Quando filmar o vestuário é tornar público o privado: exemplos portugueses

June 14, 2017 | Autor: Caterina Cucinotta | Categoria: Fashion Theory, Cinema Studies, Portuguese Cinema
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Quando filmar o vestuário é tornar público o privado: exemplos
portugueses
Caterina Cucinotta(




Introdução
Existe uma diferença nos conceitos de público e privado do século passado
e público e privado na nossa sociedade contemporânea. O cinema torna-se o
espelho que reflecte melhor através das imagens, as mudanças de atitude da
sociedade. Este trabalho quer sublinhar as diferenças entre as duas épocas
trazendo exemplos cinematográficos sobre como a representação do corpo no
texto fílmico mudou e continua a mudar em relação ao binómio
público/privado e no seu revestimento que é o vestuário. Os casos que se
vão analisar estão estreitamente ligados com a relação entre os corpos
filmados, o espaço real e o espaço fílmico: o vestuário, como casca do
corpo, demarca limpidamente as duas diferenças ajudando o corpo a sentir-se
mais confortável ao mudar de espaço.
A corrente cinematográfica que vai ser analisada é a etno-ficção: deslize
entre documentário e elementos de ficção onde o cinema português tem tido
sempre uma posição interessante. O realizador Leitão de Barros explorou a
fundo a instabilidade[1] ínsita nos elementos documentalistas e ficcionais
começando por trabalhar a descoberta das comunidades de pescadores com o
documentário Nazaré, praia de pescadores (1927), continuando com a etno-
ficção Maria do Mar (1930) e acabando o ciclo com Ala Arriba! (1942):
trilogia importante esta, que sublinha o início da nossa análise em que a
câmara de filmar tem sempre uma relação dialéctica com os corpos que filma.

Para começar, será fundamental expressar as ferramentas usadas para o
desenvolvimento teórico deste artigo, sublinhando como o cruzamento entre a
Fashion Theory e o género cinematográfico da Etno-ficção, geram um peculiar
tipo de corpo revestido rico em significados.


A Fashion Theory e a Etno-ficção.
Se consideramos o corpo revestido como um conjunto de significados, será
através do estudo das suas representações que conseguiremos analisar a
comunidade, a classe social, a função magica da peça de roupa e a
desidentifição do individuo nela. A performance do corpo engloba em si "a
forma"em que o cinema lhe se aproxima tendo que adicionar, á sua função
têxtil, uma função simbólica ditada pela particularidade da linguagem
cinematográfica.
Patrizia Calefato, professora italiana, no âmbito da mass-moda e da
performance do corpo desenvolve, desde os anos 1990, a teoria do corpo
revestido que vem da fashion theory[2]. No texto-tecido cultural expressam-
se traços individuais e sociais que vão buscar elementos como o género, o
gosto, a etnicidade, a sexualidade, a pertença á um grupo social ou a
transgressão. Começam por aqui as ligações entre a teoria do corpo
revestido do ecrã bidimensional e a realidade tridimensional dos corpos
vestidos.
Se por um lado a teoria do corpo revestido tem como base a ideia de que
nunca só se fala de vestidos ou fatos mas de corpos que usando o cinema
como pratica coletiva, caraterizam o costume social, por outro lado o olhar
sociológico tende a interessar-se ás novas formas da exibição do corpo
tendo como ponto de partida a entrada do cinema nas formas de espectáculo
onde o corpo resulta mudar de forma e expressão para sempre.
A linguagem do cinema e a linguagem do corpo revestido tem em comum o
elemento da visão: vestuário e cinema são de facto as formas com que o
corpo vê o mundo e interage com este na maneira de mostrar-se a si próprio.
Porem trata-se também de uma evidente maneira de tratar o binómio
publico/privado de diferentes perspectivas.
Analisar o vestuário cinematográfico implica procurar interpretá-lo
principalmente a três níveis: o nível fílmico, o nível cinematográfico, o
nível extra-cinematográfico sendo que destes, o nível menos investigado é o
do vestuário no texto fílmico (Giannone, Calefato, 2007; 17).
