Quando ela diz não, é não. Quando ela diz sim, é sim

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Pintura, Desenho, Artistas portuguesas
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Quando ela diz não, é não. Quando ela diz sim, é sim.1 Emília Ferreira 1. Breves notas biográficas Sofia Areal nasceu com a pintura inscrita no código genético. Filha do pintor António Areal, privou desde cedo com o meio e o fazer plástico. Aos catorze anos, a descoberta da obra de Sonia Delaunay seria decisiva no seu percurso, encontrando aí uma referência plástica e uma reflexão sobre o papel da arte com as quais se identificou. Com dezoito anos, ruma a Inglaterra, para St. Albans, onde segue os cursos de Textile Design e depois o Foundation Course, na Universidade de Hertsfordshire, no College of Art and Design, uma faculdade que até hoje continua a apresentar um programa de estudos de íntima relação entre as antigamente chamadas belas artes e o também antigamente chamado desenho aplicado à indústria. A sua formação inicial, neste contexto britânico, explica parte importante da sua abertura à relação entre as disciplinas e o seu gosto por se dedicar a obras tão distintas como a pintura, o desenho, a ilustração, cenografia e o design de autor — de que é exemplo a sua parceria com a Vista Alegre, criando “múltiplos com uma atitude de peça única”2. Outra parte importante deste processo é intrinsecamente seu: a sua capacidade de reconhecer que tudo, afinal, é desenho e pintura; que tudo, afinal, é apenas o resultado da sua própria visão benigna sobre o mundo. Nesses anos de Inglaterra, entra também em contacto com outras obras: a Escola de St. Yves, em especial Ben Nicholson, mas também Matisse. Ao longo dos anos, surgirão ainda outras influências: Agnes Martin, Louise Bourgeois, as formas contrastantes de preto e branco do desenho de Chilida; Gorky e Hans Arp. Ou Álvaro Lapa. Haverá mais. No regresso a Portugal, em 1981, frequentou os ateliers de Gravura e Pintura do Ar.Co. – Centro de Arte e Comunicação Visual, Lisboa. Em 1982, inicia a 1 2



Texto publicado no livro Sofia Areal. Lisboa: Athena, (Babel) 2011. In “Com as cores de Sofia”, entrevista para a Revista MID, Junho de 2005.

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sua participação em exposições colectivas, na 1ª Mostra de Artes Plásticas, em Lagos, e, em 1990, começa a expor individualmente. São oito anos de balanço até dar esse passo, até mostrar um conjunto de obras só seu. Fá-lo em Lisboa, na Galeria Alda Cortez. Depois disso, participa na realização de um de um portfólio de duas gravuras no âmbito do encontro internacional de gravura no Centro Cultural Francês de Tetouan, em Marrocos, em 1992; executa, com Sérgio Taborda, um painel para a SITTIS e, em 1997, mantendo então

o

ritmo

de

quase

uma

individual

por

ano

e

participando

simultaneamente em colectivas, realiza um conjunto de pinturas para o espectáculo Prometeu, de Jorge Silva Melo. Vamos parar por aqui, nestas notas da sua biografia artística, para olharmos mais de perto os últimos dez anos.

2. “Uma arte sem remorso nem culpa”

Ao longo destes primeiros anos — e permitam-me que agora particularize —, o percurso de Sofia não se cruzou com o meu. Foi apenas em Maio de 2000, quando ela apareceu na Casa da Cerca, na qualidade de artista convidada pelo Festival de Teatro de Almada, que a conheci. Lembro-me de ter simpatizado com a pintora, pelos seus modos claros e educados, pela sua simplicidade. Não conhecia a obra, mas fiquei curiosa. Quando, poucos dias depois, chegaram as telas que iriam integrar a exposição “Alguns dos meus, meus”, e as desembrulhei, tive uma revelação e uma enorme sensação de alegria e de força. Já lá vão onze anos e, desde então, depurando, rasurando, acrescentando, refazendo, arriscando, esvaziando, contrastando, a obra de Sofia nunca mais deixou de me encantar, de me perturbar, de me comover, de me encher de força. Dessa exposição, em que se mostravam 9 obras, recordo em especial o gesto fluido e o atrevimento cromático. Havia uma tela de fundo vermelho que eu visitava todos os dias, pontualmente, ao chegar. Compreendi, sem qualquer esforço, aquilo que escrevera o Jorge Silva Melo, no texto para o catálogo, significativamente



