque non deneget, quae ita principali discretion moderata persistant, ut et illis sit aliquatenus misericordia contributa et nusquam gens aut patria per eosdem aut periculum quodquumque perferat aut iacturam (…). Ceterum quaequumque iuramenta pro regiae potestatis salute vel contutatione gentis et patriae vel hactenus sunt exacta vel deinceps extiterint exigenda, omni custodia omnique vigilantia insolubiliter decernimus observanda, a membrorum truncatione mortisque sententia religione penitus absoluta…”. 43 Conc. IV Tol., a.633, c.75: “...praesumtione tyrannica regni fastigium usurpaverit...”; Conc.VI Tol., a.638, c.17: “...Rege uero defuncto nullus tyrannica praesumtione regnum adsumat...” ; c.18: “...nemo regi eum gubernaculis privet, nemo tyrannica praesumtione apicem regis sibi usurpet...”; Conc. XVI Tol., a.693, c.10: “...Quicumque amodo ex nobis vel cunctis Hispaniae populis quolibet tractatu vel studio sacramentum fidei suae (...) aut praesumtione tyrannica regni fastigium usurpare delegerit...”; Conc. XVII Tol., a. 694, c.8: “…verum etiam ausu tyrannico inferre conati sunt ruinam patriae ac populo uniuerso (...). Unde crudelis et stupenda praesumptio crudeliori debet exstirpari supplicio...”. 44 COLLINS, Roger. Julian of Toledo and the royal succession in late seventh century Spain. In: SAWYER, P. H. (ed.), WOOD, I. N. (ed.). Early Medieval Kingship. Leeds: University of Leeds, 1977, pp.40-49; TEILLET, Susane, L’Historia Wambae est-elle une oeuvre de circunstance?. In: UNIVERSIDAD DE MURCIA. Antigüedad y Cristianismo: monografias historicas sobre la antigüedad tardia. III. Los Visigodos. Historia y civilización. Murcia: Universidad de Murcia, 1986, p.415-424; FRIGHETTO, Renan, Legitimidade e poder da realeza hispano-visigoda, segundo a Historia Wambae de Juliano de Toledo (segunda metade do século VII). Revista Espaço Plural, n. 30, v.1, 2014, p.89-116. 42

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Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. teve como palco a cidade de Nimes: “No primeiro dia das calendas de Setembro teve início a guerra contra a cidade de Nimes. No dia seguinte, a cidade foi invadida. E no terceiro dia (...) o tirano Paulo foi capturado (...)”45. Três dias após a vitória ocorreu em Nimes o juízo dos rebeldes que de acordo com o relato de Juliano contou com a presença de todos os combatentes vitoriosos e do próprio rei Wamba. Nesta assembleia evocou-se exatamente a aplicação da pena de morte contra os rebeldes e traidores do reino, tal qual aparece na LV, II, 1, 6 de Chindasvinto, indicando que tratava-se de uma tradição comum aos godos: No terceiro dia após a vitória, Paulo foi acorrentado junto com os seus e todos foram levados a presença do principe. De acordo com os costumes antigos (Paulo) foi prostrado junto com os seus e foi-lhes imposto o juízo universal de morte, pois prepararam a morte do principe...46.

Atentar contra a vida do principe tinha relação direta com o rompimento do juramento de fidelidade proferido publicamente e feito em nome de Deus para proteger o rei, as gentes hispano-visigodas e o reino sendo, por isso, um ato de traição e de infidelidade imperdoável. Mas no lugar da pena de morte ou de outras penalizações cruéis como a extirpação da destra e o vazamento ocular para estes crimes, observamos que tanto a legislação laica como a eclesiástica apontavam penas e castigos substitutivos para os acusados de cometerem infidelidades contra o rei que tentavam, de todas as formas, eliminar a opção capital47. Uma 45