No nível cinematográfico existe sempre uma relação e um diálogo contínuo
entre o uso real das peças de vestuário e o uso do vestuário pensado para a
ficção bidimensional do ecrã: há peças que funcionam na vida real mas que
não ligam bem com as regras do ecrã onde tudo fica diferente, desde as
cores até a textura. O nível cinematográfico será portanto a relação
dialéctica entre a realidade e a ficção, entre o uso real das peças de
vestuário e o uso cinematográfico das mesmas.
Este nível desagua naturalmente dentro do nível extra-cinematográfico
pois cada peça de roupa traz ao espectador um background visual que vem da
vida real, do mundo extra-cinematográfico e dos estereótipos que este
apresenta. Da mesma maneira as imagens cinematográficas trazem para a
realidade os modelos que através da roupa se reproduzem em centenas nas
ruas.
Por fim vem o nível fílmico, o mais complexo, onde o vestuário ganha
importância porque faz parte da estreita ligação entre actor e personagem:
o que o actor quer transmitir ao espectador tem o seu começo exterior no
seu guarda-roupa. O vestuário pode, neste sentido, representar uma voz
fundamental do Contracto fiduciário de Greimas (Greimas, 1984) que cada
filme estipula com o seu espectador o qual decide conscientemente acreditar
no que as imagens fictícias lhe mostram com base numa coerência
estabelecida por contrato.
Apresenta-se interessante analisar um o mais filmes do ponto de vista do
vestuário porém poucas ou nulas são as analises em relação ao cinema
nacional. Para começar é possível fazer uma primeira distinção entre dois
géneros de vestuário: o primeiro que cria protagonistas, ou como se dizia
antigamente divos, personagens que tornam a própria actuação o ponto focal
da historia que se quer contar: Charlie Chaplin, Marylin Monroe, Greta
Garbo, Amália Rodrigues, Vasco Santana. Este vestuário cinematográfico
ajuda na construção da star por parte do actor que muitas vezes, sobretudo
até os anos 60, tornava-se prisioneiro da própria personagem
cinematográfica. O segundo tipo é o vestuário privado de grandes traços
individuais que permite a criação da personagem coral representada pela
comunidade. Neste texto vamos introduzir este ultimo.
Em Portugal a corrente cinematográfica da etno-ficção resistiu ás modas
do tempo e por vários motivos pode representar uma das faces mais
interessantes na geral teoria do corpo revestido. Á diferença com outros
géneros cinematográficos, esta tem por objecto de estudo não o indivíduo
mas a etnia ou grupo social, a não ser que ele a represente e portanto
dentro da teoria do corpo revestido alcança uma posição importante na
variante da uniformização e desidentificação.


As mutações conceituais
A sociedade do início do século passado, perante a perda da sua própria
gestualidade natural, com o cinema mudo tentou pela última vez reapropriar-
se do que perdeu registando ao mesmo tempo esta perda (Agamben, 1996). De
facto, continua Agamben, sendo o elemento do cinema o gesto e não a imagem,
ele (o cinema) pertence também à ordem da ética e da política e não só da
estética.
Partindo do pressuposto que o que fez a diferença neste tipo de cinema
foi a ideia da descoberta, o que Agamben acrescenta é a necessidade, por
parte da sociedade, desta descoberta. Um género de descoberta, a da etno-
ficção, que representa o regresso às raízes e a consequente descoberta do
que se está a perder. E se o gesto indica algo que tapa a boca para impedir
a palavra tal como a improvisação do actor não profissional aparece para
suprir a impossibilidade de falar, então no nosso caso o vestuário pode
perfeitamente completar o quadro.
A etno-ficção de Leitão de Barros sai literalmente da cidade para ir
descobrir um Portugal diferente feito de grandes espaços abertos, de
personagens que vivem com regras sociais completamente fora do comum,
tentando ficcionar um pouco a narração.