intitulado

“Como

se

desde

sempre

e

sempre

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convalescente”. Também eu, se olhasse durante muito tempo para a pintura de Sofia, aí encontraria sempre uma fonte de poder, um contínuo torvelinho de forças, “uma arte sem remorso nem culpa, uma arte da afirmação e da alegria”. Assim escrevia o Jorge, citando Gilles Aillaud. Assim percebi eu a adequação dessas linhas. Sofia, que tem plena noção de que “falar da estranheza, do difícil, do incómodo, do desequilíbrio”, é o mais apetecível; que tem “reparado que os textos falam sempre disso, da inquietação, do mal estar [de que] há um lado de valorizar o que está fora, só assim é que ela é boa, é sempre viva o feio, viva a inquietação” e que sabe que isso “são lugares comuns do pensamento actual”3, continua a resistir, a criar uma obra sem lamechices, sem reservas, sem dissimulações. Bocage, esse mesmo poeta nem sempre conhecido pelas mais literárias razões, escreveu um dia um soneto que começava assim: “A frouxidão no amor é uma ofensa”. Acrescento: na arte, também. Eis algo de que sempre me lembro, quando vejo os trabalhos de Sofia. Nada neles é comezinho, nada neles é delicodoce ou frouxo. Antes visceral e autêntico. 3. Aspectos da obra. Uma abordagem a uma década de trabalhos plásticos. Ao longo destes dez anos, o trabalho de Sofia tem demonstrado a sua contínua atenção ao mundo. Sem recorrer a recursos miméticos, ela sintetiza o visível em pura expressão. Sofia não gosta de fronteiras. Do mesmo modo que não vê necessidade de hierarquizar o trabalho único e o múltiplo do design de autor — uma relação que também lembra a que Sonia Delaunay tinha com a pintura e com as suas demais criações —, Sofia também não estabelece demarcações entre os universos da pintura e do desenho. A diferença é dada pelo suporte, não havendo rupturas técnicas. Acrílicos, lápis de cor ou de cera, tinta-da-china, aguarela, grafite ou colagem encontram-se, com a mesma força, na pintura e no desenho.

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Notas de uma entrevista (inédita) dada a Jorge Silva Melo.

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Operando também, com idêntica expressividade, em tamanhos muito diferentes, a situação em que o desenho se torna, porventura, mais intimista é na mais diminuta escala. Nesses universos miniatura, encontramos, porém, a mesma força contida, a mesma noção de ritmo compositivo, a mesma gramática de repetição e reinvenção dos padrões, o contraste cromático e a reflexão formal, incessantemente buscada. Orgânica nas suas formas, que lança no espaço, imbricando-as ou deixandoas vogar sobre o fundo, laborando num equilíbrio forjado por assimetrias, a geometria é, na sua expressão de rigor matemático, alheia aos conteúdos plásticos de Sofia, surgindo apenas nos suportes ou em ocasionais traçados de paralelas estruturadoras. De resto, são de facto os suportes que apontam uma ordem geométrica mais determinada. Quadradas, rectangulares, redondas, as telas acolhem a pintura. Os papéis podem, igualmente, ostentar um formato regulamentar (nunca sendo redondos, porém), ou alongar-se como linhas (mimando a escrita, como aconteceu em 2002, de novo na Casa da Cerca, em que os desenhos patentes estabeleciam um profícuo diálogo com os cadernos de João Miguel Fernandes Jorge) ou resumirem-se a simples e perfeitos quadrados, quase citação de ponto. Quanto ao mais, em termos compositivos, a geometria tem, na obra de Sofia, a perturbação da superfície da pele do mundo, marcada de confrontos, sugerindo feridas, a passagem do tempo. No seu processo dialéctico, no seu eterno fazer e refazer em que o traço ou o gesto se contêm, detêm, se alargam e transformam, acolhendo no seu seio os acidentes,