IULIANUS TOLETANUS, Historia Wambae (= Iul.Tol.,HW). In: LEVISON, W. (ed.), Corpus Christianorum. Series Latina CXV. Turnholti: Brepols, 1976. Iul.Tol.,HW 26, 660-665: “...Primo quippe die pridie Kalendarum Septembrium contra Neumasensem urbem a nostris initum est bellum. Sequenti die Kalendarum Septembrium ciuitatis ipsius inruptio facta est. Tertio quoque die (...), Paulus tyrannus celebri captus detentione deuincitur...”. 46 Iul. Tol., HW, 27, 683-689: “Tertia iam post uictoriam uictoribus aduenerat dies, et Paulus ipse onustus ferro cum ceteris consedenti in throno principi exibetur. Tunc antiquorum more curba spina dorsi uestigiis regalibus sua colla submittit, deinde coram exercitibus cunctis adiudicatur cum ceteris, quum uniuersorum iudicio et mortem exciperent, qui mortem principi praeparassent...” 47 Uma passagem da obra de Valério do Bierzo evoca alguns destes castigos, Val., De Van.Saec.Sap., 6: “...sendo também por ele torturados na própria carne, trazendo-lhes tormento e violência para os seus corpos: como o fogo (queimaduras); golpes corporais; setas; extirpação das unhas; prisão; correntes; pedras; flagelos com espada.../ ...se persecutoribus atque carnificibus oferentes tradiderunt uiolentis corpora sua tormentis, ignibus, feris, eculeis, ungulis, carceribus, catenis, lapidibus, flagellis et gladiis..”.; há uma ótima edição desta obra valeriana feita por DIAZ Y DIAZ, Manuel Cecílio. Valerio del Bierzo. Su persona. Su obra. León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 2006, p.172-193; e também são nominados no Conc. XIII Tol., a.683, c.2: “...Pelo qual, tomando uma medida conforme os desejos do rei, decretamos em comum que nenhum dos integrantes do ofício palatino, ou aqueles pertencentes a santa religião, por estratagema urdido pelo rei ou por instigação de outro poder secular, ou com apoio da maliciosa vontade de qualquer outro homem, seja privado de sua honra e de seu grau ou de servir no palácio real, fora o caso de manifesto e evidente indício de sua culpa, não se lhe aprisione, nem o acorrente, nem lhe submeta a tormento, nem se lhe castigue com qualquer classe de pena corporal ou açoite.../...Unde congruam devotioni eius sententiam decernentes hoc in commune decrevimus ut nullus deinceps ex palatini ordinis gradu vel religionis sanctae conventum, regia subtilitatis astu vel profanae potestatis instictu sive quorumlibet hominum malitiosae volumptatis obnisu citra manifestum et evidens culpae suae indicium ab nonore sui ordinis vel servitio, domus regiae arceatur, non ante vinculorum nexibus inligetur, non quaestioni subdatur, non quibuslibet tormentorum vel flagellorum generibus maceretur...”.

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delas seria a imposição do anátema divino que repercutiria sobre o traidor e toda a sua descendência: ...que ninguém pretenda a morte do rei; que ninguém atente contra a vida do príncipe (...). E se algum de nós temerariamente incorrer em alguma destas coisas, seja ferido com o anátema divino e condenado no eterno juízo sem remédio algum...48.

Outro castigo, o da decalvação, mencionado por Juliano de Toledo, era de fato mais marcante e estava associado com a ideia do triunfo do vitorioso e da humilhação do derrotado. Esta foi a punição escolhida por Wamba para castigar o traidor Paulo e os seus seguidores: “Sem impor a sentença de morte, para substituir a vindicta, se impôs a decalvação”49. O próprio relato do bispo toledano mostra-nos o que seria a imposição da decalvação: “No quarto miliário distante da cidade régia, o tirano Paulo e os seus apoiantes na sedição tiveram a cabeça decalvada, barbas mal cortadas e os pés descalços...”50. Ou seja, todos os traidores tiveram seus cabelos raspados de forma irregular51, signo evidente da insanidade e da loucura do traidor, além de ser um sinal reconhecido nas atas conciliares de que o indivíduo que sofreu a decalvação jamais poderia aceder à condição régia52. Com este ato o legítimo e vitorioso rei Wamba marcava, de maneira indelével, que o traidor e pérfido Paulo jamais poderia almejar ou reclamar o trono para si. Ademais, a atitude do monarca de poupar as vidas dos traidores acentuava uma das virtudes essenciais do bom governante, a clemencia régia dirigida àqueles que se levantaram contra a sua autoridade: “...graças a clemencia do principe foram poupados e não tiveram os olhos vazados...”53. Tanto no caso da fracassada rebelião de Paulo como na levada a cabo pelo conde Froya, encontramos certos elementos comuns e recorrentes que os coligavam, como a pertença de ambos os rebeldes ao círculo aristocrático e nobiliárquico hispano-visigodo,