A diferença entre os movimentos de câmara que nos mostram espaços abertos
e os que exibem partes de corpos remarcam o público e o privado, a pertença
a uma comunidade e o indivíduo livre das regras da comunidade. A sequência
da salvação de Maria do Mar por exemplo mostra-nos no princípio dois grupos
diferentes de banhistas, homens e mulheres, cada um com vestuário próprio
que identifica a diversidade: no momento em que a câmara mostra em detalhe
um seio da mulher caíram as regras da comunidade, não há diferenças
sociais, a câmara não está só a querer mostrar o proíbido mas está a despir
Maria do Mar da sua identidade. E ainda o facto de enganar ou pelo menos
confundir o espectador, mostrando-o como uma casualidade, confere ao gesto
ainda mais força. Se tivesse acontecido casualmente, teria sido elidido
durante a montagem. A vontade do realizador residiu no querer mostrar uma
mulher despida da sua roupa, bem como da sua identidade.
Um olhar geral à comunidade de pescadores descobre ainda que existe uma
vontade ínsita nas regras do vestuário nazareno em esconder a mulher e as
suas formas, muito menos forte mas presente também nas poveiras de Ala
arriba!
A melhor subversão talvez se baseie no desfigurar os códigos em vez de
destruí-los? A mulher é maltratada, encaixotada, torcida, encapuzada,
camuflada para apagar cada traça das suas atrativas anteriores (rosto,
seios, sexo); produz-se (...) um corpo sem a parte da frente, uma aplicação
monstruosa, uma coisa. (Barthes, 2006, 129). As mulheres da Nazaré não são
mulheres tal como não são indivíduos livres mas são a representação da
comunidade, o reflexo desta e a prova visível está no vestuário preto que
Leitão de Barros nos mostra.

Trilogia do Mar
Os primeiros dois filmes da Trilogia de Leitão de Barros são mudos:
existem evidentes diferenças no vestuário de um filme mudo e de um sonoro.
O ponto de partida que todos conhecem é que a palavra costumava ser
substituída por cartões entre as sequências filmadas, porém o que nos toca
é compreender como isto se reflecte nos actores, no vestuário e na relação
entre eles. A ausência da palavra resolvia-se com uma actuação teatral e
exagerada, feita de gestos excessivos, maquilhagem muito marcada e um
vestuário redundante. Os cenários, sobretudo interiores, tendiam a ficar
repletos de adereços ornamentais tal como acontecia com os acessórios do
vestuário. Transpondo estes elementos para a fase muda da etno-ficção, as
escolhas estilísticas em Maria do Mar de facto não puseram o acento no
exagero visual pois a inovação foi que cenário e vestuário não faziam
parte de uma total construção fictícia mas eram a realidade pura e nua.
De facto a maioria dos planos foi construída para mostrar a
particularidade, primeiro de tudo estética e visual, do povo nazareno aos
olhos do espectador que estava fora da vila da Nazaré.
Em 1923 foi o realizador francês Roger Lion a descobrir a Nazaré através
as filmagens da longa-metragem Os olhos da alma, drama que misturava a
burguesia lisboeta com o povo nazareno numa intriga de amor que iria
inspirar os sucessivos filmes de Leitão de Barros. Muitos são os elementos
presentes no filme de Lion que se reencontram na sua trilogia a partir da
narração de uma historia de amor até chegar á cenas de tempestade (em Maria
do Mar e Ala arriba!) e, em geral, a ideia de filmar uma comunidade de
pescadores em conjunto, conforme a constituir um corpo único.
A ideia inovadora de Leitão de Barros foi filmar a comunidade na sua vida
do dia a dia tentando imprimir no ecrã, cenário, vestuário e façanhas
naturais dos habitantes da vila. À diferença do filme de Roger Lion, deixou
cair completamente as ligações com o mundo da cidade soltando o espaço e o
tempo, sujeitando as acções ao único patrão qual era o mar.