depurando

as

formas

ou

avolumando-as,

iluminando

ou

compactando a paleta, tudo em Sofia Areal é diálogo entre opostos. Nasce daí o seu claro equilíbrio compositivo, urdido numa complementaridade de cheios e vazios, em opacidades e transparências. A paleta não tem hesitações. É feita de cores poderosas, dominada por negros tão intensos como abertos são os brancos, os vermelhos e amarelos, os azuis. E, agora também, os verdes — que tantos anos andaram reduzidos a apontamentos — e ainda os roxos. Todas as cores cabem na sua paleta e todas cabem num tão franco contraste que as faz brilhar como se tivessem sido acabadas de inventar. Daí a força primeva que sentimos na sua obra.



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Nasce também daí a sensação de ritmo e equilíbrio que sempre encontramos no seu trabalho. Como do diálogo entre o silêncio da linha, erguida em torvelinho, tornada rápida para ser menos exacta, para não ser perfeitinha e sisuda, e a lentidão da pincelada, dada em carícia, em pura volúpia. Uma obra que procura e se procura, que não rejeita ambiguidades imprevistos, que não rejeita a noite pelo dia nem se prende na luz para rejeitar a sombra. Um trabalho que oscila sempre na tessitura da completude. Grego, como sempre me pareceu no seu desenho de harmonia délfica: em Delfos, os gregos consagravam 9 meses do ano a Apolo. Apenas 3 a Dionisos. Eis o que Sofia compreendeu. A sua razão plástica não oblitera por isso essa noite primordial, as celebrações telúricas, os contrastes poderosos. E assim oscila ela como os tempos de Deméter, como as estações do ano. Como a órbita dos planetas. Na sua obra, do mesmo modo que oscilam as fases em que o desenho domina, contra aquelas em que a pintura dá cartas, há formas que surgem e desaparecem. Umas voltam ao fim de breve tempo; outras desaparecem durante anos. Exemplos? O turbilhão, uma forma em espiral que tanto marcou as obras de Sofia nos primeiros anos, surgindo com especial pujança no final da década de 90, desapareceu quase por completo. Surge, por vezes, vestigial ou mais visível, por trás de alguma forma mais espessa, mas deixou de ser central. E deixou, sobretudo, de ser fechado sobre si mesmo. Por vezes, quando emerge, ele estrutura, sustenta a pintura como uma força inapelável. Mais rápido, ele agora — em vez de concêntrico — dinamiza o espaço, força o olhar ao movimento. Por tudo isto, na obra de Sofia, sente-se intacta a permanência da inquirição, o seu gosto do olhar, de um ver demorado, que se perde nas formas e nas cores e se desprende nesse incessante exercício de devir que é a sua obra. 4. Os títulos: pistas como jogos As exposições da Sofia têm sempre nomes que sugerem estórias. Mas sugerir não é explicar. Com frequência, por trás dessas palavras, aquilo que elas evocam permanece misterioso. Por vezes, é certo, os seus títulos são claros e inequívocos: “Paisagem”. “Pintura e Desenho”. Assim. Tal e qual. Mas na

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maior parte das exposições encontramos o gosto pelo não-explícito. Os títulos são jogos de palavras ou de ideias “360º ao sol”, “Amar - Variações Marítimas”. Ou frases feitas, como “Cá te espero”, “Telefono-te depois”. Por vezes, apresentam-se como brincadeiras fonéticas: “Eu-do-Eu”, “Ailovió”, , etc. Outras vezes ainda, pistas da e para a sua memória, mais do que indicações para os demais, como “Alguns dos meus, meus”, etc.. A publicação deste livro coincidirá com mais uma exposição. Desta vez, o título é apenas uma palavra. E a palavra é “sim”. Como em porque sim. Como no amor, no compromisso, na possibilidade. Para o melhor e para o pior. Sem reservas. Esse é o poder do vocábulo. A aceitação. Mas também a decisão. Uma palavra simultaneamente simples e complexa, onde cabe tudo o que normalmente encontramos na vida. Neste sim de Sofia cabe também tudo o que encontramos na sua obra: o sol e a noite, os cheios e os vazios, os ritmos das formas e das cores, os jogos lumínicos, os turbilhões, as flores, as borboletas, os alvos, o jogo entre a geometria dos suportes e a organicidade das linhas, das manchas de cor, do seu gesto inteiro. A sua capacidade de resiliência e de recriação. E de oferenda. 5. Um processo dialéctico