Conc. VI Tol., a.638, c.18: “...ut nemo intendat in interitum regis, nemo vitam principis nece adtrectet (...). Quod si dein quisppiam horum quisquam nostrorum temerario ausu praesumtor extiterit, anathemate divino perculsus absque ullo remedii loco habeatur condemnatus aeterno iudicio...” 49 Iul. Tol., HW, 27, 689-690: “...Sed nulla mortis super eos inlata sententia, decaluationis tantum, ut praecipitur, sustinuere uindictam...” 50 Iul. Tol., HW, 30, 768-770: “Etenim quarto fere ab urbe regia miliario Paulus princeps tyrannidis uel ceteri incentores seditionum eius, decaluatis capitibus, abrasis barbis pedibusque nudatis... “ 51 DU CANGE. Glossarium Mediae et Infimae Latinitatis. Paris: Libraire des Sciences et des Arts, 1938, v.III, p.17. 52 Conc. VI Tol., a.638, c.17: "...nullus sub religionis habitu detonsus aut turpiter decalvatus..." 53 IULIANUS TOLETANUS, Iudicium (= Iul.Tol.Iud.). In: LEVISON, W. (ed.), Corpus Christianorum. Series Latina CXV. Turnholti: Brepols, 1976. Iul.Tol.Iud. 1, 8-9: “...quibus ex clementia princeps dederit uiuere, effossionem luminum non euadant”. 48

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o apoio oferecido aos dois traidores por significativos grupos aristocráticos hispanovisigodos que concorriam com o poder régio e a utilização da aliança com agentes externos em ambas as confrontações ocorridas no interior dos territórios hispanovisigodos. Rivalidades e antagonismos, incluindo os de extensão regional, que favoreceram as atitudes de insurgência contra a monarquia hispano-visigoda ao longo do século VII. Essa tendência à insubordinação e à infidelidade, com o consequente rompimento dos juramentos de fidelidade, por parte de setores do conjunto aristocráticonobiliárquico do reino hispano-visigodo de Toledo é que aparece como sinônima de enfermidade/doença de fundo político. As sucessivas leis e decretos, fossem de natureza laica, fossem de natureza eclesiástica, que condenavam veementemente as traições, as rebeliões, as sedições, as revoltas e as conjuras palacianas contra o poder régio hispanovisigodo, reforçam ainda mais a ideia de que a sociedade política hispano-visigoda padecia do morbo traidor, a doença comum e característica dos godos, o morbo gothorum que enfraquecia as instituições políticas ao fazer com que seus atores, rei, aristocratas e nobres, se digladiassem para manter ou tentar alçar ao ápice do poder. Uma contaminação que adoecia os principais agentes políticos do reino de forma contínua e que foi esplendidamente diagnosticada pela crônica franca do Pseudo Fredegário ao apresentarnos, de forma breve, a atitude usurpatória promovida por Chindasvinto contra o jovem rei Tulga entre os anos de 641-642: Naquele ano Chintila, rei da Hispania, que sucedeu Sisenando no reino, faleceu. Seu filho, de nome Tulga e de tenra idade, foi elevado ao reino a pedido de seu pai. A gens dos godos fica impaciente quando sobre si não há um forte jugo. Por conta da adolescência de Tulga e graças ao costume comum na Hispania, muitos cometiam insolências. Um dos mais importantes, de nome Chindasvinto, reuniu vários aristocratas godos e alçou ao reino destituindo Tulga e obrigando-o a fazer a tonsura: todos reconheceram o seu poder seguindo o morbo dos godos de degradarem coletivamente a autoridade régia, um vício contra os reis...54.