Enquanto Lisboa com os seus acontecimentos dava um ritmo inquieto á
narração de Os olhos da alma graças também a uma montagem sabia que
alternava imagens da cidade com sequencias da vida na Nazaré, Barros
desiste da frenesis lisboeta, não mistura a beleza nazarena ou poveira
quase selvagem com a corrupção da capital, concentra-se completamente na
comunidade mostrando-a como corpo social e cultural fora do tempo.
A instabilidade conceitual da etno-ficção (Batista, 2009, 112) pode-se
relacionar com os conceitos de público e privado porque por um lado os
elementos documentais (ou de docu-ficção) mostram a parte pública da vila
através de grandes planos, panorâmicas e cenas do dia a dia da sua
comunidade. Quando uma personagem passa dum espaço aberto a um fechado, de
uma aldeia para a cidade, da rua para a sua própria casa, o seu próprio
vestuário mudará em relação à importância que se dá ao binómio
público/privado.
Isto acontece particularmente com o vestuário das mulheres filmadas, que
vão perdendo camadas de roupa à entrada em casa, sobretudo chapéu e xaile
que caindo, deixam finalmente ver o verdadeiro corpo delas sem o esconder
dentro da escuridão uniforme da cor preta.
Por outro lado a ficção penetra nas sequências mais intimistas como
diálogos, acontecimentos que ajudam o desenvolvimento narrativo do enredo
com uma consequente mudança da maneira de filmar através de detalhes,
primeiros planos e campo/contra campo.
Na sequência da festa na aldeia em Ala Arriba!, encontramos nitidamente
os dois exemplos: o baile é filmado de cima numa panorâmica quase
folclórica que mostra a beleza da dança poveira, foca a atenção na relação
entre vestuário e movimento, sublinhando as qualidades plásticas e
estéticas dos figurinos e das silhuetas que desenham.
As cenas de baile são muito interessantes do nosso ponto de vista pois
introduzem dentro do filme o elemento do sonho: a narração suspende-se para
deixar espaço ao espectador de contemplar e descobrir a beleza das
tradições da comunidade. Não é raro estas sequências começarem com uma
panorâmica para mostrar a elegância do vestuário que juntamente com os
passos de dança dos actores formam um único corpo social, cultural e
público.
No caso de Ala arriba! a contemplação é alternada com poucos e curtos
diálogos que surgem no grande plano enquanto a música e alguns planos mais
fechados mostram o desenvolvimento da acção. Este desenvolvimento da acção,
elemento privado, interrompe a contemplação, elemento público, exprimindo
na verdade mais uma apresentação dos costumes da comunidade poveira;
durante a dança ocorre a passagem da pequena estátua do Santo António de
Julha para João Moço, sob conselho do pai dela, a significar o começo
público e formal do noivado.
Passamos do plano geral a um plano fechado deixando nitidamente a docu-
ficção para a pura ficção, o público para o privado. As sombras projectadas
na parede atrás dos noivos e o som da música ao longe dão a continuidade do
privado (a conversa entre os dois) com o público (o baile que continua).
Ainda, quando Julha e João Moço ficam noivos, o rapaz tem um fato elegante,
branco, com colete que dá para perceber o cuidado que se teve para mudar-
lhe o visual como certamente aconteceria na vida real. Porém, a imagem de
João Moço consegue não perder a sua identidade pois ele não abandona o seu
gorro de pescador que o acompanhará durante o todo do filme.
Daqui surge uma reflexão que, do pratico visionamento de uma sequencia,
nos leva a uma teoria que pode ajudar a compreender o filme.
A teoria, desenvolvida principalmente por Pierpaolo Pasolini (Mancini,
Perrella, 1982), que o elemento chapéu na obra fílmica caracteriza a
personalidade de quem o veste, apresenta-se em muitas películas
portuguesas, e alem de estar presente em Ala arriba!, também aparece em
Maria do Mar.