É inquiridor, o mundo de Sofia. Espantado, com o espanto inicial do filósofo (aquele que ama o saber); espantado, como a ave de olhos eternamente deslumbrados, na expressão com que Ortega y Gasset explicava a razão de ser a coruja a ave associada a esse amor, a philia de Sofia prende-se com o visível, a sua contemplação e a sua recriação. Como escreveu Nelson Goodman: “Perceber o movimento consiste frequentemente em produzi-lo. Descobrir leis envolve delineá-las. Reconhecer padrões é em grande medida uma questão de os inventar e impor. A compreensão e a criação andam juntas.”4 4

In Goodman, Nelson, Modos de Fazer Mundos. Trad. António Duarte. Porto: Edições Asa, 1995, p.60.



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Nesse conhecimento e reconhecimento se vai construindo o trabalho desta artista. Cerca de 2000-2002, vemos como a sua obra passa dos grandes planos de cores estivais e intensas e contrastantes dos fundos, em jogo com as formas orgânicas que se lhes sobrepunham, para uma escrita intimista do desenho, operada entre 2002-2004. Vemos também como, ao mesmo tempo, a sua pintura, apesar de manter os amplos e envolventes negros, arranjou espaço para se adoçar e voltar a encher de luz, abrindo a paleta. Então, as linhas do desenho depuraram-se, passando dos torvelinhos anteriores a formas mais sintéticas e silenciosas. Mas logo se adensaram de novo. O ano de 2005 encontra-a em franco regresso à pintura que atravessa ainda 2006. Em 2008, surpreendem-nos as aguadas de negro aclarado, de sabor oriental, que forçam as outras cores a mostrar-se mais, a exibir a sua luz. E assim sucessivamente. Mas não fique, porém, a ideia de que existem alternâncias lineares como esta escassa e aparente cronologia parece fazer crer. O que existe, sim, é a necessidade da artista de continuar a pintar, de voltar a cada gesto com que recria o mundo nas suas paisagens que retiram do real os fragmentos que lhe interessam: um sol que brilha, uma noite intensa, uma baía num estio distante, um bilhete de comboio num caderno de um velho amigo, uma flor ou um padrão de um tecido. 6. Os temas A atenção que Sofia dá ao mundo materializa-se com frequência no exercício da paisagem e da natureza-morta. Por vezes, ela toma como mote apenas uma flor, que ela reanalisa, em variações, como um padrão mágico, que aparenta manter os seus elementos, apresentando todavia inúmeras diferenças entre si. Esses são, porventura, os momentos em que a sua abstracção mantém maior capacidade de evocação. De resto, a síntese que Sofia Areal opera sobre o visível é de uma intensidade tal que dele mais não restam do que formas e cores pictoricamente relacionadas (e não realisticamente representadas). Assim é a sua paisagem. Herdeira do projecto de investigação que, em plena II Guerra, alguns artistas levaram a cabo em St. Yves, uma povoação costeira