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FREDEGARII SCHOLASTICI, Chronicum. MIGNE, J.-P. (ed.) Paris: Patrologia Latina LXXI, 1849, 82: “Eo anno Sintela rex Spaniae, qui Sisenando in regno successerat, defunctus est. Hujus filius, nomine Tulga, sub tenera aetate Spaniis petitione patris sublimatur in regno. Gotthorum gens impatiens est, Quando super se forte jugum non habuerit. Hujus Tulganis adolescentia ominis Spania more solito vitiatur, diversa committens insolentia. Tandem unus ex primatibus, nomine Chintasindus, collectis plurimis senatoribus Gotthorum, caeteroque populo, in regnum Spaniae sublimatur, qui Tulganem degradatum ad onus clericatos tonsorari fecit: cumque omne regnum Spaniae suae ditioni firmasset, cognitio morbo Gotthorum, quem de regibus degradandis habebant, unde saepius cum ipsis in consilio fuerat, quoscunque ex eius hujus vitii promptum contra reges...”

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Portanto, a ação usurpatória de destituição do monarca legítimo, por mais fraco politicamente que ele fosse, equivalia a uma atitude de traição e de infidelidade considerada como uma “doença” política que, certamente, provocava instabilidades no tabuleiro político hispano-visigodo. Enfermidade que é apresentada, também, por Juliano de Toledo quando se refere aos habitantes da Galia Narbonense, berço da infidelidade contra Wamba: Nos tempos gloriosos deste principe (Wamba), a terra das Galias, mãe da perfídia, sempre atormentada por uma incompreensível febre de infidelidade nascida em si mesma é marcada por um infame veredito, por causa do qual devorava os membros dos traidores (...). Por muito tempo foi acossada por diversas febres quando, de repente, se levantou o turbilhão da infidelidade pelo erro de uma única e nefasta cabeça e a conspiração da traição passou de um em um55.

Porém, devemos questionar quais seriam os motivos que levavam os grupos aristocráticos e nobiliárquicos hispano-visigodos a serem portadores desta “febre” pérfida contra o poder régio que entendemos como uma enfermidade política desestabilizadora das instituições. Para tanto, vale recordarmos do famoso dito isidoriano sobre a figura régia que, na verdade, é uma extensão do pensamento do poeta romano Horácio: “Rei és se reto agires, se não o fizeres, não serás”56. A retidão régia envolvia uma série de atitudes, pautadas nas virtudes que deveriam culminar com as ações inerentes ao exercício do poder por parte do bom governante, que poderiam provocar reações positivas ou negativas dos integrantes dos grupos políticos hispano-visigodos que participavam, tanto de maneira direta como indireta, na tomada das decisões régias. Como bem apresentanos as atas do Concílio VIII de Toledo de 653: ...E também vós, varões ilustres, que um antiquíssimo costume escolheu dentre os integrantes do ofício palatino para assistir a este santo sínodo, aos que adorna uma ilustre ancestralidade e um sentido de equidade que os designou como cabeças do povo e aos que tenho como parceiros no governo, leais nos contratempos e esforçados na prosperidade...57.

Iul. Tol., HW, 5, 70-73; 80-83: “Huius igitur gloriosis temporibus Galliarum terra, altrix perfidiae, infami denotatur elogio, quae utique inextimabili infidelitatis febre uexata genita a se infidelium depasceret membra (...). Etenim dum multo iam tempore his febrium diuersitatibus ageretur, subito in ea unius nefandi capitis prolapsione turbo infidelitatis adsurgit, et consensio perfidiae per unum ad plurimos transit.” 56 Isid., Etym., IX, 3, 4: "...Rex eris si recte facias, si non facias non eris..." 57 Conc. VIII Tol., a.653, Tomus: “…Vos etiam inlustres viros, quos ex officio palatino huic sanctae synodo interesse mos primaevus obtinuit ac non vilitas exspectabilis honoravit et experientia aequitatis plebium rectores exegit, quos in regimine socios, in adversitate fidos et in prosperis amplecturos strenuous…" 55