Na sequência do suicídio no oceano por parte do Arrais, para remarcar a
importância do gesto dele e da sua figura na Nazaré, o mar restitui o gorro
à comunidade. Com muita probabilidade Leitão de Barros compreendeu a
importância do acessório ao dedicar um plano inteiro, sem comentários nem
cartões, ao regresso do chapéu sozinho. Neste caso trata-se da identidade
da comunidade inteira que vai conseguir salvar-se através do sacrifício do
Arrais: este decidiu sacrificar a sua vida, o seu privado, para o bem da
comunidade, do público.
Encontramos uma sequência semelhante, ainda mais forte do ponto de vista
da forma, sempre em Maria do Mar, quando as raparigas decidem ir à praia
tomar um banho de mar e de repente a protagonista quase morre.


"E se fossemos dar um banho?": maneiras diferentes em tratar os
conteúdos.
Começa assim com este cartão, a sequência da câmara a filmar as raparigas
que se despem enquanto, graças a uma montagem alternada, vemos os rapazes
fazer a mesma coisa. A parcial nudez destes é posta em contraste com os
vestidos brancos delas. À partida do barco com as raparigas, a atitude da
câmara começa a mudar pois fica sentada com elas em cima do barco, com o
resultado de planos apertados, tremidos, com muitos detalhes de decotes nos
vestidos brancos: a câmara passou de uma filmagem pública, quase
documental, de um banho de mar a um zoom insistente quase mórbido, para
conseguir entrar no privado das raparigas. A alternância na montagem dos
rapazes e das raparigas continua em planos abertos até que um dos rapazes
corre para salvar a personagem de Maria do Mar da morte. Aqui clarificam-se
finalmente as intenções da câmara: no percurso do mar até ao areal esta
quase espia o corpo sem reacção de Maria do Mar nos braços fortes do rapaz
até à revelação de um seio a sair do vestido molhado e a filmagem apressada
antes que a atenção se foque muito sobre ele.
Trata-se de um movimento de câmara que vai à procura do privado num lugar
público e, tendo em consideração a altura em que o filme foi rodado, foi um
gesto bastante atrevido. Já em 1918 Leitão de Barros tinha sido alvo de
fortes críticas por parte da imprensa por ter mostrado, escandalosamente, o
tornozelo de uma mulher espanhola no filme Mal de Espanha.
Mas o potencial que fez do filme um clássico está mesmo na maneira de
filmar, entre documentário e ficção, entre público e privado: o espectador
possui uma linha narrativa que vai-se intercalando com momentos documentais
de grande importância do ponto de vista cultural e visual.
A análise demonstra como não são só as imagens a mudar como também a
atitude da câmara de filmar: maneiras diferentes de tratar os assuntos.
Enquanto uma panorâmica ou um plano fixo é adequado para mostrar a beleza
das aldeias da Póvoa do Varzim e Nazaré, isto não é suficiente para
justificar a curiosidade em entrar no privado dos protagonistas. Em Maria
do Mar parece um meio para pedir desculpa ao espectador por ter perdido a
orientação e durante alguns segundos, na confusão do movimento de câmara à
mão, ter mostrado um seio.
Mesmo esta nudez, apesar de parcial, faz-nos reflectir sobre a maneira
como uma mulher podia libertar-se das regras da comunidade: fique claro que
na realidade não chega o desnudar-se dos trajes populares que vão atrás das
regras rígidas de uma sociedade fechada para conseguir libertar-se dos
vínculos que, naquele caso, afastavam Maria do Mar do jovem, só porque
fazia parte de uma família rival. Que fique claro que na realidade as
coisas são muito diferentes...
Mas na ficção cinematográfica um elemento tão transgressivo como um corpo
feminino quase nu entre os braços de um homem inimigo chega para fazer
mudar, depois, o enredo de toda a história.
A partir daquele momento, liberta das regras da comunidade, liberta do
publico, Maria do Mar consegue nas cenas seguintes encontrar a força, no
seu privado, para se rebelar contra a mãe e casar com o seu amado, contra
tudo e contra todos.
