Quando há um só mundo, aonde vão as viagens?

July 15, 2017 | Autor: Mauricio Rocha | Categoria: Antonio Negri
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Quando há um só mundo, aonde vão as viagens? “Os lugares do pensamento são as zonas tropicais, freqüentadas pelo homem tropical. Não as zonas temperadas, nem o homem moral, metódico ou moderado” Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia (1962). Melhor ainda do que viajar é poder residir no lugar para onde se vai, declarou Negri em entrevista. Viajar é residir deslocando-se, toda viagem sendo despaisamento — jangada no mar, plano de imanência que se constrói habitando nele. Já se disse que a atividade filosófica está mais ligada à geografia do que à história, e que se há filosofia política, seu objeto só pode ser o capitalismo. No momento em que o sistema se estende até os confins da terra, tornado mercado mundial, Antonio Negri desloca-se rumo ao horizonte aberto das Américas (nome herdado de um peninsular florentino, um dos primeiros a se extasiar com o litoral tropical exuberante da hinterlândia que tudo dá e tudo digere). Se for verdade que encontramos as armas para resistir quando fugimos, o pensamento de Negri não deixa de ser orientado por uma saída para fora ou fuga imanente — pela constituição de um espaço-tempo insurrecional que foge à institucionalização, inseparável de uma crise e de antagonismos que liberam agenciamentos sociais e jurídicos inéditos. A matriz conflituosa é maquiaveliana e intempestiva — pois só existe o que resiste; espinosana — é preciso fazer existir o que se conserva e produz liberdade; marxista — afinal, trata-se de destruir o capitalismo, que nada mais tem a oferecer. Sua primeira vinda à Quarta Parte da Terra pode ser vista como mais um momento da longa travessia pós-socialista. Ele veio a trabalho, e foi posto a trabalhar, quase sem descanso: entrevistas nos principais diários (Folha, Globo), conferências (no Palácio Gustavo Capanema), um seminário informal (no Departamento de Direito da PUC), uma visita ao Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), lançamento de livros (Kayrós, Alma Vênus, Multitudo e Cinco Lições sobre o Império) seguido de palestra (na Faculdade de Serviço Social da UFRJ), e encerrou-se — após ir a São Paulo, Brasília, Buenos Aires, e dar outras tantas entrevistas — nos Estados Gerais da Psicanálise (no Hotel Glória) para a coletividade “psi” de vários quadrantes. Quis a fortuna que a visita coincidisse com os primeiros meses do governo Lula — que para muitos, Negri incluído, parece experimentar travessia similar, com altíssimos custos. Os locais visitados por Negri no Rio são mesmo marcos históricos da república onde o passado não passa — e são marcos geográficos que entram em ressonância com a trajetória do filósofo e com as cartas de navegação do êxodo, espécie de guia dos perplexos. Um exemplo é a primeira conferência, numa tarde fria de outubro no Palácio Capanema.