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da Cornualha, a pintura de Sofia Areal vive do movimento, da cor, da luz, da estrutura linear a que são depurados os aspectos de um visual sintetizado. Porém, ao contrário de Naum Gabo, Barbara Hepworth ou Ben Nicholson, Sofia Areal não pinta do natural. Deste, ela recolhe apenas a impressão que na memória é fixada. Breves traços, longos traços, labirínticas ou soltas formas. Cores que em proximidade se animam para ganhar novas forças. Luzes que delas ressaltam em brilhos e opacidades, em espaços abertos ou compactos, de que as obras vivem. Por isso, nas paisagens de Sofia, é impossível descortinar o referente. Mas, porque as suas paisagens vão directas ao que poderia ser chamado o coração dos olhos, porque elas remetem para visões de emoção que aí ficaram retidas, as suas paisagens são perfeitamente identificáveis. 7. Paisagens para nos reencontrarmos. Entre os movimentos de Hélio. Eis uma baía. Uma lista azul entra pela direita da composição e avança até quase atravessar o quadro num plano horizontal. Quase no limite do movimento, empreende uma curva e retorna, em paralelo até sair de cena. Em manchas paralelas, no topo e na base, um amarelo solar matinal marca os limites do papel. Entre essas manchas longas, um rosa pálido sustenta o centro da composição. Sobre ele flutuam as linhas. Esse azul de maré estival, um círculo vermelho centrado com ponto. Duas intensas luas brancas marcam a zona direita da composição. Esse cheio da cor neutra, é contraposto por quatro círculos traçados vazios, apenas registados como contorno, a gesto fino e rápido, a negro. Eis tudo. O que me encantou neste desenho, desde a primeira vez que o vi, foi a luz. “É uma baía” — disse-me, um dia, Sofia. E mesmo que não seja exactamente uma baía, ou mesmo que não seja exactamente a minha baía, aí encontrei de repente, como se tivesse saído da gruta de Platão e tivesse adaptado os olhos à do mundo, a razão pela qual a minha emoção aderira tão poderosamente a este desenho. Ali estavam, intactas, as manhãs da minha infância. Nas cores dos dias, matinais e frescas, no sol ainda jovem e quase branco, lançando sobre as águas o seu gesto mais transparente. Ali estava a areia rosada, do nácar das conchas moídas pelos séculos. Ali estavam os

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clarões da luz, na espuma, no branco que cega. Ali os olhos fechados, vendo o negativo do que percebiam quando abertos. Ali o doce mover da maré, subindo e descendo de mansinho. Ali, até, o círculo ígneo do guarda-sol, como alvo ou marcação do lugar: estou aqui. Todos os dias olho para este desenho e todos os dias sorrio interiormente. Eis uma noite. Pode ser em “7 horas — Azul da Prússia”, uma tela invulgar no percurso de Sofia, pelo seu cromatismo mais surdo. Pode ser na fulguração mais silenciosa das raras telas em que usou planos de apenas uma cor, quase sem perturbação. Pode ser no magnífico tondo negro que, em 2005, integrou o elenco da exposição de Queluz, “360º ao sol”. Nessa tela redonda, o negro denso e matérico do fundo acolhe linhas orbitais brancas, fios de Ariadne de novo enrolados, como quem domestica um novelo depois de o ter desfiado, como quem guarda instrumentos para repetir um percurso, para ousar um caminho uma e outra vez. Cortando a composição, um branco mais espesso marca uma curva em paralelo com um vermelho. Como se vogando nessas linhas, círculos brancos puxam o nosso olhar para que sob eles descubramos mais dois pontos-manchas-círculos vermelhos. Não é o céu nocturno, mas é obviamente o céu nocturno. Noites voluptuosas e inteiras, e intactas, como devem ter sido as que vimos nos primeiros instantes da infância, quando ainda guardávamos de modo mais potencial os genes que deram os olhos deslumbrados às corujas. Aprendi mais sobre pintura a olhar para os trabalhos de Sofia Areal do que a ler muitos livros de pintura. Porque nela percebo que ela retira do mundo as impressões que este um dia, muitos dias, muitas noites, muitas experiências, lhe deixou. Há pessoas que contam as suas memórias de infância com uma capacidade de pormenor que me espanta. Porque, desses tempos, eu apenas guardo sensações. O toque frio da água. A quentura da areia nos pés. Uma mão que se dá. Cheiros. Sons. Sabores. Luz. Cores. Vi melhor a pintura de Sofia quando percebi que ela até podia pintar de olhos fechados. Também vi melhor a pintura de Sofia quando soube que ela mantém, desde sempre, os olhos bem abertos. Observando tudo. Agarrando tudo. Refazendo tudo. Sem desculpas. Recusando o fatalismo. Porque sim.



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Regresso a Bocage, de que me ocupei há pouco, para terminar de citar a primeira quadra do soneto. “A frouxidão no amor é uma ofensa, Ofensa que se eleva a grau supremo; Paixão requer paixão, fervor e extremo; Com extremo e fervor se recompensa”. Foi o que me propus fazer, Sofia. Espero não ter desmerecido.

Almada, 28 de Fevereiro de 2011.



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