Segundo a nossa opinião, estamos perante uma prova clara de quão útil
pode ser o vestuário, na sua ausência ou presença, para visualizar
rapidamente a mudança interior de uma personagem.
Além da força mais ou menos incontrolável da instabilidade entre
documentário e ficção, o que fica claro é que a Trilogia do Mar é
caraterizada por uma pressão que o individuo exerce sobre a comunidade ( e
em cada um dos três filmes isto é facilmente encontrado também porque
auxiliado pela ficção). Pelo contrario, se formos analisar outra trilogia
de etno-ficção como a Trilogia de Trás-os-Montes, encontramos logo uma
maior liberdade individual que a espaços, mais do que interrompida, é
talvez suportada por um elemento mágico e de fascínio dentro da comunidade.

A Trilogia de Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro não é
por aqui analisada em detalhe mas a diferença entre as duas obras no
contraste entre publico e privado leva a pensar que o movimento gerado
seria contrario, devido primeiro ás regras diferentes das duas comunidades
e depois também à importância da função magica do traje de personagens
individuais.
Em Ala arriba!, onde a força das imagens ficou atrás para deixar espaço á
narrativa, a câmara muda só de posição passando de um plano geral a um
plano médio dos dois actores.
Começar a análise com estes dois filmes é um bom porto de partida para
nos aproxima-mos do conceito de deslize entre público e privado, sobretudo
se pensarmos o quanto, hoje em dia, resulta fácil perder de vista a
diferença em termos visuais entre os dois conceitos que, relacionados ao
conceito de corpo revestido fazem do cinema contemporâneo uma ferramenta
para remarcar mais uma vez a desordem conceitual.


Conclusões: para uma etno-ficção contemporânea.
O género da etno-ficção continua a existir em Portugal e a temática da
descoberta continua a mudar de realizador para realizador: com António Reis
e Margarida Cordeiro predominou a montanha de Trás-os-Montes enquanto Pedro
Costa fez dos subúrbios lisboetas o seu lugar favorito da descoberta
contemporânea.
Mas o que tem em comum estas obras contemporâneas com as primeiras de
etno-ficção?
O elemento da instabilidade entre documentário e ficção está sempre
presente mas o deslize entre público e privado está cada vez mais confuso e
ausente. Aquela nítida diferença entre documentário que mostra o público e
ficção que mostra o privado quase já não existe. E, na minha opinião, a
cena de salvação em Maria do Mar pode e deve ser considerada um ponto de
partida para a etno-ficção contemporânea. A instabilidade cinematográfica
procurada por Leitão de Barros, descoberta através do privado no público na
confusa filmagem da nudez da rapariga a sair da água, de facto diz muito
sobre o desenvolvimento do género da etno-ficção como espelho da sociedade.

Hoje em dia é muito difícil encontrar uma barreira tão visível entre
público e privado. Com aquela sequência não só se tenta ultrapassar a
identidade nazarena da rapariga como se tenta entrar nas rígidas regras
presentes dentro da comunidade inteira.
Tentando desconstruir a afirmação de Agamben e juntando-lhe a
desfiguração de Barthes, a conclusão em relação ao interesse da etno-ficção
do inicio do século passado, resulta ser a tendência por parte do
realizador em procurar o traje em lugares onde a moda ainda não tivesse
feito o seu ingresso.
O traje é uma forma de imitação dos antepassados, ao passo que a moda é
uma forma de imitação dos que estão próximos no espaço (Tarde, 1976).
Todas as sociedades fechadas, ao contrário das sociedades abertas, são
imunes ao fenómeno da moda. Os seus membros vestem, durante séculos, roupas
com o mesmo modelo e penteiam os cabelos do mesmo modo. As suas roupas e os
seus cabelos seguem modas imóveis (a expressão vem de Jean-Baptiste
Say[3]), ou melhor, modas fossilizadas (Baldini, 2005).