Inaugurada em 1945, a construção leva o nome de seu idealizador, o ministro da biopolítica getuliana: Gustavo Capanema. Discípulo do constitucionalista do Estado Novo (Chico Campos), ex-camisa parda nos anos 30, ousado a ponto de reunir Lucio Costa (responsável pelo projeto), Oscar Niemeyer, Candido Portinari (autor dos painéis de azulejos) e muitos outros para construir o que pretendia ser “a catedral da moderna arquitetura mundial” — o astuto político mineiro seria a exemplo local do estatolatria, e de como nossa modernidade pode ser conservadora. Os pilotis do prédio testemunharam passeatas, manifestações e muitos confrontos entre estudantes e a as forças da repressão, sobretudo durante a Ditadura Militar — que fez da construção um depósito de burocratas e repartições públicas, esvaziando-o culturalmente. Negri estar ali — tendo ao fundo o slogan “Brasil, um país de todos” — era o sinal de outros tempos, para todos. A audiência o recebeu com hospitalidade carioca, misto de respeito amigável, sem transcendência ou cerimônia, plena de expectativa bem humorada. Sentada, em pé, assistindo pelo telão instalado no térreo, amontoada entre câmeras, gravadores e microfones, gente de toda a parte — pelo menos três gerações, desde a mais recente — o brindaria com perguntas atrevidas, provocadoras, enfrentadas com alguma paciência e serenidade setuagenária, sem prejuízo do sarcasmo e do sentido de urgência. Nessa atmosfera, o professor exercitou os sortilégios de sua lírica paduana (que atinge as alturas do conceito temperando-o com entusiasmo desencantado), evidenciando que o tempo do intelectual guia das massas acabou, levando junto palavras de ordem e a fé supersticiosa (no Estado, no Partido, na Classe, na História etc.). Boa parte dos jovens presentes verberava o professor, variando do antiamericanismo inconseqüente, por adolescente, à compreensível preocupação de quem se sabe ocupado — que a proximidade agrava e um guevarismo metafísico renitente só reforça. Em contraponto, assistíamos a transição do filósofo em não-filósofo, em favor de um povo por vir (a multitudo). A palestra resumiu argumentos dos livros editados aqui (Cinco lições e Kayrós), que desdobram os temas já presentes no livro Império: não há globalização sem regulamentação; que a Soberania dos Estados-Nação está em crise — as fronteiras e nexos hierárquicos são produzidos de modo funcional e contínuo — sendo o mundo global um espaço sulcado, dividido horizontal e verticalmente por estrias dinâmicas, móveis. Insistiu no fato de que as dinâmicas da globalização precisariam ser pensadas como essencialmente determinadas pelos conflitos no desenvolvimento capitalista — enfim, é a luta, o antagonismo social presente na relação capitalista, que constitui qualquer realidade política. Negri costuma dizer sobre os juízes que o condenaram sabiam, melhor que muitos historiadores, o significado do comunismo. Quando as novas formas de autoritarismo político se baseiam no controle do trabalho intelectual, é preciso perceber que a globalização é econômica, mas segue a lógica cultural da comunicação, da coordenação cognitiva das condutas

pela mídia eletrônica, fazendo a representação política moderna colapsar e dando lugar a uma zona cinzenta onde se confunde direita e esquerda. O segundo encontro foi uma espécie de antídoto a um certo bom-mocismo iluminista das letras jurídicas cariocas. A visita de Negri ao Departamento de Direito da PUC permitiu que um punhado de privilegiados pudesse argüir o filósofo com uma saraivada de perguntas, comentários e variações sobre suas teses e proposições. O clima ia da assembléia política ao seminário acadêmico e a platéia — composta por veteranos que resistiram à ditadura, integrantes dos pré-vestibulares comunitários, pensadores das redes digitais, espinosistas dispersos e estudantes de direito constitucional — terçou vozes durante horas com o otimismo heterodoxo de Negri. À fadiga inevitável dessas duas jornadas somou-se o sentimento de espanto diante do tamanho continental de nossa miséria, após a visita ao CEASM (associação criada em 1997 por um grupo de moradores das favelas do Complexo da Maré, a maioria com curso superior e experiência de militância, cuja primeira ação foi um curso pré-vestibular comunitário). Ocorre aos europeus essa sensibilidade aguda ao intolerável — que por aqui estamos a reconquistar e cultivar. Lá se foi a serenidade em quarenta minutos de palestra no Campus da UFRJ da Praia Vermelha (cenário de um levante comunista, e da Escola Superior de Guerra, a Sorbonne dos militares que forjaram nossa mais longa ditadura). Negri vê na tradição comunista um certo despeito com os pobres (“como poderiam ser explorados, visto que não trabalham?”). Para o filósofo, os pobres seriam os que não conseguem dar valor à atividade, mas que possuem uma potência a ser expressa — bloqueada pelo sufoco, pela limitação à mobilidade e à cooperação que cria valor. Sujeitos exemplares da exploração, não estão fora da história, e seriam uma força positiva que confronta os limites da vida — enlaçada pelo Capital. No mundo sem fora, a periferia é um limite interior. Vista de perto, ela é marco na carta de navegação. No Hotel Glória (garçonnière de tantos presidentes, povoado por fantasmas da república), a intervenção de Negri encontraria a belle indifference analítica diante da provocação do filósofo que afirmava desconhecer a “existência” do inconsciente (mas essa é outra história). Mauricio Rocha — Professor da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense/U E R J

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