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A participação aristocrático-nobiliárquica aparece como elemento essencial para o desenvolvimento efetivo do poder régio, sempre que este último fosse apontado como portador da piedade, da misericórdia, da justiça e da autoridade junto à sociedade política hispano-visigoda. Assim, requeria-se ao rei que atuasse e governasse em prol do bem comum, atitude mais teórica que prática na medida em que o próprio governante apoiavase em determinados grupos aristocráticos e nobiliárquicos que lhe prestavam auxílio incondicional em troca de determinados benefícios que contrariariam interesses de outros grupos alijados do centro das decisões políticas. Para além das rivalidades consuetudinárias entre os vários grupos políticos, talvez tenhamos nessa predileção régia de oferecer benesses aos seus mais próximos apoiantes outra causa muito evidente daquele morbo próprio dos godos que os transformava em “traidores compulsivos”, uma enfermidade política que corroía os alicerces institucionais da própria monarquia hispano-visigoda. Conclusões parciais Logo, podemos afirmar que o morbo gothorum, entendido como enfermidade política ocasionada pela reincidente prática de infidelidade cometida pelo conjunto aristocrático-nobiliárquico contra o rei, foi um dos motores para o enfraquecimento da instituição monárquica hispano-visigoda e a consequente desaparição do regnum gothorum nos primórdios do século VIII. Um sintoma dessa fragilidade pode ser observado graças a constante promulgação, ao longo do século VII, de normas legais, tanto laicas como eclesiásticas, que tentavam alertar e coibir atitudes consideradas como traição e crime contra o rex gothorum, sua família e seus aliados políticos. Os castigos impostos aos traidores, que iam desde a pena capital, passando pela decalvação e chegando ao exílio e redução da condição sociojurídica do condenado, revelam uma tentativa extrema de controle político por parte da instituição régia sobre os agentes aristocráticos e nobiliárquicos que participavam, ao lado do rei, nas ações governativas de administração do reino hispanovisigodo de Toledo. Se, do ponto de vista teórico, o discurso jurídico coadunava-se com o ideal do bom governante onde o rei aparecia como o portador das mais elevadas virtudes morais e políticas, todas voltadas ao bem comum, na prática encontramos reis que ora agiam favoravelmente ao seu grupo de apoio, ora atuavam de forma virulenta para impedir ações de seus opositores que eram enquadradas no âmbito da infidelidade e da traição.

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Por outro lado, é importante notarmos que o segmento aristocrático-nobiliárquico hispano-visigodo tentava promover uma contenção dos excessos ocasionados pela ação régia contra aqueles grupos políticos opositores e que poderiam ser colocados na condição de infiéis e traidores do reino. Nesse caso, destacava-se o papel intermediador do episcopado hispano-visigodo que por meio das reuniões conciliares buscava reduzir o impacto da imposição de penas e castigos mais severos advindos das práticas consuetudinárias e que envolvessem a eliminação física ou a extirpação de membros dos acusados de traição e infidelidade. Tentativa que obteve algum sucesso sem, contudo, eliminar de vez reações mais contundentes da parte de um poder régio pressionado pelas disputas entre os grupos aristocráticos e nobiliárquicos hispano-visigodos que acabavam atingindo-o de forma direta. Além das fontes de caráter jurídico, como as leis civis e eclesiásticas, obtemos importantes informações provenientes das histórias, crônicas e biografias que corroboram significativamente a prática do morbo político entre os grupos aristocráticos e nobiliárquicos hispano-visigodos. De fato, a traição e a infidelidade aos juramentos prestados ao rei, à pátria e ao regnum eram constantes e motivavam, naturalmente, uma reação por parte da autoridade régia e de seu grupo de apoio. Uma afirmação que reforça a caracterização de que as gothicae gentes sofriam da enfermidade política da traição endêmica contra a instituição monárquica que demonstrava uma aversão ao poder centralizado na figura do rex que, desde o ponto de vista ideológico, seria um primus super pares. Antagonismos aristocrático-nobiliárquicos, fricções e lutas pelo poder régio, temas que circundam o morbo gothorum e que por esse motivo merecem a atenção do historiador.

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