A acção de ir para uma vila e filmar a sua comunidade fechada é um acto
ético e político tal como a acção de despir uma mulher e mostrar ao
espectador a sua nudez. Esta é a acção fundamental que ficará como base
para as obras etno-ficcionais seguintes e a partir deste núcleo central, as
rígidas fronteiras entre público e privado esbateram-se.
O interior é permanentemente empurrado para o exterior e tende a mostrar-
se, quer parcialmente, no pescoço, nos pulsos, diante do busto, no fundo da
saia, quer completamente, quando uma peça, a princípio interior, toma o
lugar de uma peça exterior.
O máximo está em mostrar o escondido sem, no entanto, destruir o seu
carácter secreto (Barthes, 1967).
A dualidade entre exterior e interior, entre público e privado leva
sempre, no caso da etno-ficção, à instabilidade entre documentário étnico e
ficção.
O espectador mais atento poderá de facto relevar que, hoje em dia, apesar
do deslize entre público e privado já não resultar tão definido como nesta
Trilogia de Leitão de Barros, quando um realizador mostra uma nudez, muitas
vezes fá-lo com a consciência de despir o indivíduo não só da sua roupa
cénica mas também de uma exacta identidade que o faz membro de uma
comunidade. Dentro das obras etno-ficcionais despir uma personagem é
empurrar o privado para o público mas é também a afirmação que o público é
a comunidade inteira e o privado é representado pelo movimento de dentro
para fora que o indivíduo produz na sua passagem de identidade.


Referências bibliográficas
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Note sulla politica, Torino, Bollati Boringhieri, disponível em
http://ciaomondoyeswecan.myblog.it/archive/2010/08/15/g-agamben-note-
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- Baldini, Massimo (a cura di) 2005, Semiotica della moda, Roma, Armando
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- Barthes Roland, 2006, Il senso della moda. Forme e significati
dell'abbigliamento, a cura di G. Marrone, Torino, Einaudi;
- Barthes Roland, 1967, Il sistema della moda, Torino, Einaudi.
- Batista T., Agosto 2009 Documentário, modernismo e revista em Lisboa,
Crónica anedótica, artigo em Doc on-line, revista digital de cinema
documentário/ ISSN: 1646-477X/, disponível em
http://doc.ubi.pt/index06.html;
- Calefato Patrizia, 1999, Moda, corpo, mito, storia, mitologia del
corpo vestito, Roma, Ed. Castelvecchi;
- Costa R., A outra face do espelho. Jean Rouch e o outro, artigo on-
line de 11/3/2000
- Fulchignoni E., 1989, Conversation between Jean Rouch and Professor
Enrico Fulchignoni, Visual Anthropology, volume 2, Issue 3-4 (artigo
online em
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/08949468.1989.9966514#previe
w)
- Giannone A., Calefato P., Manuale di comunicazione, sociologia e
cultura della moda, volume V, Performance, Meltemi editore, Roma, 2007
- Greimas A. Julien, Del senso 2, Bompiani, Milano, 1984
- Mancini, Perrella, 1982 Pierpaolo Pasolini, corpi e luoghi, Modena,
Theorema edizioni;
- Rondolino G., Storia del cinema. Nuova edizione, Utet libreria,
Torino, 2000
- Tarde Gabriel, 1976, Scritti sociologici, Torino, Utet;
-----------------------
( CECL – Centro de estudos sobre comunicação e linguagem, Faculdade
Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa
[1] O conceito da instabilidade entre documentário e ficção presente na
obra de Leitão de Barros é bem explicado no artigo de Baptista T., Agosto
2009.
[2] O texto de referencia, de 2003, está disponível aqui:
http://www.culturalstudies.it/dizionario/lemmi/fashion_theory.html
[3] "Vi confesso – escreve, em 1832, Jean-Baptiste Say – che non sono
affatto attratto dalle mode immobili dei turchi e degli altri popoli
d'Oriente. Sembrerebbe che esse contribuiscano alla durata del loro stupido
dispotismo". Citação em Baldini, 2005; 45.
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